GRANDE PROVA TINTOS DE SYRAH

Grande Prova Syrah

Independentemente dos mitos que rodeiam a sua origem, o pedigree da Syrah é francês. Os estudos genéticos apontam para o Norte do Ródano como o berço da casta. É filha de uma variedade tinta Dureza (pai) e de uma branca Mondeuse Blanche (mãe). Na sua melhor expressão, os vinhos de Syrah são densos, ricos, plenos […]

Independentemente dos mitos que rodeiam a sua origem, o pedigree da Syrah é francês. Os estudos genéticos apontam para o Norte do Ródano como o berço da casta. É filha de uma variedade tinta Dureza (pai) e de uma branca Mondeuse Blanche (mãe).
Na sua melhor expressão, os vinhos de Syrah são densos, ricos, plenos na fruta e texturados em boca, com o corte perfeito de acidez, que equilibra a sua força. É uma casta naturalmente complexa. Para além de saber brilhar sozinha, é uma grande parceira nos lotes, onde contribui com estrutura, taninos e complexidade.
Poucas castas podem gabar-se de uma amplitude aromática tão grande. A sua impressão digital inclui especiaria pujante a lembrar pimenta preta, conferida pelo sesquiterpeno rotundona, um intenso composto aromático. A fruta varia de framboesa e cereja para amora e mirtilo. Pode apresentar notas florais, mentol, eucalipto, folha de chá. Nuances como grafite e algum alcatrão trazem uma dimensão extra. Os precursores tiólicos que a casta tem, por vezes traduzem-se nos aromas de carne fumada. O couro surge frequentemente com a evolução em garrafa.

Retrospectiva

A Syrah teve uma vida longa fora das luzes da ribalta. Nos finais do século XVIII e início do século XIX, os vinhos Syrah de Hermitage entravam nos lotes dos châteaux de Bordéus para mitigar a falta de corpo e estrutura. Estes vinhos chamavam-se “Bordeaux Hermitagé” e eram bastante apreciados na altura (até existe um certo revivalismo nos tempos actuais).
A Syrah chegou à Austrália em 1832, levada por James Busby, considerado o pai da viticultura australiana, que trouxe garfos do Vale do Ródano. E o sucesso também não foi imediato. Durante muitas décadas a casta foi usada para produzir vinhos de mesa baratos, fortificados e mais tarde espumantes (Sparkling Shiraz). A Penfolds mudou este paradigma a partir dos meados do século passado, quando criou o Grange, oferecendo, ao mercado, poderosos e encorpados vinhos que trouxeram a fama aos Shiraz australianos. Mas foi preciso chegar aos anos 80 para assistir ao boom da Shiraz, quando Barossa Valley se tornou uma moda, primeiro em Inglaterra e depois na Europa. Ao mesmo tempo, Robert Parker atribuiu 100 pontos a alguns vinhos de Côte-Rotie e Hermitage; e a crítica especializada começou a dar atenção a casta.
Até o final do século XX, a variedade era cultivada principalmente no Vale do Ródano e na Austrália. Hoje, das castas tintas destinadas exclusivamente à produção de vinho, a Syrah é a quarta mais plantada a nível mundial, a seguir a Cabernet Sauvignon, Merlot e Tempranillo, ocupando uma área de 190 000 ha. É também uma grande viajante, uma das três castas mais espalhadas pelos diferentes cantos do mundo a seguir a Chardonnay e Merlot, estando presente em 31 países (OIV 2017).
Os países com maior presença de Syrah são a França com 64 000 ha, Austrália com 40 000 ha (onde é o líder absoluto em termos de plantação, ocupando quase 27%), Espanha com 20 000 ha (na viragem do século nem chegava a 100 ha), Argentina com 13 000 (em 1991 tinha apenas 608 ha) e África do Sul com 11 000 ha (em 1991 tinha 707 ha). Nos Estados Unidos também está bem presente, sobretudo nos estados de Califórnia, Washington e Oregon.

Amplitude estilística

Os dois nomes principais – Syrah e Shiraz – identificam dois polos estilísticos. O nome Syrah, normalmente associa-se à sua origem em Côte-Rotie e Hermitage, à expressão da casta num clima mais moderado e consequentemente ao estilo mais leve e apimentado, com nuances de fruta vermelha. Sob o nome Shiraz entende-se a performance da casta na sua segunda casa, a Austrália, associada a um clima quente que origina vinhos encorpados e musculados, com fruta preta e notas achocolatadas, por vezes com um toque de eucalipto. Mas quando os produtores australianos das zonas mais frescas, como, por exemplo, Victoria e Canberra, querem comunicar os vinhos ao estilo do Ródano, nos rótulos consta Syrah e não Shiraz. E esta lógica é seguida por produtores em muitos países. Em Portugal adaptou-se o nome Syrah, sem qualquer apelo ao estilo do vinho.
Entre estes dois extremos existe toda a diversidade de estilos que a casta é capaz de exprimir em função das condições de cultivo, das práticas culturais na vinha e das abordagens enológicas.

Syrah em Portugal – chegou, viu e… ficou

É a casta estrangeira com a carreira ascendente mais rápida em Portugal. Ainda no final do século passado a sua presença era insignificante e o conhecimento sobre ela por parte dos produtores e consumidores era próximo do zero. Antes de 1980 existiam apenas 10,82 ha de Syrah no encepamento nacional, e na década seguinte 309 ha. Em 2014 a Syrah já aparece no top 10 de castas mais plantadas em Portugal, ultrapassando muitas variedades nacionais. Hoje a prima donna ocupa uma área de 6 441 ha, o que corresponde a 3% de total das plantações. No top 10 das castas tintas em Portugal só há duas castas estrangeiras, mas se o Alicante Bouschet tem uma história secular no nosso país, a Syrah claramente chegou, viu e ficou.
O Alentejo lidera nas plantações de Syrah com 2 307 ha, que actualmente é a 4ª casta mais plantada na região. Já começa a ser difícil encontrar um produtor no Alentejo que não tenha Syrah. A casta entrou na região “incognitamente” pela mão dos proprietários da Cortes de Cima, com a primeira colheita a decorrer em 1998, e tornou-se num grande clássico.
Lisboa é a segunda região no país com maior presença de Syrah, registando 2 126 ha. A Quinta do Monte d’Oiro apostou na Syrah nos anos 90 e praticamente especializou-se nesta casta. O primeiro monovarietal foi o Reserva Syrah de 1997.
A região do Tejo também teve um papel importante na história da Syrah em Portugal e hoje conta com 707 ha. A Quinta da Lagoalva de Cima foi a primeira a plantá-la nos anos 90 do século passado.
O Douro tem uma relação com Syrah mais qualitativa do que quantitativa. Não há grandes plantações desta variedade, mas os poucos vinhos varietais existentes no mercado são de grande qualidade. A Denominação de Origem não permite a utilização da casta. Por isto os vinhos de Syrah são certificados como regionais, o que, na realidade, não tem impacto na apreciação do consumidor.
Na Península de Setúbal, a Syrah é a segunda casta mais plantada (538 ha) depois do Castelão. A marcha gloriosa da casta francesa faz-se sentir noutras regiões, embora numa escala mais pequena.

 

Curiosidades sobre Syrah

  • As vinhas mais antigas de Syrah na Austrália ainda existem, maioritariamente em Barossa Valley. A Langmeil Winery tem uma parcela de 1,4 ha com videiras de Shiraz plantadas em 1843.
  • Petite Sirah não é o sinónimo de Syrah, é uma outra casta francesa que também responde pelo nome Durif, que surgiu atravez do cruzamento natural entre Syrah e Peloursin.
  • O Dia Internacional de Syrah é 16 de Fevereiro. Estão a tempo de o festejar com um copo de Syrah na mão!

 

Porque Syrah?

Porque é, sem dúvida, uma grande casta de muitos méritos comprovados. Em muitos casos também há uma razão ou gosto pessoal.
O enólogo e produtor Rui Reguinga inspirou-se nos vinhos de Côtes du Rhône e, em 2001, plantou Syrah, Grenache, Mourvèdre e Viognier em solos com calhau rolado da Charneca de Almeirim. Estas uvas dão origem a um vinho único, tributo ao seu pai que toda a vida foi vitivinicultor.
Na Quinta do Noval, por influência do seu Director Geral, Christian Seely, foram plantadas várias castas francesas em 2003 – Cabernet Sauvignon, Mourvèdre, Petit Verdot e Syrah –, das quais as duas primeiras não passaram no casting. Syrah, ao contrário, adaptou-se facilmente ao clima quente e seco da região. O sucesso levou-o a repetir a experiência, plantando em 2007 Syrah na Quinta da Romaneira, um projecto pessoal de Christian Seely.
O enólogo da Quinta do Crasto, Manuel Lobo, conta que quando começaram o projecto no Douro Superior em 2002, a grande área da Quinta da Cabreira permitiu algumas plantações experimentais para testar várias castas. Nas provas cegas das microvinificações, Syrah dava sempre uma prova boa e consistente. Avançaram para a produção comercial e a primeira colheita, de 2013, já mostrou ser uma aposta ganha.
Amílcar Salgado, da Quinta de Arcossó, em Trás-os-Montes, plantou Syrah por acaso há 21 anos. Estava a fazer a enxertia no local e, por lapso, encomendou menos garfos de Touriga Franca do que tinha porta-enxertos. No momento não havia mais e aceitou os da Syrah, ficando com 2000 videiras. Nunca se arrependeu.
O proprietário da Quinta dos Termos, na Beira Interior, João Carvalho, na década dos 90 passava muito tempo em França por causa dos negócios dos têxteis, onde teve oportunidade de provar muitos vinhos feitos de Syrah. Gostou tanto que, em 2002, plantou a casta na sua quinta. Da colheita de 2006 saiu o primeiro Syrah em extreme, embora sem aparecer no rótulo, disfarçado como “Reserva do Patrão”.
Jorge Rosa Santos, um dos irmãos enólogos, responsável pela produção da família, conta que começaram a plantar Syrah em 2004. Têm duas parcelas. Uma no solo xistoso da Serra D’Ossa, que produz vinhos mais concentrados, musculados e tânicos, com aromas a lembrar carne. Outra em solos argilo-calcários esbranquiçados, que dá vinhos mais químicos, com notas de alcatrão e menos fruta. O lote das duas deu um belíssimo vinho, complexo, fino, extremamente equilibrado e cheio de carácter da casta no seu melhor.

Grande Prova SyrahComportamento na vinha

A Syrah prefere clima quente, mas não gosta de calor em demasia. É uma casta vigorosa, produtiva e bastante resistente a doenças. Floresce tarde, evitando, desta forma, possíveis geadas primaveris. Amadurece relativamente cedo, acelerando a maturação depois do pintor, o que deixa uma janela de oportunidade algo reduzida. Todos os enólogos e produtores contactados concordaram que o momento de vindima para Syrah é absolutamente crucial, se não querem apanhá-la “jammy”.
Syrah é uma casta com comportamento anisohídrico, como a Touriga Nacional, ou seja, em condições de falta de água, aguenta algum tempo sem fechar os estomas, continuando a sua actividade fotossintética. Mas se o stress hídrico se prolongar no tempo, podemos ter “uvas em passa e taninos verdes” – refere Manuel Lobo. Entretanto, “excesso de humidade no solo, como por exemplo, na zona de Campo, é uma tragédia” – afirma Rui Reguinga.
Amílcar Salgado partilha a sua experiência de 20 anos com Syrah: “Casta excelente. O porte erecto facilita a condução e todo o trabalho na vinha. Muito homogénea na produção, não precisa de correcções, mesmo em anos quentes. Gradua bastante sem perder o equilíbrio. A Touriga Franca, por exemplo, perde acidez mais rápido.”
Mas não há bela sem senão. A casta é susceptível a uma doença de etiologia complexa e ainda não totalmente explicada – declínio da Syrah, que foi observado pela primeira vez no sul de França. Basicamente é uma morte prematura da planta. Amílcar Salgado observou este fenómeno nas suas vinhas, onde as videiras com 13-15 anos, vigorosas e aparentemente boas, de repente começam a enfraquecer, as folhas entram em senescência prematuramente, as varas não atempam devidamente. Mas tarde as plantas acabam por morrer e têm de ser substituídas. Rui Reguinga referiu o mesmo problema, devido ao qual já perdeu cerca de 15-20% das cepas.

 

A impressão digital da Syrah inclui especiaria a lembrar pimenta preta, conferida pelo sesquiterpeno rotundona.

 

Comportamento na adega

A Syrah não é só amiga do viticultor, é também uma grande aliada do enólogo, adaptando-se a diversas abordagens na adega. Até vinificada em talha se porta lindamente, como tivemos oportunidade de confirmar numa prova da Sovibor, no Alentejo.
Carlos Agrellos, da Quinta do Noval e da Romaneira, prefere não fazer grande maceração a frio e extrair só o necessário. Jorge Rosa Santos gosta de fermentações longas, a 24-25˚C – porque assim tem mais tempo para tomar boas decisões e todas as fracções da prensagem entram no lote – e do tanino mais “grippy”. Rui Reguinga e Graça Gonçalves, enóloga na Quinta do Monte d’Oiro, fazem macerações prolongadas. Na opinião de Amílcar Salgado, a Syrah permite uma boa extração de cor sem muito trabalho e não tem taninos agrestes.
A Syrah responde muito bem ao estágio em madeira, mas “é preciso ter alguma contenção de tosta nas barricas – a casta sozinha tem aromas bem definidos e apimentados” – explica Manuel Lobo. Por isto utiliza apenas 30-35% de barricas novas, sendo maioritárias as barricas de segunda e terceira utilização. Carlos Agrellos tem uma abordagem semelhante na Quinta do Noval e na Quinta da Romaneira, utilizando barricas novas, de segunda e terceira utilização.
As percentagens de barrica nova variam no lote final. Por exemplo, o Syrah do Apontador (Romaneira) aguenta mais 10-15% de barrica nova do que o Syrah da Quinta do Noval. Jorge Rosa Santos cada vez gosta mais de madeiras de maior volume e estagia o vinho 24 meses em toneis de 3.000 L com 30 anos.
Como a Syrah é uma casta com tendência para redução, abordámos este assunto com os enólogos. Carlos Agrellos vai arejando o mosto se for necessário. Graça Gonçalves controla por perto a quantidade de azoto assimilável no mosto, cuja falta pode originar redução durante a fermentação. Se for preciso também fazem arejamento ou introduzem oxigénio na cuba. Rui Reguinga e Amílcar Salgado fermentam em lagar, o que permite mais oxigenação e mais superfície de contacto com as massas. Jorge Rosa Santos não tem medo de reduções, mas sim das oxidações, explicando que “há sempre solução para redução”. Nos brancos é mais definitiva do que nos tintos, onde normalmente é resolvida com o estágio em madeira.
Por vezes, a companhia minoritária da casta branca Viognier, em co-fermentação, dá um brilho extra à Syrah. É uma prática usada em Côte Rotie para estabilizar a cor. Assim, o Quinta Monte d’Oiro Reserva tem 4% de Viognier e o Quinta do Crasto Superior tem 3%. Manuel Lobo vê o contributo deste tempero mais na textura e não tanto na fixação da cor ou no aroma.
O Tributo, de Rui Reguinga, para além da Viognier, tem Grenache e Mourvèdre. A Syrah, com 80-85%, dependendo do ano, domina, mas acaba por adquirir uma complexidade adicional.

 

Por vezes, a companhia minoritária da casta branca Viognier, em co-fermentação, dá um brilho extra à Syrah.

 

Que será, Syrah!

Será que a casta forasteira faz sentido em Portugal ao lado de tantas variedades nacionais de grande qualidade? Não assume demasiado protagonismo no palco vitivinícola português? Não desvirtua a identidade dos vinhos nacionais?
É óbvio que não é com Syrah que nos afirmamos no mercado internacional. Mas será que isto é impeditivo de produzirmos alguns vinhos marcantes desta casta?
Parece-me que nos últimos 20-30 anos a Syrah deixou de ser uma simples moda, encontrou o seu lugar em terras lusas, encaixou a sua personalidade nos nossos terroirs e cabe-nos a nós, ter um bom senso no seu emprego. Os resultados, esses, não deixam margem para dúvidas…

(Artigo publicado na edição de Fevereiro de 2024)

Porto Ruby Reserva: Um vinho com Character

Porto Ruby Reserva

Recordo-me bem que, na época longínqua em que comecei a poder comprar as primeiras garrafas de Vinho do Porto, havia para mim a “tal” categoria do Vintage, que eu nunca tinha provado. Depois descobri que havia uma outra categoria, esta chamada Vintage Character. Continuando sem saber a distinção entre as duas – à época ninguém […]

Recordo-me bem que, na época longínqua em que comecei a poder comprar as primeiras garrafas de Vinho do Porto, havia para mim a “tal” categoria do Vintage, que eu nunca tinha provado. Depois descobri que havia uma outra categoria, esta chamada Vintage Character. Continuando sem saber a distinção entre as duas – à época ninguém explicava nada e a imprensa do sector quase não existia -, a verdade é que, comparando os preços, cheguei facilmente à conclusão que o preço do Vintage Character era muito mais convidativo. Recordo-me que o primeiro que comprei era da casa Burmester, tinha um rótulo discreto mas bonito e eu fiquei todo contente porque me estava a aproximar do altar (os Vintages…) sem ter de empatar mais do que, à época, podia. E mostrava aos amigos o tal rótulo, dizendo mesmo, “estão a ver, este Porto é do tipo Vintage”, ao que eles (ainda mais ignorantes que eu) aquiesciam com um sorriso amarelo.
Esta história, verdadeira, aconteceu comigo, mas deverá ter ocorrido com muito consumidor. O sector do Porto era muito prolífico em conceitos, categorias e nomes que, invariavelmente, apenas serviam para confundir o apreciador. Será que alguém acreditava que o vinho Founder’s Reserve correspondia exactamente a lotes de vinho que vinham do tempo da fundação da Sandeman? Ou que o Reserva Pessoal da D. Antónia era efectivamente vinho que ela tinha deixado e que continuava a ser vendido hoje? Os exemplos são vários. Estes vinhos ainda hoje existem (como se vê na minha selecção) e continuo sem ter a certeza de que todos os consumidores percebem que se trata a penas de uma marca.

Foi para clarificar a terminologia que o Instituto dos Vinhos do Douro e Porto (IVDP) acabou com a categoria Vintage Character que passou a ser designada como Ruby Reserva. Passou, tal como os Tawny Reserva, a estar incluída nas Categorias Especiais de Vinho do Porto. A nova designação, que também admite a palavra Reserve em vez de Reserva, permite ainda alguns qualificativos extra, como Especial, Special e Finest. Desta forma não há nenhuma categoria que possa incluir (em letra grande ou miudinha) a palavra Vintage, a não ser o propriamente dito ou o LBV (Late Bottled Vintage). Para o consumidor a confusão acabou aqui. De acordo com a legislação em vigor, um Porto Ruby Reserva é “um vinho do Porto de muito boa qualidade, apresentando complexidade de aroma e sabor, obtido por lotação de vinhos de grau de estágio variável que lhe conferem características organolépticas específicas e reconhecido pelo IVDP”. A primeira legislação que regulamentou as Categorias Especiais data de 1973, publicada no início de 1974.
Na história dessa categoria – Vintage Character – há que dizer que esse termo não era usado no rótulo por todas as casas. A Fonseca, por exemplo, usa hoje, como sempre usou, o nome Bin 27 para o seu Ruby Reserva, que se encaixava na categoria Vintage Character — e a Cockburn’s tinha no seu Special Reserve o vinho emblemático que era a marca de Porto mais vendida em Inglaterra.

 

Porto Ruby Reserva

 

O consumo do Ruby Reserva tem tudo de descomplicado: o vinho é filtrado antes de ser engarrafado e por isso não vai criar depósito na garrafa.

 

O que distingue o Ruby do Ruby Reserva?

Nessa categoria – Ruby – a palavra Reserva faz toda a diferença; enquanto no Ruby corrente estamos a falar de vinhos muito jovens, de pouca concentração e que provavelmente nunca passaram em madeira (também devido ao enorme montante de vinho de que estamos a falar), no Reserva já iremos encontrar vinhos com mais estrutura, onde se procurará um balanço entre vinhos que tiveram algum estágio em madeira com outros mais jovens que possam transmitir mais alegria ao lote final. Têm em comum o facto de serem vinhos que resultam do lote de várias colheitas e que têm um perfil que tende a mantar-se idêntico ano após ano. Até por isto fez todo o sentido retirar a palavra Vintage da antiga designação. Como qualquer outro vinho, tem de ser a Câmara de Provadores do IVDP a dar a aprovação do lote como sendo Reserva.

Para algumas casas – a Fonseca, a Sandeman e a Cockburn’s – esta é uma categoria emblemática, responsável por vendas em larga escala. No caso da Fonseca, Bin 27 tem tido, por informação cedida pela empresa, um crescimento anual de 3,5% ao ano e as vendas em 2022 atingiram as 40000 caixas de 12 garrafas. O principal mercado é americano, com Estados Unidos e Canadá a representarem uma grande fatia.
No caso da Symington, a marca Special Reserve é muito importante no Reino Unido (é o Ruby Reserva mais vendido naquele mercado) mas para o desenvolvimento do mercado interno a empresa enviou para esta prova o Six Grapes, o Ruby Reserva da Graham’s. Com o “peso” que o vinho da Cockburn’s tem no conjunto das vendas (62%), a Symington detém, segundo nos informou, cerca de 56% da quota mundial.
A Sandeman assume uma posição forte no mercado americano, onde o seu Founder’s Reserve tem um peso muito forte nas vendas; segue-se o Reino Unido e o mercado interno, com um bom foco no turismo (travel retail).
Na selecção que fiz para esta prova incluí vinhos com produções muito diferentes. Será sempre um erro comparar, sem explicar e integrar, a pequena produção de um produtor “de quinta” com a de uma empresa que vende milhares e milhares de caixas. Há lugar para todos e os exemplos que aqui deixamos de grandes produções mostram que, também nesta categoria, é possível fazer muito e com muita qualidade.

 

Foi para clarificar a terminologia que o Instituto dos Vinhos do Douro e Porto (IVDP) acabou com a categoria Vintage Character que passou a ser designada como Ruby Reserva.

 

O consumo do Ruby Reserva tem tudo de descomplicado: o vinho é filtrado antes de ser engarrafado e por isso não vai criar depósito na garrafa. Isto significa que o manuseamento da garrafa não requer cuidados especiais (importante na venda a retalho, nomeadamente para turistas) e é um vinho para qualquer ocasião. Os que forem um pouco mais encorpados poderão ser perfeitos companheiros para queijos mas este é aquele tipo de Porto que se bebe mesmo sem acompanhamento, mas em boa companhia.
Apenas mais três indicações finais. Primeiro, o Ruby Reserva não merece guarda, não foi para a cave que foi pensado. Por isso a ideia é comprar e beber. Também por esta razão é conveniente evitar comprar garrafas que estejam há anos e anos perdidas nas prateleiras. Apesar de ele viver bem em garrafa o tempo exagerado de estágio (espera?) em garrafa acaba por fazer com que perca brilho. Em segundo lugar, o vinho não requer decantação, mas há que ter algum cuidado na temperatura de serviço. Cerca de 30 a 45 minutos de frigorífico será o suficiente. Finalmente, ainda que possa beber com calma o seu Porto Ruby Reserva depois de abrir a garrafa, será ajuizado não a ter aberta mais de um mês porque o vinho irá perder frescura.

(Artigo publicado na edição de Janeiro de 2024)

Grande Prova Tintos do Douro: No reino da excelência

grande prova douro

Ao longo dos últimos anos temos vindo a constatar e a escrever nas páginas desta revista que a qualidade dos vinhos portugueses não tem parado de crescer ano após ano. A evolução dos vinhos brancos é absolutamente notória, num país que não dispunha, até há 20 anos, de brancos com verdadeira ambição. Mas o mesmo […]

Ao longo dos últimos anos temos vindo a constatar e a escrever nas páginas desta revista que a qualidade dos vinhos portugueses não tem parado de crescer ano após ano. A evolução dos vinhos brancos é absolutamente notória, num país que não dispunha, até há 20 anos, de brancos com verdadeira ambição. Mas o mesmo se diga quanto a outros tipos de vinhos, sendo que, nos tintos, temos mesmo qualidade e quantidade para rivalizar com os mais famosos países produtores.

Em todo o território português, independentemente das denominações de origem, se produz tinto de elevado nível, como se demonstra pelas altas classificações atribuídas pelas revistas da especialidade nacionais e internacionais a vinhos de norte a sul do país. Pois bem, mesmo neste meio de competitividade cerrada, onde cada região procura enaltecer as suas diferenças sem perder a qualidade, uma região teima em reinar, quando abordamos os topos de gama. Sim, falamos do Douro!
Com efeito, no final da avaliação de mais de quatro dezenas de tintos durienses topos de gama acabámos com uma certeza: nunca como agora apreciámos tão grandes vinhos numa única prova e, consequentemente, nunca como agora atribuímos um conjunto de classificações tão elevadas. O que pode explicar esta circunstância? Em primeiro lugar, a existência de muitos produtores da região totalmente familiarizados há décadas com os vários terroirs deste território inóspito que corre, a montante do rio, do Baixo Corgo até praticamente Espanha. Referimo-nos a produtores com notório zelo profissional que recorrem a assistência, muitas vezes de excelência, vitícola e enológica, e que conseguem ter o desafogo suficiente para um duro investimento em barricas e, muitas das vezes, longos estágios em garrafa com os inerentes custos de stock.

São produtores quase sempre ligados à terra, por vezes enólogos de profissão, outras vezes fazendo parte de terceiras e quartas gerações de vitivinicultores, que mantiveram o cultivo da vinha e, em algumas felizes situações, preservaram o grande património que são as (boas) vinhas velhas. É disso exemplo produtores familiares como a família Nicolau de Almeida (Quinta do Monte Xisto), Alves de Sousa (Quinta da Gaivosa), Roquette (Quinta do Crasto), Vieira de Sousa, Barros (Quinta Dona Matilde), Vasques de Carvalho (Velhos Bardos), entre dezenas de outros. Acresce, que a existência deste lote significativo de produtores justifica-se, também, pelo caso económico que a região vai conseguindo seguir, apesar das evidentes e crescentes dificuldades em escoar as grandes quantidades de uva produzidas (com a campanha de 2023 à cabeça). A este respeito note-se que, há já vários anos, que o Douro é a região vitivinícola com maior produção apta a vinho com denominação de origem protegida (DOP), com Minho e Alentejo a alguma distância.

grande prova douro

No final da prova de mais de 4 dezenas de tintos durienses acabámos com uma certeza: nunca como agora atribuímos pontuações tão elevadas.

 

CRIAÇÃO DE VALOR

Trata-se, já o escrevemos, de uma região com marca muito forte, associada a qualidade e requinte, de tal forma que os dados estatísticos são claros no sentido de que é uma das regiões que consegue mais valor no vector preço médio por litro (na restauração é evidente, só atrás do Algarve, fenómeno explicado pelo turismo a sul do país). Ora, este maior valor é muito bem-vindo numa região de dificílimo granjeio da vinha, marcado por grandes extensões de viticultura de montanha, e com baixas produções por videira (muitas vezes abaixo das 2 toneladas por hectare). Um topo de gama do Douro, como evidencia a nossa prova, pode, assim, custar facilmente €25€ ou €100, dependendo dos factores dos quais habitualmente o preço depende, ou seja, raridade, notabilidade e prestígio da marca, qualidade intrínseca, entre outros.
É certo que alguns dos vinhos de topo com valores actuais próximos dos €100, custavam, ainda há 20 anos (em alguns casos quando surgiram pela primeira vez no mercado), quatro ou cinco vezes menos. Mas até essa circunstância espelha bem a evolução da procura por esses tintos, parte pelos mercados internacionais, à qual não é alheia a admirável consistência da qualidade colheita após colheita dessas marcas. São vinhos de enorme carácter, com pergaminhos conquistados ao longo de algumas décadas, todos ao melhor nível do que se faz mundialmente. Referimo-nos a marcas que, nos anos ’90 ou no início do milénio, logo na primeira colheita nasceram sob o espectro de uma qualidade inegociável, casos, entre outros, de produtores como Quinta do Crasto, Quinta do Vale Meão, Pintas ou Poeira.

A par de produtores mais tradicionais, nas últimas dezenas de anos o Douro mereceu forte investimento nacional e estrangeiro (de França ao Brasil, passando pela Suíça e Angola), sendo actualmente vários os produtores com significativa dimensão que aqui operam, tais como Sogrape (uma das pioneiras a apostar forte na região, sobretudo com a compra das Caves Ferreira e Casa Ferreirinha), Bacalhôa/Aliança, passando pelo Esporão (Quinta dos Murças), sem esquecer as casas com tradição do Vinho do Porto, como a Symington, Quinta do Noval, Vallegre, Poças ou Rozès que também produzem excelentes tintos.

 

grande prova douro

Não há dúvidas que os vinhos de vinha e de parcela, vinhos luxuosos e de preço elevado, são a nova coqueluche do Douro.

 

VINHOS DE LUXO E DE PARCELA

Pois bem, os últimos tempos têm ainda sido marcados por uma “corrida ao excelso”, aproveitando os recentes bons anos agrícolas (excelente o 2021) e o conhecimento adquirido de cada vinha e parcela. Com efeito, hoje são vários os vinhos de produções limitadíssimas, que se distinguem do conceito de quinta privilegiando uma seleção minuciosa da fruta numa determinada vinha e mimando-a com os melhores cuidados possíveis. Com efeito, confrontamo-nos cada vez mais na região com o desenvolver de um mercado de luxo nos tintos do Douro. Esse aspecto é também visível noutras regiões do país, mas não encontramos fora do Douro tantos vários vinhos tintos acima dos €100 como nesta região.

Tintos de qualidade raramente antes vislumbrada, com produções entre as 1000 (por vezes menos) e as 5000 garrafas, elevando e engarrafando micro-terroirs particulares e distintos. À cabeça é o caso da nova edição da Série Terroirs pela Quinta do Noval que resulta de uma vinha muito particular da Quinta do Passadouro recentemente adquirida. O mesmo se diga para a Vinha do Rio (da Quinta Vale D. Maria) para a Vinha da Granja (do Vallado), a Vinha do Carril (da Niepoort), a parcela Carrapata (da Quinta da Romaneira) e parcela M7 (Quinta dos Muros), mas também a Vinha do Pinto (da Quinta Dona Matilde) ou a Vinha Rumilã (da Quinta de São Luiz). Isto para não falar de vinhos que, desde a primeira edição, sempre provieram de uma vinha só, caso do Pintas. Ou seja, não há dúvidas que os vinhos de vinha e de parcela são a nova coqueluche do Douro, que assim se juntam a outros vinhos onde o luxo (e o respectivo preço) já era evidente como seja o Quinta da Ervamoira ou o Chryseia. Confrontámos vários enólogos e produtores da região e todos dizem que a procura da vinha perfeita é um desafio quase diário. Jorge Moreira (Poeira, La Rosa, Real Comp.ª Velha) diz ter encontrado a sua junto a Covas (a partir da qual produz o seu limitado Poeira Vinha da Torre), Dirk Niepoort finalmente engarrafou a sua “jóia da coroa”, um vinha mesmo ao lado da sua adega, e a Wine & Soul acaba de comercializar mais um vinho de parcela, agora na Quinta da Manoella).

grande prova douro

 

Mas, mesmo com o que se acabou de escrever, não se pense que não existem grandes relações qualidade-preços nos tintos de topo de Douro. Com efeito, há muito que a região nos habituou a vinhos que, não sendo propriamente baratos, são relativamente acessíveis em ocasiões especiais e de qualidade irrepreensível. Nesta nossa prova também esses brilharam sempre num perfil de fruta bem madura e com potencial de largo estágio na garrafeira. Dos €14€ aos €30 há muito por onde escolher no Douro com a certeza de um tinto assente em castas como Touriga Nacional e Touriga Franca, eventualmente temperadas com Tinta Roriz ou Sousão, e tendencialmente com estágio em barrica de carvalho. São tintos de enorme prazer, com estrutura e dimensão, e que reflectem o xisto da terra que os viu nascer.

 

(Artigo publicado na edição de Dezembro de 2023)

 

 

 

Grande Prova: Tintos do Alentejo

Grande Prova Alentejo

A história da região é longa, desde os fenícios e tartessos, gregos e romanos que deixaram o legado das ânforas e trouxeram técnicas agrárias e cultura da vinha e do vinho. Em 1898, a superfície de vinha no Alentejo era de 20.000 hectares, mas devido a conjunturas políticas e económicas desfavoráveis, a região só voltou […]

A história da região é longa, desde os fenícios e tartessos, gregos e romanos que deixaram o legado das ânforas e trouxeram técnicas agrárias e cultura da vinha e do vinho. Em 1898, a superfície de vinha no Alentejo era de 20.000 hectares, mas devido a conjunturas políticas e económicas desfavoráveis, a região só voltou a atingir esta dimensão 100 anos depois, no início dos anos 2000.
A partir dos meados do século passado surgem as adegas cooperativas de Granja-Amareleja, Portalegre, Borba, Redondo, Reguengos e Vidigueira que não só tiveram um papel fundamental no desenvolvimento da vinha e produção do vinho na época, mas conseguiram modernizar-se e estão bem presentes e activas nos tempos actuais.
O verdadeiro boom dos vinhos alentejanos ocorre por altura dos anos 80-90 com a demarcação da região em 1988. Surgem marcas como Cartuxa, na década dos 80 e Pêra Manca lançada em 1990, ambas da Fundação Eugénio de Almeida, que se juntam aos clássicos José de Sousa, Tapada do Chaves, Mouchão, Quinta do Carmo. Em 1985, realiza-se a primeira colheita sob a marca Esporão (que este ano ficou novamente reconhecida pela revista Drinks International como uma das 50 marcas de vinho mais admiradas do mundo).

Júlio Bastos assinala esta época com os seus famosos Garrafeiras da Quinta do Carmo (de 1985, 1986 e 1987), marca que hoje pertence à Bacalhôa. A partir de 2000 o produtor avança com um novo projecto – Dona Maria – que rapidamente se torna num novo ícone da região.
Os enólogos João Portugal Ramos, com projecto próprio a partir da década dos 90 e o australiano David Baverstock que entra na Esporão em 1992 foram os grandes promotores de mudança no estilo de vinhos, conta Mário Andrade, enólogo e profundo conhecedor da história vitivinícola do Alentejo. Introduziu-se madeira nova e meia barrica. Antigamente os vinhos ou não tinham madeira ou estagiavam em madeira usada de 500 litros ou toneis de maior capacidade. Usava-se sobretudo o carvalho português, por vezes até o castanho; o carvalho francês e americano chegaram nos finais dos anos 90.
Na primeira década de 2000 surgem projectos como Herdade do Rocim, Fita Preta de António Maçanita, Herdade da Malhadinha que hoje estão bem consolidados e reconhecidos.
As características da região e o seu sucesso junto do consumidor motiva produtores de outras regiões e até os empresários estrangeiros a investir no Alentejo. Torre de Palma é um projecto completo de hotel de charme, um restaurante e uma adega numa vila romana perto de Monforte. Esta grande aventura de um casal de farmacêuticos, Ana Isabel e Paulo Barradas Rebelo começou na segunda década de 2000.

Grande Prova Alentejo
Em 2015 o casal de brasileiros Alberto Weisser e Gabriela Mascioli adquiriram a histórica Tapada de Coelheiros, em Arraiolos, pela qual se apaixonaram numa viagem pelo Alentejo.
Em 2017 a Symington Family Estates alargou as suas operações para o Alentejo, iniciando o projecto de Quinta da Fonte Souto, em Portalegre, com 43 hectares de vinha instalada entre os 490 e os 550 metros de altitude.
A empresária Luísa Amorim, responsável pela Quinta Nova de Nossa Senhora do Carmo, no Douro e Taboadella, no Dão, num regresso às origens, em 2017 investiu num projecto pessoal com o seu marido, Francisco Rêgo, e fez renascer a Herdade da Aldeia de Cima, na Serra do Mendro, junto à Vidigueira, terras onde costumava passar às férias na sua infância.
No mesmo ano, o empresário alemão Dieter Morszeck adquiriu a propriedade Quinta do Paral, na Vidigueira, onde reabilitou e ampliou a vinha existente e adquiriu muitas parcelas de vinhas com mais de 70 anos, não aramadas, na zona de Vila de Frades.

Em 2018, pela Família Cardoso, foi construída de raiz a adega da Herdade de Lisboa (berço da clássica marca Paço dos Infantes), na Vidigueira e David Baverstock em parceria com o empresário Howard Bilton inaugurou a adega no projecto Howard’s Folly, em Estremoz.
E ainda mais recentemente foram lançadas as marcas Herdade Monte da Costa Boal Family Estates e Lobo de Vasconcellos Wines do conhecido enólogo do Douro Manuel Lobo.

 

 

 

 

Castas de ontem e de hoje

Não restam quaisquer dúvidas de que o Alentejo foi e é terra de grandes vinhos. O que muda com o tempo é o estilo, o perfil. Outrora, o elenco varietal era outro e toda a performance era diferente. No starring de antigamente entravam Castelão com fruta e Trincadeira com tanino, e o estrelato de hoje pertence a Alicante Bouschet, Touriga Nacional, Syrah e Aragonez. “Os vinhos eram elegantes, com taninos super macios” – refere com certa nostalgia Mário Andrade. “Com o tempo começou-se a preferir vinhos mais estruturados, fechados, com mais madeira”
Se olharmos às estatísticas do IVV do ano 2000, as principais castas do Alentejo eram Trincadeira com 16% e Castelão com 15% de plantação, logo a seguir vinha o Moreto com 8%, embora este produzisse muito e raramente se destinasse aos topos de gama. Os dados da CVR Alentejo mostram que hoje o protagonismo é da variedade Aragonez, que lidera as plantações com 22,6%, embora haja quem o considere um erro de casting por ter “taninos ordinários e grau com fartura”.

O Alicante Bouschet aumenta a sua presença de ano para ano e já atingiu 19,4%. A casta chegou a Portugal no final do século XIX de França, trazida pela família Reynolds e trazida para a Herdade do Mouchão. Contudo, o seu sucesso não foi imediato. Na Reynolds Winegrowers a casta faz parte da identidade dos vinhos. Hoje, é fácil encontrar grandes vinhos feitos desta casta e difícil encontrar topos de gama que não a tenham no lote. É uma casta tintureira – com antocianas concentradas também na polpa para além da película – com grande capacidade cromática, estrutura firme e personalidade forte. Gosta de clima quente e precisa de muitas horas de sol, o que faz do Alentejo uma boa casa para esta uva. Mas para amadurecer os seus taninos maciços, é preciso esquecer a moderação no teor de álcool. A Trincadeira ainda está no terceiro lugar em área plantada, com 13,9%, mas claramente não tem a popularidade de outrora e está em franco declínio, ainda que, muito recentemente, vários produtores a ela retornem, pela capacidade de suportar o calor e stress hídrico.

A Syrah parece ser uma paixão geral. Há apenas 30 anos ninguém sabia o que era e obviamente, não constava nas castas autorizadas da região. Entrou “incognitamente” nos encepamentos e nos vinhos alentejanos pela Herdade Cortes de Cima em 1991 e não deixou ninguém indiferente. Hoje ocupa o 4º lugar no ranking de castas mais plantadas no Alentejo, com 12,1%.
A Touriga Nacional, na sua marcha conquistadora pelo país, desceu das regiões do Norte e fica aqui em 5º lugar, com 8,3%. Há muitos argumentos a favor, começando pela maturação longa o que traz vantagens no Alentejo. Aguenta bem a seca, mantendo o bago túrgido. Aromaticamente agradável, mas às vezes no Alentejo não entrega qualidade todos os anos e com frequência torna-se um pouco enjoativa. Castelão, casta tipicamente alentejana dos tempos passados, literalmente, perde terreno e agora só conta com 4,9%. Cabernet Sauvignon tem 4,2% e mantém-se relativamente estável. Foi emblemática na Tapada de Coelheiros, quando em 1981 foi forte a aposta nas castas internacionais, considerada uma inovação. Os garfos até vieram de Margaux. A casta entra com bastante frequência em lotes, nem que seja como “sal e pimenta”, e até protagoniza alguns vinhos, como por exemplo o 100% Cabernet Sauvignon da Herdade de Lisboa.

 

Alentejo continua a ser o líder absoluto em termos de presença no mercado nacional, com 33,8% em volume, seguido do Minho (Vinho Verde) e Península de Setúbal com mais de 17% cada; e 35,5%, em valor, à frente das regiões Douro e Minho. A região comercializa 70% do vinho no mercado nacional, sendo que apenas 30% é exportado.

Outra casta do Norte que parece conquistar cada vez mais adeptos alentejanos, é a Touriga Franca – é de ciclo longo, agronomicamente adaptou-se bem, não perde folhas basais durante a seca e dá vinhos muito interessantes. Cresce em área plantada a olhos vistos e já ocupa 3,9% das plantações. Alfrocheiro com 2% tem uma certa tendência de diminuir a sua presença e Petit Verdot, com 1,9%, ao contrário, parece estar a crescer. O Moreto com 1,2% também não tem entrado nos vinhos de topo, a menos que seja das vinhas velhas ou para vinhos de talha.
Ao longo das décadas, na vinha também mudou muita coisa: os porta-enxertos (os que são usadas de hoje induzem uma maturação mais precoce o que não é propriamente uma vantagem para uma região quente); as formas de plantação e condução da vinha (antes eram em taça ou guyot que permitia melhor gestão de água e protegia do calor); as vinhas de sequeiro agora são raras e a água para rega é escassa. Aprendeu-se a controlar as produções, orientar a viticultura para a planta ser mais eficiente na sua capacidade fotossintética, escolheram-se clones menos produtivos, pratica-se monda de cachos, sobretudo para os topos de gama. O reverso da medalha, às vezes, é álcool a mais.

Grande Prova Alentejo

Futuro: adaptável e sustentável

As provas verticais proporcionadas por alguns produtores, funcionam como uma máquina do tempo, permitindo sentir as mudanças de castas e estilos. Os mais antigos geralmente com menos corpo e pujança, alguma rusticidade e o teor de álcool à volta dos 13%.
A mudança é imparável, acontece em todas as regiões mundiais devido às alterações, actualizações, modas e melhorias. É preciso não entrar em exagero e manter o equilíbrio.
O futuro das castas no Alentejo, provavelmente, é destinado a aquelas que aguentam melhor o calor e a falta de água. Um certo movimento revivalista vai, com todo o propósito, preservar vinhas velhas de sequeiro e desencantar algumas castas minoritárias. Também me parece que para além da escolha de casta mais fundamentada em múltiplos ensaios, o grande cuidado será aplicado na selecção dos clones (material policlonal), porta-enxertos, locais de plantação e métodos de condução apropriados para cada casta. Chamaria isto escolha de precisão e adaptabilidade mútua.
Voltando à questão do potencial e do investimento, é de notar que as empresas importantes e bem instaladas na região, investem também no conhecimento que pode não gerar lucros a curto-médio prazo, mas gera valor acrescentado a longo prazo e para toda a região.

A Sogrape na Quinta de Peso fez um investimento em plantação de várias parcelas num total de 42 hectares de vinha com castas Syrah, Cabernet Sauvignon, Aragonez, Tinta Miúda, Tinto Cão, Touriga Franca, Gran Noir etc. Uma parte foi plantada em vaso (gobelet), com fruta mais à sombra e melhor gestão de água. É mais trabalhoso, requer mais mão-de-obra, obviamente, – explicou numa conversa o enólogo Luís Cabral de Almeida. Fizeram também o estudo de solos e mediante estes resultados, irão plantar a vinha apenas nos solos apropriados para o efeito.
A Herdade do Esporão está envolvida no projecto WineClimAdapt com o INIAV e outras entidades com o objectivo de selecção e caracterização das castas melhor adaptadas a cenários de alterações climáticas. Nos 10ha de campo ampelográfico encontram-se em estudo 189 castas (alentejanas, nacionais de outras regiões e estrangeiras).

A aposta na sustentabilidade (o Programa de Sustentabilidade dos Vinhos do Alentejo, criado, implementado e certificado localmente é um modelo para o país e para o mundo) é hoje um dado adquirido e um desígnio para todos os agentes económicos locais. Os resultados estão á vista. Se provamos os vinhos antigos do Alentejo com certa nostalgia, e muitos vinhos de hoje com orgulho, acho que, no futuro, ainda iremos ser bem surpreendidos pela positiva. na edição

(Artigo publicado na edição de Novembro de 2023)

GRANDE PROVA ESPUMANTES: As bolhas da nossa alegria

Grande Prova Espumantes

Entre um espumante barato de grande superfície e outro de uma grande marca de Champagne pode haver um intervalo de várias centenas de euros. Tudo terá começado em França mas hoje é um tipo de vinho que se produz em todo o mundo. Todos têm bolhas, mas são muitas as diferenças que os separam. Os […]

Entre um espumante barato de grande superfície e outro de uma grande marca de Champagne pode haver um intervalo de várias centenas de euros. Tudo terá começado em França mas hoje é um tipo de vinho que se produz em todo o mundo. Todos têm bolhas, mas são muitas as diferenças que os separam. Os que são feitos segundo as regras da região francesa apelidam-se de Método Clássico, uma vez que a palavra “champagne” e derivados, como “método champanhês” estão interditos, são de uso exclusivo daquela região francesa. Falamos assim do método de produção que implica a segunda fermentação na garrafa. No entanto existe um outro método – Charmat – muito vulgarizado em Itália mas também presente entre nós em que a primeira e segunda fermentações são feitas em grande depósitos e não na garrafa. No caso dos espumantes da segunda fermentação na garrafa, existe ainda a divisão entre os que usam leveduras livres e os que utilizam leveduras encapsuladas (ver texto em baixo). Finalmente há que referir que existe um outro tipo de vinho com gás natural – o chamado Pet Nat – em que a efervescência deriva do facto do vinho ser engarrafado ainda antes da fermentação alcoólica terminar e, consequentemente, ao terminar na garrafa, acaba por libertar algum gás, conservando também as levaduras mortas que então se apresentam como depósito na garrafa, exigindo cuidados especiais no serviço. Este método – chamado de método antigo ou método rural – corresponde à pré-história do espumante e tem tido actualmente um certo renascimento pelo interesse demonstrado por alguns produtores, sommeliers e consumidores adeptos de produtos alternativos. A prova que aqui publicamos não contempla esses vinhos, tal como não contempla os vinhos feitos pelo método Charmat.
A produção de espumantes, se feita com os requisitos que o progresso científico vem aconselhando, é um trabalho de enorme exigência técnica e laboratorial, com muitas análises e procedimentos que não estão ao alcance de qualquer produtor. Tem pouco equipamento, instalações mal habilitadas, ausência de laboratório? Faça tinto em lagar, faça branco num tonel usado mas…esqueça o espumante!
Decorre da leitura de um texto técnico sobre a produção de espumante que esta é provavelmente a bebida mais manipulável com que nos cruzamos; requer intervenção e decisões em inúmeras fases da produção e por isso se começa também a perceber porque uns custam €5 e outros custam €200. É verdade que os de €5 podem ser muito bem feitos, mas só vende caro quem consegue e o verbo conseguir custa por vezes uma geração (ou várias) a conjugar.

Grande Prova Espumantes

 

Qualquer enólogo que faça espumantes dirá que a prensagem é uma etapa absolutamente crucial no processo produtivo. A razão para isso prende-se com a indispensável separação dos mostos.

Da vinha à garrafa

Quando falamos de espumantes feitos pelo método clássico da segunda fermentação na garrafa temos tendência apenas a valorizar essa etapa e esquecemo-nos de tudo o que se passa antes de introduzir o vinho na garrafa para então se dar a tal segunda fermentação. Para sermos correctos, a produção de espumantes reveste-se de muito planeamento porque tem de ser pensada quando as uvas ainda estão na cepa e não se iniciou a vindima. Vejamos então os passos que têm de ser dados para se produzir um bom espumante. Tudo começa na vinha com a escolha das castas a utilizar. Vamos passar esta parte, partindo do princípio que o produtor já fez essa selecção. A verdade é que a história da região de Champagne demonstrou que a Chardonnay e a Pinot Noir são das que melhor se adequam a este tipo de elaboração. Temos, no entanto, em Portugal algumas variedades que têm dado muito boa conta de si, desde as castas do Vinho Verde, sobretudo a Alvarinho e Loureiro mas com a Alvarelhão a recolher aplausos (como acontece com Anselmo Mendes), a Gouveio no Douro (espumante Vértice, por exemplo), a Baga e a Cercial na Bairrada e, claro, a Arinto, a ubíqua casta portuguesa de múltiplas utilizações.
Seleccionada a casta passamos à etapa seguinte que é a marcação da vindima. Aqui começam as decisões importantes porque é determinante colher as uvas com baixo potencial de álcool e uma acidez elevada. Na Bairrada, por exemplo, as castas que apresentam uma acidez mais elevada são a Arinto e Cercial e as outras variedades, Maria Gomes, Bical e Baga tendem a apresentar uma acidez um pouco mais baixa. Desta forma, uvas com bom equilíbrio para espumante deverão ser colhidas com um potencial alcoólico que não ultrapasse os 11% e uma acidez compreendida entre os 7 e 9 gr./litro (medida em ácido tartárico); deverão ser seleccionadas variedades com baixo teor de substâncias fenólicas (no caso das brancas) e baixo teor de antocianinas (cor) nas uvas tintas.
Seguidamente vem a etapa que antecede ainda a fermentação do vinho-base. Qualquer enólogo que faça espumantes dirá que esta – a prensagem – é uma etapa absolutamente crucial no processo produtivo. A razão para isso prende-se com a indispensável separação dos mostos. Ainda antes de começar a prensar e apenas devido ao peso, poderá haver mosto a sair da prensa; esse será descartado e junto às prensagens finais. A primeira prensagem importante – a cuvée – deverá ser separada da prensagem seguinte – a taille – ainda dividida em duas partes, uma primeira e segunda taille. Na cuvée vamos sobretudo recolher o sumo dos bagos e, no caso das uvas tintas pobres em cor (como a Pinot Noir), recolher um sumo que quase se apresenta idêntico ao das uvas brancas, um mosto rico em açúcares, ácidos e substâncias aromáticas; na taille vamos obter um mosto mais rico em polifenóis e taninos, sobretudo na 2ª taille. Na região de Champagne estabeleceu-se uma regra como segue: uma prensa com 4000 kg de uvas deverá permitir obter 2050 litros de mosto de lágrima (cuvée), 410 litros da 1ª taille e 205 litros da segunda taille. Por norma, após a prensagem os mostos são clarificados e filtrados antes de fermentação em cuba (ou barrica). Percebe-se assim porque se diz que é importante a vindima ser manual e não mecânica, afim dos cachos chegarem inteiros à prensa. Por razões económicas pode juntar-se parte da taille à cuvée, aumentando assim a quantidade final produzida.

A importância do vinho-base

Para se fazer um espumante tem de se fazer primeiro o vinho-base que fermenta como qualquer mosto, normalmente com leveduras inoculadas, sobretudo nos mostos que foram clarificados que têm mais dificuldade em fermentar com as leveduras indígenas. Por norma a fermentação decorre em inox mas, em caves com boa temperatura (que não ultrapasse os 15ºC) pode decorrer em barrica, uma prática que tinha sido abandonada mas está a regressar, sobretudo em produtores de pequena dimensão. Como noutros vinhos também aqui a fermentação tem de ser bem monitorizada, assegurando a total transformação dos açúcares e evitando paragens de fermentação e desvios. É a este vinho base (que poderá incluir vinhos de vários anos que permitem manter o “estilo da casa”) que, após clarificação e estabilização tartárica, se irão adicionar as leveduras e o açúcar que irão operar a segunda fermentação em garrafa fechada. O licor de tiragem, deverá respeitar, grosso modo, a proporção de 24 gr/açúcar por litro e a quantidade de leveduras poderá variar entre 10 e 20 gr por hectolitro, correspondendo a uma quantidade que varia ente 1,5 e 2 milhões de leveduras activas por mililitro de vinho. Após enchimento as garrafas serão colocadas na posição horizontal em cave fria e aí permanecerão por tempo a definir pelo produtor, podendo ir de 1 até 10 anos de estágio. Como vedante usa-se principalmente a carica, mas alguns produtores, após ensaios convincentes, estão a regressar ao antigo método de rolhar as garrafas usando um grampo para ajudar a manter o gás. Diz Celso Pereira que “no Vértice Chardonnay estamos, na sequência dos ensaios dos espumantes Gramona (Penedès), a usar rolha para a segunda fermentação e estágio” Considera-se que quanto mais tempo estagiarem cave, mais fina é a bolha no final. A etapa seguinte é o do removimento das leveduras mortas (remuage) operação cada vez mais automatizada pelo recurso a giropalettes que “mexem” 500 garrafas em cada movimento, poupando assim mão-de-obra, tempo e espaço.
Um outro método consiste na utilização de leveduras encapsuladas em vez de leveduras livres. O método tem várias vantagens, nomeadamente no limitado uso de mão-de-obra e na rapidez com se consegue um vinho pronto (dispensando a remuage das garrafas) e consequente poupança de espaço na adega. O método tem defensores (como o enólogo Osvaldo Amado) mas requer um controle rigorosíssimo da higiene para se evitar a contaminação de leveduras, quer na adega quer na linha de engarrafamento. Esta exigência afasta o método dos pequenos produtores, que têm muita dificuldade em controlar as leveduras “até do ar da adega”, como nos afirmou. Osvaldo recorda que esteve presente nos primeiros ensaios na Estação Vitivinícola da Bairrada com o seu responsável António Dias Cardoso em 1987 e 88 e que foi nas Caves Primavera que se produziu o primeiro espumante comercial de leveduras encapsuladas, com a marca Chave d’Ouro.
Também Francisco Antunes – responsável por cerca de 1,2 milhões de garrafas de espumante nas Caves Aliança – participou nestes primeiros ensaios que tiveram a chancela da Proenol, a empresa produtora das leveduras encapsuladas. Reconhece que é um pouco mais caro mas se se contar os custos de tempo, remuage e mão-de-obra, pode ser um recurso importante mas, também ele refere, “é um método muito exigente” que não está ao alcance de todos. Na Aliança “chegámos a usar no espumante Danúbio mas agora só usamos leveduras livres”. Também Marta Lourenço (Murganheira) recorda que “para se fazer um grande espumante são precisos 10 a 12 anos e que a autólise (degradação natural das leveduras), no caso das leveduras encapsuladas não acrescenta mais nada a partir dos 4 anos.” E, relembra “quanto menor o tempo de estágio mais agressiva é a bolha”, razão suficiente para ser defensora do método clássico, também aplicado na Raposeira.
Já Celso Pereira sustenta que o tempo de estágio é um dado muito importante mas, salienta, “a qualidade depende de tantos factores que não podemos afirmar peremptoriamente que com 8 anos é melhor que seis ou com 15 melhor que 12”. No caso de Champagne, as grandes marcas apostam, nos seus topos de gama, em estágios de cave muito prologados.
Quanto mais se lê sobre espumantização mais se percebe que fazer um vinho com bolhas é relativamente fácil mas fazer um grande espumante é um trabalho que resulta de uma enorme soma de pequenos pormenores, ensinamentos que foram sendo acumulados ao longo de séculos e aos quais a ciência deu validade. Todas a operações relacionadas com a espumantização estão minuciosamente descritas num trabalho académico de grande fôlego que vivamente se recomenda a quem quiser aprofundar o assunto: Pedro Guedes “Fizziologia”, Quântica Editora, 2021.

De Norte a Sul

O espumante produz-se em todas as regiões do continente e ilhas. Naturalmente que as regiões onde as quantidades são mais significativas são a Bairrada e Távora-Varosa, as mais clássicas zonas produtoras. A tradição bairradina remonta aos finais do séc. XIX e em Távora aos inícios do séc. XX. Actualmente a produção em todo o país pode ser dividida em dois grupos distintos: os espumantes com Denominação de Origem (DO e IG) e os restantes, os chamados espumantes IVV. Na Bairrada, por exemplo, os dados mais recentes revelam que a produção DO tem vindo a aumentar de 2017 até 2022. Assim, se se incluir vinhos Bairrada e Regionais (Beira Atlântico) brancos, rosados e tintos, a região tem originado, em 2022, 2 317 329 garrafas. Neste valor global há a destacar algumas tendências, como a produção de espumante tinto, mas com tendência a diminuir, sobretudo se comparado com 2017 (de 110 720 garrafas para 72 436 em 2022); outra tendência curiosa tem sido o crescimento da nova designação Baga-Bairrada (que a partir de 2019 obriga a 18 meses de estágio), e que cresceu de 330 000 garrafas em 2019 para 415 000 em 2021. Também o espumante rosé tem conhecido um crescimento significativo, passou de cerca de 208 000 garrafas em 2017 para 311 000 em 2022.
A região de Távora-Varosa certificou em 2022 cerca de 2 869 740 garrafas, não tendo certificado nada como IG, ou seja, Vinho Regional, dos quais cerca de 2 100 000 garrafas de vinho branco da variedade Bruto. Aqui as Caves da Murganheira assumem claramente o papel de maior produtor, com 1 100 000 garrafas na Murganheira e 2 500 000 na Raposeira. Marta Lourenço, à frente dos destinos enológicos da empresa, confirmou-nos que a Raposeira não certifica nada (ou seja, todos os espumantes têm selo IVV) porque os vinhos incorporam uvas quer do Douro quer de Távora-Varosa.
No caso do Vinho Verde há a salientar a produção de espumantes varietais — sobretudo de Loureiro, estável nas cerca de 36 000 garrafas entre 2020 e 22 — e Alvarinho com um aumento exponencial de 46 500 garrafas em 2020 para cerca de 88 000 em 2022. Como um todo, a região tem mantido a produção regular (com oscilações decorrentes das variações de colheita) entre 548 888 garrafas em 2020 e 493 052 garrafas em 2022.
Segundo informação recolhida junto do IVV, a produção nacional certificada andará em 2022 pelas 7 868 933 garrafas (valor mais alto desde 2014) e o espumante não certificado cifra-se em 15 769 600 garrafas, igualmente o valor mais alto desde 2014.

 

Grande Prova Espumantes

Foi com a intenção de fazer dele uma bebida de comemoração que se generalizou em Champagne o consumo de vinho com algum açúcar residual.

 

Todos são momentos certos

Muito se escreve sobre a ligação do espumante com a comida. Por um lado, sabemos que se trata de uma bebida que frequentemente é consumida sem qualquer acompanhamento; por outro cada vez mais consumidores associam o espumante a vários momentos da refeição. Foi com a intenção de fazer dele uma bebida de comemoração que se generalizou em Champagne o consumo com algum açúcar residual, numa quantidade que apenas ajuda a que o vinho não seja tão marcado pela elevada acidez quando é consumido. Assim, a variedade Bruto, sem dúvida a mais generalizada, costuma ter de 5 a 8 gramas de açúcar, quantidade que ajuda consumir o vinho sem qualquer acompanhamento. Já à mesa são as variedades Extra Bruto ou Bruto Natural que melhor ligam com a refeição.
É aqui que começam as diferenças de opinião. Sendo uma bebida que tem a plasticidade de se ligar a qualquer prato, da entrada à sobremesa, quase todas as opiniões são possíveis. Seguindo no rasto de um sommelier americano, podemos considerar três hipóteses: o vinho é mais forte que o prato; o sabor do prato sobrepõe-se ao vinho ou, terceira hipótese, o prato faz com que o vinho saiba melhor e o vinho favorece o sabor do prato. Não parece difícil mas muitas vezes só se chega lá por tentativa/erro e nem sempre temos possibilidade de o fazer.
A escolha pode recair num produto local. Assim, conforme o sítio onde estamos poderemos querer associar um prato a um espumante da terra; é uma hipótese sempre interessante sobretudo como proposta para turistas que estão de passagem.
As ligações clássicas começam nos peixes fumados como aperitivo, mas podem estender-se rapidamente aos pratos de marisco e peixe com pouco tempero. Depois, ainda mais rapidamente podemos passar aos pratos de massas, risotos, pratos mais puxados nas especiarias e picantes e na culinária oriental. Também os pratos vegetarianos poderão ser perfeitos companheiros para o espumante. Deixe-se levar pelo instinto e procure ousar em ligações menos óbvias. Mas, claro, é sempre bom ter um plano B para quando a ousadia dá para o torto.
Provámos quase 30 espumantes de várias zonas do país e, pese o facto de algumas empresas terem “faltado à chamada” e outras não terem enviado o seu topo de gama, a verdade é que temos aqui muito por onde escolher e a preços muito razoáveis. Agora, só resta desfrutar.

 

(Artigo publicado na edição de Outubro de 2023)

Grande Prova: Brancos da Bairrada

Grande Prova

A liga dos duros Outrora essencialmente conhecida por produzir grandes tintos – mas, então, apenas duas a três vezes por década –, a Bairrada é, actualmente, um paraíso (“à beira-mar plantado”, diga-se) para produzir todo o tipo de néctares vínicos. Inserida na região Beira Atlântico, a Bairrada é uma faixa litoral bem no centro do […]

A liga dos duros

Outrora essencialmente conhecida por produzir grandes tintos – mas, então, apenas duas a três vezes por década –, a Bairrada é, actualmente, um paraíso (“à beira-mar plantado”, diga-se) para produzir todo o tipo de néctares vínicos. Inserida na região Beira Atlântico, a Bairrada é uma faixa litoral bem no centro do país, com ligeiro pendor a norte, compreendendo os concelhos de Anadia, Mealhada, Oliveira do Bairro e também, ainda que parcialmente, os de Águeda, Cantanhede, Vagos e até Coimbra. No que diz respeito a outras regiões vitivinícolas, delimita a Norte com Lafões (não se afastando muito dos Vinhos Verdes), e a Este a região do Dão. É um território muito específico, podendo ser resumido como um planalto de baixa altitude, circunscrevido ora pelo Oceano Atlântico a Oeste, ora pelas Serras do Caramulo e Buçaco a Este, com notórias tradições gastronómicas muito próprias, do leitão ao espumante, passando pela aletria.

Mas voltemos à história recente: a explicação para tão poucos anos excelentes, no que a tintos dizia respeito, centrava-se na relação entre casta e o clima atlântico que caracteriza a região, sobretudo em anos chuvosos. Com forte propensão para precipitação no início de setembro, era habitual a casta Baga – a principal tinta da região e tardia na maturação – não estar totalmente madura aquando das primeiras chuvas, originando o perfil menos consistente e mais rústico por vezes comum na região até há duas décadas. Claro que, nos anos mais quentes e secos, a Baga amadurecia bem dando origem a tintos encorpados que, mesmo acima dos 14% vol., retinham a acidez e os taninos necessários para uma excelente prova, mais a mais mantendo os vinhos longevos por décadas. Foram, essencialmente, esses tintos que deram fama à região.

Hoje, como sabemos, o clima não é exactamente o mesmo de há três ou quatro décadas, com uma subida notória da temperatura média anual, o que provoca uma vindima mais precoce e, com isso, reduz-se o risco de uma vindima à chuva. Todavia, a Bairrada é ainda caracterizada por verões amenos, para não dizer mesmo com noites frias e neblinas marcadas pelos ventos de Oeste e Noroeste claramente vindos do Atlântico. Tanto assim o é que, no Verão e início de Outono, a amplitude térmica chega a uns impressionantes 20ºC, com destaque para o eixo entre Oliveira do Bairro e Luso (passando por Anadia e Mealhada), sendo Cantanhede ligeiramente mais quente em média. Sucede que, actualmente, com a crescente procura por vinhos mais frescos e de acidez vibrante, e com o Sul e interior do nosso país a atingirem temperaturas elevadíssimas, o perfil atlântico e pouco solarengo da Bairrada é uma vantagem evidente, em particular nos brancos, aos quais nos dedicaremos nas próximas linhas (para não falar dos espumantes, onde a Bairrada é a principal região produtora e aquela com mais tradição em Portugal).

UVAS QUE EXPRESSAM O LOCAL

 Se quanto ao clima já nos referimos, importa recordar que, ao nível dos solos, a Bairrada é caracterizada por manchas e afloramentos argilo-calcários de origem jurássica e triássica, perfis reconhecidamente privilegiados para vinhos distintos (em Portugal, o perfil mais parecido será o dos terrenos calcários de Bucelas, cujos DOC são obrigatoriamente brancos). Dentro da região, os melhores locais para vinho são ainda caracterizados pelos típicos “barros”, solos argilosos, mas sempre com o teor de calcário a marcar a identidade da região. Em Cantanhede, Mealhada, Anadia e, mais a Norte, em redor de Oliveira do Bairro, podemos encontrar vários solos calcários e margas ou calcários margosos, geralmente com alguma percentagem de limo bastante poroso. Não espanta, assim que a quase totalidade dos vinhos aqui provados venham de vinhas com presença de calcários, algo que se pressente em prova pela finura e frescura que manifestam, tanto os mais vinhos mais novos, como aqueles com mais estágio em garrafa. Uma excepção é o requintado Quinta de Foz de Arouce, de uma vinha de Cercial próxima da Lousã, cuja localização, e respetivo solo xistoso, levam a que seja certificado como Beira Atlântico.

Outro factor de sucesso são as castas nacionais bem-adaptadas à região, algumas delas quase exclusivas da Bairrada. Se, por um lado, encontramos a Maria Gomes (conhecida a Sul por Fernão Pires) – a uva branca mais plantada na Bairrada – e o Arinto, ambas castas presentes em quase todo o território nacional, por outro lado, uvas como Cercial e Bical encontram na Bairrada um lugar de eleição (apesar de esta última estar presente, com menor expressão, no Dão). Nas castas brancas não nativas, a Sauvignon Blanc e a Chardonnay são as mais representadas. Ora, se em algum lugar no nosso país faz sentido afirmar que as castas expressam o terroir, esse lugar é a Bairrada. Com efeito, mesmo as castas mais expressivas do ponto de vista da fruta e até “maduronas” — como a Chardonnay — revigoram na Bairrada e dão lugar a vinhos finos, recatados e de acidez crocante. O Arinto, por sua vez, já de si propenso a um perfil seco e com boa acidez, marca presença em muitos lotes, sendo eleita muitas vezes a solo nos topos de gama fermentados ou estagiados em barrica, como podemos verificar na presente prova (excelente, a edição única do vinho Doravante de uma vinha de Arinto entretanto já arrancada).

Grande Prova

 

 

Se, por um lado, encontramos a Maria Gomes (conhecida a Sul por Fernão Pires) – a uva branca mais plantada na Bairrada – e o Arinto, ambas castas presentes em quase todo o território nacional, por outro lado, uvas como Cercial e Bical encontram na Bairrada um lugar de eleição (apesar de esta última estar presente, com menor expressão, no Dão). Nas castas brancas não nativas, a Sauvignon Blanc e a Chardonnay são as mais representadas.

 

 

O FACTOR HUMANO

Deixámos para o fim um dos factores diferenciadores da região mais desafiador: os produtores. A típica persistência bairradina, e a lendária capacidade dos bairradinos em perpetuar as suas tradições, faz com que, em 2023, estejam a ser lançados vinhos elaborados da mesma forma que o eram há mais de 50 anos, por exemplo com fermentações em tonéis antigos de madeira. São, em muitos casos e como esta prova demonstrou, produções mínimas (por vezes, pouco mais de 500 garrafas), de vinhos lançados com vários anos em garrafa (por vezes até 5 anos). É, certamente, a liga dos duros! Com efeito, existe um punhado de produtores absolutamente “clássico”, cuja qualidade e originalidade dos vinhos brancos é elogiada internacionalmente. Nomes e marcas como Quinta das Bágeiras, Casa de Saima, Frei João (Caves São João), Sidónio de Sousa, fazem parte desse lote juntamente com outros. Esta identidade é tão marcada que, mesmo gerações mais novas e produtores mais recentes, continuam esse legado de tradicionalismo assente em vinhas velhas e enologia pouco interventiva, como é o caso dos produtores Filipa Pato & William Wouters, Niepoort Vinhos (que entrou na região há mais de uma década), Luís Gomes (Giz) ou os projectos de enólogos como V Puro e Botão, entre tantos outros. Mas não se pense que a região não tem inovadores, alguns deles, aliás, pioneiros e responsáveis durante décadas por colocar a Bairrada no mapa internacional. Caso de Luís Pato, inovador nas mondas e na utilização de meias barricas francesas; ou de Carlos Campolargo, experimentando todo o tipo de castas, das mais típicas da região às internacionais, muitas vezes em estreme; e passando pelos vinhos ambiciosos e monumentais de João Póvoa, primeiro na Quinta de Baixo e, desde 2005, no projecto Kompassus. Igualmente importantes serão outros produtores de origem local, com várias gerações de vinhos “às costas”, e que persistem em apresentar, ano após ano, vinhos cada vez melhores respeitando o ADN da Bairrada, ou seja frescura, acidez e carácter, caso de Jorge Rama, António Selas, Regateiro, entre outros.

Com tantas razões para brancos de excelência, não espanta que os dados disponíveis apontem para a produção crescente destes vinhos certificados enquanto DOC Bairrada. Em 2022, foram quase 610 mil litros, um terço mais do que a média dos 10 anos anteriores. Boas notícias, portanto! Com este volume e, sobretudo, tanta qualidade a preços relativamente cordiais (os vencedores da prova custam menos de €30 a garrafa), não queira ser um daqueles a passar ao lado de alguns dos melhores brancos de Portugal…

(Artigo publicado na edição de Setembro de 2023)

Grande Prova: Um mundo cor de rosa

O rosé está claramente na moda. Comunica pela imagem, incluíndo a garrafa e a cor, mais do que qualquer outro tipo de vinho. A França, sobretudo a região de Provence, está na vanguarda e serve de inspiração aos outros. Basta ir ao stand da Provence na Prowein para ver as mais lindas garrafas com vinhos […]

O rosé está claramente na moda. Comunica pela imagem, incluíndo a garrafa e a cor, mais do que qualquer outro tipo de vinho. A França, sobretudo a região de Provence, está na vanguarda e serve de inspiração aos outros. Basta ir ao stand da Provence na Prowein para ver as mais lindas garrafas com vinhos de cores apelativamente suaves. É claramente um produto de design para ser atraente na prateleira, na mão e no copo. E sim, rosé é o vinho mais instagramável que existe.
Mas o design não é tudo. Há cada vez maior procura pelos vinhos mais leves, mais frescos e menos alcoólicos, onde o rosé se enquadra perfeitamente. É mais do que uma moda, é uma mudança estrutural de consumo. Não é por acaso que o concurso de vinhos Concours Mondial de Bruxelles desde 2021 realiza uma edição de rosés em separado para dar mais ênfase a este tipo de vinho.

Tendências globais ou rosé mania

A França lidera o movimento rosa no mundo, sendo número 1 em produção, consumo e exportação em valor (em volume a Espanha exporta mais). Em conjunto, a França, Espanha e Estados Unidos são responsáveis pelo 66% da produção mundial de rosé.
Em França, a produção de rosés cresceu substancialmente graças a várias regiões que apostaram neste tipo de vinho ao longo da última década. Fora de França, surgiram “novos” países produtores de vinho rosé com um crescimento de mais de 50% no espaço de 10 anos, com, no mínimo, 50.000 hectolitros produzido anualmente. São os casos do Chile, Nova Zelândia, Hungria, Romênia e Bulgária.
Aproximadamente 1 em cada 10 garrafas de vinho consumidas no mundo é de rosé. E em França, este número é de 1 em 3 garrafas, pois neste país consome-se 33% da produção total do rosé. Seguem-se a Alemanha com 12% e os Estados Unidos com 11%.
Em Portugal a categoria também está a crescer, embora nem sempre seja fácil encontrar informação estatística, por ser o rosado quase sempre enquadrado nos dados do vinho tinto. Entretanto, no último Anuário do IVV foi registada a variação da produção do vinho rosado desde 2011 até 2021, assentando o rosado com uma quota de 6% da produção nacional. Na campanha de 2020/2021 o rosé correspondeu a 6,6% de produção total dos vinhos nacionais em termos de cor (sendo 59,6% de tinto e 33,8% de branco).
Mas quase não é preciso olhar para as estatísticas, basta ver as prateleiras para perceber que o rosé está claramente na mente do consumidor actual. Há 20 ou até 10 anos não havia tanta variedade de rosés como hoje. O mesmo se pode dizer também da qualidade.

Há cada vez maior procura pelos vinhos mais leves, mais frescos e menos alcoólicos, onde o rosé se enquadra perfeitamente

 

Como é feito um rosé

A cor e os aromas estão nas películas, onde se encontram as antocianas responsáveis pela cor e os precursores aromáticos. Como a maioria das castas tintas não tem antocianas na polpa (com excepção das variedades tintureiras), o sumo sai quase transparente. A duração do contacto com as películas tem influência directa na intensidade da cor e do aroma do vinho.
O OIV (organização que rege a produção mundial de vinho, com 45 países filiados) distingue três principais métodos de fazer um rosé.
Prensagem directa ou uma maceração curta (normalmente na própria prensa) inferior a 2 horas – com o mínimo possível contacto com as películas. As uvas podem ser desengaçadas ou não, isto depende das castas. O desengace promove melhor passagem das antocianas para o sumo, enquanto a prensagem de cachos inteiros facilita a drenagem. A prensagem tem de ser delicada para dar tempo e obter o nível pretendido de antocianas sem extrair taninos e aromas verdes. Produtor e enólogo da Quanta Terra (em parceria com Celso Pereira), Jorge Alves, refere que de 4 tn só conseguem 1.200 litros. Na última prensagem obtém-se mais 300-400 litros com mais cor. Esta fracção mantém-se à parte, para lotear com o resto e obter a cor que se pretende – clarinha e bonita. Basicamente, é a vinificação das castas tintas como se fossem brancas, onde a fermentação ocorre sem películas. Desta forma obtêm-se os rosés mais pálidos e delicados aromaticamente, com uma maior acidez.
Maceração pelicular superior a 2 horas e depois o sumo é separado, em lágrima (escorrendo naturalmente da prensa) ou prensagem. O tempo de maceração varia com cada casta. Se for uma casta com pouca intensidade corante como a Pinot Noir ou Tinto Cão, pode justificar-se uma maceração mais longa.
Sangria é uma separação parcial do sumo das uvas em maceração. Este método era mais utilizado antigamente, nem tanto para fazer um rosé, mais para concentrar um tinto. No depósito de fermentação, depois de se retirar 5-15% de sumo, ficavam mais películas para menor volume de líquido. Um rosé obtido por este método tem mais cor, mais tanino, aromas de fruta madura e menor acidez (devido à liberação de potássio da película para o mosto durante a maceração que se liga ao ácido tartárico e aumenta o pH). Estas uvas são também colhidas mais maduras, a pensar em vinho tinto. Este método é menos adoptado para os rosés mais ambiciosos e não é utilizado em Provence, por exemplo.
Existe ainda outro método de fazer rosés, praticado em alguns países, sobretudo de Novo Mundo, quando se mistura o vinho branco com vinho tinto, prática genericamente proibida na União Europeia (mas autorizada para os rosés de Champagne). A fermentação maloláctica é quase sempre evitada para preservar a frescura e evitar os aromas lácticos que esta pode conferir ao vinho.
Quando passámos de um rosé corrente para um rosé premium, constatamos que não é raro ocorrer fermentação e estágio, total ou parcial, em barricas, normalmente usadas (casos das marcas Phenomena, Giz, Redoma, Quinta do Monte d’Oiro, Olho de Mocho Single Vineyard, Ravasqueira, Herdade das Servas e muitos outros), mas também novas, como é o caso da Casa da Passarella o Fugitivo Rosado.

Enologia ou terroir?

Embora um rosé possa ser visto mais como um produto de enologia do que uma expressão de uma região, eu não faria uma distinção tão peremptória. Por um lado, é verdade que as uvas vindimadas mais cedo conseguem fugir um pouco às adversidades do ano e da zona onde ficam, e muitas vezes ainda não têm desenvolvido todos os precursores aromáticos varietais. Por outro lado, a abordagem correcta na adega não será possível sem um bom conhecimento de castas utilizadas e o local onde estão plantadas. Precisamente por isto, os rosés não são todos iguais.
Um bom exemplo é o novo rosé da Casa da Passarella, o Fugitivo Rosado. Paulo Nunes, o talentoso enólogo desta casa, já há algum tempo andava a pensar num rosé de topo, tendo como inspiração um rótulo antigo de 1937 do “vinho rosado”. Nesta altura, o vinho era elaborado com a ajuda de um enólogo francês Eugène Hellis (que também esteve, segundo me contam, envolvido nos primeiros anos do Mateus Rosé). Não se sabe como eram aqueles rosés, não sobrou nenhuma garrafa, mas de certeza que o rosé de hoje é bem diferente. Provém de uma parcela com várias castas, que foi plantada naquela época. É a mais sombria de todas, onde a partir das 15-16 horas não há sol, por causa da floresta circundante. A vindima é tardia, só no início de Outubro. Prensagem de cacho inteiro com engaço e fermentação espontânea em barricas novas de 500 litros, longa, que dura quase até Dezembro, sem bâtonnage. Combina-se neste caso um profundo conhecimento das parcelas existentes e pleno domínio técnico na adega para conseguir um resultado extraordinário.

Grande Prova Rosés

 

Com excepção das castas tintureiras, aquelas com a polpa corada, todas as castas podem ser adaptadas para produção do rosé.

 

 

As melhores castas

Com excepção das castas tintureiras, aquelas com a polpa corada, todas as castas podem ser adaptadas para produção do rosé. É preciso saber trabalhá-las de acordo com as características varietais e estilo pretendido.
Na região de Provence, para produção de rosés são tipicamente utilizadas Cinsault, Grenache, Mourvèdre, Syrah, em algumas denominações também Cabernet Sauvignon e Carignan e ainda algumas castas brancas, incluindo Clairette, Sémillon, Ugni Blanc e Rolle (Vermentino) que acrescentam frescura e aromas.
No Sul do Ródano, na DO Tavel, exclusiva para rosés, também para além das castas tintas (Cinsault, Grenache, Mourvèdre, Piquepoul Noir, Syrah) podem ser utilizadas variedades brancas (Bourboulenc, Clairette, Grenache Blanc Clairette Rose e Piquepoul Blanc) ou chamadas “cinzentas”, aquelas com uma ligeira coloração da película (Grenache Gris e Piquepoul Gris). Em Espanha é muito utilizada a casta Tempranillo e Garnacha e na Itália Sangiovese, para além de outras castas.
A Pinot Noir, de película fina e pouca intensidade corante, é uma boa opção para os rosés. Não é de estranhar uma aposta séria nesta casta para os rosés de ambição. Três belíssimos exemplos – Phenomena da Quanta Terra no Douro, Vicentino na costa alentejana e AdegaMãe na região de Lisboa. No Quinta do Poço do Lobo, da Caves São João, a Pinot Noir entra em partes iguais com Baga. Jorge Alves refere que Pinot Noir é uma boa exploradora do terroir. Fenolicamente e aromaticamente amadurece bem, traz profundidade aromática e transparência da altitude. Consegue transferir o terroir e a barrica.
A Tinta Roriz também é uma boa opção para rosés. Usam-na na Taboadella no Dão. Jorge Alves explica que é uma casta redutora, tem algum tanino e não oxida facilmente. É muito sensível no momento de vindima com a janela de oportunidade muito curta. Desidrata, absorve potássio e perde acidez, o pH sobe. Tem de se vindimar com pH 3,3 no máximo, pois com 3,7 já não vai dar. Uma parte estagia em barrica para compensar a parte que estagia num ambiente mais redutor de cimento. A Tinta Roriz é também utilizada no caso da M.O.B. no Dão ou Carlos Reynolds no Alentejo.
Em Portugal não temos nenhuma DO destinada somente à produção de rosés, que são feitos ao longo do país, desde o Minho até ao Algarve, e as castas adotadas são muitas vezes as típicas de cada região. Por exemplo, na região dos Vinhos Verdes são utilizadas castas com pouca cor Espadeiro e Padeiro, e no Algarve Negra Mole e na Madeira Tinta Negra (das duas últimas temos nesta prova os exemplos interessantes). A Baga na Bairrada é uma grande protagonista nos rosés. Com a maturação lenta e tardia, aguenta mais tempo sem criar grandes alterações a nível organolêptico e permite acertar no momento da vindima. Luís Gomes, do projecto Giz, considera que as vinhas velhas da Baga oferecem robustez e segurança na produção de rosés. Vindima normalmente de 8 a 15 de Setembro.
A Quinta do Vallado e a Sogevinus (São Luiz Winemakers Collection) fazem um belíssimo rosé da casta Tinto Cão que preserva bem a acidez e naturalmente não passa muita cor.
A versátil Touriga Nacional veste-se bem em tons de rosé com notas citrinas e florais. Temos óptimos exemplos da Ravasqueira (Heritage) e Chocapalha. A Touriga Franca é raro ver num rosé a solo, mas nesta prova temos o Qualt da Quinta Alta no Douro. Mais uma casta com pouca cor – Alvarelhão – pode ser provada na versão rosé Quase Tinto da Quinta dos Avidagos. Outro exemplo varietal – Tinta Caiada no Monte do Álamo, Alentejo.
O resultado muito interessante demonstra a casta levemente corada Moscatel Roxo, utilizada pelas grandes empresas da Península de Setúbal – José Maria da Fonseca e Bacalhôa – e também pela Aveleda no projecto Vila Alvor no Algarve, produzindo rosés extremamente aromáticos e com uma cor naturalmente muito leve.
A Syrah brilha no Monte D’Oiro de uma parcela da vinha mais antiga (antes de 1998) e na Herdade do Sobroso. A casta Sangiovese mostra o seu carácter no Monte das Bagas e na Herdade das Servas – em dois perfis bem diferentes – um mais guloso e outro marcadamente acídulo e crocante.
Também temos alguns exemplos bem sucedidos de uso das castas brancas na produção de rosés. A Quinta das Cerejeiras, na região de Lisboa, ao Castelão (que amadurece relativamente cedo) acrescentou 15% de Moscatel Graúdo (com maturação tardia), que acabam por ser vindimadas na mesma altura, na segunda semana de Setembro e fermentam em conjunto. As castas completam-se, a Castelão conribui com textura e aromas de fruta vermelha, enquanto Moscatel oferece acidez, frescura e aromas exóticos. Outro exemplo de parceria feliz entre a casta tinta e branca é o QM rosé feito de Vinhão e Alvarinho.

 

 

 

 

Nenhum vinho comunica tanto pela cor como o rosé: a cor mais ligeira indica delicadeza e elegância; e a cor mais intensa promete intensidade e estrutura.

 

 

 

 

 

 

 

 

A cor importa?

Nenhum outro vinho comunica tanto pela cor como um rosé: a cor mais ligeira indica um vinho mais delicado e a cor mais intensa promete um vinho com maior intensidade de sabor e mais estrutura.
Os franceses até se debruçaram para definir a paleta de cores de rosés que podem variar de pêssego, melão, lichia, manga, pomelo, framboesa, damasco, tangerina e groselha.
Jorge Alves confirmou que a cor é extremamente importante para um rosé e que eles tomam muitos cuidados a este respeito para garantir que um produto final fique apelativo na prateleira. E é preciso ter em atenção que durante todos os processos de vinificação e estágio a cor vai-se perdendo. Já Luís Gomes não liga nada à cor que pode num ano ser mais intensa do que noutro – é mesmo assim!

Um rosé pode ser caro?

Pode, como outro vinho qualquer. Pode custar tanto, quanto o consumidor estiver disposto a pagar por ele em função da espectativa, qualidade e raridade do mesmo.
Antigamente achava-se que o rosé é um vinho barato. Lembram-se quando o rosé fazia parte da triologia de entrada de gama – um branco, um tinto e um rosé, deixando os gamas médias e de topo para tintos e brancos? Agora há muitos rosés portugueses de topo, que rondam os 25-30 euros e uns poucos ultrapassam os 50 euros.
Em França, durante alguns anos o rosé mais admirado e caro foi Garrus do Château d’Esclans, Provence, cujo preço hoje ultrapassa os 100 euros – é um blend de Grenache com Rolle das vinhas centenárias. Em 2020, Languedoc disputou a primazia da Provence quando Gérard Bertrand lançou o “Clos du Temple” feito de Grenache, Cinsault, Syrah, Mourvèdre e algum Viognier com o PVP de 190 euros.

Qual é a melhor altura para apreciar um rosé?

Quando apetecer. No verão talvez apeteça mais vezes, mas não vejo porque o rosé não possa ser consumido noutras alturas do ano, num momento apropriado. Quem come burrata, céviche de salmão, sushi e saladas apenas no verão? São harmonizações perfeitas para um rosé. Pode ser consumido tanto à mesa, como num bar, a solo, ao pé de uma piscina. Um encontro de amigos depois de trabalho numa sexta-feira à noite ou um jantar romântico também são momentos certos. Alguns rosés têm presença e intensidade suficientes para aguentar um prato com alguma estrutura: um bife de atum na grelha acompanhado de legumes parece uma óptima opção. Carnes brancas, até com molhos para compensar a acidez do vinho, ou caril de frango ou de camarão são outras sugestões a considerar.
Resumindo, um rosé de sucesso é um produto completo de vinha, de enologia competente, de imagem aliciante e de marketing inteligente.

(Artigo publicado na edição de Agosto de 2023)

Grande Prova: Trás-os-Montes – A última fronteira

Grande Prova

Trás-os-Montes é um território vitivinícola bem determinado no nordeste do nosso país, delimitado pelas cadeias montanhosas do Gerês, Cabreira, Alvão e Marão. Com Espanha a fazer fronteira a este e a norte, a região estende-se a noroeste até Montalegre e a sul até às cercanias de Alijó e Vila Real, ou seja, mesmo junto à […]

Trás-os-Montes é um território vitivinícola bem determinado no nordeste do nosso país, delimitado pelas cadeias montanhosas do Gerês, Cabreira, Alvão e Marão. Com Espanha a fazer fronteira a este e a norte, a região estende-se a noroeste até Montalegre e a sul até às cercanias de Alijó e Vila Real, ou seja, mesmo junto à Região Demarcada do Douro. Para lá de Miranda do Douro, ou seja, já do outro lado da fronteira, a região de Arribas (del Duero) está muito próxima, e a mais badalada Toro também não se dista muito.

Ainda em Espanha, mas agora a norte, encontramos as regiões de Monterrei, Valdeorras e a crescentemente cobiçada Bierzo. Não se estranha, portanto, que a tradição ibérica da viticultura e vinificação esteja bem implementada em Trás-os-Montes, lugar remoto e apaixonante, onde a natureza felizmente ainda impera. Prova disso são os magníficos lagares rupestres espalhados pela região, testemunhas dos tempos romanos e pré-romanos. Aliás, a este respeito, cumpre elogiar a recente certificação da produção de vinhos em Lagares Rupestres, sendo esta designação exclusiva para a região, existindo actualmente no mercado 5 vinhos produzidos por esta metodologia, devidamente certificados como tal. Contudo, apesar deste legado, a demarcação de Trás-os-Montes como DO de vinhos é recente.

 

Primeiro, em 1989, Valpaços, Planalto Mirandês e Chaves, foram reconhecidos como indicação de proveniência regulamentada. Depois, em 1997, foi criada a Comissão Vitivinícola Regional. Já no novo milénio, mais propriamente em 2006, surgiu o reconhecimento como DO, precisamente com os referidos 3 territórios como sub-regiões DOC (ou seja, Valpaços, Planalto Mirandês e Chaves) com ligeiros ajustes de áreas e circunscrições. Actualmente, são 10.000 hectares de vinha, num espaço onde, como nos confirmou Rui Cunha — enólogo na região há 25 anos, sempre no produtor Valle Pradinhos — o minifúndio ainda impera e as tradições na vinificação, com maior ou menor conservadorismo e até amadorismo, são a regra. Com efeito, falamos de apenas 1.100 hectares de vinha cadastrada e certificada para a produção da DO (inclui IG Transmontano), representando a actividade de nada menos que 3.000 viticultores e 4 adegas cooperativas, o que dá, naturalmente, uma média de vinha muito pequena por produtor.

A região produz maioritariamente vinhos tintos, sendo os brancos apenas 1/3 de todo o vinho produzido, e os rosés, tal como os espumantes e licorosos, practicamente residuais. As principais castas usadas para a sua produção, são, no caso das tintas que nos interessam mais para este texto, Tinta-Amarela, Bastardo, Touriga-Nacional, Tinta-Roriz e, com menor expressão, Tinta-Barroca e Tinta-Carvalha. Ainda para Rui Cunha, que conhece bem as sub-regiões de Valpaços e Planalto Mirandês, o desafio da região de Trás-os-Montes é esse mesmo: conseguir aproveitar o fantástico património vitícola de que dispõe, o que implica maior formação de todos os intervenientes e maior divulgação das suas particularidades. “O resto, ou seja, a excelência da matéria-prima, está lá” diz-nos orgulhosamente. Outro enólogo há muitos anos na região é Francisco Gonçalves, técnico que começou no Douro, mas que assessora agora diversos produtores em Trás-os-Montes, tendo inclusivamente escolhido a região, e Montalegre em particular, para fundar o seu projecto pessoal. Tal como Rui Cunha, concorda que a região tem um potencial impressionante, e que bastaria alguma modernização, na viticultura e enologia, para que rapidamente fosse mais reconhecida. Diz-nos mesmo que os vinhos brancos dos terroirs graníticos transmontanos mais frescos podem vir a ser dos melhores do país, mas isso ficará para outro texto, pois aqui falamos de tintos.

Grande ProvaComecemos, então, pela distinção mais tradicional da região de Trás-os-Montes, que é entre a ‘Terra Fria’ e a ‘Terra Quente’. Da primeira, em maior altitude (a vinha mais alta está plantada a uma cota de 1070m em Montalegre) e com verões mais temperados e frescos, fazem parte os concelhos situados ao longo da fronteira nordeste com Espanha (de Vinhais, Bragança, Vimioso, Miranda e Mogadouro), sendo Vidago um dos principais centros vinhateiros, excelente para vinhos frescos e com bastante acidez natural. A fama dos vinhos da sub-região de Chaves (inserida na ‘Terra Fria’), capazes de corrigir naturalmente (entenda-se: contribuir com acidez) vinhos de outras regiões é antiga, sobretudo em brancos e bases para espumantes. Na transição para a ‘Terra Quente’ encontramos Macedo de Cavaleiros, outro polo vinícola, que alberga o produtor Valle Pradinhos já referido. Com solos de natureza mais xistosa, altitudes que raramente ultrapassam os 500m, e com maior influência do vale do rio Douro, a ‘Terra Quente’ é caracterizada pelos verões escaldantes. Alguns dos mais relevantes concelhos que englobam a sub-região são Mirandela, Murça (parte), Vinhais, e o próprio Valpaços.

Mas outra distinção da região, diríamos menos tradicional, mas mais formal, é, precisamente, a divisão oficial em 3 sub-regiões: Valpaços, Planalto Mirandês e Chaves. Comecemos pela última. A noroeste, Chaves é a sub-região mais fresca, com um clima mais chuvoso e vinhas (verdadeiramente) em altitude, cujos solos tendencialmente graníticos propiciam perfis com mais acidez e elegância. Por sua vez, a sub-região de Valpaços é, como já referimos, marcada por elevadas temperaturas durante o verão, e um clima seco durante grande parte do ano, sobretudo nas terras com menor altitude, entre os 350-400 metros, terroirs marcadamente favoráveis a tintos com maturação elevada, com solos xistosos e afloramentos graníticos. Valpaços é, claramente, a sub-região que apresenta maior produtividade, reflexo das condições naturais e da área plantada, mas também da constante evolução da vitivinicultura da zona (renovação/restruturação de vinhas à cabeça), em grande parte por efeito das práticas das adegas modernas do Douro ‘ali ao lado’, aspecto ao qual voltaremos ainda neste texto. Por fim, temos o Planalto Mirandês, a sub-região com a continentalidade mais pronunciada, marcada a este pela geografia selvagem típica do rio Douro internacional, com solos maioritariamente xistosos. Com pouca chuva, quase nada nas terras quase desérticas na fronteira, predominam cotas altas entre os 750m e os 800m, sendo Miranda do Douro e Mogadouro os centros vínicos por excelência. O enólogo Paulo Nunes, que para o projecto Costa Boal faz um vinho neste território, confirma o calor diário nos meses estivais, mas salienta a frescura das noites mesmo no Verão, algo que não encontra, por exemplo, no vale do Douro. Por isso, diz-nos, a vindima nessa sub-região é sempre tardia, por vezes em Outubro, e os teores alcoólicos raramente ultrapassam os 13,5%.

Provados mais de 2 dezenas de vinhos, das 3 sub-regiões descritas, conseguimos retirar várias conclusões. Em primeiro lugar, que o modelo de tinto encorpado e com teor alcoólico acima dos 14% ainda predomina na região, sobretudo nos topos de gama. Muito deles provém da sub-região de Valpaços, o que se justifica pelas próprias condições naturais de maior calor e solos xistosos, mas também pela proximidade ao Douro. Essa proximidade trouxe, com efeito, um fenómeno de mimetização, bem presente no próprio encepamento (com as duas Tourigas à cabeça, mais Tinta Roriz e Tinta Barroca) e nas práticas enológicas iniciadas no final dos anos ’90 com os modernos tintos durienses. São vinhos ambiciosos, bem feitos e generosos no perfil intenso, mas que não se distinguem significativamente dos produzidos na região vizinha (e o consumidor que procura Douro vai certamente comprar Douro).

Grande Prova

Por outro lado, encontrámos um perfil mais tradicional, com várias matizes rústicas, centradas em castas muito habituadas ao local — exemplo maior para a Tinta Amarela —, ainda que vindimadas, porventura, tardiamente, comprometendo a acidez natural que a região pode proporcionar. Em ambos os perfis, a longevidade dos vinhos é notável, sendo que os néctares mais antigos em prova — um da colheita de 2012, e dois de 2014 — se apresentam em grande forma, dificilmente reconhecidos como vinhos com “idade”… Por fim, provámos alguns vinhos cujo perfil mais facilmente a região pode produzir — assim nos confirmaram vários enólogos e produtores — e garantir sucesso para o futuro. Falamos de vinhos mais frescos, feitos a partir de uvas de vinhas velhas e a partir de castas pouco difundidas no restante país vitícola, mais a mais plantadas a uma altitude pouco comum. No modelo de vinho mais aberto e vivo, Vidago (na sub-região de Chaves) pode mesmo vir a ser, entre outros, um lugar-chave, sendo que dois dos vencedores da prova advém precisamente desse terroir fresco e único. O vinho Lés-a-Lés emerge de uma vinha velha, rodeada de pinheiros, “que cheira a caruma, e lembra o Dão”, diz-nos o enólogo Rui Lopes que assina o vinho juntamente com Jorge Rosa Santos. Não por acaso, parte das uvas do lote são Tinta-Pinheira e Baga… Outro vencedor é o Grande Reserva da Quinta de Arcossó, um vinho que sai da pena de Amílcar Salgado e Francisco Montenegro, e que é originado a partir de uma das vinhas mais bonitas e bem cuidadas da região, para não dizer do país.

À laia de conclusão, com uma dimensão significativa de vinhas velhas, e uma altitude pouco habitual no nosso país, solos de granito e xisto, a região tem tudo para se afirmar e liderar em mais do que um perfil, sem perder a noção de frescura com a qual pode triunfar sobre outras regiões. Acresce, que as suas condições naturais permitem uma expressiva agricultura integrada e até biológica, dado a média anual muito baixa de tratamentos. Com mais enólogos jovens a chegar à região, tudo aponta para um “futuro risonho”, como espera a enóloga Joana Pinhão (na Quinta Valle Madruga desde 2021). Joana não tem dúvidas que a grande heterogeneidade entre as 3 sub-regiões de Trás-os-Montes é uma virtude, dependendo do tipo de vinho que se pretende produzir, sendo que nesse mesmo sentido milita a opinião de Paulo Nunes. Também nós, pelos vinhos provados, não temos dúvidas da qualidade e originalidade da região, dois vectores que, como em todas as regiões, têm de ser permanentemente estimulados e trabalhados. Com condições excepcionais para a produção de vinhos, Trás-os-Montes tem tudo para vir a ser uma estrela entre os vinhos de Portugal.

 

(Artigo publicado na edição de Junho de 2023)

 

 

 

 

 

Sugestão: Os (outros) licorosos de Portugal

licorosos

Se estivéssemos a fazer um script para um filme sobre este tema, poderia ser mais ou menos assim: Cena 1: Um grupo de amigos a fazer uma prova de vinhos. Eu também estava presente. Coisa caseira, sem pretensões, apenas para desfrutar o vinho e, como dizem em Angola, estar junto. A certa altura, e após […]

Se estivéssemos a fazer um script para um filme sobre este tema, poderia ser mais ou menos assim:

Cena 1:
Um grupo de amigos a fazer uma prova de vinhos. Eu também estava presente. Coisa caseira, sem pretensões, apenas para desfrutar o vinho e, como dizem em Angola, estar junto. A certa altura, e após alguns vinhos terem sido degustados em prova cega, eu trouxe para a mesa um vinho já decantado. Retinto, percebia-se que era um generoso. De imediato começou o jogo: Porto Vintage ou LBV? Logo aí houve alguma controvérsia porque não era evidente se seria de um tipo, ou de outro. Pelo perfil logo se puseram de lado quer os Madeira quer os Moscatéis; era claramente um vinho retinto engarrafado novo. O segundo momento foi tentar perceber quem seria a casa produtora: seriam empresas inglesas de vinho do Porto, seria um perfil mais tradicional português? Se sim, qual poderia ser a empresa? Novamente várias opiniões, tudo algo baralhado. Resultado da prova: não era um vinho do Porto, era um licoroso de Borba!

Cena 2:
Almoço no Porto, no restaurante Gaveto. Convidador: Dirk Niepoort. À mesa estaríamos uns 8 ou 10, quase todos ligados ao vinho do Porto e vários da própria empresa. Para a sobremesa, Dirk serve o vinho às cegas: logo ali a primeira discussão foi se seria Niepoort ou de outra firma. Um dos presentes, o senhor Nogueira – “cheirista” encartado da Niepoort e já então acabado de se reformar, vaticinou: este seguramente não é o estilo Niepoort! A conversa continuou, a cada cabeça sua sentença. Resultado: era um licoroso da África do Sul, apelidado de Cape Fortified. Vinho notável, a todos os títulos, se a memória não me falha.

Cena 3:
Tenho em minha casa para jantar Dirk Niepoort e David Guimaraens, então acabados de chegar a Lisboa após uma passeata de mota pelo país, uma versão Easy Ryder do séc. XXI. A certa altura do serão servi um vinho bem carregado na cor, rústico de perfil, mas impressionante no conjunto. Ambos entraram em modo de dúvida, sobre que tipo de Porto seria e de quem, ou seja, a conversa do costume nestas coisas das provas cegas. Às tantas um deles, que não recordo quem, disse: espera, este é capaz de ser o licoroso do Mouchão que provámos ontem quando estivemos na herdade! Era mesmo!

 

 

sugestão licorosos

Eram dezenas as destilarias no Bombarral e a grande quantidade de aguardente produzida destinava-se ao Porto e, também, aos licorosos locais.

 

 

 

Vamos casar mosto com aguardente?

As três cenas ajudam-nos a perceber que o universo dos licorosos pode ser desafiante. Podemos encontrar um de dois perfis que, ainda mais, ajudam a confundir com o “universo” Porto; um perfil engarrafado mais jovem e que lembra, de facto, um Vintage ou LBV, e um outro tipo, mais longamente envelhecido em casco e que pode fazer-nos pensar se não estaremos perante um Porto Tawny ou, em alguns casos, um Madeira.
Há razões que ajudam a perceber porque é que nos podemos enganar; em primeiro lugar, as castas: o tal licoroso de Borba era feito de Aragonez e o licoroso da África do Sul era elaborado com castas do Douro, para lá levadas em tempos idos. Se a este “factor casta” juntarmos a forma como são feitos, ou seja, interrupção da fermentação por adição de aguardente vínica, igual à que se usa para vinho do Porto, percebemos melhor que todos estamos desculpados por termos sido iludidos com o licoroso.

Alguns dos vinhos aqui provados entram na designação Abafado: tratam-se de licorosos em que, cumprindo o que a legislação determina, se interrompe a fermentação no início da mesma, por adição de aguardente; se o mosto não chegar mesmo a fermentar, então estamos perante uma Jeropiga.
Algumas casas – como a Companhia Agrícola do Sanguinhal ou o Mouchão têm já uma história secular na produção de vinhos licorosos. No Mouchão a tradição remonta ao início do séc. XX (1901) e, no caso do Sanguinhal há que lembrar que a firma de Abel Pereira da Fonseca, ainda nos finais do séc. XIX, tinha uma empresa de vinho do Porto; e a partir do momento em que adquiriu as 3 quintas na zona do Bombarral – Sanguinhal, Cerejeiras e S. Francisco – dedicou-se a produzir vinhos licorosos. Estávamos então na segunda década do séc. XX. Além desta grande empresa, outras como os Patuleia e Vinhos Bernardino eram destiladores de aguardente. Eram dezenas as destilarias na região e enorme a quantidade de vinhos que ali eram “queimados”; a aguardente destinava-se sobretudo a beneficiar o Vinho do Porto. Era assim tentador fazer algo semelhante nos vinhos da região. Na Companhia Agrícola do Sanguinhal a tradição manteve-se até hoje e as reservas mais antigas que são usadas na preparação dos lotes têm, segundo o actual proprietário, mais de 80 anos.

Já no caso das adegas cooperativas estamos em crer que o desejo dos sócios de terem um vinho de sobremesa, não para imitar nem substituir o vinho do Porto, mas que pudesse ser a expressão das virtudes da região, levou à proliferação deste tipo de vinho um pouco por todo o país, incluindo Tejo e Algarve, onde os licorosos chegaram a ter alguma projecção.
Enquanto consumidores que somos, não devemos perder de vista o que, de original, se vai fazendo aqui e ali. Nota final: estes, como outros vinhos do mesmo tipo, devem ser consumidos frescos. E se tem a sua garrafa há muito tempo em casa (há que a conservar ao alto), não hesite em decantar primeiro porque pode ter criado depósito no fundo da garrafa. Boas provas!

 

(Artigo publicado na edição de Maio de 2023)

Grande Prova: O expoente do Alvarinho

PROVA ALVARINHO

Alvarinho é uma variedade ibérica. 70% das plantações mundiais da casta encontram-se em Espanha, predominantemente na Galiza, onde responde pelo nome Albariño, e mais de 20% ficam em Portugal. Tem alguma presença nos Estados Unidos (California, Oregon e Washington), Uruguai, África do Sul, Austrália e Nova Zelândia. Desde 2019 é uma das variedades autorizadas na […]

Alvarinho é uma variedade ibérica. 70% das plantações mundiais da casta encontram-se em Espanha, predominantemente na Galiza, onde responde pelo nome Albariño, e mais de 20% ficam em Portugal. Tem alguma presença nos Estados Unidos (California, Oregon e Washington), Uruguai, África do Sul, Austrália e Nova Zelândia. Desde 2019 é uma das variedades autorizadas na região de Bordeaux graças à sua capacidade de adaptação às diferentes condições climáticas, boa capacidade de retenção de acidez e perfil aromático de qualidade.
Em Portugal, é a 5ª casta branca mais plantada, correspondendo a 2% da área de vinha nacional (IVV). Embora comece a ganhar popularidade noutras regiões, desde o Douro ao Algarve, a sua maior expressão continua a ser na região do Minho, onde é a 3ª casta branca, representando mais de 15% da área plantada da região, a esmagadora maioria em Monção e Melgaço. O fim do uso exclusivo do Alvarinho no rótulo pela sub-região de Monção e Melgaço levou à criação de um selo próprio de certificação dentro da denominação de origem Vinho Verde. É caso único em Portugal.

Prova Alvarinho

Casta e região

As primeiras referências de Alvarinho relacionadas com a zona de Monção e Melgaço surgem em 1790, mas até à fama de hoje ainda havia muito caminho a percorrer. A investigação do engenheiro agrónomo Amândio Galhano nos anos 40 do século XX foi o primeiro passo à descoberta das qualidades da casta.
O primeiro rótulo de vinho Alvarinho foi da Casa de Rodas nos anos 20 do século passado. Esta propriedade histórica no concelho de Monção foi recentemente adquirida pela Symington Family Estates com o intuito de produzir vinhos da quinta.

Nos anos 40, já com expressão comercial, surgiu a marca Cepa Velha e no final dos anos 50 a marca Deu-la-Deu. Em 1976 chegou uma especialidade ao mercado – Alvarinho do Palácio da Brejoeira, também em Monção. Em 1982 Luís Cerdeira inicia a sua actividade em Melgaço com a marca Soalheiro e Anselmo Mendes em 1997, hoje duas referências incontornáveis na sub-região.

A sub-região de Monção e Melgaço representa um vale rodeado por montanhas, quer do lado de Espanha pela serra da Galiza, quer de Portugal pela serra de Gerês e Cabreira. Estas barreiras montanhosas oferecem a protecção dos ventos atlânticos e do Norte. É precisamente o que o Alvarinho gosta – estar perto do mar, mas não demasiado exposto. A amplitude térmica existente durante a maturação, caracterizada por dias quentes e noites frias contribui para a melhor síntese dos aromas e retenção da frescura.

Os solos são maioritariamente de origem granítica, mas variam ao longo do vale desde os solos de aluvião, mais profundos e mais pesados em Monção até os mais arenosos na encosta, havendo também zonas de calhau rolado, zonas com mais argila e uma faixa de xisto entre Monção e Melgaço. Anselmo Mendes considera a diversidade de solos um dos factores mais importantes no carácter do vinho.

Com cachos e bagos pequenos e uma película espessa, o Alvarinho produz pouco, na ordem dos 65 hl/ha. Muita película e pouca polpa resultam em rendimento mais baixo na prensagem em comparação com outras castas. Isto reflecte na regulamentação própria para o Alvarinho: de 100 kg de uvas só pode ser obtido 65 litros de mosto. Isto é menos 10 litros do que para outras castas na região pelo mesmo peso de uvas, o que encarece a produção. Já 1 kg de uva de Alvarinho também é mais caro, a oscilar à volta de 1 euro por quilo (sem contar com Colares e as ilhas, é a uva mais cara do país), enquanto as outras castas brancas regionais custam cerca de 35-45 cêntimos por quilo.

A película grossa do Alvarinho contém muitos precursores aromáticos e polifenóis (o índice de polifenóis totais é mais alto do que em muitas castas tintas), daí a estrutura e algum final amargo no vinho. “É por isto que a casta é boa para curtimenta e ganha mais cor com o estágio” – explica Anselmo Mendes.
Os aromas do Alvarinho podem variar desde marmelo e pêssego, notas de fruta citrina doce, fruta tropical (maracujá e por vezes, líchia). Notas florais de laranjeira e violeta e de frutos secos (avelã, noz) também são comuns, podendo desenvolver nuances de mel com evolução. Mas o seu perfil e composição aromática variam muito em função da zona de plantação e da abordagem enológica.
É comum associar a casta aos aromas tropicais, mas isto tem mais a ver com a tecnologia de produção. “O ADN da casta não é este”, – defende Anselmo Mendes que praticamente “respira Alvarinho” desde 1987, quando começou a trabalhar a casta em casa dos seus pais.

É preciso perceber de onde vêm os aromas. Se fermentar em inox a temperaturas muito baixas, o vinho é mais propenso a ganhar a tal tropicalidade exuberante. Se fermentar com temperaturas mais altas, revelam-se mais os aromas varietais e citrinos e o estágio em madeira confere outra dimensão e complexidade.

Uva multifacetada

Nem todas as castas conseguem brilhar no palco sozinhas. Os vinhos monovarietais por vezes são limitativos, mas claramente, não é o caso do Alvarinho. É como um actor com grande capacidade de representação, capaz de interpretar papeis mais diversos e corresponder a abordagens enológicas por vezes contraditórias.
Alvarinho e barrica é uma parceria relativamente recente. Anselmo Mendes começou a fazer ensaios de fermentação em madeira com as uvas da família nos finais do século passado. O primeiro Alvarinho “comercial” em barrica nasceu na Provam, sob marca Vinhas Antigas de 1995.

Márcio Lopes, que em 2010 começou o seu projecto Pequenos Rebentos, prefere barricas usadas de 225 e 500 litros, com mais de 8 anos e também usa balseiros de castanho porque “tiram o que está a mais, o carácter mais directo da casta”. E experimenta abordagens, como a curtimenta e estágio com flor. Luís Seabra no seu projecto Granito Cru prefere madeiras de maior capacidade, usa toneis de 3.000, 2.000 e 1.000 litros.

Entretanto, o estágio em barricas novas não parece que seja uma boa solução para o Alvarinho. “Uma casta de perfil aromático intenso com madeira nova fica desorganizada” – resume Miguel Queimado, enólogo e produtor da Vale dos Ares. Relativamente à fermentação também há abordagens diferentes, mas normalmente para obter vinhos mais complexos e sérios, a temperatura de fermentação anda pelos 20˚C.

Anselmo Mendes e Márcio Lopes fazem bâtonnage com borras totais, obtendo assim mais complexidade e estrutura a longo prazo. No início o vinho até pode parecer mais reduzido e vegetal, mas passado um ano em barrica, ganha complexidade, fica limpo e fino de aromas.

Luís Seabra fermenta com leveduras indígenas, mas sem bâtonnage. Acha que os seus vinhos já têm muito volume. Depois da fermentação não adiciona sulfuroso propositadamente para permitir a fermentação maloláctica (é assim que se fazia Alvarinhos na Galiza antigamente). Não se preocupa com eventual descida de acidez, em contrapartida o vinho fica mais estável e, se vindimar na altura certa, tem acidez suficiente, diz. Engarrafa sempre passado dois Invernos para estabilizar naturalmente. Desta forma “o vinho nasce já mais velho, mas isto também o protege futuramente”. Miguel Queimado também engarrafa com um ano em barrica e mais dois em garrafa.

É pena que a pressão comercial force alguns produtores, por vezes conta vontade, a lançarem Alvarinho ambiciosos na Primavera seguinte à vindima. Os vinhos chegam ao mercado ainda com algum sulfuroso sensível, a cobrir a expressão de fruta e levam mais alguns meses até equilibrar tudo. Porque numa coisa produtores e consumidores estão de acordo: é com o tempo em garrafa que o Alvarinho de Monção e Melgaço melhor se diferencia da “concorrência” e mostra tudo o que vale.

 

(Artigo publicado na edição de Maio de 2023)