Rio Abaixo, Rio Acima

Com o crescimento e florescimento dos vinhos do Douro, mais se torna evidente que a região é composta de múltiplos terroirs. Rio abaixo e rio acima já não se dá aos remos no rabelo, mas é importante explorar e conhecer as semelhanças, as diferenças e as especificidades.

 

TEXTO Luis Antunes FOTOS Cortesia dos produtores

NO princípio, havia o Porto. E o Porto tinha tantas categorias que cada um dos milhentos micro­-terroirs da região demarcada do Douro con­tribuía para o vinho com qualidades diferentes. Mas, nas últimas décadas, ao Porto juntou-se o vinho cha­mado “de consumo”, não fortificado, e pedindo do seu chão e sítio qualidades diferentes daquelas que anterior­mente o Porto precisava. À medida que os vinhos Douro DOC vão construindo a sua aura, vai-se percebendo que a região se redefine, e procura em cada um desses sítios um contributo que pode ser decisivo para o crescimento e a sustentabilidade dos vinhos, não só económica, mas também em termos de estilo. Neste artigo, procurei fa­lar com as empresas que fazem vinhos tanto rio abaixo (Cima e Baixo Corgo) como rio acima (Douro Superior), para perceber como gerem as vinhas, as uvas, como de­senham os vinhos, os portefólios, como encontram nos diversos terroirs os projectos que definem o Douro de hoje e do amanhã.

Lobo
Comecei por falar com Manuel Lobo de Vasconcelos, o enólogo principal da Quinta do Crasto, que me explicou que no Cima Corgo (CC) têm a herança histórica de vi­nhas como a Maria Teresa, a Vinha da Ponte ou os Carde­nhos, a que se juntam algumas mais recentes que incluem plantações separadas por casta. Esta pressão histórica não existe no Douro Superior (DS), onde acima de tudo procuram a consistência, que é conseguida graças a va­riedades muito adaptadas, como a Touriga Franca.

O DS fica, no entanto, aquém de atingir os níveis de diver­sificação e, portanto, de complexidade do CC, onde têm vinhas com 100 anos e cerca de 50 variedades. No DS os vinhos são fabulosos em estrutura e dimensão, e Manuel tenta no binómio viticultura-enologia encontrar o respeito p ela elegância, frescura e respeito pelo terroir, evitando a sobre-maturação e o desequilíbrio dos taninos. O CC tem mais diversidade, enquanto o DS tem mais consis­tência, principalmente usando viticultura de precisão e gestão cirúrgica da rega. Nas vinhas velhas do CC, tudo é mais fácil, já que a vinha se auto-regula, o factor ano tem menor influência. Por exemplo, na Touriga Nacional basta um pouco de chuva na altura da floração, algum excesso de nutrição e vem o desavinho. Nas vinhas velhas isso não acontece, até porque têm pouquíssima Touriga Nacional.

Em cada ano, é preciso resolver um puzzle do Douro, para o Reserva Vinhas Velhas, feito no CC, mas também para o Crasto Superior, proveniente do DS. No CC, são 42 mini-blocos de vinhas velhas espalhadas, todos com vinificações independentes, de onde podem sair os topos de gama Vinha da Ponte e Vinha Maria Teresa, mas pro­curando acima de tudo o equilíbrio, a frescura de taninos. No Douro Superior, o puzzle é diferente, mas a procura também é de equilíbrio, em particular a maturação dos taninos, mas também a frescura – mas frescura não é só acidez, a frescura aromática também é fundamental.

Enquanto no Reserva Vinhas Velhas há um histórico e um perfil a manter, no Crasto Superior o projecto foi criado a partir do zero, com espaço para definir o perfil de um vi­nho novo, apelativo para o consumidor moderno, com in­tensidade aromática, dimensão, estrutura, boa evolução em garrafa. Mas é também muito interessante perceber que o Crasto colheita pode ir buscar o melhor dos dois mundos. Para Manuel Lobo, um vinho para ter expressão e sucesso mundial tem de ter consistência e volume. Ao trabalhar com as duas sub-regiões, e visto que o Cras­to não é um vinho de quinta, consegue consistência ano após ano num vinho que conquista o consumidor pela fruta definida e boca redonda, para o qual é fundamental que as duas regiões se completem.

Sottomayor 
Luís Sottomayor, enólogo da Sogrape, focou-se em dois vinhos da Casa Ferreirinha: o Esteva e o Papa-Figos. Am­bos são vinhos despretensiosos e fáceis de beber todos os dias, vinhos desenhados para as pessoas gostarem à primeira. O Esteva existe desde a colheita de 1974, e é feito com algumas uvas do Cima Corgo, de produção própria, das quintas do Seixo e do Porto, e outras com­pradas a lavradores em zonas mais altas, para ir buscar frescura e acidez. Este vinho não tem qualquer estágio em madeira. O Papa-Figos posiciona-se entre o Esteva e o Vinha Grande, e procura reproduzir o modelo do Esteva mas com uvas do Douro Superior, que, sendo mais quen­te e com maturações mais fortes, vai ter componentes aromáticas diferentes.

Em ambos os vinhos as variedades são as mesmas: Tou­riga Franca, Touriga Nacional, Tinta Roriz e Tinta Barroca. O Papa-Figos é mais carregado de cor, com uma compo­nente aromática de cacau, chocolate e fruta madura dife­rente da do Esteva. As uvas, em grande maioria, vêm de zonas altas. O Douro Superior tem aptidão para produzir um vinho fácil para beber todos os dias. Como o vinho tem mais estrutura e volume, passa 20% por madeira du­rante 2 a 3 meses, para ganhar em intensidade, harmonia e amaciar um pouco. Já os vinhos do Cima Corgo são mais especiados, balsâmicos, mentolados. O Esteva faz pouco mais de 2 milhões de garrafas, enquanto o Papa­-Figos está a chegar ao milhão.

Sabia que…
As três sub-regiões do Douro podem ter como referência geográfica mais urbana as vilas e cidades de Peso da Régua (Baixo Corgo), Pinhão (Cima Corgo) e Vila Nova de Foz Côa (Douro Superior).

Ferreira
Francisco Ferreira puxa aqui a brasa para a sardinha da região em falta nesta equação, o Baixo Corgo (BC). A sua Quinta do Vallado está acima da foz do rio Corgo, mas a quinta está ainda no BC, no seu limite superior. Em todas as regiões há coisas muito boas, e outras muito más, vá­rios factores, como castas, altitudes, exposições solares, solos. Na Quinta do Orgal, no DS, a exposição é sul, logo os vinhos são muito concentrados, bem maduros, com menos acidez. No BC as vinhas expostas a sul dão vinhos melhores.

Segundo Francisco, não se pode falar numa “pior região” entre BC e DS, todas conseguem fazer vinhos com con­sistência, mas a vantagem de ter vinhas nas duas é que, em especial em anos extremados, consegue-se ter sem­pre um lote final de vinho equilibrado. No DS, nos anos quentes com ondas de calor prolongadas pode haver vinhos mais sobre-maduros, licorados, compotados, tal como em anos muito chuvosos e frios há vinhas que no BC não atingem o seu potencial, e as uvas não amadu­recem bem. Nos anos normais, que são 80%, há vinhos excelentes nas duas sub-regiões, basta colher na altura certa para conseguir equilíbrio. No BC os vinhos são mais frescos e elegantes, com mais fruta vermelha, mais lon­gos. No DS os vinhos são mais concentrados, com mais fruta preta, são mais gulosos. As castas que se adaptam melhor são o Sousão no BC e a Touriga Franca no DS. A Touriga Nacional é fantástica nos dois sítios, embora origine vinhos bem diferentes. As melhores exposições no DS são a Norte, enquanto no BC são a Poente ou Sul.

À medida que os vinhos Douro DOC vão construindo a sua aura, vai-se percebendo que a região se redefine

O Quinta do Vallado Reserva Field Blend tem origem em vinhas muito velhas, com cerca de 100 anos, e muitas castas diferentes, onde predominam a Tinta Roriz, a Tinta Amarela, a Touriga Franca e a Tinta Barroca. O vinho es­tagia em barrica nova (60%) e usada (40%) e procura um estilo não muito fácil e óbvio, com a fruta menos eviden­te, com mais complexidade e mistério. É importante que possa ser bebido jovem, mas que tenha ainda assim boa capacidade de envelhecimento, tal como é importante o seu equilíbrio, tem que ter potência e estrutura, mas com frescura e leveza. Já o Vallado Quinta do Orgal apresenta um estilo mais guloso, potente mas acessível desde cedo. O 2014 é o primeiro e leva 55% de Touriga Nacional, 40% de Touriga Franca e 5% de Sousão, de uma vinha nova. Vai a barricas de terceiro ano de uso. No futuro, Francisco vai tentar um estilo mais concentrado, para guarda.

Madureira
Luciano Madureira descreveu-me os projectos da Rozès no CC e DS. Douro Superior aqui é rio acima mesmo, já que os DS da Rozès vêm de Freixo de Espada à Cinta, já junto à fronteira espanhola. Na sua Quinta do Grifo o clima é mais rigoroso, há muito calor, uma altitude inferior a 250m, as videiras têm que fazer um grande esforço para cumprir a sua missão, apesar de haver rega disponível. Esta quinta tem 140ha, foi comprada cerca de 2003, e vê­-se uma grande melhoria do potencial das vinhas desde há 5 ou 6 anos. Há vinhas velhas e talhões com Touriga Nacional, Touriga Franca, Sousão e Tinto Cão. O Sousão é fundamental para corrigir a acidez do lote final.

Já a Quinta do Pégo, com 30ha, fica junto ao Pinhão, onde o clima é mais fresco, e os vinhos têm pH mais baixo. Há vinhas velhas com ênfase na Tinta Amarela e Rufete, e também muita Touriga Nacional já com idade. O Quinta do Pégo é um vinho maduro, intenso e encorpado, mas com boa leveza. Em relação ao Grifo, é mais leve e fres­co, muito equilibrado e apelativo. Mas como ambos são aprovados como Grande Reserva, têm também que ter extracto, matéria. O lote é feito a partir das vendas, numa filosofia de crescimento sustentável. O Pégo GR faz assim 10 mil litros, enquanto o Grifo GR faz 5 mil. Um e outro são feitos 75% em lagar, e passam por barricas de 300l de carvalho francês, 50% novas, durante 12 a 18 meses.

Moreira
Jorge Moreira espalha a sua actividade por várias empre­sas, com vinhas em vários locais, rio abaixo e rio acima. Focamo-nos para já nos vinhos brancos. O La Rosa Reser­va vem de uvas da zona de Pombal do Norte e de zonas altas (500m) junto ao Pinhão. É, assim, um Cima Corgo. A base do vinho é Rabigato e Síria (antiga Códega), fer­mentado em madeira (30% nova), e Arinto e Gouveio em madeira usada. As uvas têm características diferentes, é preciso avançar com prudência. São prensadas, macera­das, com uma extracção que permita a maior complexi­dade possível, mas também o maior equilíbrio possível ao mesmo tempo.

O ano de 2015 mostrou um vinho muito atraente e boni­to, fácil de gostar. Usualmente as vinhas têm muito pouca produção, dando mostos muito concentrados, com gran­de carga fenólica, difíceis em jovens. Não houve stress hídrico e os vinhos resultaram macios, com boa acidez, florais. Ou seja, com a mesma acidez, em 2015 os vinhos têm um ponto acima de maturação, o que lhes dá esse apelo imediato. Para Jorge esta é a característica do ano, mas foi a primeira vez que lhe aconteceu, o que não lhe permite prever a evolução dos vinhos. Este La Rosa tem expressão e beleza, pode ser bebido desde já, mas pre­vê-se que melhore durante 10 anos.

Já o Passagem é feito com uvas do Douro Superior, Quin­ta das Bandeiras, a 400m de altitude. As uvas vêm de vinhas velhas, de onde as brancas são separadas, e ainda Códega, Malvasia Fina, Viosinho e Rabigato. Aconteceu o mesmo fenómeno em 2015, pelo que as uvas foram de­sengaçadas e fermentadas como um tinto, dois dias com as películas. Depois foram prensadas e terminam a fer­mentação em madeira usada. A ideia é trabalhar a parte fenólica, extrair fenóis durante a fermentação, usar mui­ta bâtonnage, focar na estrutura para ultrapassar a vinha “pouco interessante”. 2015 deu um vinho onde a beleza aromática se sobrepõe ao resto.

Em suma, no La Rosa temos expressão, complexidade, um vinho impositivo, enquanto no Passagem temos aus­teridade, estrutura, componentes fenólicas, pensando numa maior evolução em garrafa. Nos tintos, a ideia é ter no DS intensidade, concentração, densidade, sedu­ção, expressão de beleza, enquanto no CC Jorge procura maior complexidade e estrutura, mais comprimento, uma boa componente aromática e de sabores, é mais pensado para crescer em garrafa. Como enólogo, Jorge procura sempre a frescura, mas não à custa do carácter do Douro.

Dar aos remos
Fecho esta pequena viagem, onde tentei entender o que une e o que divide as sub-regiões mais emblemáticas do Douro. Se no Cima Corgo a tradição era de Porto, foi no Douro Superior que muitos grandes tintos nasceram. O Douro Superior talvez tenha uma ligeira vantagem de não ter o Porto a fazer tanta pressão para levar as melhores uvas. Por outro lado, o Cima Corgo tem vinhas mais ve­lhas, maiores tradições vitícolas, talvez um pouco mais de diversidade de terroirs. Mas o Douro Superior tem tam­bém muitos terroirs diversos, incluindo altitudes maiores e climas mais extremados. Este é um sistema de equa­ções que se explora e resolve com muito agrado.

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