Nada satisfaz mais o português que a ideia de abundância à mesa. O azeite é uma gordura muito especial por isso mesmo e não há melhor recompensa que uma nódoa do ouro líquido na camisa ou na gravata. A técnica mudou muito, mas a glória permanece e faz-se sentir nas grandes e pequenas declinações culinárias. O tempo e o modo pedem azeite novo e em troca obtemos as maiores alegrias.
Das gorduras utilizadas pelo mundo na cozinha, o azeite é porventura a mais sofisticada, pelo simples facto de que intervém, com toda a sua personalidade, tanto no gosto como no aroma.
Não é uma gordura neutra e altera as suas características com o tempo, dois factores a ter em conta em qualquer utilização que se faça. Mas há mais. A cor do azeite não tem qualquer significado quanto a origem, qualidade ou acidez. Isto vale para os que vêem virtude nos azeites de uma certa cor, preterindo uns em relação a outros. É tanto assim quanto a prova de azeite é normalmente feita em gobelês de vidro azul, para que a coloração do conteúdo não influencie o juízo que se está a tentar fazer.
Outra falácia bastante comum é a presunção da acidez a partir da prova em boca. Um erro que se encontra muitas vezes entre os provadores de vinhos, referindo-se à acidez titulada em ácido tartárico ou sulfúrico. Acontece que a acidez do azeite se refere ao teor de ácido oleico, que o nosso sistema gustativo não consegue julgar. Há que não confundir com os amargos de certo azeite, que comunicam informação semelhante mas sem qualquer relação possível entre uma coisa e outra. Já o mesmo não se pode dizer dos aromas, que podemos e devemos julgar livremente com os receptores que utilizamos no quotidiano. É de resto nesta etapa da degustação que avaliamos defeitos nos azeites, caso por exemplo da tulha, ranço e mofo. A tulha tem origem no armazenamento precário e amontoado das azeitonas, que fermentaram por isso mesmo. Já o ranço é devido à oxidação da matéria-prima, e o mofo tem a ver com humidade residual, contaminando e condenando o estado da fruta antes do processo extractivo que origina o azeite. Um azeite defeituoso nunca melhora e vai arruinar todo e qualquer cozinhado que se faça com ele.
A prova de azeite é normalmente feita em gobelês de vidro azul, para que a coloração do conteúdo não influencie o juízo que se está a tentar fazer
Pelas virtudes é que vamos
A prova de azeites é completamente diferente da prova de vinhos e exige prática recorrente. Recomendo um caminho na exploração dos aspectos positivos, mais do que dos negativos de cada azeite. Tal como no vinho, detemo-nos nos aromas primeiro, e procuramos destrinçar as notas de fruta verde, como noz e maçã, das sensações mais maduras como ameixa e dióspiro. Depois temos de colocar no tabuleiro variáveis como especiarias, flores e notas balsâmicas, tal como fazemos com o vinho numa prova. Talvez não seja de imediato, mas em três tempos vai tornar-se especialista e aprender a explorar sem ajuda o fabuloso mundo dos azeites. Desde que seja virgem extra, o sentido de descoberta instala-se rapidamente, para nunca mais nos deixar.
Como tempero de saladas, utilizamos abundantemente um bom azeite e logo os componentes individualizados se manifestam como um instrumento musical numa orquestra. O mesmo acontece com o vinagre, e não é à toa que azeite e vinagre entram juntos à mesa, quase com o mesmo valor de sabor, pois no equilíbrio é que está o ganho. A fritura é manifestação feliz dos pontos positivos de uma gordura na cozinha, ajudando a conservar os alimentos e, ao mesmo tempo, conferindo-lhes a crocância que tanto apreciamos numa boa tempura. O azeite pode, neste caso, ser uma boa influência. Mas, na maioria das situações, um óleo alimentar de origem vegetal consegue melhores resultados. Face aos alimentos crus que estamos a trabalhar, adornados por gorduras abundantes, o conselho de harmonização recai inevitavelmente sobre um Loureiro sem madeira, da região dos Vinhos Verdes. A acidez fixa elevada resolve, o sabor consola. Se acrescentar frutos secos como amêndoas ou nozes, o acréscimo na textura vai encontrar contraponto de luxo no vinho da casta rainha de Ponte de Lima.
A variante lagareiro
A primeira declinação culinária que nos vem à mente, no tocante a azeite e proteína, é a posta de bacalhau assada no forno, bem regada e orlada com bastante alho. Sabores que estão incrustados na nossa alma desde que nascemos, com os quais crescemos bem nutridos e felizes, passando o testemunho para as gerações seguintes. Seja bacalhau, polvo, lulas ou outro ingrediente principal, encontramos esta solução culinária sob a designação “lagareiro”, justamente por ter o azeite como condutor do calor para o cozinhado. Em casa, dizemos apenas que é assado em azeite, mas, de facto, justifica-se alguma reflexão, porque não é exactamente assim.
Aproveito para introduzir alguma entropia – leia-se agitação – no assunto, indo aos postulados que reconhecemos como fundadores do processamento lagareiro. Um Vinhão do Minho ou um Cabernet Sauvignon do Tejo fazem as loas ao assado magistral, conferindo-lhe realeza e novos matizes de sabor. Ultimamente tenho feito experiências com vinhos Chardonnay do Tejo com madeira, exactamente com esta preparação de bacalhau com azeite, e quase sempre resultou. Há que experimentar e provar com persistência. Por muito que se evoque a tradição, sabemos que é coisa incriada e sempre aberta a novos processamentos.
Em tempos idos, enquanto se extraía o azeite novo nos lagares, aproveitava-se para ir lascando, respeitando o colagénio existente em abundância na posta. Em termos de temperatura, estava-se longe da fervura, que, como todos sabemos, é prejudicial à saúde do bacalhau, correndo o risco de secar e encortiçar. Era como se a posta soltasse pétalas de extremo sabor e tenrura. Entretanto, sobre as brasas mortiças repousavam batatas rachadas que, no momento de consumir, se juntava e regavam com o azeite novo e morno. Esta história ficcionada tem um fundo autêntico e situa-se nas Beiras, onde tem raízes a epopeia do bacalhau na mesa portuguesa. Fica maravilhosamente bem com um branco de Fonte Cal da Beira Interior, aliás como qualquer perfil de bacalhau. Gosto de fazer o paralelo com o torricado do Ribatejo. As incisões numa fatia de pão velho em diagonais cruzadas, o alho esfregado e o azeite acabado de fazer, depois enriquecido com pedaços de proteínas diversas, são iguaria digna dos deuses. Talvez nestas circunstâncias devamos orientar-nos para um Fernão Pires de Almeirim, copioso e não muito frio, para que a alquimia de boca se cumpra. Não se deixe intimidar pela eventual desconfiança no bacalhau congelado, em pratos que queremos executar rapidamente pode mesmo ser a solução indicada. Eu tenho, por hábito, demolhar bacalhau seco para depois demolhar a preceito e congelar. Para mim o sal deve pronunciar-se sobre a goma e a única forma de o conseguir é com esta abordagem. Mas há produtos cortados e corrigidos que vão ao encontro dos nossos gostos e bolsas, que dão rendimento muito apreciável em termos de sabor e integração em pratos de forno. Importante é que se cumpra o desígnio inicial, que é ter sempre bom bacalhau na mesa.
As variantes da variante
Em tempos que já lá vão reinou entre nós uma das sérias figuras da alta cozinha, chamado Aimé Barroyer. A cozinha do Pestana Palace, em Lisboa, vibrou e ficou ao rubro diversas vezes, com as criações do grande chef francês. Inesquecível a forma cândida com que Barroyer assumiu a sua perplexidade ante jóias da nossa cozinha, como a massa de pastel de bacalhau. Provei mais de uma dúzia de pratos feitos com a dita massa, a que confesso que nunca havia dado a atenção que o genial chef deu. Talvez a mais incrível de todas tenha sido a sua bola de massa de pastel de bacalhau em cama de percebes. No fundo, tratava-se de uma bola de massa próxima da brandade, que ia a fritar com batata palha à laia de raios de sol e vinha servida em cama de percebes. A experiência vínica mais fascinante que fiz com esta maravilha aconteceu com um Sauvignon Blanc do Douro, talvez mesmo a mais notável das experiências que me foi dado fazer com a casta.
Cebola, azeite e bacalhau são capazes de nos surpreender quando menos esperamos. A preparação dita à moda de Braga é exemplar. Posta de bacalhau frita com cebolada em azeite, batata frita às rodelas, tudo levado ao forno quente por pouco tempo, é uma das formas de perceber as mais valias que a cebola pode ter junto de bom azeite. O Bacalhau à Narcisa preenche praticamente os mesmos requisitos e, na verdade, muitos outros bacalhaus tradicionais bebem todos da mesma fonte sábia e ancestral. A cebola adora vinho branco, se lho soubermos dar, e a maravilha do bacalhau à minhota – outra designação possível do prato – acontece com um Arinto velho. Se for da Bairrada, tanto melhor, pois temos mineralidade forte e desempenho genial com azeite fervido em termos de sabor.
As incisões numa fatia de pão velho em diagonais cruzadas, o alho esfregado e o azeite acabado de fazer, depois enriquecido com pedaços de proteínas diversas, são iguaria digna dos deuses.
E não esqueçamos o galego Brás, que oficiava outrora na sóbola empena que vinha do Tejo e ia até ao céu sempre que houvesse interessados na jornada. Das muitas figuras do meu relicário gastronómico, é de longe aquele a quem mais impus a minha própria fantasia. Nos parcos e tíbios cursos que ministrei, o bacalhau à Brás pontifica, é eterno em nós e é do povo, não admitindo qualquer tipo de discriminação. Peguemos então numa aba fina de bacalhau seco. Esfiapamo-la com pressão da unha do polegar contra a do indicador. Fibra a fibra, vamos libertando os fios do fiel e vamos reparando que o sal vai saindo também. Terminada a empreitada, temos um montinho de sal, que deitamos fora. O passo seguinte é o corte de batatas em juliana fina, que reservamos após passadas por várias águas. Finalmente cortamos cebolas segundo o veio em bitola semelhante à da juliana de batata, que colocamos em sertã grande, mais larga que funda, em azeite virgem extra, lume no mínimo. Quando a cebola amolece, juntamos-lhe a batata, devidamente escorrida. Com a colher de pau, envolvemos ambos os legumes. Entretanto passamos por água corrente abundante, no fio da torneira, o bacalhau esfiapado da etapa inicial. Enxaguamos, e secamos com um pano. Levantamos um pouco o lume, até atingir fervura ligeira, às batatas e à cebola, que nesta altura devem estar chochas e mortiças. Integramos então o bacalhau, envolvendo sempre. Logo que volta a atingir fervura, apaga-se o lume. Deita-se uma gema batida por pessoa, mexendo sempre, deita-se coentros picados e azeitonas pretas e está pronto a servir. Há muitos caminhos para chegar ao objectivo final na cozinha portuguesa. Acompanhe com Bical do Dão com alguma madeira.
Artigo publicado na edição de Dezembro de 2024