O que nós passámos para aqui chegar

A História faz-se de avanços e recuos. A do vinho também e é por isso que não é bom perder a visão de conjunto, ficarmos nos pormenores e deitar fora o essencial. E custou muito chegar até aqui. João Paulo Martins Estamos numa época em que muito se fala dos méritos que tinham os vinhos […]

A História faz-se de avanços e recuos. A do vinho também e é por isso que não é bom perder a visão de conjunto, ficarmos nos pormenores e deitar fora o essencial. E custou muito chegar até aqui.

João Paulo Martins

Estamos numa época em que muito se fala dos méritos que tinham os vinhos de antigamente, dos métodos perfeitos que então se usavam, das virtudes que derivavam da simplicidade dos processos, do perfeito equilíbrio entre o homem e a Natureza. Se seguirmos esta perspectiva, o que se pede então ao produtor de hoje é que seja capaz de fazer como dantes: sem tecnologia, sem ciência, sem equipamentos e, já agora, sem enólogos que não passam de uns empatas que só querem usar químicos.
A história do vinho sempre acompanhou os avanços que a ciência – seja a física, a química ou a microbiologia – trouxeram para o aperfeiçoamento da técnica de produção. Digo técnica de produção porque o vinho não se faz por si, não aparece feito na Natureza, tal como o pão não nasce numa planta. São precisas uvas para fazer vinho e é preciso saber o que fazer com elas. Com o pão passa-se o mesmo: é preciso cereal mas há que saber o que fazer com ele e, imagina-se, há muitas maneiras de chegar ao produto final. Tal e qual como no vinho.
Quando se ouve alguém falar no vinho de outrora, do antigamente e dos velhinhos que, esses sim, é que sabiam o que faziam, fica-se com a sensação que por vezes não se sabe do que se fala. Com a evolução vertiginosa que o mundo teve (em todos os domínios) nos últimos 60 anos, para falar do “antigamente” não é preciso ir muito longe, poderá bastar (e provavelmente sobra…) ir até aos anos 50 do século passado. Pois então repare-se: na época apenas se fazia vinho a lagar e o mosto fermentava posteriormente em tonéis de madeira de grandes dimensões. Simples, não é? Não se usavam leveduras, não se fazia o controle de quase nada, não havia malolácticas, nem estágios nem filtrações. Fazia-se o vinho com o que chegava à adega, quando as uvas sobrevivam às quantidades enormes de químicos que os lavradores usavam. Já ninguém se lembra do DDT e do 605 Forte e dos anúncios que davam na televisão do Senhor Prudêncio? Ninguém ouviu falar dos tempos em que eram às carradas o ácido tartárico que se usava nos vinhos para lhes conferir acidez e assegurar a longevidade? Já todos esquecemos que, se estivermos a falar dos Bordéus dos anos 50 só há um ano considerado muito bom, o 1953? Porquê? Pela simples razão que os outros, apesar de virem de casas famosas, avariaram, estragaram-se, evoluíram mal. Achamos isso normal, mas é bom tentar saber porquê. Nos anos 70 não há quase Bordéus que sejam dignos de nota e Borgonhas também não? Porque será? É bom saber que a responsável pela melhoria generalizada dos vinhos foi a ciência, nas suas múltiplas disciplinas e que os produtores beneficiaram de coisas tão estupidamente simples como seja…haver mais higiene nas adegas, deixar de usar cestos de verga para transportar uvas, eliminar na quase totalidade os tonéis velhos que, à falta de manutenção, mais não são que viveiros de bactérias.

Afinal, o que ganhámos com a técnica?

Fazer vinho hoje é aplicar uma quantidade enorme de conhecimentos e melhoramentos que foram sendo adquiridos ao longo das últimas décadas. Algumas dessas melhorias apenas decorrem do bom-senso – como seja a escolha das uvas à entrada da adega ou a lavagem das instalações para impedir a propagação das bactérias acéticas. Outras são a consequência de muito estudo, ensaio, erro e progresso. E esses avanços foram, nas últimas décadas, responsáveis pela melhoria generalizada dos vinhos no nosso país e no resto do mundo. É difícil dizer onde tudo começou mas a verdade é que o melhor conhecimento da uva e da vinha, da condução e da poda, da gestão da canópia, do equilíbrio entre produção por cepa e qualidade final do vinho, tudo isso contribuiu para que hoje as uvas cheguem à adega mais sãs e mais capazes de dar bom vinho. Fez-se tudo bem? Nem por isso. Os erros que se fizeram com porta-enxertos errados, com selecção clonal desajustada e condução incorrecta da vinha serviram também para se melhorar hoje os disparates cometidos nos anos 80 em Portugal (nomeadamente no Douro) e em França, no caso da selecção clonal.
Do início dos anos 60 até hoje aprendemos quase tudo o que nos permite evitar que se volte a ter uma década negra como tiveram os franceses nos anos 50 em Saint-Émilion. Vejamos: deixámos gradualmente as madeiras velhas para a fermentação dos mostos, descobrimos o método certo para controlar a temperatura da fermentação, preservando assim os aromas e assegurando o respeito pelo local de onde vieram as uvas; aprendemos quase tudo sobre a fermentação maloláctica, a sua monitorização e acompanhamento; conhecemos muito melhor o universo das leveduras e descobrimos que elas não só não são todas boas meninas, como podem não ser capazes de levara a bom proto a tarefa que delas esperamos; conhecê-las e controlá-las foi um enorme avanço. Hoje sabemos muito mais sobre a microbiologia da uva, dos processos químicos associados à transformação do mosto em vinho, sabemos gerir melhor o pH e a acidez das uvas com a consequente redução do uso do ácido tartárico embora ele continue a ser útil nos climas quentes, tal como o mosto concentrado é necessário nos climas frios. Substituímos muitos tonéis velhos por barricas novas e, quer sobre a fermentação em barrica quer sobre o estágio em madeira, temos hoje conhecimentos muito maiores que nos permitem não voltar a fazer o erro dos anos 80 em que os vinhos eram verdadeiros destilados de carvalho. E sobre a utilização de sulfitos estamos muito mais informados, também para saber que não os usar é um passaporte quase certo para a curtíssima longevidade do vinho.
Do passado mantivemos o que valia a pena: as vinhas velhas, (no caso de serem boas), a pisa (ou mesmo a fermentação) em lagar, as ânforas, os depósitos de cimento (agora com novos formatos) e, se se tiver confiança nelas, as barricas velhas mesmo para fermentar vinhos brancos, como hoje ainda fazem algumas das grandes regiões de brancos do Mundo.
A grande diferença em relação ao passado é que, hoje, o conceito de vinho imbebível praticamente desapareceu e mesmo os vinhos ridiculamente baratos são bebíveis. São vinhos Barbie, como alguém disse? Não sei se são Barbie, mas são os vinhos que a esmagadora maioria da população bebe, a tal população para quem vinhos a €5 são coisas para o Natal, e e…! Ao contrário dos tempos de Fernando Nicolau de Almeida, hoje a Casa Ferreirinha poderia fazer Barca Velha quase todos os anos. Tivesse o criador do mítico vinho acesso a todos os avanços técnicos que hoje temos e conhecemos e seria, com certeza, o primeiro a abraçá-los. Temos escolha porque temos mais sabedoria. Sabemos o que queremos fazer e como. E, por isso, sabemos que se quisermos errar não é por sermos mais espertos que os outros ou por sermos nós que respeitamos a Natureza. Creio que será por outras razões.
Passámos muito para aqui chegar e seria um desperdício deitar tudo a perder.

Edição nº 34, Fevereiro 2020

O vintage 2017 e o fim das tradições

Finalmente foram quebradas as antigas regras não escritas que determinavam que “Porto Vintage, só três vezes em cada década”. Espera-se que acabem de vez e que não tenha sido apenas um fogacho. TEXTO OPINIÃO João Paulo Martins As declarações de um ano como Vintage sempre foram acontecimentos importantes para o sector do Vinho do Porto. […]

Finalmente foram quebradas as antigas regras não escritas que determinavam que “Porto Vintage, só três vezes em cada década”. Espera-se que acabem de vez e que não tenha sido apenas um fogacho.

TEXTO OPINIÃO João Paulo Martins

As declarações de um ano como Vintage sempre foram acontecimentos importantes para o sector do Vinho do Porto. O Vintage é o vinho mais prestigiado mas também, entre os “grandes”, aquele que tem menos custos de produção, sobretudo se comparado com os tawnies com indicação de idade. Fazer um bom tawny é uma dor de cabeça que se prolonga por vários anos , qual criança que tem de ser apoiada e educada para vir a ser um adulto à séria. O Vintage, quase inexplicavelmente, já nasce adulto e feito e por isso trata-se é não estragar o que a natureza deu e colocar essa qualidade rapidamente dentro da garrafa para que depois o tempo faça o seu papel, mas já em interferência do produtor. O primeiro deveria ser bem mais caro que o segundo mas a verdade é de sentido inverso: para se vender um tawny ao preço que actualmente se vendem os vintages das empresas mais prestigiadas, temos de apontar para um 30 ou 40 anos de idade. Só de pensar as voltas que tal vinho deu, o que se perdeu para os bebedolas lá de cima (há quem lhes chame anjos…) ficamos com os cabelos em pé. Mas é assim que o sistema funciona, vamos em frente. A tradição, criada sabe-se lá por quem, de apenas declarar como clássico um vintage duas ou três vezes por década não tem dado grandes frutos. Os ingleses, muito ligados a essa tradição, fizeram questão de a cumprir por mais de um século e por isso deixaram algumas potenciais declarações fora do “classicismo” como 1995, 2005 e 2015.
A tese é deles, mas casas como Ramos Pinto, Poças, Sogrape, Porto Cruz, Noval ou Niepoort não querem nem ouvir falar de termos como “clássico” e “não clássico”. Para estes produtores, a declaração acontece quando o ano é bom, independentemente da frequência. Mas o que ninguém nega, mesmo os outsiders, é que em ano “clássico” as vendas são rápidas e os preços bem convenientes. Vantagens para todos à boleia da tradição inglesa.
Foi preciso chegar à segunda década deste século para ver ruir a tradição. Diz-se nos mentideros que não se declarou o 2015 porque se percebeu que o 2016 era de grande qualidade e foi esse o escolhido para ser clássico. Só que, ironia do destino, o 2017 logo à nascença deu mostras de ser um grande Vintage, o que se veio a confirmar. Estavam lançados os dados para se furar a tradição e declarar um Vintage “clássico” dois anos seguidos. Toda a gente declarou e muitos já venderam tudo. Só que…o 2018 está em cave à espera e ninguém é por agora capaz de afiançar se vai declarar ou não. Falta tempo mas não tanto assim, uma vez que a partir de Janeiro se podem começar a enviar amostras para aprovação. Vamos ter um tri-clássico? É cedo mas, como sabemos, depois de pecar a primeira vez os pecados seguintes soam apenas a pecadilhos. E o Porto bem precisa de promoção e que se fale dele por esse mundo fora. Os consumidores portugueses, dizem-nos no comércio, andam um pouco arredados do Vintage e as vendas estão muito longe de serem o que eram há uma ou duas décadas. Mas os actuais vintages têm a enorme vantagem de darem cartas na elegância mesmo em novos, coisa que os antigos não davam. E lá se vai assim, de uma penada, mais uma tradição pelo cano: à ideia antiga de que o vintage ou se bebia muito novo ou tinha de se esperar 15 a 20 anos sucedeu a geração actual, assente em melhor viticultura e em aguardente de qualidade incomparavelmente superior à que se usava antigamente, Dessa forma, permite-se que o vinho seja apreciado novo e mesmo na década a seguir à colocação no mercado. Confesso que continuo a gostar mais dele com 15 ou 20 anos mas tiro o chapéu aos novos vinhos, muito mais assentes na fruta e na elegância e que dão boa prova em qualquer momento. É verdade que as quantidades actualmente declaradas são cautelosas (3 a 5 000 caixas de 12) e a Taylor’s faz figura de “exagerada” por ter declarado, no 2017, 11 500 caixas mas, voltando ao exemplo clássico, em 1927 a Cockburn’s e a Croft terão declarado entre 20 e 30 000 caixas. Isso sim, eram declarações à grande!
Ficamos assim na expectativa sobre o que vai acontecer com o 2018 e quem sabe, dados os bons prenúncios desta vindima, com o 2019… Isto está a complicar-se, disso não tenhamos dúvidas, mas é destas complicações que nós gostamos.

 

Edição Nº30, Outubro 2019

A Longa Marcha

Todos esperamos que esta não seja tão longa nem tão atribulada como a do Mao Tsé-Tung… TEXTO João Paulo Martins Tive, há pouco tempo, a oportunidade de provar uns vinhos franceses da zona de Bordéus. A região é muito mais conhecida pelos seus tintos do que pelos brancos mas por lá também os há e […]

Todos esperamos que esta não seja tão longa nem tão atribulada como a do Mao Tsé-Tung…

TEXTO João Paulo Martins

Tive, há pouco tempo, a oportunidade de provar uns vinhos franceses da zona de Bordéus. A região é muito mais conhecida pelos seus tintos do que pelos brancos mas por lá também os há e bem famosos. Já nem me refiro aos mais célebres de todos – os brancos de Sauternes/Barsac – vinhos feitos com uvas atacadas de podridão nobre. A zona, a sul de Bordéus, reúne condições naturais que favorecem o aparecimento do fungo, qual cogumelo microscópico que ataca a uva e provoca o seu apodrecimento. Nem sempre aparece quando deveria e nem sempre tem a mesma força mas Sauternes há todos os anos, essa é que é essa. Também a sul de Bordéus se situa a zona de Pessac-Leognan e Graves. Aqui, além de nomes ultra-famosos como Château Haut-Brion, La Mission Haut-Brion ou Smith Haut Lafitte, proliferam marcas de vinhos brancos que ganharam muito prestígio.
Na zona, abunda o Sauvignon Blanc, muitas vezes associado com Sémillon e Muscadelle. Com estas três variedades, combinadas das mais variadas formas, toda a região produz brancos que viraram estrelas, como Domaine de Chevalier ou Château de Fieuzal. Já a norte de Bordéus, na chamada rota dos châteaux, no Médoc, encontramos sobretudo vinhos tintos mas mesmo as grandes marcas desde há muito que se dedicam também a produzir brancos. O perfil dos brancos bordaleses mudou muito nas últimas décadas e também por lá se produzem hoje vinhos bem mais finos e elegantes do que outrora, quando, na década de 90, o que mais se bebia eram destilados de carvalho, vinhos pesados, carregados na cor mas…na crista da onda da moda da época: madeira nova de carvalho, fermentação total em barrica nova e com pouco saber sobre o tema (o que agora percebemos…). Por serem novidade até eram muito apreciados mas já ninguém tem hoje qualquer apreço por aquele modelo.
Voltamos então ao início. Provei há pouco tempo um desses brancos bordaleses, de que guardava uma memória não muito positiva mas, o que não espanta, o perfil estava agora bem mudado: madeira nem se notava – mas vim a saber que incorporava algum vinho fermentado em barrica nova – fruta fresca abundante e com as virtudes que o Sauvignon Blanc adquire em Bordéus e que o afastam do modelo pimento verde/espargos e também do outro modelo assente no maracujá. Aqui a casta ganha mais carácter e dá vinhos muito interessantes, de cujo modelo tenho sempre presente o Pavillon Blanc do Château Margaux. O branco provava-se bem, elegante e fino, até com boa aptidão gastronómica. Indaguei o preço PVP e foi aqui que a coisa tremeu: €40 ! Fiquei intrigado. Como é que um vinho com aquele perfil, onde não se notavam quaisquer defeitos mas também não muitas virtudes, atingia aquele valor no mercado? É claro que todos sabemos a resposta que quase passa por patética: vendem àquele preço porque podem, porque há quem compre. Mas depois vem a pergunta seguinte: porque é que alguém se dispõe a dar €40 por um vinho que, sem qualquer costela nacionalista, encontraríamos por aqui algures entre os €10 e 15? Também aqui é fácil perceber que não só as marcas bordalesas têm um trajecto já antigo e rodeado de fama e glamour como também temos de entender que temos um longo caminho pela frente, uma longa marcha que nos poderá (talvez…) levar a patamares próximos daquele. A imagem de Portugal esteve demasiado tempo colada a clichés: o país era de tintos e os brancos que se conheciam lá fora eram os Verdes, vendidos a pataco. Conseguir agora convencer os mercados que a Bairrada, o Dão, o Douro e todas as restantes regiões para sul podem produzir brancos de enorme qualidade e que os Verdes são muito mais do que uma região de vinho indiferenciado é um trabalho imenso, uma marcha longa que temos de percorrer. Mas cuidado, não serve de nada passarmos a “achar” que o nosso branco já vale €40 ou €50, sem que a ele esteja associada a história, o saber e um trajecto, pensado e progressivo. Como se disse acima: vende a €40 quem pode, não necessariamente quem quer. E, nestes temas do vinho, como do marketing, o verbo “achar” é altamente irritante.

Edição Nº23, Março 2019

 

Nos 30 anos de uma aventura

Escrevo esta crónica em Janeiro para ser publicada no mês seguinte. O normal, portanto. Mas em Janeiro comemoro uma data especial. Faz este mês 30 anos que escrevi a minha primeira crónica sobre temas de vinhos no O Jornal/Vinhos, suplemento mensal do semanário O Jornal. Foi então um começo tímido de um trajecto que, felizmente, […]

Escrevo esta crónica em Janeiro para ser publicada no mês seguinte. O normal, portanto. Mas em Janeiro comemoro uma data especial. Faz este mês 30 anos que escrevi a minha primeira crónica sobre temas de vinhos no O Jornal/Vinhos, suplemento mensal do semanário O Jornal. Foi então um começo tímido de um trajecto que, felizmente, não teve interrupção e que continua “até que a mão me doa de tanto escrever”.

TEXTO João Paulo Martins

Essa crónica, que publiquei no meu primeiro volume das Histórias com vinho e outros condimentos, inseria-se numa coluna com um nome um pouco pomposo, colocado na altura pelo José Salvador – Tribuna do Enófilo -, espécie de púlpito onde se dava voz a quem quisesse escrever, fosse consumidor, enólogo ou outro. Eu ainda a escrevi em máquina antiga que herdei do meu pai (e que conservo em perfeito estado), com teclado HCESA, informação que pouco ou nada diz às novas gerações. Os enólogos também teriam direito à Tribuna do Enólogo mas poucos eram dados à escrita. Eram profissionais que estavam então a mostrar-se ao público; deixaram de ser apenas os “técnicos”, nome que habitualmente se ouvia nas empresas e cooperativas, passaram a ter nome e rosto e, mais importante, passaram a assinar os vinhos. Pode-se questionar se se justifica mesmo saber quem está por trás do vinho quando pensamos que, em relação a grandes marcas, tal nome nos é desconhecido. Alguém tem na ponta da língua o nome do enólogo do Château Latour ou Palmer? Será que o nome é mesmo o mais importante? Na altura, e estávamos em 1989, era mesmo, porque o sector estava a iniciar uma grande renovação, para não dizer mesmo revolução e as novas ideias e técnicas, os novos equipamentos, os novos plantios e as novas castas estavam a marcar o compasso e, nesta nova orquestra, o maestro era figura fundamental, alguém com sólida formação técnica e académica, com viagens e “mundo” suficientes e, assim, capaz de enfrentar os novos tempos. Foi então que o público se familiarizou com a figura até então desconhecida (ainda que não fosse propriamente uma novidade) do “enólogo consultor” que apoiava tecnicamente vários produtores, que assinava os vinhos e dava a cara por eles. Já tinham existido figuras de enólogos consultores, como o Engº Manuel Vieira que, de Carcavelos a Setúbal e de Bucelas até Reguengos dava apoio a produtores muito diferenciados. Mas agora falava-se de João Portugal Ramos, António Ventura, João Melícias, entre outros.
Começavam também, desde meados dos anos 80, a surgir os novos produtores-engarrafadores e muitos traziam consigo a marca da modernidade; nos primeiros podemos apontar o bairradino Luis Pato e, nos Verdes, Casa de Sezim, Paço d’Anha e da Tapada. Luis Pato – sempre atento ao que se fazia lá fora – terá sido o primeiro produtor a promover um encontro com a comunicação social para mostrar as novidades e, como o sector específico dos vinhos era muito limitado, encontrávamos nesses jantares jornalistas generalistas da rádio e televisão que assim se foram entusiasmando com o tema. A modernidade, essa, chegou quase sempre pelo génio criativo de António Francisco Avillez, então dono da J.P. Vinhos. Ali estavam já a trabalhar Filipa Tomaz da Costa e Peter Bright e daquela empresa saíram verdadeiras pérolas que foram espantosos fenómenos de marketing. Foi o caso do vinho João Pires, um branco de moscatel, seco – algo inédito até então – e que, beneficiando de uma magnífica apresentação, se tornou um enorme sucesso, nomeadamente em Inglaterra. Os portugueses nunca lhe deram o crédito que merecia porque se dizia que era “vinho para senhoras” porque era doce e tal e coisa. Na verdade não era e era vinho de muito maior longevidade do que se poderia imaginar, como constatei 20 anos mais tarde, quando uma garrafa mal conservada e que trouxe dos fundos da cave, me deixou boquiaberto. A fazer companhia ao João Pires estavam o Cova da Ursa, o primeiro branco fermentado em barrica, o Quinta da Bacalhôa, o primeiro Claret a sério que tivemos, o Má Partilha, o primeiro imitador de Pomerol que conhecemos cá. De Azeitão não paravam de sair novidades, numa época em que do Douro poucas notícias havia, para além dos clássicos e do Alentejo eram também muito poucos os novos projectos, começando então a ter algum destaque os vinhos Cartuxa, sobretudo os tintos.

 

O IVV e as classificações
À época ainda permanecia uma prática que, com o surgimento das Comissões Vitivinícolas, acabou por se perder. Refiro-me à classificação das colheitas das várias regiões, dadas pela Câmara de Provadores do IVV, entidade que até então tinha a obrigação da prova e certificação dos vinhos. Estava assim habilitada a aquilatar da qualidade das diversas colheitas. Anualmente surgiam essas classificações da colheita – creio que numa escala de 1 a 10 – e a bronca estoirou quando se tratou de classificar a colheita de 1988. O ano tinha corrido mal, tinha havido acidentes climáticos, com muito desavinho, e a produção foi muito, mas mesmo muito baixa. Este é o ponto interessante porque, ao invés da quantidade, a qualidade foi extraordinária, nomeadamente numa região que tinha então grande fama e aceitação juntos dos consumidores – a Bairrada. O IVV resolveu não atribuir classificação ao ano de 1988, como que a dizer (numa leitura possível por parte do consumidor) que tinha sido mau de mais para ser classificado. Escusado será dizer que a bronca estoirou e o José Salvador, sempre adepto de uma boa razão para se pegar com as instituições, desancou o IVV de todas as formas, escreveu o que ninguém queria ler sobre a incompetência e a falta de critério da Câmara de Provadores, então liderada por Ponte Fernandes. Aquele tipo de classificação de colheitas era, e é, ainda vulgar em França mas entre nós, com a variação de qualidade de trabalho dos produtores de cada região – e convém não esquecer o peso esmagador que então tinham as adegas cooperativas – a classificação de uma região como um todo pecava sempre por incorrecta e desfasada da realidade.
À época ainda se realizavam os concursos de vinho na produção, promovidos exactamente pelo IVV. Não tinham qualquer interesse para o consumidor porque saber que o vinho do produtor José da Silva de Palmela ou o António Marques de Almeirim ou o Manel Baixinho do Cartaxo tinham ficado bem classificados não servia para nada porque o mais habitual era esses vinhos (ainda não engarrafados) acabarem em lotes de empresas armazenistas (e havia muitas) que compravam aqui e ali e depois comercializavam com marca própria. Na lista dos premiados surgiam muitos produtores da região de Setúbal mas os nomes eram, e continuaram a ser, desconhecidos. O concurso era assim como que inútil, apenas servindo para sugerir opções de compra aos armazenistas.
Imprensa da especialidade era algo novo. O Jornal/Vinhos tinha sido criado por António Lopes Vieira que posteriormente ingressou na Vinalda e ainda na José Maria da Fonseca e tinha estado mais de um ano em lume brando, sem orientação ou colaboradores. Foi precisamente em Janeiro de 1989 que ressurgiu. O Expresso tinha tido uma coluna de opinião assinada pelo José Salvador e no Diário de Notícias escrevia José Estevão. Assunto encerrado. Lá para o fim do ano de 89, Luis Lopes teve uma epifania e criou uma revista mensal de tema vínico, a Revista de Vinhos. Em época pré-Internet em que as opiniões não escritas não tinham onde se expressar era tudo o que se conseguia arranjar. E para falarmos uns com os outros tinha de ser pelo telefone fixo que os primeiros móveis só surgiram bem dentro da década de 90. E não é que se conseguia viver?

No Médoc foi assim

Se não há amor como o primeiro, não há VINEXPO como a primeira. Foi então que me passeei pelo Médoc e visitei o inimaginável, um mundo de fantasia e sedução que só conhecia dos livros. TEXTO João Paulo Martins No ano em que comecei a trabalhar nos vinhos, com o José Salvador, soube da sua […]

Se não há amor como o primeiro, não há VINEXPO como a primeira. Foi então que me passeei pelo Médoc e visitei o inimaginável, um mundo de fantasia e sedução que só conhecia dos livros.

TEXTO João Paulo Martins

No ano em que comecei a trabalhar nos vinhos, com o José Salvador, soube da sua ida à VINEXPO de Bordéus, feira que se realiza de dois em dois anos. Corria o ano de 1989 e como estava há tão pouco tempo no ambiente dos vinhos e sem grandes fundos de maneio, entendi que não era ainda altura de ir “mergulhar” naquele mundo alucinante.
Quando digo alucinante não estou a exagerar e comprovei em 1991, na primeira visita: o pavilhão tem 900 metros de comprido e lá dentro – quase sempre sem ar condicionado decente a trabalhar – tínhamos cinco corredores com stands de todas as partes do mundo. Assim sendo, só para uma primeira visita de prospecção, havia que contar com quase 5 quilómetros a pé, em andamento de passeio, o que demorava umas duas horas. Depois, se calhávamos a ficar interessados em dois ou três stands, podíamos ter o azar de cada um deles ficar “fora de mão” e lá andávamos nós para trás e para a frente. À hora de almoço já estávamos de rastos.
Mas voltemos à tal de 1989 a que não fui. Quando regressou, o Salvador vinha empolgado e muitíssimo entusiasmado com o que tinha visto e provado. Ele, sempre muito dado a tiradas radicais e sem papas na língua, confessou-me que ficou deslumbrado com a visita ao Château Pichon-Longueville Comtesse de Lalande e com o vinho tinto que lá tinha provado. Não foi de modas e disse: “Os nossos melhores tintos comparados com aquilo são água de lavar pratos!” É evidente que não escreveu isto nem nunca o afirmou em público, mas disse-me na redacção de “O Jornal”.
Fiquei chocado. É verdade que não conhecia aquele château nem os seus vinhos, mas conhecia os bons vinhos portugueses – na época em número muito reduzido – e não me parecia que tal comparação fosse possível e que os nossos fossem assim tão maus. É claro que não eram e eu acho que a reacção dele foi aquilo que se pode chamar a “tentação irresistível do Cabernet Sauvignon”, sobretudo se originário do Médoc, onde se mostra bem melhor do que noutras regiões. As feiras tinham, à época, um efeito desmoralizador para os portugueses: provavam-se coisas tão boas, tão bem feitas e tão sedutoras que nos ficava a ideia de que nunca lá chegaríamos. É nesse sentido que se pode perceber a reacção do Salvador.
Estávamos então em Portugal no período de renovação dos vinhedos e adegas, dos novos plantios, da chegada às adegas de técnicos com formação académica. Tudo no princípio, portanto. Mas ele não vinha só entusiasmado com os vinhos do Médoc, tinha ficado maravilhado com alguns brancos italianos de Friuli e a Malvasia de Lipari, só para registar alguns de que me lembro. Fiquei preocupado, mas cheio de vontade de lá ir ver com os meus olhos.

 

]Um banho de vinho
A minha vez chegou em 1991. Fui com ele e com o produtor Luís Pato e preparámos bem a nossa viagem: visitas marcadas em châteaux, para as quais reservávamos as tardes, recepções, jantares, tudo acertado, programa completo. No pavilhão, como era de esperar, foi uma estafadeira: para lá e para cá, anda ver isto que não podes perder, prova aquele vinho ali que é espectacular, encontrei um tipo porreiro que devias conhecer, etc, etc. Diga-se que o dia começava muito bem, no stand outdoor da Roederer, onde João Nicolau de Almeida nos recebia com champagne Cristal, logo pelas 9 da manhã. Não estou bem a ver melhor maneira de começar um dia em que se perspectivavam muitas provas em stands de vinho, confesso.
Os passeios começaram no Médoc e incluíram, entre outros, o château Mouton Rothschild. Com visita marcada e com cartão profissional de imprensa tínhamos portas abertas e acesso a provas mais alargadas do que os habituais visitantes. Fiz então a minha estreia de “barrel tasting” num château que integrava os 5 magníficos, onde se incluíam Latour, Margaux, Lafite e Haut-Brion – todos, a seu tempo, também visitados. Provei vinho da colheita anterior – por sorte a magnífica safra de 1990 – e fiquei desarmado por duas razões: a primeira porque não percebi porque é que aquele vinho – para mim perfeito e pronto a beber – ainda tinha que ter mais um ano de estágio em barrica antes de ser engarrafado; a segunda, alguma incredulidade quanto à tão propalada longevidade daqueles vinhos. Engano de principiante, erro que a história e o futuro sempre desmentiram, uma vez que estes são vinhos para meio século, não são vinhos de uma década. Mas num assunto não houve engano: foi tudo cuspido para dentro, com mandam as regras de boa educação quando se prova Mouton Rothschild!
O fascínio continuou com um almoço e prova vertical em Cos d’Estournel, com Bruno Prats ainda à frente dos destinos do château, prolongou-se por Saint-Émilion e os momentos de descoberta não pararam, alguns deles dentro do pavilhão, como os Alsácia de Paul Banck ou os moscatéis de Rivesaltes, do Domaine Cazes.
No final percebi melhor o que o Salvador dizia a propósito dos tintos do Médoc. Não subscrevi a tirada radical, mas fiquei a saber que o polimento, a elegância, a estrutura e a longevidade não são obra do acaso. Ali há muita história, muito saber, muita experiência e muita experimentação. Fundamentalmente era por isso que não podíamos então concorrer. À época estávamos a descobrir os tintos estagiados em madeira, os brancos fermentados em barrica e as novas castas que hoje são o espelho do país estavam ainda dar os primeiros passos.
Aprendi então uma máxima que procuro sempre lembrar: quanto mais vinhos de fora pudermos provar, melhor. Para valorizar os nossos, para ter balizas, para saber do que falamos quando dizemos que “este” é um vinho do outro mundo. É verdade que o “outro mundo” é muito, muito grande, mas há que não desanimar.

 

 

Edição Nº 19, Novembro 2018

 

Quando os avós mandavam na adega

Saberes antigos, tradições preservadas, ensinamentos transmitidos. Era isso que se esperava dos avós. Há umas décadas, quando as adegas eram santuários e os produtores alquimistas. TEXTO João Paulo Martins A fechadura da porta da adega metia respeito e a chave era quase uma arma de arremesso. A porta, encarquilhada pelo tempo, já tinha frestas por […]

Saberes antigos, tradições preservadas, ensinamentos transmitidos. Era isso que se esperava dos avós. Há umas décadas, quando as adegas eram santuários e os produtores alquimistas.

TEXTO João Paulo Martins

A fechadura da porta da adega metia respeito e a chave era quase uma arma de arremesso. A porta, encarquilhada pelo tempo, já tinha frestas por todo o lado, buracos por onde entravam gatos caçadores e, por vezes, ratos esquivos que na escuridão procuravam esconderijo. O “dono” da chave era o meu avô, qual guardião do templo, sempre atento a qualquer tentativa de entrada. Ali só com razões muito bem explicadinhas, e superiormente aceites, é que se poderia ter autorização para entrar. Lá dentro, numa penumbra carregada, dormiam vinhos em tonéis de média dimensão; dois maiores que se destinavam a branco e tinto e outros mais pequenos, também dois, um deles destinado à água-pé e o outro ao vinho que era distribuído aos trabalhadores rurais. A bem dizer, este pipo era de boa dimensão já que cada trabalhador levava para seu consumo exclusivo e diário um garrafão de três litros. E à tarde, na entrega das alfaias, lá iam mas dois ou três copos. O pipo dos trabalhadores era, mas eles não sabiam, bastante “baptizado” para que o grau não chegasse a ponto de impedir o trabalho agrícola, todo ele feito à custa de enxada e força braçal. Na mesma adega havia também um lagar de pequena dimensão onde todas as uvas eram pisadas a pé, fossem brancas ou tintas, com engaço total, que desengaçador era maquineta desconhecida. O lagar, situado a um metro do chão, permitia um escoamento fácil do mosto para uma enorme dorna de madeira; à boca do lagar sempre vi um cesto de verga (por sinal feito por um cesteiro que vinha uma vez por ano renovar o stock) por onde escorria o mosto, deixando ali não só as grainhas como algumas películas. Era então a altura de medir o potencial alcoólico do mosto e baixar a graduação com adição de água. Todos os anos, sem excepção, se manteve esta prática; não só permitia mais quantidade final como tornava o vinho mais consensual, mais “democrático” já que todos podiam beber. A pisa era, como se imagina, uma actividade familiar que todos estavam autorizados a praticar: pés lavados e lá se ia para a pisa até que o avô desse o assunto por terminado. A parte radical em que a criançada não era suposto presenciar era, por razões de segurança, a prensagem. A prensa era uma verdadeira engenhoca: um buraco largo na parede (uns 20 cm acima do topo do muro do lagar) onde entrava um longo tronco de árvore; na extremidade oposta um cesto (seguramente teria um nome específico mas não recordo) pendurado no tronco e onde se iam colocando pedras bem pesadas, poucas de início e muitas para o final. Para o efeito os engaços e películas eram juntos no centro do lagar formando um cilindro que ia sendo atado à volta com cordas. No topo, uma prancha de madeira redonda, algumas pedras em cima, onde assentava o tal tronco e depois era extrair tudo o que houvesse de mosto até mais não haver. Mosto de lágrima? Primeira e segunda prensagem? Isso ninguém sabia o que era, mas lágrimas haveria por certo se se desperdiçasse algum mosto. A economia rural assente no auto-consumo não se compadece com desperdícios.

 

Ele é que sabe

O “ele” aqui é o vinho. Esta era a resposta mais habitual que o meu avô tinha para responder à nossa curiosidade. Após a colocação do mosto no tonel (medido em almudes que se usavam para tirar o mosto da dorna), deixado o conveniente espaço e colocada a mecha de enxofre (com toda a gente a ser posta fora da adega por causa do cheiro…) o vinho estava por sua conta. Avô, quanto tempo fica aqui? Avô, daqui a quanto tempo temos vinho? A estas e a todas as outras perguntas o meu avô respondia com o “ele é que sabe” sugerindo que o tempo de duração da fermentação era uma incógnita e que nada mais haveria a fazer se não esperar. Pela água-pé é que se esperava menos, uma vez que em Novembro estava pronta a consumir e onde íamos às escondidas encher um pequeno copo para acompanhar os figos que estavam a secar ao sol em grandes tabuleiros. Não chegava a ser uma travessura, a água-pé era realmente um vinho fraquinho que todos bebiam. Mesmo o meu pai, que nunca vi beber fora da refeição, também era capaz de comer uns figos e tirar um copinho do pipo ainda antes do jantar.
Este vinho dos avós acabava engarrafado no Verão (à custa de muita martelada na peça de madeira usada para colocar as rolhas…), por forma a permitir que todo o vasilhame fosse usado para a próxima vindima. A ninguém ouvi então falar do vinho da colheita tal e se era melhor ou pior do que a do ano x: o conceito era facilmente assimilado; o vinho era para beber no ano, apenas e só enquanto a nova colheita não surgia. Conceito simples, desobrigado de filosofias ou teses complicadas. O que é que ia para dentro do lagar? Nada mais fácil de responder: tudo! E neste tudo tanto podemos incluir uvas de mesa, alguma uva americana tirada da enorme parreira que fazia sombra no quintal, mais alguma uva comprada fora e outra que vinha das hortas onde não raramente as cepas faziam de separador das várias leiras. Que castas seriam é uma incógnita mas, até pela localização (perto de Tomar), havia sempre Fernão Pires nos brancos e, creio, Castelão nos tintos. Não detectei no meu avô qualquer intenção de alteração nas técnicas que tinha herdado; não soube do meu pai qualquer atitude de mudança no saber adquirido. A adega era para continuar escura, a abertura na parede para a circulação de ar estava estrategicamente colocada na parede norte, as dornas e os pipos iriam servir até ser possível. E não se provava, bebia-se! Mas, e disso guardo memória, sempre vi cuidados especiais na temperatura de serviço do vinho ao jantar. Como, em terra sem electricidade? Da forma mais simples: pano bem encharcado à volta da garrafa e a botelha colocada onde mais se fizesse sentir o vento norte que, à noite, era bem fresco. E, se bem me lembro, funcionava. E o meu avô seria pessoa para (hoje) apreciar vinho em copos Riedel? Não sei, mas aposto que sim…

 

Edição Nº15, Julho 2018

Nós e os outros

Não há como fugir. De tempos a tempos somos confrontados com vinhos que vêm de fora e ficamos sempre naquela posição ingrata de tentar fazer comparações entre eles e nós. Válidas? Sim senhor! Úteis? Nem por isso… TEXTO João Paulo Martins O jantar foi há poucas semanas. O grupo presente para o festim já tem […]

Não há como fugir. De tempos a tempos somos confrontados com vinhos que vêm de fora e ficamos sempre naquela posição ingrata de tentar fazer comparações entre eles e nós. Válidas? Sim senhor! Úteis? Nem por isso…

TEXTO João Paulo Martins

O jantar foi há poucas semanas. O grupo presente para o festim já tem algum historial de sessões vínicas de alto gabarito. O modelo é pouco habitual nestas coisas: os vinhos são trazidos sempre pelo mesmo conviva, que gosta de partilhar as coisas boas que tem, e por isso não se repete aqui a forma mais usual que é cada um trazer o seu vinho, brincar nas provas às cegas e depois deixar correr a conversa e o marfim, esperando que os disparates sejam em quantidade suficiente para alegrar a noite. Confesso-me grande adepto deste modelo e nada me incomoda com as tontices vínicas que possa dizer, uma vez que esse é um dos prazeres destes encontros: descobrir, pôr a base de dados mental a funcionar, juntar peças de um puzzle, procurando acertar na mouche. É claro que acertar tem piada, mas não é esse o motivo que deve levar os amigos a este tipo de encontros.
Mas o meu encontro que acima referi não é destes. Ali os vinhos chegam às claras, muitas vezes são comunicados antecipadamente aos convivas e por isso não é de um jogo que se trata, é puro prazer de conviver com grandes vinhos à frente.Eles chegam de várias origens: predominam os Bordéus, sobretudo em tintos, mas também em colheitas tardias (vários Sauternes já vieram à liça, desde o consagrado Yquem até ao Château Gillette, por exemplo); do Rhône chegam sempres brancos e tintos, do vale do Loire há também brancos e, de fora de França, é habitual chegarem vinhos da Austrália, da Califórnia, Nova Zelândia, sempre topos de gama, daqueles que por vezes apenas ouvimos falar mas nem a garrafa tínhamos visto.
Como se vê pelo que atrás disse, as jornadas são sempre muito motivadoras e geram imensa discussão. Quais os melhores, quais as desilusões, quais os narizes de cera, quais os underdogs que se mostram melhor do que se esperava, etc, etc.

 

Chuva de estrelas
A simples listagem do que se bebeu no mês passado já é de cortar a respiração, sobretudo nos blockbusters de Bordéus, com Pétrus 89 à cabeça, mas bem assessorado por Ausone 2005 (este em double magnum), Clinet 89, Hosanna 2005; noutros encontros tivemos Mouton, Lafite, Margaux, Cheval Blanc, Haut-Brion, Pichon Contesse de Lalande e por aí fora. Nos brancos ficámos com um velho conhecido – o Condrieu La Doriane de Guigal, um Beaucastel que é um clássico de Châteauneuf-du-Pape, e tivemos duas incursões de down under: um branco da Nova Zelândia e outro da Austrália, ambos de Chardonnay. A particularidade do neozelandês é que tinha cápsula em vez de rolha e isso, passados 11 anos, não lhe trouxe qualquer prejuízo excepto a natural redução (para uns defeito, para outros virtude…); do Loire (Vouvray) chegou também um habitué – a Cuvée Constance 2003 do Domaine Huet, um 100 pontos Parker que, este sim, os merece sem rebuço. Vários dos tintos eram também vinhos de 100 pontos.
Passada esta apresentação/listagem, vamos ao ponto central: por muito que o tentemos evitar, somos normalmente levados a pensar que, caso estivessem por ali vinhos portugueses e se a prova fosse cega, algo de complicado poderia acontecer. Inevitavelmente vêm sempre à memória outras situações – como o célebre julgamento de Paris – em que, numa prova organizada em 1976, os vinhos de Bordéus foram confrontados com outros da Califórnia e… perderam.

Já por várias vezes escrevi que este tipo de provas comparativas não faz qualquer sentido. Ou pode fazer todo o sentido, depende do ponto de vista. Comecemos então pelo fim. Se estivessem ali à prova vinhos portugueses e não se soubesse o que se estava a provar, é provável que os vinhos nacionais, sobretudo tintos, tivessem grande prestação. Não seria favor nenhum, uma vez que temos vinhos excelentes, mas que pecam por mal conhecidos junto dos grandes opinion makers internacionais, os mesmos que levam os chineses a querem agora comprar Lafite, seja lá a que preço for. Este tipo de provas comparativas é complicado de montar. O mais correcto seria comparar anos semelhantes, mas, por exemplo, Douro e Bordéus costumam andar de candeias às avessas (como se sabe, em virtude do anticiclone dos Açores) e os anos bons numa região não são os mesmos na outra; sem ser tão rigoroso já me parece que seria correcto juntar anos próximos que possam ser bons nos dois territórios. E então o que aconteceria se um tinto do Douro ficasse à frente do Lafite ou do Pétrus? Pois é, não aconteceria rigorosamente nada, para além de um “bruá” inicial. No dia seguinte os compradores iriam na mesma comprar o Pétrus, apesar de o tinto português custar 20 vezes menos.

 

Por isso reafirmo que este tipo de provas não faz qualquer sentido. Não são elas que dão indicações de compra para o mercado, não são elas que definem quem merece e quem não merece ser comprado. Foi por isso que, no jantar do meu amigo, e embora este tipo de pensamento me tenha ocorrido, me quedei calado porque o que eu estava ali a provar eram vinhos quem têm séculos de história para contar, que passaram guerras mundiais, que vêm de propriedades ocupadas por nazis, que têm histórias familiares fantásticas e dramáticas e é nisso que quero pensar quando provo um Ausone ou um Pétrus. E pouco me rala que há 50 anos o Pétrus custasse 20 e agora custe 3000; com o Barca Velha passa-se o mesmo, com os Porto Vintage também e com os Madeiras idem, idem. Vamos lá comparar o que é suposto ser comparado e deixar para os incautos a despesa da verborreia vínica.

Edição Nº14, Junho 2018

 

O Tempo e o Modo (do vinho e da rolha)

Edição nº11, Março 2018 Macroscópio Não vou falar da célebre revista, o que seria muito intelectual mas a despropósito. O assunto aqui é mais vinho e rolhas. Sempre o mesmo? Afinal, pensando bem, adianto qualquer coisa. A revista “O Tempo e o Modo” era de leitura obrigatória pelos intelectuais da nossa praça nos idos de […]

Edição nº11, Março 2018

Macroscópio

Não vou falar da célebre revista, o que seria muito intelectual mas a despropósito. O assunto aqui é mais vinho e rolhas. Sempre o mesmo?

Afinal, pensando bem, adianto qualquer coisa. A revista “O Tempo e o Modo” era de leitura obrigatória pelos intelectuais da nossa praça nos idos de 60 e começou a publicar-se em 1963. Por lá passaram quase todos os anti-fascistas encartados que se reuniam no café Monte Carlo (por baixo do cinema Monumental), local onde se entretinham em conspiração suave. Tão suave que, com eles, a PIDE não perdia tempo: eram os “do contra” ou “do reviralho”, mas não faziam mossa a ninguém.
Como eu frequentava o mesmo café, via-os quase todas as tardes na converseta. Com um deles, António Alçada Baptista – que era intelectual e escritor, mais do que anti-fascista militante – acabei por conviver bastante já depois do 25 de Abril, quando, sentindo ventos da História mais adversos, se remeteu a uma existência eremita, algures na serra de Sintra, em casa emprestada por amigos. Acabou ou seus escritos na revista “Máxima”, onde manteve uma coluna carregada de reflexões e receios sobre a morte e onde eu tinha uma coluna que tratava da associação dos vinhos e das comidas. Mas não voltámos a falar nem a conviver. Dos restantes “modistas” li alguns dos livros, coisa que caía muito bem à época.

O tempo dos vinhos

Mas o tempo também é assunto dos vinhos, como sabemos. E é assunto controverso, não exclusivo dos tintos ou generosos; é tema genérico que até a rosés pode dizer respeito. O vinho precisa de tempo. Antigamente dizia-se, e alguns escribas de hoje ainda usam o termo, que o vinho ia “envelhecer” para os cascos, como que à espera que o tempo fizesse o seu papel.
O termo é, quanto a mim, totalmente desapropriado. Os vinhos “amadurecem” em casco; só “envelhecem” quando lhe deixámos passar o momento óptimo de consumo e iniciam a inexorável descida para a morte. Essa descida é vertiginosa nos vinhos vulgares, e muito lenta nos grandes vinhos. Assim se percebe que eu tenha bebido um Quinta da Aguieira branco de 1945 que era um monumento, independentemente dos padrões de análise. Era um branco a quem o tempo não incomodou nada e fez bem.
A pressa acaba por nos derrotar e muitas vezes não conseguimos dar ao vinho o Tempo que ele requer e necessita para amadurecer. Os meus amigos mais chegados em termos de idade, receosos que o seu tempo e final estejam mais próximos do que desejariam, entram no delírio do “para velho basto eu, toca a beber os vinhos jovens, quanto mais jovens melhor”, tese que aplicam a vinhos em geral e a Porto Vintage em particular. O disparate está à vista.
Há uns anos (poucos) tive a sorte de participar num almoço no restaurante Tavares (à data oficiava por lá o José Avillez) e o motivo do mesmo foi a prova de quatro garrafas do Domaine de la Romanée-Conti (DRC), incluindo o propriamente dito. Todas as garrafas eram de 2005. Ora bem, o que ali aconteceu foi um assassinato vínico. Porquê? Porque, de tão novos, os vinhos não se distinguiam entre si de forma evidente, ou seja, o Romanée Saint-Vivant e o La Tâche pareciam-se em demasia e no meio deles o Romanée-Conti não sobressaía. Foi giro, mas foi um erro crasso, porque não demos aos vinhos o tempo que precisavam e ficámos com a sensação de que as diferenças até nem eram assim tão grandes e os preços altíssimos de alguns deles não teriam razão de ser.
Como estes, muitos outros casos poderiam ser aqui chamados. A questão pode ser colocada assim: não vale a pena estar a beber antes do tempo! Se não houver vida que chegue, outros mais tarde beberão as garrafas. No fundo é o que fazemos quando bebemos vinhos velhos, os tais que alguém não bebeu e entendeu deixar repousar na garrafeira. Resta a pergunta final: de quanto tempo estamos a falar? Ou como se atribui a cada garrafa o tempo que precisa? Como ninguém sabe a resposta, o melhor é mesmo ter mais do que uma garrafa dos vinhos que se querem guardar e ir bebendo com intervalos largos. Só tem uma? Azar, lance a moeda ao ar e decida…

O Modo da rolha

O problema dos vinhos com rolha permanece, sobretudo nos que têm uma rolha de cortiça natural. A ciência tem avançado, as empresas estão a gastar muito dinheiro em investigação, mas o certo é que problema não está resolvido. E não me refiro apenas ao clássico TCA (tri-cloroanisol, composto responsável pelo cheiro a rolha) mas também às modificações dos aromas dos vinhos, motivados pela rolha mas que não são facilmente identificáveis. Apenas conseguimos detectar que os vinhos não estão bem mas, convenhamos, é preciso muita prática para perceber que “é da rolha mas não é TCA”. Alguns produtores estão a optar por rolhas técnicas, rolhas de aglomerado de cortiça, totalmente isentas de TCA. Existe, ainda assim, algum preconceito em usar esse tipo de rolhas para vinhos de topo porque ah e tal, o consumidor bla, bla, exige, gosta mais, etc, etc.
Ao que me apercebi, alguns produtores mandaram os preconceitos às urtigas. A mais recente prova foi-me dada por um vinho que comprei e consumi há umas três semanas. Tratava-se de um Chablis do produtor Droin, mas atenção, não era um Chablis qualquer mas um Grand Cru Grenouilles. Ora, como sabemos, a região de Chablis é bem mais moderada na atribuição daquela categoria máxima do que, por exemplo, sua vizinha Alsácia, onde os Grand Cru aumentam desmesuradamente todos os anos. Em Chablis apenas existem sete parcelas de vinha classificadas como Grand Cru: Les Clos (a maior parcela e também o Chablis mais famoso), Grenouilles, Blanchot, Bougros, Les Preuses, Valmur e Vaudésir. Todas lado a lado, numa encosta com boa exposição e onde apenas se planta Chardonnay. Confesso que inicialmente fiquei admirado pelo facto de a rolha ser técnica e não de cortiça natural, mas rapidamente me apercebi de que o produtor optou pelo lado seguro do negócio, em detrimento do lado tradicional, sem preconceitos e sem medos. A rolha talvez não aguente 50 anos, mas provavelmente o produtor Droin não aponta os seus vinhos para uma longevidade tão larga.
É preocupante a incerteza que grassa e o desespero que presenciamos nos produtores ao verem os seus melhores vinhos com problemas de rolha. É desprestigiante para Portugal, é mau para a indústria e é mau também para a percepção de qualidade dos vinhos porque, caso se tenha menos hábito de prova, vamos opinar negativamente sobre um vinho quando ele tem problemas de rolha, ainda que não sejam TCA. Quando vai estar o assunto resolvido não sei. Mas o produtor de Chablis já resolveu o problema dele. E na mesma região, outros vinhos que não são Grand Cru já optaram pela rolha de rosca. Futuro incerto, digo eu…

Um país sem regras, um mundo diferente…

No tempo em que se fazia vinho sem o escrutínio da burocracia, a José Maria da Fonseca identificava a proveniência ou outras características dos seus Garrafeira com uma ou duas letras. Hoje, descobrir o significado destas siglas é um desafio aliciante. E ainda há algumas sem explicação…   AS regiões demarcadas, todos sabemos ou imaginamos, […]

No tempo em que se fazia vinho sem o escrutínio da burocracia, a José Maria da Fonseca identificava a proveniência ou outras características dos seus Garrafeira com uma ou duas letras. Hoje, descobrir o significado destas siglas é um desafio aliciante. E ainda há algumas sem explicação…

 

AS regiões demarcadas, todos sabemos ou imaginamos, têm de se reger por regras. Isto é válido para todas as regiões e mesmo na primeira, na que o Marquês de Pombal mandou demarcar, estava claramente estabelecido o que se podia e onde se podia produzir vinho com direito à Denominação de Origem. Imaginamos que, se assim não fosse, a rebaldaria estaria instalada e a noção de região demarcada deixava de ter sentido.

Depois desta demarcação de 1756 houve um hiato enorme, que durou até 1908, e foi a partir daí e nos anos subsequentes que se demarcaram em Portugal algumas regiões como o Dão, Madeira e Vinhos Verdes e as minúsculas regiões de Bucelas, Carcavelos e Colares. O tal hiato instalou-se de novo e até aos finais dos anos 70 ninguém mais ouviu falar em regiões demarcadas.

Assim sendo, e porque ninguém estava a infringir a lei, cada produtor ou empresa podia editar o seu vinho (seu ou comprado) sem ter sequer de dizer de onde ele era originário. Refiro aqui o “vinho comprado” porque muitas empresas eram sobretudo armazenistas, ou ajuntadores, se lhes quiserem chamar assim, porque vendiam vinho que compravam já feito ou a produtores individuais ou a adegas cooperativas.

Não esqueçamos que o movimento cooperativo arrancou em força nos anos 50 do século passado e isso mudou, e muito, o vinho português. Pode mesmo falar-se de um “antes” e um “depois” da criação das adegas. A principal razão é o tegão único onde cada viticultor passou a despejar as suas uvas – por muita originalidade que pudessem ter, tal deixava de ser tido em conta; depois, o próprio conceito de produção de uva mudou, estando agora todos mais interessados na quantidade e no grau e menos na qualidade ou originalidade. Foi assim, é história, e felizmente muito mudou desde então.

Todas as empresas (Caves) da Bairrada se inseriam neste grupo de compradores de vinho, abastecendo-se quase sempre na própria região e no Dão. A falta de regras permitia também que se misturassem vinhos do Dão com outros da Bairrada e, não juro que com todos mas com alguns sim, os Garrafeira eram muitas vezes vinhos que resultavam do lote das duas regiões.

Sem regras a servirem de empecilho, sem burocratas a embirrarem com o tamanho da letra dos rótulos e sem câmaras de prova lhes reprovassem os vinhos “por falta de tipicidade”, várias empresas foram editando vinhos que ficaram famosos e que ninguém sabia de onde vinham. É o caso dos famosíssimos Garrafeira da empresa C.R. & F. e os enigmáticos vinhos da casa José Maria da Fonseca, apenas identificados com uma sigla, cuja descodificação não era revelada.

O que começou como uma brincadeira, uma ideia original de António Soares Franco que em 1945 lançou o primeiro vinho com a letra P, tornou-se num enigma digno de livro policial. Foi a amizade com Álvaro Santos Lima, dono da Quinta da Passarela, a causadora de tudo. Em 45, Soares Franco comprou um tonel de vinho na quinta do Dão e depois do estágio considerado necessário, resolveu engarrafá-lo. Para não revelar a origem chamou-lhe apenas P. Seguiram-se muitas outras colheitas deste vinho (sempre estagiado no mesmo tonel) e a ideia de fazer vinhos que identificassem o local, o enólogo, a região ou a quinta e o modo de fabrico levou a que fossem então criadas inúmeras siglas.

Estávamos na época (dourada, dirão alguns) em que estas coisas se podiam fazer sem dar cavaco a quem quer
que fosse. Só a imaginação (nuns casos), o bom gosto (noutros) e a ousadia comandavam as decisões que se tornaram tão difíceis mais tarde quando se começaram a recusar rótulos porque Touriga Nacional estava escrito sem hífen e outras coisas importantíssimas, tão importantes que até me emocionam, só de pensar nelas.

Voltando aos nossos Garrafeira, aqui incluímos a lista possível que nos foi disponibilizada pela empresa de Azeitão, a quem agradecemos. Mas, para que o assunto não perca de todo o carácter encriptado, ficam aqui duas sugestões para os leitores: identificar as siglas que na empresa não há maneira de serem descodificadas porque não há ninguém que o saiba; e, em segundo lugar, acrescentar alguma que conheçam (melhor ainda se houver foto do rótulo) porque em Azeitão não se tem a certeza de que esta lista esteja completa. Creio que até na Casa José Maria da Fonseca iriam apreciar o contributo. Cá estaremos para dar conta da contribuição que quiserem dar. Aqui ficam então as siglas e respectivas descodificações. As que vão em branco, quem sabe, talvez o Dan Brown nos ajude…

Garrafeiras de José Maria da Fonseca (e outros que não eram Garrafeira)
TE – Tinto Especial, (Qta Camarate)
RA – Região Algeruz (Castelão areias)
CO – Clara de Ovo (Castelão calcários)
EV – Eng. Vieira (Azeitão)
AP – Alentejo Portalegre
AE – Alentejo Estremoz (Júlio Bastos, pai)
PN – Dão Penalva
DT – Dão Tondela
DS – Dão Silgueiros
CB – Cova da Beira (Fundão)
AC – Aveiras de Cima
VB – Bairrada (Vilarinho do Bairro)
DA – Dão Albuquerque (Ínsua)
MC – Maceração Carbónica (Azeitão)
CS – Bairrada (Souselas)
PT – ?
C – ?
Alguns brancos de experiências:
R – Riesling (Qta. Camarate)
S – Semillon, Sauvignon (Qta. Camarate)
ED – Eng. Domingos (Roupeiro, Azeitão)
V – ?

Muito vinho e alguma poeira

É uma história antiga que envolve bicicletas, enxadas e muita arte. De cavar mas também de beber. Algures no Portugal profundo, quando ainda se via o céu estrelado e onde apenas os latidos dos cães perturbavam o silêncio absoluto.   O Armindo era meu amigo. Morava perto de mim, tinha mais ou menos a minha […]

É uma história antiga que envolve bicicletas, enxadas e muita
arte. De cavar mas também de beber. Algures no Portugal
profundo, quando ainda se via o céu estrelado e onde apenas
os latidos dos cães perturbavam o silêncio absoluto.

 

O Armindo era meu amigo. Morava perto de mim, tinha mais ou menos a minha idade, brincávamos juntos durante o Verão. Havia um mundo enorme que nos separava: ele vivia todo o ano no campo, eu apenas lá ia durante as férias; eu vivia numa cidade onde havia electricidade e transportes públicos, ele vivia numa aldeia sem luz, sem água canalizada, sem estradas alcatroadas.

Tinha sobre mim uma enorme vantagem: sempre que havia a lua nova, Armindo podia desfrutar da imensidão estrelada do universo, uma vez que no raio de muitos quilómetros não havia lugarejo com luz eléctrica; já eu, com sorte, só podia ficar a gozar esse espectáculo alguns dias por ano, nos dois meses de férias que passava no campo. Apesar desse enorme abismo, ele era um artista com a fisga, com o pião e não levava desaforo para casa; o que fosse para resolver era na rua, ao soco e pontapé. Nada disso impedia que jogássemos à bola, fossemos colocar armadilhas para apanhar os pássaros e fumássemos barbas de milho em cachimbos de cana feitos por nós.

O pai, trabalhador rural, também era um artista, com a enxada e com o garrafão de vinho. Sem máquinas de que tipo fosse para ajudar no trabalho da terra, era à custa de enxada que se preparavam os terrenos nas hortas, trabalho esse sempre acompanhado de um garrafão de três litros. De manhã, quando ia a casa do empregador buscar as alfaias, o pai do Armindo recebia o garrafão que o acompanhava durante o dia. É verdade que o garrafão ia “baptizado” com alguma água, tornando o vinho menos alcoólico e permitindo que o trabalho agrícola fosse feito apesar dos três litros. Era no regresso que a coisa se complicava. Ao chegar a casa para entregar as alfaias e o garrafão vazio, o pai do Armindo era ainda presenteado com uns três copos de vinho (presumivelmente igual ao que tinha consumido durante o dia) e fechavam-se as contas.

Não havia metro de estrada onde o pai do Armindo não tivesse ainda aterrado, esfregando a cara na terra

A seguir montava-se na sua bicicleta e ia à sede da freguesia, onde havia uma tasca “à séria”, ou seja, com vinho de barril não baptizado, logo, bem alcoólico. Era ali que o caldo se começava a entornar. Depois de “varrer” um número não contabilizado de copos de 3, lá vinha ele direito a casa. Por sorte, o caminho desde a tasca até sua casa, cerca de 1 km, era sempre a descer e por isso o esforço era mínimo. Já para se aguentar em cima do veículo numa estrada poeirenta e cheia de buracos, era um sarilho. Por isso se comentava no lugar, e com alguma razão, que não havia metro de estrada onde o pai do Armindo não tivesse ainda aterrado, esfregando a cara na terra. Lá se levantava, aos tombos e conseguia chegar a casa. O Armindo, coitado, por vezes ainda apanhava sem saber porquê, tudo consequência da bebedeira diária do pai.

Este cenário, muito vulgar no país rural que fomos durante séculos e que, ao que nos contam, ainda se presencia no Douro profundo, tinha imensos protagonistas: o pai do Armindo não era artista a solo, no lugar onde morava contavam-se histórias de outros trabalhadores que, alcoólicos como ele, acabaram os seus dias com cirroses, provavelmente a razão de morte mais habitual naquelas paragens. Por aqui vinho de qualidade era um conceito desconhecido, o melhor vinho era o do copo cheio e, a haver, a qualidade media-se pelo grau: quanto mais alcoólico melhor.

Quando, no caminho, nos cruzávamos com o pai do Armindo, tínhamos de saltar para a berma porque não sabíamos se era aquele “o metro” de estrada que tencionava abordar naquele dia. Ele, com ar lívido e fixo, nem dava pelos transeuntes, tal o nível de alcoolémia. Tinha mais sorte nos dias de lua cheia porque o caminho ficava um pouco mais iluminado. No dia seguinte voltava a ir trabalhar e a mostrar que, com vinho baptizado, era um artista a trabalhar a terra. Dava gosto ver, ao final do dia, como a horta estava preparada para receber as sementes. Uma pintura. E, muitas vezes nas nossas incursões matinais para pormos as armadilhas dos galegos, flosas, pintassilgos e outros passarinhos, ao passar numa horta, se notávamos a perfeição do trabalho feito logo víamos que tinha sido o pai do Armindo.

Castas? Leveduras? Malolácticas? Qual quê, naquele tempo o vinho bebia-se e pronto. Muito, demasiado, sem critério nem conversa. O mundo acabava ali e para se saber o que se passava noutras paragens tinha de se usar um rádio de pilhas, a única modernice autorizada, já que, até para saber a que horas se acabava o trabalho, era o sino da igreja que ao longe indicava o tempo. E à noite, à espera que viesse o sono, íamos para a varanda ver as estrelas. A essa hora o pai do Armindo ressonava (a casa era perto e ouvia-se) e, além dos latidos de alguns cães ao longe, o sono do artista era o único som que se ouvia. Férias de Verão, estórias do vinho de antanho.