A Escolha do Mestre: A arte do lote

A criação de um bom lote é obtida através da sobreposição de componentes com atributos únicos usados para melhorar aspectos como cor, frescura, estrutura ou adicionar características específicas de frutas ou especiarias com a finalidade de realçar sabor, ganhar complexidade, aperfeiçoar o equilíbrio e dar ao vinho melhor qualidade. Fazer o ‘lote’ ou ‘blend’ é […]

A criação de um bom lote é obtida através da sobreposição de componentes com atributos únicos usados para melhorar aspectos como cor, frescura, estrutura ou adicionar características específicas de frutas ou especiarias com a finalidade de realçar sabor, ganhar complexidade, aperfeiçoar o equilíbrio e dar ao vinho melhor qualidade. Fazer o ‘lote’ ou ‘blend’ é simplesmente o acto de misturar diferentes vinhos com o objectivo de obter um produto cuja soma das partes é superior às partes individuais.
Em épocas distantes, diferentes castas eram misturadas na mesma parcela como uma espécie de seguro contra pragas, doenças, guerra ou desafios da natureza, com o objetivo de proporcionar um rendimento regular. Através desse método, ainda utilizado hoje, uvas provenientes de vinhedos mistos, conhecidas como “field blends”, são colhidas, esmagadas e fermentadas em conjunto. Os resultados são menos previsíveis e precisos, mas a combinação dos diferentes estágios de maturação ajuda proporcionar equilíbrio e complexidade.
De certa forma, é possível considerar a maioria dos vinhos como vinhos de lote, pois mesmo no caso de um ‘Single Vineyard’ a fruta é oriunda de diferentes partes do vinhedo cujo microclima específico irá adicionar nuances ao resultado final.
Exceptuando alguns casos específicos, como o vinho do Porto, antes do século XX, quando as leis que supostamente governavam a produção de vinhos raramente eram respeitadas, o acto de fazer lote em vinhos tranquilos tinha pouco a ver com qualidade, chegando mesmo a ser utilizado para fins comerciais ilícitos. Fazer um lote era algo visto como suspeito, quase uma falsificação. Actualmente, o acto de fazer um lote é frequentemente utilizado como uma ferramenta para oferecer um produto de qualidade superior.
Os vinhos de lote elaborados hoje foram lapidados ao longo dos anos e o método de eleboração sobreviveu ao teste do tempo pelo facto de ter produzido bons resultados. O interesse dos consumidores por vinhos distintos tem incentivado os produtores portugueses a lançar vinhos monovarietais, o que tem ajudado viticultores e enólogos a compreender o extraordinário potencial de castas menos conhecidas. A herança histórica, experiência e o extraordinário número de variedades encontradas no território português oferecem um número invejável de componentes que permitem aos produtores demonstrar criatividade e gerar alguns dos melhores e mais interessantes vinhos de lote do mundo. Alguns desses vinhos são misturas regionais clássicas bem estabelecidas, outros são vinhos incomuns, exóticos, capazes de surpreender os paladares mais exigentes.

Escolha do lote

Estilos e segmentos

A arte do lote é vital tanto na produção dos vinhos mais ambiciosos quanto na criação de vinhos para o dia à dia. Para vinhos mais simples, o lote pode ajudar mitigar imperfeições e suavizar diferenças entre as vindimas, conferindo consistência. Eis porque, na maioria dos países europeus, a legislação permite a adição de até 15% de uma colheita, casta ou origem diferente da que está especificada no rótulo. Carlos Lucas, enólogo e CEO da Empresa Magnum, acredita que fazer um lote para um vinho de entrada de gama pode muitas vezes ser um grande desafio, no sentido em que se torna importante adicionar um elemento vital na equação, ou seja, volume. Não basta apenas ir ao encontro do vinho pretendido, mas é preciso levar em consideração as respectivas quantidades disponíveis e avaliar o que é possível fazer. A exigência de quantidade e consistência que existe no segmento dos vinhos dos primeiros escalões de preço pode tornar o processo de execução de lote desafiante e envolvente.
Para Pedro Correia, enólogo chefe dos vinhos Douro da Symington, fazer lotes para vinhos de entrada de gama significa demonstrar preocupação em manter certo estilo ou perfil pré-determinado da marca, levando em consideração as características do público-alvo. Por outro lado, vinhos premium exigem, além de harmonia, tipicidade e alta qualidade, a capacidade reflectir as características da colheita e do terroir. Como refere Luís Sottomayor, director de enologia da Sogrape no Douro, o lote de um vinho de alta qualidade precisará de componentes com mais amplitude e complexidade e, como tal, vai necessitar uma gama de aromas e sabores mais diversos.

Os desafios do lote

São vários os desafios na hora de fazer um lote, desde limitações de componentes, fatores logísticos, espaço e estabilidade química, dentre outros. Carlos Lucas descreve o lote como a combinação de três factores: inspiração, habilidade técnica e experiência. Todos são cruciais para se obterem vinhos equilibrados e elegantes. Explicado de forma simples, Luís Sottomayor acredita que manter o equilíbrio entre as distintas variedades de uva e, ao mesmo tempo, permitir que as mesmas expressem seus aromas e demonstrem as suas características, são os principais desafios. Na opinião de Pedro Correia o aspecto mais desafiante é tentar encontrar uma combinação perfeita entre os diferentes componentes, de modo que, o resultado seja melhor do que as partes individuais. Além disso, caso haja um perfil organoléptico a manter, o desafio é chegar ao mesmo resultado partindo de um conjunto de componentes diferentes ano após ano. Dependendo do estilo do vinho, existem parâmetros que se tornam mais relevantes na hora de executar o lote. De acordo com Carlos Lucas, a cor é algo importante a considerar independentemente do estilo, mas quando se trata de um vinho tinto é crucial pensar também na estrutura e taninos da mesma forma que quando se trata de um branco, espumante e rosé é importante considerar o perfil aromático e acidez acima de tudo. Fazer um lote para espumantes, para Carlos Lucas, constitui uma arte bastante mais especifica (e, também, especializada). O objectivo é iniciar com uma base neutra e isso requer do enólogo experiência e capacidade de previsão, visto que o vinho ainda deve passar pela segunda fermentação, período de envelhecimento, seguido pelo ‘degorgement’ e adição do ‘licor de expedição’; tudo isso vai alterar o vinho radicalmente antes de ele chegar ao mercado.
Já para Pedro Correia, é importante ter em conta se o vinho tem data de colheita, caso em que o blend deve reflectir as características do ano; ou caso se trate de uma mistura de anos (como acontece num Porto tawny, por exemplo), será fundamental manter inalterado, em cada engarrafamento, o estilo e perfil da marca ou produtor.

Escolha do lote

 

Exercendo controlo

Para assegurar sucesso é importante que o enólogo tenha o objetivo claro antes da fruta chegar na adega e que desde o início esteja no controle do processo. Luís Sottomayor considera mais vantajoso fazer o lote o mais cedo possível para que o vinho já nasça com seus componentes ligados, o que pode acontecer mesmo na cuba onde irá fermentar, salvo algumas excepções, pois acredita que sua harmonia será melhor, mais natural e equilibrada. Pedro Correia prefere manter os componentes separados ou fazer uma junção parcial e acompanhar a evolução do lote por cerca de 12 meses dando tempo para uma melhor consolidação da matriz para então fazer nova avaliação antes de definir o blend final, evitando engarrafar demasiadamente cedo. Carlos Lucas recomenda abstrair-se de uma prova muito técnica e prefere pensar em como agradar o consumidor final. Para Pedro Correia, o segredo é nunca ter pressa, ponderar decisões, dar tempo de modo a não tomar decisões precipitadas. Luís Sottomayor diz que “seguir a intuição” é um dos melhores conselhos que já lhe foi dado.

As mudanças climáticas

Melhor análise de parâmetros enológicos e novas tecnologias laboratoriais tem resultado em vinhos de lote de maior precisão e qualidade. Luís Sottomayor complementa dizendo que a grande evolução que aconteceu nos últimos anos está relacionada com a experiência pessoal que torna os enólogos mais aptos e confiantes no seu trabalho, o que consequentemente gera maior índice de sucesso. Para Pedro Correia o aprofundamento do conhecimento das castas, de como evoluem e a capacidade de integração de cada uma delas tem contribuído significantemente para elaboração de vinhos cada vez melhores e mais profundos. Já Carlos Lucas defende que, actualmente, é possível fazer lotes com mais convicção e com características que permitem ao vinho manter-se na garrafa durante mais tempo.
Entretanto, as mudanças climáticas que estamos observando nos últimos anos vão requerer capacidade de adaptação. Além de mudança no perfil da fruta, devemos esperar, também, colheitas irregulares, e que as castas mais frágeis desapareçam. Carlos Lucas prevê que castas capazes de suportar as ameaças climatéricas, e oferecer rendimento adequado, ganharão muito maior expressão, tanto a nível varietal como em lotes. Isso vai exigir mais investigações das castas autóctones, muitas delas ainda não devidamente estudadas. Os lotes serão dominados por castas mais resistentes ao calor, não tanto por estilo, mas por necessidade. Luís Sottomayor concorda que será imprescindível conhecer melhor as castas, suas características e principalmente como respondem às diferentes condições climatéricas, mas acrescenta que Portugal, devido ao seu terroir tão heterogéneo, terá a possibilidade de misturar uvas oriundas de locais com exposições e altitudes distintas para obter o resultado esperado.

Escolha do lote

Portugal e os lotes do futuro

A arte de fazer vinhos de lote teve origem há seculos desde quando vinhas plantadas com muitas castas, brancas e tintas, serviam como uma garantia contra desastres naturais e calamidades. Crescente investigação, desenvolvimento das técnicas de viticultura e métodos de vinificação modernos proporcionam hoje aos produtores melhor controle e mais precisão na hora de fazer o lote. Os produtores portugueses, grandes mestres na arte de fazer lote, contam com invejável número de castas para demostrar a sua criatividade e gerar vinhos únicos, o que em muitos casos pode significar uma vantagem comercial formidável. Para consumidores que buscam algo diferente e autêntico, é inegável que os vinhos portugueses oferecem excelentes alternativas. No entanto, os desafios impostos pelas mudanças climáticas certamente exigirão adaptações por parte dos produtores para conseguir manter o estilo, qualidade e a consistência dos vinhos no futuro. Para que isso aconteça é crucial investir tempo, energia e recursos agora. É preciso aprimorar ainda mais a compreensão sobre o comportamento das castas para que no futuro os produtores portugueses continuem sendo os mestres da arte do lote.

(Artigo publicado na edição de Novembro de 2023)

 

Prioridade total ao sabor

prioridade ao sabor

A harmonização de comida com vinho tem vivido sobretudo de dogmas, a que é mais que tempo de renunciar e ao mesmo tempo urge substanciar racionalmente. Além de novos perfis vínicos que os produtores têm vindo a oferecer, o gosto evoluiu muito nas últimas décadas. Hoje acreditamos que o grande objectivo da ligação é que […]

A harmonização de comida com vinho tem vivido sobretudo de dogmas, a que é mais que tempo de renunciar e ao mesmo tempo urge substanciar racionalmente. Além de novos perfis vínicos que os produtores têm vindo a oferecer, o gosto evoluiu muito nas últimas décadas. Hoje acreditamos que o grande objectivo da ligação é que vinho e comida sucumbam harmoniosamente nos braços um do outro, sem vencedor nem vencido. Bem-vindos ao fascinante mundo do equilíbrio e ousadia à mesa.

O assunto é delicado, mais apropriado seria dizer que é pouco visitado. No entanto, precisamos absolutamente de um jogo coerente à mesa para conseguir chegar ao objectivo supremo de uma digestão feliz. A plataforma universal de conhecimento tem de assentar muito mais no racional do que o nosso sistema fisiológico consegue identificar do que simplesmente numa cartilha sensaborona tacitamente adoptada. O magistral e fundador trabalho de Brillat-Savarin lavrado no fundamental livro “A fisiologia do gosto” estabelece quatro sabores fundamentais: ácido, doce, amargo, salgado e um quinto sabor “do qual ainda ouviremos falar muito”, e que baptizou como osmezoma. Aprendemos a chamar-lhe umami com a instalação das chamadas cozinhas orientais, principalmente a japonesa. Se nos apoiarmos nestes cinco pilares dos alimentos da nossa mantença, temos já belíssimos pontos de partida para a exploração vínica.

prioridade ao sabor

 

A estruturante acidez

A salada acompanha e equilibra muitas vezes um prato, à maneira da janela que se abre para entrar ar fresco e que o prato ganhe luz e matizes diferentes de sabor. Azeite, vinagre e ervas aromáticas como o agrião ou o manjericão operam facilmente essa transformação. Umas simples gotas de limão avivam uma ostra fazendo sobressair a sensação marítima do vibrante bivalve de que Portugal é porta-estandarte. Este costume de deitar uns pingos sobre a membrana da ostra era para ver se estava viva. A reacção ao ácido fazia-a reagir indicando por isso que estava em condições para consumir. Com a certificação dos tempos modernos, há apenas que procurar produtores acreditados, a frescura está garantida. Igualmente fresco é o sorvete de limão que se tornou vezeiro em sobremesas diversas supostamente para criar frescura, mas há que atender ao sabor que no caso tende a ser dominante. A raspa da casca de uma laranja ou limão pode ser o toque de frescura que faz abrir e impressionar um simples bolo, frango assado ou o merengue italiano que cobre uma tarte. Menos perceptível, mas igualmente estruturante é a acidez num prato quente. Mas se num caldo ou prato de tacho quase se pode medir pelo pH – e nesse caso devemos procurar obter 4 ou menos – num prato estruturado e com vários componentes há que fazer prevalecer o bom senso e a experiência. O tomate é sempre um elemento forte em saladas frias, comporta-se em cru como fruto rico em licopeno, fortemente antioxidante, mas conhece bem o seu caminho quando incluído em configurações culinárias de cozinha lenta. O mesmo é dizer que tem honras de fundo fundamental de cozinha o que afinal é o elemento ácido indispensável e único na libertação lenta e sustentada. O alho e a cebola contribuem de forma particularmente eficaz para o perfil acídulo do trabalho culinário. O primeiro infelizmente tem mais detractores que adeptos fervorosos, o grelo que está dentro de cada dente do hortícola deve ser removido antes de toda a sequência de preparação, depois é que surge a glória do que é um dos mais felizes moderadores de acidez da história da cozinha. Há além disso que ter a garantia da boa origem do alho, é muito sensível às águas de rega na horta, a garantia bio é sem dúvida fundamental. Procure pequenos produtores da sua confiança ou mesmo que conheça pessoalmente e vai ver a diferença. A cebola de boa semente portuguesa comporta-se de forma abnegada e sistematicamente aceita papel secundário. Picada, liberta ácido sulfúrico, de resto responsável pelas lágrimas que jorramos no processo, cortada em gomos transforma-se fundindo harmoniosamente com a restante assessoria. Ligações felizes: Arinto de Lisboa sem madeira. Vinho Verde Alvarinho. Tintos baseados na casta Castelão. Aragonez do Alentejo.

 

 

prioridade ao saborO que é doce nunca amargou

O capítulo das coisas doces estimula particularmente o sentimento nacional e talvez por isso mesmo tenhamos copiosa oferta vínica para as acompanhar. Passou de moda o saudável costume de beber um copo de licor como digestivo no final da refeição, e aparentemente não volta tão cedo ao altar da mesa. Permanece, contudo, a esperança de que as aguardentes bagaceiras e vínicas prossigam nas suas sendas felizes, indispensáveis para os portugueses. Imparáveis estão o whisky e o gin, que são bebidas duras geralmente de qualidade excepcional, há que dizê-lo. Isto enquanto não aparecem projectos sólidos de destilados de fruta que temos e é tão boa. Mas adiante, que estamos na festa doceira, há muito por que festejar. Leite-creme, arroz-doce, mousse de chocolate são glórias quotidianas que vão adoçando a boca às famílias, receitas registadas nos canhanhos que vão animando os frigoríficos. A concorrência dos preparados instantâneos é feroz e lá cedemos à pressão, que a gente tem pressa.
Portugal tem âncora forte e sápida na chamada doçaria conventual, sabedoria de matriz regional crivada de conhecimento popular. Ganhou especial impulso no início do séc. XIX, quando a extinção das ordens religiosas conduziu a que o que tinha crescido nas cozinhas dos conventos passasse a fonte principal de rendimento. O torrão real e o fartes de Portalegre, fortemente baseados em ovos e frutos secos são glórias universais da doçaria, são dois exemplos apenas de um vastíssimo receituário de que ainda hoje gozamos suaves rendimentos. Os livros de receitas sobreviveram graças sobretudo ao facto de muitas das oficiantes estarem ao serviço durante o dia mas iam dormir a casa, e assim foram adquiridos conhecimentos preciosos. O que seria de nós sem esse manancial? Nem pastel de nata teríamos, quanto mais papos de anjo, ovos moles ou castanhas doces. A refinação de açúcar é assunto relativamente recente, o mel é ancestral e natural e marca presença de vulto na doçaria nacional, tanto directamente em receitas de pastelaria como em molhos e outros condimentos. O chocolate é outra descoberta recente, tudo se passa na era pós-descobrimentos, mas não foi por isso que o adoptámos com menos fervor e continua a ser desafiante no que toca à harmonização com vinhos.
O percurso vínico da variante doce da nossa alimentação tem sido mais ou menos errático, movido mais por dogmas do que razões. Quem nunca experimentou casar doçaria conventual com um tinto velho com mais de vinte anos não sabe o que perde. A estrutura está mais aberta e a componente doce é preservada. O caso do pastel de nata resolve-se com um moscatel de Setúbal ou um Carcavelos. Já as sobremesas com chocolate negro – mais de 70% de cacau – pedem um Porto Vintage novo. O chocolate de leite gosta mais de Madeira Malvasia. Nos bombons, pralinés ou recheados, a opção certa pode ser um Porto Tawny 30 ou 40 anos.

Os injustiçados amargos

Não há equilíbrio sem extremos e o grupo de amargos é aquele de que menos se fala. Mesmo na prosápia da crítica de vinhos é que mais estranheza provoca no leitor, por se tratar de uma área que inspira defeito, quando é um sabor fundamental ao nível dos restantes. Convivemos bem com ele e sem ele a vida é sensaborona. Apercebi-me disso pela primeira vez quando há muito tempo me foi servida uma entrada unicamente de beterraba crua sem qualquer marinada ou molho. Sabemos que é rica em açúcar, mas há que sabê-la trabalhar para que o amargo não domine demasiado o conjunto. No contexto certo torna-se deliciosa, e até base de saladas tépidas exóticas. Na ligação com o vinho há apenas que ter o cuidado de optar por vinhos com pouca ou nenhuma madeira, para não puxar demasiado pelos polifenóis presentes na bebida. Num campo bem diverso estão os igualmente diversos amargos do peixe. Destaco os fígados, parte importante e particularmente injustiçada e que raramente se leva à mesa requintada e na qual está muito do sabor. Há que ter a ousadia de por exemplo servir em iscas tal como se faz com porco ou vitela e depois saber-lhe dar a devida assessoria, trabalhando fundos e molhos. O vinho azedo, quase vinagre que se aplica nas axilas e coxas do leitão antes de se entregar ao fogo sacrificial vai mais tarde fazer a grande diferença no sabor final. O vezeiro espumante cumpre bem o seu desígnio, mas um tinto de Baga pode ajudar na leitura do requinho de que todos tanto gostamos. Temos surpresa garantida colocamos espinafres crus numa salada fria, os amargos presentes nas folhas podem destruir o objectivo primordial, que seria a harmonia integradora. Mas curiosamente se as passarmos primeiro numa frigideira anti-aderente sem gordura, a estrutura vegetal abre e deixa-se impregnar de condimentos e temperos, piscando o olho a um bom Pinot Noir. Mesmo quando os vai utilizar num gratinado, vale a pena dar este tratamento prévio. O forte amargo que caracteriza a semente de cacau pode ser uma mais-valia na preparação e processamento culinário de certos pratos, funcionando como intensificador de sabor. O registo vínico feliz será neste caso um Arinto da Bairrada com madeira. O café é também um referencial amargo e não é em vão a inclusão em estufados longos ou em molhos. A perdiz adquire estatuto de realeza e o bife ganha dimensão universal.

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Grupo salgado

O sal está diabolizado e procura diariamente clemência junto de consumidores, médicos e nutricionistas. É um fenómeno social cíclico que está à mercê de revoadas de opinião e radicalismo geralmente pouco informadas e de certa forma alarmistas. O gosto português, contudo, não o dispensa e está na base da história da nossa alimentação desde há muitos anos. Deve utilizar-se com muita moderação, apenas como intensificador de sabor, embora saibamos que usamos e abusamos dele na cozinha. E se é pouco razoável o extremismo cego, urge instalar uma nova consciência em todo o espectro do consumo. A manteiga portuguesa, a mesma com que barramos o pão do pequeno-almoço, tem muito sal, devíamos ter o grau “meio sal” dos franceses para compensar tudo o que pomos no pão, ele próprio já rico em sal. A expressão pejorativa de pãozinho sem sal diz quase tudo sobre o assunto e no restaurante o vezeiro saleiro tem de estar ao lado. Trata-se, portanto, do sabor fundamental que domina o gosto de um prato e ao mesmo tempo o aviva. Não imaginamos o nosso maravilhoso fumeiro sem o sal. Não há presunto tradicional sem a forte salga inicial, que o ajuda a secar também e o ajeita para a empreitada do fumo. A cura do queijo concentra nele a tonalidade salina, por força da evaporação da componente líquida, indo de pasta mole a velho. O molho de soja de que abusamos na forma como comemos sushi e sashimi faz-nos ir muito além no sal, devíamos passar as peças pela soja muito ao de leve, e nem todas precisam sequer de passar. Tornou-se um hábito social que acaba por arruinar a experiência de pureza e verdade que procuramos junto dos bons sushimen que temos de norte a sul do país. Além disso, não damos hipótese a que o vinho brilhe, recorremos à cerveja numa espécie de jogo de opostos que nada tem a ver com a majestade implicada na cozedura da lâmina que tornou famosa a cozinha japonesa. Pelo fenómeno da criação de dimetilamina já referido, o vinho tinto está excluído da harmonização, pelo que deve optar por brancos de álcool moderado e acidez pronunciada. Já o queijo velho pode gostar da companhia de um tinto vigoroso com madeira. Para o presunto, há que considerar a maridagem com brancos de curtimenta com alguma evolução e ir contra o preconceito cego de acompanhar com tinto. Tudo depende da idade e cura do presunto e da gordura disponível. No geral, os enchidos curados de fatia pedem o corte da acidez, pelo que pode dar-se o caso da oportunidade para um tinto do Dão sem madeira. Já no caso da alheira clássica, deve levar-se perfurada com alfinete nas pontas e levar-se a uma frigideira anti-aderente sem qualquer gordura, lume no mínimo. Vai bem com branco de Trás-os-Montes, servida com grelos salteados e ovo estrelado.

Umami, o sabor que sabe bem

Eis-nos chega dos ao quinto sabor, o umami, que está na moda e na boca dos chefs. Numa escala de intensidades, o leite materno é campeão, seguido cá muito em baixo pelo caldo de vitela da primeira fervura, que em francês se diz “fond de veau” e está na base de muitos cozinhados. Não é tanto a intensidade, mas a envolvência e sensação de satisfação que leva a que os nossos bebés gostem tanto do leite materno no período de aleitação. Se atribuirmos 300 unidades de umami a essa essência materna, ao caldo de vitela damos 75. O terceiro classificado é o caldo dashi de camarão da cozinha chinesa e japonesa, com cerca de 50 unidades. Depois vêm todos restantes alimentos, com menos de dez pontos. Brillat-Savarin sabia bem de que falava no seu matricial livro Fisiologia do Gosto. As cozinhas orientais têm-nos ensinado muito sobre equilíbrio e completude de uma refeição e no fundo tem muito a ver com digestibilidade. A mesa kaizeki, alta cozinha japonesa composta de uma sequência de pratos de grande recorte técnico, representa todo um tratado de alimentação. Nós, ocidentais temos beneficiado muito da fusão e confrontação lúcida e intelectualmente orientada com as técnicas e sabores das cozinhas orientais. Apreciamos sobretudo a plenitude de sentidos sem pesar demasiado e a digestão fácil e simples. Tofu e seitan estão a entrar no nosso léxico nutricional justamente por esta razão. Há uma procura de equilíbrio que deve envolver a totalidade da refeição em vez de apenas partes e é imperativo que abracemos de forma culta e instruída tudo o que formos integrando pacificamente nas nossas cozinhas. Os vinhos resultantes de práticas biodinâmicas têm-me surpreendido muito sobretudo por esta vertente de umami e compreende-se que muitos menus de degustação do famoso Abade de Priscos começassem por um consomé de aves e fossem acompanhados por Madeira Sercial, ponte divinal apenas alcançável por mestres dos equilíbrios. Temos produtores entre nós que estão apostados nesta via, adoptando práticas que dão saúde à terra e nos integram nas suas paisagens. Um simples queijo fresco do dia acompanhado por um Vinhão de Vasco Croft, da região dos Vinhos Verdes representa bem a redenção que todos queremos. E merecemos.

(Artigo publicado na edição de Outubro de 2023)

Editorial Novembro: Há cada coisa…

Editorial LUÍS LOPES

Editorial da edição nrº 79 (Novembro 2023) “Os olhos também comem”, já dizia a minha avó. A expressão popular traduz um fenómeno que todos conhecemos: a forma ajuda a enaltecer o conteúdo. O desenho ou a embalagem podem induzir uma percepção de qualidade/sofisticação, facilitar a venda, criar notoriedade de marca. Isto é válido para todo […]

Editorial da edição nrº 79 (Novembro 2023)

“Os olhos também comem”, já dizia a minha avó. A expressão popular traduz um fenómeno que todos conhecemos: a forma ajuda a enaltecer o conteúdo. O desenho ou a embalagem podem induzir uma percepção de qualidade/sofisticação, facilitar a venda, criar notoriedade de marca. Isto é válido para todo o tipo de bens, dos automóveis ao têxtil, do mobiliário doméstico à perfumaria.

Todos sabemos, igualmente, que nem sempre forma e conteúdo (ou forma e função) correspondem. Uma cadeira elegante pode ser altamente desconfortável; um automóvel de estética exuberante pode ser um desastre (literalmente) em termos de condução; uma t-shirt atractiva pode ficar disforme na primeira lavagem. E, como é óbvio, um elaborado empratamento pode corresponder a uma desilusão gastronómica e uma garrafa muito bem vestida ter lá dentro um vinho que não vale metade do que custa.

Vivemos bem com isso, faz parte do jogo de sedução que as marcas fazem connosco. No caso dos vinhos, um dos exemplos mais prementes é o das garrafas pesadas. As incontornáveis desvantagens ambientais são superadas pelas evidentes vantagens comerciais. Dificilmente um vinho de elevada qualidade e preço pode ser vendido numa garrafa leve (só algumas regiões francesas alcançaram estatuto que o permite) ainda que, tudo o indica, a fileira vitivinícola, pressionada pela lei e/ou consciência ambiental, caminhe a pouco e pouco no sentido da leveza.

Mas o que dizer quando a forma é de tal modo impositiva, tão intrusiva, tão “in your face” (para usar a expressão inglesa), que praticamente grita: “seu palerma, o conteúdo não tem qualquer importância, o que estamos a vender é estatuto e diferença”?

Também aqui, a indústria das bebidas é fértil em exemplos. Um dos mais antigos é o dos licores e espumantes com chamativos “flocos de ouro”. E essa até é uma forma barata de usufruir do luxo ilusório. E se for uma garrafa de espumante com 45 litros? Foi o que fez uma conhecida casa francesa (não de Champagne, felizmente, apesar desta região ter um apreciável histórico em extravagâncias do género) fundada em 1898. Diz a notícia que a Zeus, da Luc Belaire, “é a maior garrafa de espumante do mundo, tem mais de um metro de altura, pesa 72,5 kg cheia e exige a força de 4 homens para a carregar e servir”. Confesso que adoraria assistir a esse espectáculo! Mas não devo ter essa sorte porque, até ao momento, foram produzidas apenas duas garrafas Zeus (vão fazer digressão mundial) e os “3 mil milhões de bolhas” (delicioso detalhe!) que cada uma contém não me irão, certamente, passar pelo goto.

Resta contar que a Luc Belaire é especializada em grandes formatos, nomeadamente os 15 litros e, ao que parece, com grande sucesso. As gigantes garrafas, sobretudo do Rosé Belaire (que a casa adianta ser “o espumante rosé nº1 na América”) tornaram-se, segundo a press release, “uma referência para celebridades, influenciadores, artistas e desportistas de todo o mundo, que têm vindo a celebrar marcos de carreira, lançamentos de álbuns e vitórias em campeonatos acompanhados de Belaire”.

Confesso que desde que li a notícia sou assaltado por uma interrogação. Como se refresca e serve adequadamente uma garrafa de 45 litros? Ou de 15 litros, já agora? Ou isso não importa porque o objectivo não é beber o vinho, mas sim “celebrar” com ele? Há vários dias que não durmo a pensar nisto…

Editorial: Conta-me estórias

Editorial LUÍS LOPES

Editorial da edição nrº 78 (Outubro 2023) Maria Pureza é biodinâmica. Cumpre os preceitos da Antroposofia de Rudolf Steiner, em harmonia com a Natureza e a biodiversidade. Os 6 hectares de vinha que possui são trabalhados manualmente, com preparados biodinâmicos à base de produtos naturais como algas, cobre, enxofre, tisanas de plantas diversas. Galinhas, patos, […]

Editorial da edição nrº 78 (Outubro 2023)

Maria Pureza é biodinâmica. Cumpre os preceitos da Antroposofia de Rudolf Steiner, em harmonia com a Natureza e a biodiversidade. Os 6 hectares de vinha que possui são trabalhados manualmente, com preparados biodinâmicos à base de produtos naturais como algas, cobre, enxofre, tisanas de plantas diversas. Galinhas, patos, ovelhas, ouriços, andam livremente pelo meio das cepas e são eles que ditam, comendo ou rejeitando as uvas, quando estas devem ser colhidas. Maria não possui certificação biodinâmica nem a procura: “O biodinamismo, a comunhão com o mundo natural, é algo que vem do nosso interior”, diz, “não se impõe do exterior”. O seu empenho no modelo tem-se revelado determinante no perfil e na comunicação dos vinhos que ostentam a sua marca, recolhendo o aplauso de críticos e consumidores de mais de 55 países, com 600 mil garrafas vendidas para todo o mundo.

António, um dos maiores produtores da sua região, faz vinhos num território muito especial, com um particular microclima, onde as influências atlânticas e continentais se misturam de forma equilibrada, em termos de amplitudes térmicas e humidade. São vinhos de vincado cariz regional, conjugando tradição e modernidade a partir de uvas cuidadosamente escolhidas das castas Syrah, Touriga Franca e Castelão. Naqueles solos arenosos e argilo calcários, as uvas amadurecem lentamente, ganhando açúcar sem perder indispensável acidez. Após a fermentação, o vinho tinto vai estagiar nas melhores barricas novas de carvalho francês, provenientes das mais reputadas tanoarias. Podemos encontrar o seu Monte da Floribela Reserva de Assinatura em supermercados seleccionados, ao preço médio de €3,10.

Jorge é um verdadeiro vigneron português, não produzindo mais do que 20 mil garrafas. Prefere não possuir vinha própria, trabalhando em estreita parceria com pequenos lavradores, ajudando-os a manter viva a sua actividade e as cepas de que tanto gostam. Grande parte destes vinhedos são bastante antigos e é a partir deles que, num espaço alugado em adega vizinha, Jorge elabora os seus vinhos. Entre eles destaca-se a linha Irreproduzível Vinhas Velhas, constituída por um tinto e um branco de field blend, o primeiro quase exclusivamente Touriga Nacional com um toque de Tinta Roriz, o segundo maioritariamente Encruzado, com Verdelho e Viognier. Das melhores barricas destes vinhos, com 95% de tinto e 5% de branco, à maneira de Cotes du Rhone, este vigneron elabora a sua marca de topo, o On Your Face Vinhas Muito Velhas, já presente nos melhores restaurantes portugueses de “fine dining”.

Na sua adega, Teresa faz 300 mil litros de vinho, entre brancos, rosés e tintos. Na vindima de 2019 resolveu elaborar um branco diferenciador, “vinho de sommelier”, como ela lhe chama, feito sem inoculação, unicamente a partir das leveduras autóctones. Para tal, no canto mais escuro da adega, Teresa conserva uma colónia de leveduras indígenas, uma espécie de “aldeia dos gauleses de Asterix cercada pelos romanos”, como ela a classifica com humor. Sendo a adega diariamente visitada por grupos de enoturistas, naquele local Teresa delimitou o pavimento com fitas fluorescentes, para ninguém pisar a sua “arca do tesouro”. Assim, em cada vindima, para fazer o vinho de leveduras indígenas, vai ao canto da adega com uma colher de chá e recolhe com cuidado o precioso fermento. A verdade é que estas leveduras imprimem ao seu Naturalix branco um carácter completamente distinto, com aromas e sabores de enorme pureza e sentido de terroir.

 

 

Editorial: A outra Bairrada

Editorial LUÍS LOPES

Editorial da edição nrº 77 (Setembro 2023) Manuel F. Silva (Casa de Saima) 1981, Luis Pato Vinhas Velhas 1990, Quinta das Bágeiras Garrafeira 2001, Kompassus Reserva 2013. O que têm em comum estes quatro vinhos que, em conjunto, atravessam quatro décadas? Diversas coisas: são brancos, nasceram na Bairrada e mostram, à data de hoje, qualidade, […]

Editorial da edição nrº 77 (Setembro 2023)

Manuel F. Silva (Casa de Saima) 1981, Luis Pato Vinhas Velhas 1990, Quinta das Bágeiras Garrafeira 2001, Kompassus Reserva 2013. O que têm em comum estes quatro vinhos que, em conjunto, atravessam quatro décadas? Diversas coisas: são brancos, nasceram na Bairrada e mostram, à data de hoje, qualidade, complexidade, carácter e longevidade notáveis. Não menos significativo, pelo menos para mim, existem cá em casa algumas garrafas de cada um deles, abertas com parcimónia quando a ocasião e a companhia o justificam.
Aquele que pode, muito justamente, ser considerado o pai da Bairrada moderna, Luís Pato, sabe-a toda. Desde há muito que tem a opinião formada a este respeito e emite-a com frequência, originando reacções de surpresa ou escândalo, consoante as almas mais ou menos sensíveis: “A Bairrada é, acima de tudo, região de vinhos brancos. Tintos e espumantes apenas complementam a oferta”.

A prova de vinhos brancos da Bairrada publicada nesta edição da Grandes Escolhas parece dar-lhe razão. São 25 vinhos (e poderiam estar aqui mais alguns) oriundos de distintos produtores e terroirs da região, nenhum classificado abaixo de 17 e sete deles alcançando 18 ou mais pontos. Tenho muitas dúvidas que igual número de espumantes ou tintos Bairrada atingisse esta impressionante consistência qualitativa.

Razões para isso, existem várias. O clima, desde logo. Escrevo estas linhas em Sangalhos, às 10:30 de um dia de Agosto. O sol ainda não apareceu e estão 22ºC. Ontem estive no Baixo Alentejo. À mesma hora, debaixo de um sol radioso, estavam 39ºC. O Atlântico dita aqui a sua lei. Depois, os solos. Tradicionalmente, os melhores (e mais raros) terrenos da Bairrada, de argila com maior ou menor presença de calcário, eram reservados para casta Baga, pois só ali seria expectável alcançar grandes tintos. Com algumas excepções, as castas brancas eram assim “empurradas” para os solos arenosos, e destinadas, sobretudo, ao espumante. Na última década, porém, muita coisa mudou. Por um lado, a crescente valorização dos brancos tranquilos, levou vários produtores a plantar castas brancas em solos de maior potencial. Por outro, a ascensão do “blanc de noirs” Baga-Bairrada desviou a Baga menos boa do tinto para o espumante, libertando mais e melhores uvas para vinhos brancos.

A tudo isto, acrescentemos as castas brancas da Bairrada. Em que outro local de Portugal é possível encontrar mostos de Maria Gomes (Fernão Pires) com 13,5% de álcool e 8 gramas/litro de acidez total? Da primeira vez que me anunciaram estes resultados não acreditei e pedi para ver o boletim de análise. Agora, já estou acostumado. Se a Maria Gomes dá estrutura e intensidade, a Bical confere elegância e finura, a Cercial (não confundir com Cerceal-Branco do Dão nem com Sercial/Esgana Cão da Madeira/Bucelas) oferece frescura e tensão. E ainda há a ubíqua Arinto, que sempre considerei (na Bairrada, atenção!), inferior às outras três, mas que, progressivamente, me tem vindo a convencer.

A consistência demonstrada pelos 25 produtores cujos vinhos entraram nesta prova não deve ser confundida com uniformidade. E esse é o ás de trunfo da Bairrada: à diversidade de castas, solos e microclimas, junta-se uma profusão de conceitos e práticas de vinificação que fazem com que os vinhos sejam muito distintos entre si, sem nunca perderem os traços que os remetem para a sua origem – complexidade, carácter, frescura, longevidade – e os destacam entre os melhores brancos de Portugal.

Editorial: Rosa

Editorial LUÍS LOPES

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Editorial da edição nrº 75 (Agosto 2023)

Parece impossível, mas passado tanto tempo desde o antigo sétimo ano dos liceus, a primeira das cinco declinações latinas que tanto me custaram aprender ainda surge, fresca, na minha cabeça sempre que se falam de rosas ou, já agora, de rosés. A inutilidade da coisa sempre me surpreendeu. Porque diabo continuo a guardar no cérebro espaço para isto? Mas, provavelmente, estarei a ser injusto com o meu esforçado professor de latim. A verdade é que os rudimentos da língua morta que me ficaram na memória tiveram algum préstimo ao longo da vida, ajudando a mais facilmente navegar pelos vocabulários de outras línguas, sobretudo as de origem latina, mas não só. No caso concreto, serviu-me também para introduzir o assunto dos vinhos com a cor das rosas, ou melhor, a cor que é suposto as rosas terem. Vinhos esses que são tema de capa desta edição de agosto da Grandes Escolhas.

Tão complexas e diversas são as declinações latinas quanto o mundo dos rosés. Tanta coisa mudou em tão pouco tempo. “No princípio era o Mateus”, parafraseando o versículo bíblico. Exaltado no estrangeiro, vilipendiado em Portugal, acusado de ser “vinho de senhoras” (curioso “insulto” este…) ou, pior ainda, nem ser vinho. Certo é que o velhinho Mateus continua a dar cartas e, acreditem, na sua versão “dry” bate muitíssimos rosés bem mais caros e engalanados.

Mas os rosés são, como acima disse, um mundo. Há-os de todas as tonalidades, intensidades, qualidades, castas, origens, teores de álcool ou açúcar. E a diversidade estende-se também ao nível de ambição. Nos últimos cinco ou seis anos são cada vez mais os rosés portugueses que se instalam, não nas competições distritais, mas na liga dos campeões. Entre os 52 rosés que Valéria Zeferino provou para esta edição, cerca de metade custa mais de €15. E muitos estão bem acima dos €20. E o melhor de tudo? Valem bem o que se paga por eles!

Já tive algumas vezes oportunidade de provar, com amigos estrangeiros que fazem da escrita de vinhos profissão, alguns dos melhores rosés nacionais ao lado de nomes grandes da Provence, incluindo a marca preferida de Uma Thurman (e os gostos da gloriosa Uma merecem toda a minha atenção). E cada uma dessas vezes eu, que em nada sou adepto do “nacional é bom”, constatei com imenso gozo a coça que os franceses levaram.

Há quem diga e escreva que o rosé é um tinto que quer ser branco ou um branco que quer ser tinto, não conseguindo nunca fazer tudo o que um tinto ou branco fazem. Permitam-me discordar com veemência. Um rosé de topo não é um mero substituto para os dias de calor. Quando é grande, é grande, tal como um branco ou um tinto. Apenas, num aspecto deixo o benefício da dúvida. Sempre acreditei que um vinho para ser grande necessita passar a prova do tempo. Acontece que o histórico de Portugal em rosés de topo é recente. Mas ainda assim, tenho em casa rosés de que gosto, com quatro ou cinco anos de idade, e que se mostram melhores do que nunca. Vamos deixá-los estar e conversamos depois.

Editorial: E no barro se fez vinho

Editorial LUÍS LOPES

Nas peregrinações que, desde finais dos anos 80, faço regularmente pelas tabernas e casas de petiscos do grande Alentejo, encontro talhas de todos os tamanhos e formatos, bem como inúmeras nuances na pesga do barro ou nos processos de vinificação, variando a tradição de concelho para concelho, quase de aldeia para aldeia.   Editorial da […]

Nas peregrinações que, desde finais dos anos 80, faço regularmente pelas tabernas e casas de petiscos do grande Alentejo, encontro talhas de todos os tamanhos e formatos, bem como inúmeras nuances na pesga do barro ou nos processos de vinificação, variando a tradição de concelho para concelho, quase de aldeia para aldeia.

 

Editorial da edição nrº 75 (Julho 2023)

 

A publicação nesta edição de julho de um trabalho sobre o projecto XXVI Talhas, em Vila Alva, na sequência de um outro apresentado em junho sobre os vinhos Mamoré da Talha, em Borba, sugere uma reflexão sobre as diferentes formas de expressar esta milenar tradição vínica e cultural do Alentejo.

Os vinhos de talha estão na moda, é um facto. À boleia de um nicho de mercado que quer experimentar a diferença, aquilo que era um produto do Alentejo profundo, das tabernas e casas particulares, transferiu-se das populações rurais para os produtores profissionais, ganhando dimensão e buzz mediático. Agora que toda a gente sabe o que é Vinho de Talha Alentejo seria bom não esquecermos os amadores (no verdadeiro sentido da palavra, “aqueles que amam”) que, teimosamente, ao longo das últimas décadas, mantiveram vivos não apenas a tradição como o conhecimento, o saber fazer. Sem essas muitas centenas de anónimos, o renascer do vinho de talha não teria sido possível.

Dito isto, desenganem-se os que se assumem como guardiões da “verdadeira” tradição do vinho de talha do Alentejo. É que o Alentejo é enorme em todos os sentidos, e o tamanho corresponde à sua diversidade. Nas peregrinações que, desde finais dos anos 80, faço regularmente pelas tabernas e casas de petiscos do grande Alentejo, encontro talhas de todos os tamanhos e formatos, bem como inúmeras nuances na pesga do barro ou nos processos de vinificação, variando a tradição de concelho para concelho, quase de aldeia para aldeia. Para pesgar a talha, nuns sítios usavam resina de pinheiro e cera de abelha, noutros só a cera ou só a resina; alguns pesgavam de 5 em 5 anos, outros usavam as talhas pesgadas pelo pai há duas décadas; enquanto uns colocavam todo o engaço na talha, outros só uma parte, outros ainda somente as uvas esmagadas. Esmagamento que, consoante o hábito local, podia ser feito directamente para a talha ou pisadas as uvas no chão de barro da adega, correndo o mosto para o “ladrão” (talha enterrada) e daí baldeado para as ânforas. A dada altura, algumas dessas talhas começaram a ser revestidas a epoxy (“tinta anti-mosto”, assim lhe chamavam nas aldeias) por razões de facilidade e higiene, perdendo embora o carácter do pez. Destas muitas tradições resultavam e resultam vinhos tão distintos quão diversos são os matizes do cante alentejano ou os ingredientes e temperos do cozido de grão. Há tantos Alentejos…

Em 2010 decidiu a CVRA, e muito bem, regulamentar o Vinho de Talha Alentejo, como forma de preservar a sua origem e identidade, impedindo assim a sua apropriação por terceiros. No entanto, ao só permitir este designativo em vinhos produzidos dentro das 8 sub-regiões, deixou de fora zonas emblemáticas para o vinho de talha. Ao mesmo tempo, aceitou todas as castas autorizadas para DOC. Como resultado, posso fazer um Vinho de Talha Alentejo 100% Syrah ou Touriga Nacional, uma perversão cultural de que, felizmente, os produtores não se têm aproveitado. Mas não posso fazer Vinho de Talha Alentejo, ou sequer utilizar a palavra “talha” no rótulo, se estiver em Campo Maior (histórico centro oleiro de talhas) ou em Cabeção (onde ainda subsistem dezenas de produtores artesanais e centenas de talhas). Será que, com algum bom senso, se consegue resolver esta absurda contradição? O Alentejo, tão diverso quanto único e inimitável, agradece.

 

Editorial: Verde

Editorial LUÍS LOPES

Poderia sugerir a estes novos cruzados do ambiente o seguinte: mais eficazmente sustentável do que recusar provar garrafas “pesadas”, seria fazer menos viagens intercontinentais. Um jornalista de vinhos recusar provar em garrafa pesada, por razões ambientais, é como um jornalista de automóveis recusar comentar Fórmula 1, pelas mesmas razões.   Editorial da edição nrº 74 […]

Poderia sugerir a estes novos cruzados do ambiente o seguinte: mais eficazmente sustentável do que recusar provar garrafas “pesadas”, seria fazer menos viagens intercontinentais. Um jornalista de vinhos recusar provar em garrafa pesada, por razões ambientais, é como um jornalista de automóveis recusar comentar Fórmula 1, pelas mesmas razões.

 

Editorial da edição nrº 74 (Junho 2023)

Não tenho dúvida, haverá muita gente que, no seu dia a dia, actua de forma mais respeitadora do ambiente do que eu. Mas sei que, em casa e fora dela, sigo padrões de sustentabilidade acima da média. Alguns exemplos diversos: quase 90% da minha energia doméstica vem de painéis solares; as duas centenas de garrafas das provas que abro em cada mês são descarregadas no vidrão; a água da piscina nunca foi mudada em 25 anos, a evaporação é compensada pela chuva; nas deslocações inferiores a 200 km uso um carro eléctrico; o duche matinal dura três ou quatro minutos; alimento e abrigo a passarada no jardim; prefiro, sempre, bens e produtos produzidos nacional ou localmente. Podia continuar, mas já chega. Expus aqui em público, e muito a contragosto, uma parte da minha vida privada, apenas para acentuar que, no que a práticas ambientais diz respeito, acolho sempre ensinamentos, mas não aceito moralismos de ninguém.

Vamos então ao que interessa, um caso paradigmático de um certo populismo ambiental que me incomoda. Dois conceituados críticos internacionais anunciaram recentemente aos seus leitores que, de agora em diante, se recusarão a provar vinhos em garrafas de vidro “pesado”. Fica-lhes bem. De uma assentada aparecem como salvadores do mundo e apaziguam a consciência própria, também ela pesada. É que a principal fonte de receita destes dois profissionais passa por dar palestras e provas nos cinco continentes, viajando confortavelmente de avião (naturalmente) e em primeira classe (mais naturalmente ainda). Como sabemos, a aviação comercial tem o maior peso ambiental (em pegada de carbono) entre todas as actividades económicas. Já o número de garrafas “pesadas” face às “normais” ou “leves” é bastante reduzido, pois são unicamente usadas em (alguns) vinhos de topo. A título de exemplo, um produtor português que viu o seu vinho recusado por um dos críticos referidos, enche 5.000 garrafas “pesadas” num total de 2 milhões de “normais” e “leves”. Assim, poderia sugerir a estes novos cruzados do ambiente o seguinte: mais eficazmente sustentável do que recusar provar garrafas “pesadas” seria fazer menos viagens intercontinentais. Ou, quem sabe, comer fruta da época, em vez de “fruta de avião” colhida no outro lado do oceano. Um jornalista de vinhos recusar provar em garrafa pesada, por razões ambientais, é como um jornalista de automóveis recusar comentar Fórmula 1, pelas mesmas razões.

O que quero eu dizer com tudo isto? Primeiro, que o modelo “certo” de sustentabilidade ambiental não existe; segundo, que preservar o ambiente implica sacrifícios que devemos estar preparados para fazer; terceiro, que mais importante do que ser “verde” por fora, é sê-lo por dentro, ter verdadeira consciência ambiental, com bom senso, sem radicalismos, sem hipocrisias – a manta é curta, o que tapamos de um lado destapamos do outro: queremos carros eléctricos e telemóveis, mas a mineração do lítio que seja feita bem longe, de preferência na China…

Portanto, sejamos, todos, menos propagandistas e mais consequentes nas nossas acções privadas. A garrafa pesada vai, provavelmente, desaparecer do mercado nos próximos anos: só que, como em tudo, serão os consumidores a fazer com que isso aconteça. O vidro pesado é apenas uma gota num oceano de desperdício. É aquilo que estamos dispostos a fazer, nas nossas casas e nos locais de trabalho, que, verdadeiramente, vai promover a diferença.

 

Editorial: Digital (E papel, também)

Editorial LUÍS LOPES

Renovar graficamente uma revista em papel numa era onde o digital assume um peso cada vez maior, pode parecer caminhar contra os ventos da história. Mas, para nós, continua a fazer todo o sentido investir numa revista de apresentação cuidada e conteúdos apelativos e, ao mesmo tempo, apostar muito forte, e de forma inovadora, na […]

Renovar graficamente uma revista em papel numa era onde o digital assume um peso cada vez maior, pode parecer caminhar contra os ventos da história. Mas, para nós, continua a fazer todo o sentido investir numa revista de apresentação cuidada e conteúdos apelativos e, ao mesmo tempo, apostar muito forte, e de forma inovadora, na digitalização.

 

Editorial da edição nrº 73 (Maio 2023)

 

O leitor da Grandes Escolhas vai ficar surpreendido (espero que positivamente) com a edição que tem agora em mãos. Renovar graficamente uma revista em papel numa era onde o digital assume um peso cada vez maior, pode parecer caminhar contra os ventos da história. Mas, para nós, continua a fazer todo o sentido investir numa revista de apresentação cuidada e conteúdos apelativos e, ao mesmo tempo, apostar muito forte, e de forma inovadora, na digitalização.

O mês de Maio traz assim muitas novidades ao universo Grandes Escolhas. A única menos positiva, mas inevitável face ao significativo crescimento dos custos, é o aumento de €0,50 no preço da revista em papel e no “vinho de capa”. De resto, tudo coisas boas. A revista (versão papel ou digital) está bem mais arejada (e arrojada) do ponto de vista gráfico, dando às fotografias um relevo maior do que no passado. A mudança no tipo de letra possibilita também uma leitura mais fácil e confortável. Em termos de conteúdos, o novo grafismo “obriga” a textos mais curtos, mas, também por isso, mais textos, mais concisos, mais diversos e mais focados. Nada que atrapalhe uma equipa redactorial que, enquanto director, é para mim motivo de orgulho, pelo conhecimento, dedicação e profissionalismo. Aqui não houve mudanças pois, como dizem no futebol, em equipa que ganha não se mexe.

Um princípio que, na verdade, não respeitámos quando nos virámos para o website Grandes Escolhas. É que o website estava a ganhar folgadamente e, mesmo assim, mudámos e mudámos muito. Os números oficiais da Google Analytics, relativos a 2022 são, sem dúvida, impressivos para um website tão especializado: 771 mil sessões iniciadas por 533 mil utilizadores (dos quais 67% novos utilizadores!) mais de 3 milhões de páginas visualizadas, e mais de 4 páginas por sessão, com uma taxa de rejeição de apenas 1,1%. Números destes levaram-nos a fazer um grande esforço, em parceria com a Upgrade, no sentido de potenciar ainda mais esta adesão por parte dos apreciadores de vinho. O novo website, já online mas ainda a ser diariamente aperfeiçoado, está “turbinado” em todos os sentidos, na forma e no conteúdo. Permitam-me referenciar aqui apenas dois aspectos, que considero, enquanto utilizador, de grande relevância, e ambos relacionados com a pesquisa de vinhos: primeiro, a extraordinária rapidez com que chegamos ao vinho pretendido após digitarmos as primeiras letras do nome; segundo, a possibilidade de, ao clicarmos no botão “Comprar”, sermos de imediato direccionados para a página onde esse vinho se encontra nos websites de 7 das principais garrafeiras de Portugal.

Na base desta pesquisa de vinhos estão mais de 14000 notas de prova produzidas pela equipa da Grandes Escolhas. Um património absolutamente único no seio dos vinhos portugueses, pela sua dimensão, qualidade e credibilidade, e que as ferramentas digitais nos ajudam a levar a todos os apreciadores. E desvendo aqui a próxima novidade: muito em breve iremos lançar uma app, com reconhecimento de rótulos, que permitirá a qualquer utilizador, entre outras funcionalidades, apontar o seu telemóvel para uma garrafa e obter as notas de prova e a classificação da Grandes Escolhas. No mês em que este projecto cumpre o seu sexto aniversário, acho que não poderíamos dar e receber melhores notícias.

Simplesmente… 2023, por Luís Antunes

simplesmente

Undécima edição deste festival alternativo, que conseguiu, apesar do Covid, não parar de acontecer desde 2013. Ênfase nos vinhos sinceros, na arte e na música ao vivo, com 100 produtores de vinho, a que chamam “vignerons,” mesmo que alguns não tenham nem cultivem um único pé de vinha. Agrupam-se aqui os vinhos alternativos, naturais, amarelos, […]

Undécima edição deste festival alternativo, que conseguiu, apesar do Covid, não parar de acontecer desde 2013. Ênfase nos vinhos sinceros, na arte e na música ao vivo, com 100 produtores de vinho, a que chamam “vignerons,” mesmo que alguns não tenham nem cultivem um único pé de vinha. Agrupam-se aqui os vinhos alternativos, naturais, amarelos, de pouca intervenção, terroirs clássicos, vinhos que exploram novos caminhos, muitas vezes na sombra dos velhos.

No Simplesmente há sempre música ao vivo e dança para quem se atrever a rodopiar na sala. Em 2023 foi o Paulo (Mal) Amado com os Suma, os Themandus e o grande Kiko com os seus Blues Refugees, aos quais ainda se juntou o enólogo e guitarrista amador Nuno Mira do Ó. Houve café de excelentes origens, torrado com atenção e tirado com perfeição. Houve conversas de mulheres do vinho, e o romance tecno-enológico Viti, Vini, Vici, de Thomaz Vieira da Cruz. Houve restaurantes a fornecer comida para os visitantes e expositores, mas também houve pop-ups de apresentação do evento e seus vinhos que vão rodando por várias zonas do país. Devo dizer que este ano até eu (veja-se lá…) fui convidado a cozinhar, sob a mão chefe do chefe Vítor Claro (um dos vignerons, que deixou os fogões para fazer vinho, mas regressa ao fogo de vez em quando). Foi na manja#marvila (“somos guays”) e a pedido do piscívoro João Roseira adaptei a minha receita de porco com funcho e mel (ideia tirada de um romance do João Aguiar) a uma garoupa de proporções bíblicas, quase 7kg depois de limpa.

João Roseira é um dos criadores do Simplesmente… Vinho, juntamente com João Tavares de Pina e Mateus Nicolau de Almeida. João ficou, mais tarde, sozinho, mas juntaram-se-lhe os filhos Gustavo (of Nauvegar fame) e Sara, e uma equipa bastante estável de jovens e ex-jovens entusiastas, incluindo o Carlão (Karlown), o curador da arte plástica. Em 2023, o Simplesmente (eles põem sempre reticências) decorreu na Alfândega do Porto, que distancia da aconchegada cave ribeirinha da primeira edição.

simplesmente
simplesmente… Vinho 2023

Vamos aos vinhos que mais me marcaram. Nanclares y Prieto fazem vinhos nas Rías Baixas, mas não só de Albariño, que os Loureiros minerais e os tintos leves encantam e seduzem. Ricardo Diogo “Barbeito” Freitas dinamita os palatos com os seus Madeiras lúcidos e luminosos. Desta vez tinha também um Verdelho vinificado em seco, um 2020 das Vinhas do Lanço, que faz jus ao seu gosto impecável. Miguel Louro, para além dos seus vinhos “de linha” Quinta do Mouro e Casa dos Zagalos, tem os “Erros,” nos quais apresenta ao público os seus vinhos não canónicos. O Zaga Luz, vinho clarete que faz para uma comunidade surfista da Figueira da Foz é daqueles que servem para beber e beber mais, com prazer deleitoso. Sugeri-lhe que o engarrafasse em screw-cap, vamos ver se acontece. O Trincadeira ou a Vinha do Malhó estão à altura do que de melhor se faz no Alentejo.

Estes não são alternativos, têm alternativa, para usar linguagem tauromáquica. Nuno Mira do Ó não pode deixar o seu day-job para ir tocar guitarra, que os seus vinhos da Bairrada, do Dão, de Bucelas, de Portalegre deixam-me sempre extasiado. Os nomes também são bons, e estão à altura dos vinhos: Druida, Doravante, Outrora, Aliás, Teima, Caminhante. Pedigree. Fiquei fascinado com os vinhos de Henrique Cizeron, Cinética, Invés, Toroa. Várias origens, sempre frescura, leveza. Também adorei revisitar o velho dinossauro Rui Reguinga para perceber que está a fazer vinhos melhores do que nunca. Terrenus de Portalegre e Tributo da sua vinha do Tejo têm super-definição e amplitude. Álvaro de Castro não sabe fazer maus vinhos, e é bom relembrar o falecido cão Tobias, no rótulo do Quinta de Saes, como é bom explorar os topos de gama Pelada “mulher nua” 2018 e Quinta da Pellada “Casa” 2017. Ao Álvaro e quase só a ele perdoa-se esta fragmentação de experiências que torna a totalidade da sua gama difícil (impossível?) de processar. Cada vez melhores, mais profundos, mais pensados, mais longamente estagiados estão os vinhos do Alto da Serra de Luís Soares Duarte e Joana Roque do Vale. Quem os segue no Instagram gosta de ver as imagens dos seus animais da quinta a alegrar os rótulos do Pragmático e do Telúrico.

Também ali se fazem experiências de vinhos únicos, como um enigmático “” que parecia vindo de Jerez. A ver se vem ao público. João Afonso tem uma gama cada vez mais coerente, e consistente com os seus gostos (que conheço bem, de muitas mesas de prova) profundamente ligados à terra e à tradição antiga. Respiro Seda, Clarete e Lagar, Quartzo, Seiva, tudo vinhos de apelo e encanto, com luz e autenticidade. Muito particulares os Portos da Vieira de Sousa, mas os vinhos Douro “a” (Alice) branco e tinto ou o Tinta Francisca dão mais um passo a afirmar esta casa nova e antiga. Também já com mileage em cima, Luís Patrão tem os seus Bairradas Vadio autênticos e polidos, mas o que mais me impressionou foi o seu espumante Vadio Perpetuum, uma solera começada em 2007. Talvez o espumante da Bairrada que mais me fascinou pela entrada de boca, super-cremosa e bem definida. Para terminar, mais uma surpresa, e com esta me calo.

A Quinta de Tourais, de Fernando Coelho, sempre fez vinhos de extracção e concentração. Mas Fernando teve uma mudança de rumo em 2014, após uma visita à Ribeira Sacra. Decidiu “eu quero fazer vinhos assim”. Plantou castas que saberia que lhe roubariam benefício, como o Jaen ou a Baga, fez vinhos de Marufo das vinhas velhas, fez o Miura JABA, de Jaen, Alicante Bouschet e Arinto. Cunhou o slogan: Vinhos de Não Altitude. Situado em Cambres, no Baixo Corgo e a 80m de altitude, demonstra com os seus vinhos que não é preciso estar nos altos para fazer vinhos frescos, leves, bebíveis, luminosos. É este um novo Douro que ainda vem a tempo? Veremos, para o ano, no Simplesmente.