Vinhos de Mértola: Um Alentejo especial

As terras de Mértola representam o Alentejo extremado, quente, inóspito. Mas por aqui também há manchas de vinha, autênticos oásis verdejantes num clima semidesértico. Tão suspeitas quando admiráveis, fazem vinhos únicos que me amaciaram o espirito e me tornaram um confesso admirador da região e dos seus intrépidos produtores.

 

TEXTO João Afonso FOTOS João Esteves Cutileiro

DIZ-SE da cidade mais alta de Portugal, a Guar­da, que é a cidade dos 5 “F”: forte, farta, fiel etc. etc. De Mértola, aquela que deverá ser a vila mais baixa de Portugal, eu diria que é a terra dos 5 “I”: inesperada, improvável, inóspita, inimitável e imperdível.

No passado dia 16 de Maio, o termómetro marcava aqui 36 graus centígrados. “Está quentinho, mas nada pareci­do com os 47 graus durante a vindima do ano passado” – adiantou Helena Manuel, de rosto sorridente e sadio. Juntamente com Carlos Delgado, são os responsáveis pelos 1.000 hectares de agricultura biológica da Herda­de dos Lagos, em Vale de Açor, cerca de 20 quilómetros a NW de Mértola, na zona de transição da peneplaníce do Baixo Alentejo para a enrugada e inóspita Serra do Caldeirão.

Um par de horas depois de conhecer Helena e Carlos encontrei-me com Miguel Alho, da Herdade de Vale de Évora, sobranceira à vila de Mértola. Miguel foi ainda um pouco mais longe na temperatura e assegurou, sorrindo, os 49 graus durante a última vindima.

As principais características (ou problemas) de Mértola são o clima e o solo.

Segundo o Instituto Português do Mar e Atmosfera, que cita Köppen-Geiger, é a única região portuguesa de clima de tipo BSk, semidesértico de estepe fria. Isto significa que chove pouco e esporadicamente durante o Inverno; que a evapotranspiração potencial é superior à precipita­ção anual e que os cursos de água permanentes não exis­tem. E assim é. Mértola tem andado nos últimos 3 anos pelos 350 ml/m2/ano e a ribeira de Carreiras – que atra­vessámos nesse dia com o carismático Luís Fiuza, gestor da Bombeira do Guadiana, para visitarmos uma vinha de Chardonnay, numa espécie de poço entre os meandros retorcidos deste afluente do Guadiana – era apenas um pequeno charco de água.

Da mesa do restaurante onde almoçávamos com Miguel Alho pude apreciar a vista de um pequeno troço da pe­dregosa margem esquerda do Guadiana, de cor amarelo/ castanho e onde apenas alguns arbustos se vingavam do rude habitat, sobrevivendo.

“A região anda sempre ao sabor das magras chuvas de Inverno; vêm e vão, o pasto rebenta, seca, volta a reben­tar e volta a secar por muitos meses” – rematava, com um certo tom de tristeza e conformismo, o produtor mais dinâmico de vinho em Mértola – Luís Fiuza, que não con­firmou os 49 graus de Verão, mas assegurou os 42 graus à sombra. Nada mau! E também lembrou que em termos de clima há várias Mértolas: a da Herdade dos Lagos, na peneplanície, mais parecido com Albernoa e Beja; a da Herdade do Vale de Évora e Balanches, na cota dos 200 a 300 metros de altitude; e a do Bombeira do Guadiana, junto ao rio, na sua margem direita. As últimas geadas de Março são a prova viva destas nuances climatéricas; a Bombeira, de clima mais ameno por influência fluvial, nada sofreu.

A importância da água
Como elucidou Miguel Alho, da Herdade de Vale de Évora, “além de vinha queríamos plantar também algum olival, mas não havia água suficiente”. Assim, tiveram de optar por 30 hectares de azinheiras, consociadas com me­dronheiros.

Mas a secura não é só desvantagens: na Herdade dos Lagos, 100% dos seus 1.000 hectares de terra, vinha e outras culturas está em modo de produção biológico desde há seis anos e “poupa-se muito em tratamentos fitossanitários” – “Ser bio e sustentável é aqui mais fácil”, sustentam Helena e Carlos.

A água vale ouro neste pedaço “perdido” de território. Como recordava José Carlos Balanche, na sua infância dos anos 70, “os homens aqui, antes de deitarem água nas mãos para as lavarem, levavam-na primeiro à boca”. E fica tudo dito!

A agro-indústria e as enormes possibilidades técnicas que hoje temos para contornar a escassez de água tornaram sonhos em realidade, como é o caso de todos estes pro­jectos. Na Herdade dos Lagos, com 4 estações fotovoltai­cas a produzir grande parte da electricidade consumida, existe ainda uma única linha de água que corre para o terreno do vizinho. Mas estão já previstas pequenas obras para construir uma 5ª represa e assim armazenar toda a pouca água que cai por ano na herdade.

Claro que a água tem por aqui também um significado muito diferente de qualquer outro ponto do país…

“É tão bonito! Não é?”, perguntava-me Helena quando visitámos no leito da ribeira de Terjes e Cobres, um pe­queno açude destruído parcialmente por uma brutal e recente enxurrada e que deixava ver ainda alguma água acumulada num leito sem corrente, com margens pedre­gosas revestidas de sofrido mato rasteiro. Claro que é!, respondi eu por simpatia e sem ainda ter percebido a bru­tal beleza que esta paisagem extremada transmite depois de os nossos olhos a aceitarem.

No dia seguinte, o enólogo Bernardo Cabral perguntava­-me o mesmo nas ruínas das outrora bonitas dependências da Torralta (empresa hoteleira que em tempos possuiu a Herdade da Bombeira do Guadiana), que aqui produzia toda a fruta (uva de mesa também) e legumes para abaste­cer os seus hotéis no vizinho Algarve, numa época em que as importações destes géneros eram caras e raras. Desta vez, frente a uma paisagem em tudo semelhante à do dia anterior, ainda que com bastante mais água num leito do rio Guadiana dominado pela maré enchente (a maré faz-se sentir até 8 km acima de Mértola) tive de concordar, já com alguma sinceridade. Começava a entender Mértola.

Em breve, neste mesmo local existirá um enoturismo com alojamento, porque os turistas do “bird whatching”, se­gundo Luís Fiuza, fazem parecer o troço de terra batida na margem direita do Guadiana (que vai de Mértola, até estas dependências da Bombeira) mais a marginal de mar junto a Cascais do que propriamente o local ermo desola­dor e abandonado que era ainda há poucos anos.

O solo e a caça
E se Luís Fiuza, imagino eu, poderia no virar do século ser conhecido como o “Senhor Caça”, com a posse de 32.000 hectares de terra onde explorava com enorme sucesso o negócio que abraçou na primeira metade da década de 90, foi com Miguel Alho, da Herdade do Vale de Évora, que tive o meu segundo e “forte” contacto com as terras de Mértola, apercebendo-me da importância cinegética deste território. “Esta é considerada a capital portuguesa da caça menor” – sublinhou Miguel Alho quando ques­tionado sobre a aptidão natural desta singular região, tão explicita na sua propriedade, com dezenas de comedores para aves que se querem “viciadas” ao local.

Uma herdade com 550 hectares rodeada por outras her­dades, bem maiores, todas elas pertencentes aos mem­bros da família Champalimaud. Além desta família, muitas outras da elite financeira nacional possuem grandes áreas de terra em Mértola. Para quê? Caça e negócios, obvia­mente.

Voltando ao nosso anfitrião Miguel, foi com ele que ia deslocando algumas vértebras na minha coluna depois de um passeio em pick up por toda a herdade. Visitámos os primeiros 10 hectares da nova e pouco produtiva vinha (4 ton/ha) e depois, “upa para cima”, para chegarmos ao ponto mais alto da escarpada estepe e vermos com os nossos olhos aquilo de que nos falavam as imediações de Mértola. E aqui lembrei-me das palavras de Carlos Delgado, da Herdade dos Lagos – “Em Junho, vamos ao cimo de Nossa Senhora de Aracelis (um monte próximo) e parece que estamos em pleno Quénia, e as vinhas verde­jantes cá em baixo são autênticos oásis. É muito bonito!”

Falta falar do solo. Diz Maria José, simpática e comuni­cativa matriarca (com mais de oitenta anos de idade) da família proprietária de Balanches: “Pior do que o clima, é a terra.”

Ondulada e enrugada, é de xisto de clivagem oblíqua ou vertical (como no Douro), com vários níveis de quantida­de de argila ou pedra entremeada com maior ou menor regularidade por duríssimos afloramentos quartzíticos. As fertilidades e profundidades variam, como sempre, mas é obviamente em solos sedimentares das linhas de água que se encontra mais riqueza. No geral, são solos de cul­turas de sequeiro, onde os cereais e o rústico gado menor constituem os recursos naturais mais visíveis desta terra (também há importantes minas de cobre), numa agricultu­ra de aptidão extensiva e contrária à dos fortes e vizinhos barros de Beja. E foi precisamente, segundo Luís Fiuza, a pobreza de solo e clima que impediu esta agricultura de se desenvolver, mantendo os traços tradicionais e ex­tensivos que permitiram a Mértola ser uma importantíssima reserva cinegética nacional. Na Herdade de Vale de Évora ainda se semeiam searas para alimentar a caça. E enquanto olhávamos a jovem vinha da propriedade, outra pick up se nos chegou: funcionários deste Parque Natural andavam em busca do lince que alguém tinha avistado minutos antes…

Sabia que…
A região de Mértola é a única em Portugal que possui um clima semi-desértico de estepe fria

Agora, é a hora da vinha
Mas a caça já foi negócio. Os coelhos são atacados cada vez mais pela hemorrágica viral (que muda de estirpe em cada ataque) e se há alguns anos um hectare de terra pro­duzia quase uma perdiz natural/ano, hoje anda pelo terço ou quarto desta conta. E, pior ainda, as novas gerações tendem a não agarrar nas espingardas. A caça que dava vários milhões de euros/ano ao concelho, é negócio que emagrece a cada ano que passa.

A vinha vem ocupar o vazio deixado pela caça. Ainda muito no início e de débil implantação, pode ser (e que­ro acreditar que será) uma saída para este concelho tão original. Na zona visitámos quatro produtores, mas há mais um par deles. No total existirão na zona cerca de 92 hectares de vinha, com possibilidade de em breve se lhe somarem outros 25.

Está tudo muito no início. Só para falar nos extremos, a pioneira Bombeira do Guadiana lançou o primeiro vinho em 2003 e a casa Balanches estreia-se este ano. Não há tradição, não havia sequer hábito de beber vinho entre a população. Diria que é tudo muito novo, experimental e francamente estimulante. Sente-se essa “electricidade” em todos os produtores com que falámos. José Carlos Balanche, com mais de 4.000 hectares na posse da fa­mília, lembra: “A vinha é um estímulo para o nosso pes­soal, é algo verde e viçoso em que eles podem trabalhar durante quase todo o ano e orgulhar-se do seu trabalho, enquanto em redor é tudo árido e seco, sem trabalho para além do pastoreio. A vinha vai ajudar-nos a manter as pessoas na nossa terra.”

Há caminho e pode haver futuro. É gratificante. Eu próprio me senti contagiado pelo entusiasmo transmitido por estes produtores. Claro que ainda não sabemos quais as melhores castas para Mértola ou que tipo de vinho pode­rá a vir a ser o de Mértola, em termos de perfil local. Para já todos alinham pelo registo “fazer vinho bom”. Mas pelo investimento humano e rigoroso que senti, acredito que Mértola possa somar muitos pontos nas próximas vindi­mas e encontre o seu próprio modo de estar no vinho. As condições de produção são tão boas ou melhores do que outras regiões do Alentejo. Havendo água, há vida e bom vinho, e além disso a secura, neste caso, só tem vantagens: a chuva aqui nunca atrapalha.

Sabia que…
O nome de Mértola deriva de Martulá, nome que lhe deram os invasores muçulmanos

Fiuza, é perentório quando afirma “que em todo o lado se pode produzir excelência, tudo depende do profis­sionalismo e empenho de cada equipa”. A Bombeira do Guadiana é, para já, a marca mais visível em termos mediáticos, pelo menos em Portugal, onde vende qua­se toda a sua produção, mas acredito que outros se lhe seguirão. E para rematar esta peça nada melhor que ou­tra tirada do carismático Luís Fiuza: “Está na mãos dos produtores locais provar que merecemos estar no mapa do vinho português.” Pela parte que me cabe, e neste mesmo mapa, já coloquei uma marca bem gorda na lin­díssima vila de Mértola.

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