Tintos de Lisboa: Diversidade para explorar

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Os meus leitores (#zerofollowers?) e o director hão-de perdoar-me que, no texto, explique mais as emoções de organizar e realizar esta prova do que realmente mergulhar nela com a devida assepsia competente esperada de um crítico de vinhos. Pois, adivinhem, somos também pessoas, e temos história. Só que essa história inclui muitos vinhos e uma […]

Os meus leitores (#zerofollowers?) e o director hão-de perdoar-me que, no texto, explique mais as emoções de organizar e realizar esta prova do que realmente mergulhar nela com a devida assepsia competente esperada de um crítico de vinhos. Pois, adivinhem, somos também pessoas, e temos história. Só que essa história inclui muitos vinhos e uma tentativa árdua e longa de décadas de ter uma abordagem sistematizada à sua prova e – ocasionalmente – ao seu consumo. Brinco, como faço sempre quando quero falar de coisas sérias.
Esta prova organizada na silly season criou em mim altas expectativas. Pois se acho que Lisboa – a região – está a fazer uma das viticulturas e enologias mais excitantes do país, tudo está a acontecer, em particular coisas de que gosto: viticultura tradicional, carinho pelas vinhas velhas, gente nova que escuta os velhos, ressuscitar de antigas castas, estudar de técnicas tradicionais, vinificar com intervenção mínima, explorar terroirs com frescura marítima, tudo sem esquecer o que as modernas enologia e viticultura nos ensinaram. Os vinhos chegaram e eu avancei para eles sem preconceitos. Também era melhor!… Ou bem… já vos conto…

Tudo no frigorífico, temperaturas correctas, nem eram muitos, só 18, uma manhã de trabalho empenhado e sisudo, com prémio de provar estes belíssimos topos de gama, onde eu, confesso, esperava variedade, excitação, ousadia. Esperava descobrir coisas novas que eu quisesse trazer para a minha mesa. Já há muito lá vai o tempo em que eu conhecia todos os vinhos do país. A indústria cresceu e agora navego como todos nós pelas águas que consigo navegar. Mas ainda trago a memória que me permite cartografar uma região. E por isso sei que esta prova foi inquinada por um certo topo-de-gamismo que a conduziu para um tipo de vinhos que afunilam num estilo, quando eu esperava a explosão da variedade.
Não me interpretem mal. Tudo o que provei estava em excelente nível, como as notas bem demonstram. Mas eu talvez esperasse notas menos altas e vinhos mais diversificados. Todos sabemos, todos, que nem tudo na vida são notas. Vi muitos vinhos concentrados, alcoólicos e cheios de vigor, quando eu esperava que um ou outro me quisesse dar a outra face, tipo “olha, é isto que agora a malta aqui gosta e bebe.” Por isso, “ao ver-te, Lisboa, Lisboa, perder o bairro da Madragôa” (como na já trintona canção dos Polo Norte) não deixo de pensar – e aqui explicitamente fazer a afirmação – que Lisboa – a região – não pode perder essa liderança que recentemente ganhou de explorar a diversidade, definir rumos de futuro, não reafirmar incessantemente o brilhante passado.

 

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Quando digo Lisboa – a região – é por razões pessoais também. Sou das Cortes, ao pé de Leiria, onde sempre se fez vinho e mauzote, mas tínhamos a nossa DO Encostas de Aire, aliás bem extensa. Muito caiu o meu queixo há anos quando descobri que a minha aldeia natal era agora IGP Lisboa. Lisboa, tão longe, a minha cidade adoptiva quando fugi da Leiria-sem-universidade, num tempo já há muito ido. Então Lisboa a região, antiga Estremadura, de onde Leiria nem era, era Beira Litoral. Ai Salazar, que ainda todos nos lembramos dos mapas na escola primária.

Syrah, Alfrocheiro, Tannat, Touriga…

Lisboa definiu-se nos últimos 30 anos. Vejam, foi também há 30 anos que José Bento dos Santos plantou Syrah perto da Ventosa, Alenquer, e começou o seu projecto Quinta do Monte D’Oiro, que hoje oferece um dos vencedores desta prova. Um Syrah com Viognier tremendo de complexidade, precisão na maturação, definição. Falei com o filho Francisco, hoje na liderança da quinta. Francisco explicou-me que a aposta na Syrah, vanguardista na altura (plantações de 1992) vinha das convicções, provas e estudo com técnicos de Hermitage, de onde vieram as varas e o saber. A aposta revelou-se correcta, e hoje há Syrah no país todo, mas poucos têm o refinamento e a perfeição de maturação desta quinta, onde com os anos e a estabilidade da equipa aprenderam a explorar as suas virtudes, escolher as parcelas e acertar os lotes que melhor se mostram em cada ano. Até 2000 tudo vinha da Vinha da Nora. Depois de 2000 passou a vir de várias parcelas, o terroir da Ventosa, a 20km do mar, com a frescura marítima a ajudar. Tudo separado por casta e por parcela.

Francisco não mede as palavras: “Hoje sabemos o que é grand cru, premier cru e village.” Eu sei que ele sabe do que fala. Para o Reserva só usam “Grand Cru”, mas a proporção entre parcelas é diferente em função do ano de colheita, e da opinião dos provadores. Há vários talhões de Viognier e deixam meia dúzia de carreiras que são vindimadas quase em passa para co-fermentar com a Syrah. Vindimado quase um mês mais tarde do que o vinho branco, tem de se garantir que se aguenta sem apodrecer. A idade média da vinha é agora de 25 anos, a equipa já a conhece bem, e 2021 foi um grande ano. Todos os pormenores contam, a produção em modo biológico há 20 anos também faz diferença. De costume, o Reserva não afunila numa parcela só, tem quatro ou cinco parcelas, mas 2021 teve apenas três parcelas, o que não é usual, e maioria de uma delas, 60% da Vinha da Nora, que tem já 30 anos, 20% da Parcela 9, 20% da parcela 24, da seleção massal. As barricas (40% novas) vêm de várias tanoarias, e diferentes origens da madeira e introduzem ainda mais complexidade. Se tudo isto parece a conversa usual de quem quer vender um terroir, desenganem-se. Este senhor quer é vender vinho, e convido-os a comprar e provar este 2021, que mostra um nível de Syrah que em Portugal raras vezes consegui ver.

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Já vos abro o meu coração sobre o outro vencedor da prova, Ganita 2015. Tudo me convocava para não gostar deste vinho. Preço muito alto, imagem impecavelmente cuidada (eu sei, sou um rebelde!), incluindo garrafa cara estilo base de abat-jour e alguma lamechice de “homenagem” que incluía rótulos e cintas obviamente manipulados à mão, seria impossível não o serem, com atilhos e reentrâncias. Ainda por cima chegou por último e para estar à temperatura tinha de ficar para último da prova. Décimo-oitavo-vinho e já eu grunhia de fome e rabujava de exaustão. Depois cheirei o vinho. Depois levei à boca. Depois senti a sua textura, patine. Rendi-me. Que diabo de coisa, os factos não nos darem razão. Combinação improvável, direi mesmo impossível, porque telefonei ao seu arquitecto António Ventura, que me disse que a Alfrocheiro teve problemas na vinha e foi arrancada.

Aqui, as castas Tannat, Alfrocheiro e Touriga Nacional foram fermentadas separadamente em spin-barrel de 500 litros e depois estagiaram em barricas de 300 litros de diferentes origens, todas topo de gama. Tudo a convidar a um incrível topo de gama. Luís Vieira, da Quinta do Gradil, é o criador desta homenagem ao seu avô António Gomes Vieira, dito Ganita, e foi lançado em 2019, nos 100 anos do seu nascimento. O Ganita iria rebentar de orgulho deste vinho, que é sensacional. Correu-me que seria edição única, mas já soube que talvez em outra data histórica possa ser lançado outra vez, mesmo que sem o defunto Alfrocheiro. Alfrocheiro, Touriga Nacional e Tannat, vejam lá coisa mais improvável. Só na Lisboa, Lisboa. Vale mesmo a pena “não perder o bairro da Madragôa”…

(Artigo publicado na edição de Outubro de 2024)

Editorial Novembro: O Douro, por quem o fez

Editorial

Editorial da edição nrº 91 (Novembro 2024) A Grande Prova de tintos do Douro que publicamos nesta edição, levou-me a pesquisar os resultados das provas similares que esta equipa de provadores realiza com periodicidade anual desde há quase três décadas. O resultado foi um autêntico mergulho na história do Douro pela mão dos seus principais […]

Editorial da edição nrº 91 (Novembro 2024)

A Grande Prova de tintos do Douro que publicamos nesta edição, levou-me a pesquisar os resultados das provas similares que esta equipa de provadores realiza com periodicidade anual desde há quase três décadas. O resultado foi um autêntico mergulho na história do Douro pela mão dos seus principais protagonistas.
Os alicerces do Douro moderno começaram a ser construídos na vindima de 1990 através do tinto Duas Quintas, (o Reserva nasceu em 1991), seguido do Quinta da Gaivosa em 1992, Quinta do Crasto em 1994, Vale D. Maria em 1996, Quinta da Leda em 1997. Quando a estas se juntaram, em 1999, três outras marcas de topo – Batuta, Quinta do Vallado e Quinta do Vale Meão – o “Douro além do Porto” ficou lançado.

Comecei, precisamente, pela prova realizada em novembro de 1999. Naturalmente, as marcas nascidas nessa vindima estavam ainda fora da equação. Mas resulta curioso verificar que os tintos melhor classificados nesse embate espelham ainda um mix entre o Douro do “antes” e do “depois”: Barca Velha 1991 (quando o Barca Velha ainda se “atrevia” nestas provas comparativas), Confradeiro 1994 e Quinta do Côtto Grande Escolha 1995, de um lado; Vinha do Fojo 1996, Quinta da Gaivosa 1995 e Duas Quintas Reserva 1994, do outro. Interessante também constatar o tempo de estágio a que os melhores vinhos, mesmo os das marcas “novas”, eram submetidos antes de chegarem ao mercado. Progressivamente, esse ónus iria passar para o consumidor.
Nos vencedores de 2003 assistimos já ao surgir de uma constelação e ao esmorecer de algumas das estrelas antigas: Batuta 1999, Chryseia 2001, Quinta do Vale Meão 1999, Quinta da Leda 1999, Quinta do Vallado Reserva 1999, Duas Quintas Reserva 1999 e Quinta da Gaivosa 1999. Nas provas de 2004 e 2005 juntaram-se a estes, outros campeões: Lavradores de Feitoria Grande Escolha 2001, Quinta do Crasto Maria Teresa 2001, Pintas 2003, Poeira 2003, Quinta de la Rosa Reserva 2003.

Ao longo dos anos seguintes, diversas marcas se intrometeram no topo das classificações: Quinta das Tecedeiras, Quinta de Macedos, Quinta do Infantado, Ázeo, Quinta da Gricha, Passadouro, Quinta dos Frades Vinhas Velhas, Conceito, Kopke Vinhas Velhas, Quinta da Casa Amarela Grande Reserva, Maritávora Reserva, Quinta de S. José Reserva, CV, Quinta da Touriga-Chã, Quinta do Noval, Quinta do Monte Xisto, Carvalhas, Duorum Reserva, Xisto, Quinta da Manoella Vinhas Velhas. Algumas, nunca mais abandonaram os lugares cimeiros.

A prova de 2014 tinha um título sugestivo – “Rumo à elegância” – assinalando uma tendência que ainda hoje se mantém. O espaço limitado nesta página obriga-me, a contragosto, a saltar mais uns anos, para 2020, o ano do covid-19. Movidos pela conjuntura, estabelecemos um limite de preço (€30) à prova anual. As casas emblemáticas impuseram-se: Monte Meão Vinha dos Novos 2017, Vallado Reserva 2017, Pintas Character 2017 e Quinta do Crasto Vinhas Velhas 2017. E termino esta breve viagem com as provas de 2022 e 2023, e com o advento dos vinhos de parcela, vários deles a inscrever o seu nome entre os vencedores: Vallado Vinha da Granja 2018, Quinta da Boavista Vinha do Oratório 2018, Quinta Nova Centenária 2019, Quinta Vale D. Maria Vinha do Rio 2020, Pala Pinta 2020 (dos irmãos Maçanita), Quinta da Romaneira Carrapata 2021, Quinta de São Luiz Vinha Rumilã 2018.

Esta é, muitíssimo resumida, a história do Douro moderno, região de vinhos grandiosos nascidos numa viticultura de montanha, de baixas produções e elevado custo. Apontar como solução para a crise fazer vinhos para destilar e aguardentar o Porto, e assim competir com regiões destiladoras que produzem 25 toneladas por hectare e fazem vinhos que para mais nada servem, não é apenas estúpido. É também um atestado de incompetência e um desrespeito pelo Douro e pelas suas gentes. (LL)

O Tannat do Gradil

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E assim, para celebração de um quarto de século de gestão de Luís Vieira, bem como do seu interesse em castas diferentes, exóticas, pouco trabalhadas e exploradas, aliado ao seu compromisso com a qualidade e a diferenciação, nos reunimos no passado no fantástico Restaurante Federico, no Palácio Ludovice Wine Experience Hotel, para uma degustação das […]

E assim, para celebração de um quarto de século de gestão de Luís Vieira, bem como do seu interesse em castas diferentes, exóticas, pouco trabalhadas e exploradas, aliado ao seu compromisso com a qualidade e a diferenciação, nos reunimos no passado no fantástico Restaurante Federico, no Palácio Ludovice Wine Experience Hotel, para uma degustação das melhores Colheitas de Tannat, incluindo a inicial, de 2009, até uma amostra da próxima colheita a sair para o mercado, do ano 2022.
As mais antigas referências à Quinta do Gradil remontam ao Século XV, mais precisamente a 14 de fevereiro de 1492. Mais de cinco anos antes de Vasco da Gama partir para a Índia (!), um Documento Régio de D. João II registava a doação da jurisdição e rendas do Concelho do Cadaval e da Quinta do Gradil a D. Martinho de Noronha. A propriedade esteve depois nas mãos da Casa de Bragança, sendo um importante couto de caça da realeza, nunca tendo, no entanto, aquelas terras deixado de produzir uva e vinho.

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O Século XIX seria marcado por D. Maria do Carmo Romeiro da Fonseca, que herdou a Quinta da Gradil de seu pai, construiu o imponente palácio amarelo e transformou a propriedade numa exploração agrícola, onde o vinho teria o papel principal. Curiosamente, a sua filha acabaria por casar com o futuro Marquês de Pombal, descendente do mesmo Sebastião José de Carvalho e Melo que, um século antes, tinha tentado arrancar as vinhas do Gradil para favorecer a cultura de cereais e, por outro lado, interesses próprios no Douro, ligando assim a propriedade aos Marqueses de Pombal, a quem pertenceu durante uma parte do Século XX, até ser vendida, em 1963, a uma sociedade liderada por Isidoro Maria d’Oliveira, lavrador, homem de cultura e poeta. O vinho continuou a ocupar o papel principal na produção e a abastecer o crescente mercado de Lisboa.

O Século XXI é o Século de Luís Vieira, que adquiriu a Quinta em 1999. Com uma herança familiar ligada ao comércio de vinho desde 1945, Luís Vieira aprendeu com o avô, António Gomes Vieira, todos os segredos do negócio. Foi através dele que herdou a paixão pelo vinho que ainda o move até aos dias de hoje. Líder da Parras Wines, um dos maiores Grupos do Sector do Vinho de Portugal, Luís Vieira comprou a Quinta do Gradil com um objetivo claro: torná-la no porta-estandarte do Grupo na região de Lisboa. Para tal, apostou na total reabilitação da vinha com castas nacionais e internacionais, e na produção de vinhos de qualidade e diferenciadores.

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Uma referência na casa

O primeiro exemplar de Tannat remonta à vindima de 2009, com lançamento em 2013 e, desde então, tem-se afirmado como um marco na história dos vinhos da Quinta do Gradil. Na primeira colheita (2009) e na seguinte (2014), a casta Tannat surgia em blend com 15% de Touriga Nacional. Desde 2015, este vinho assume-se como monovarietal e um claro espelho do perfil da casta e do carácter atlântico do terroir onde nasce. A variedade Tannat é proveniente de França, mais precisamente de uma região localizada próxima aos Pirenéus, chamada Madiran.
Porém, foi no Uruguai que a variedade ganhou notoriedade, tendo sido introduzida no país por volta de 1870, por um basco pioneiro produtor de uvas chamado Pascual Harriague (nome pela qual a Tannat também passou a ser conhecida naquela origem!). Repousando no Oceano Atlântico entre os Paralelos 30º e 35º, o Uruguai compartilha a mesma latitude com as principais regiões vinícolas do hemisfério sul.

A Tannat foi a casta tinta que melhor se adaptou às condições de solo e clima do Uruguai. É, como já referimos, uma variedade de origem francesa, que acabou por ganhar muita expressão no Uruguai. Esta tipologia de uva dá origem a vinhos taninosos, com carácter, bastante corpo e estrutura, grande intensidade de cor, aromas a frutas escuras, especiarias e chocolate, com óptima concentração. É uma casta exigente em termos de solos e clima, mas que, no terroir da Quinta do Gradil, tem apresentado uma consistência qualitativa e um equilíbrio surpreendentes, como pudemos verificar durante esta prova.

A Quinta do Gradil está situada no concelho do Cadaval, ocupando uma área de 200 hectares, dos quais 120 plantados com vinha. A sua localização privilegiada, entre a serra de Montejunto e o mar, permite tirar partido da influência atlântica, determinante para o equilíbrio ácido e frescura dos vinhos, mas, ao mesmo tempo, usufruir de um bom número de horas de sol, importante para a conveniente maturação das uvas. A argila e o calcário formam a matriz principal dos solos da propriedade, onde encontramos plantadas uma grande diversidade de castas, brancas e tintas. Umas são naturais da região ou estão ali aclimatadas desde há séculos, dando origem a vinhos de vincado carácter regional: é o caso das emblemáticas uvas brancas Arinto e Fernão Pires. Outras, são de presença mais recente no local, mas acabaram por se revelar surpresas muito positivas, pela forma extraordinária como se adaptaram a este terroir. Aconteceu com as castas brancas Viosinho, Alvarinho e Sauvignon Blanc e a tinta Tannat. Por seu lado, as variedades Chardonnay, Syrah, Alicante Bouschet ou Touriga Nacional, por exemplo, são castas que, na Quinta do Gradil, mostram sempre grande consistência qualitativa.

(Artigo publicado na edição de Setembro de 2024)

Caves São João: Serena é a mudança

Caves São João

A inovação e criatividade sempre foram uma forma de estar das Caves São João. As influências do melhor que se fazia lá fora eram trazidas pelos seus fundadores, homens viajados e cosmopolitas. Na segunda metade do século XX, todo o país conhecia e reconhecia as referências “Frei João” e “Porta dos Cavaleiros”, rótulos que encimavam […]

A inovação e criatividade sempre foram uma forma de estar das Caves São João. As influências do melhor que se fazia lá fora eram trazidas pelos seus fundadores, homens viajados e cosmopolitas. Na segunda metade do século XX, todo o país conhecia e reconhecia as referências “Frei João” e “Porta dos Cavaleiros”, rótulos que encimavam todas as mesas da restauração portuguesa. Em 1971, antevendo as mudanças do paradigma de consumo de vinhos e espumantes e o surgimento de consumidores que procuravam maior identidade nos vinhos, é adquirida a Quinta do Poço do Lobo, no concelho de Cantanhede e, a partir dali, nasce a marca homónima, passando as caves a possuir vinhos de Quinta.

Como empresa familiar, a Sociedade dos Irmãos Unidos, designação social da mesma, sofreu os reveses das querelas internas. No final da segunda década deste século entrou num período mais conturbado, acabando, por vicissitudes várias, a ser alienada a quase totalidade do capital social a um conjunto de investidores em 2022. A partir daí, aguardavam-se as mudanças que os novos sócios, da área imobiliária e financeira, iriam imprimir à empresa centenária e que é a mais antiga em atividade na Bairrada. Fernando Sapinho, Enrique Castiblanques, Mário Vigário, Nuno Ramos, Paulo Morgado e Mário Mateus, são empresários em diversos ramos de atividade. O vinho surge-lhes como uma paixão racional de quem olha para as Caves São João como um diamante a lapidar.

No centro destas mudanças, ficou Célia Alves, ela que em tempo de marés violentas e tormentas várias, não largou o leme de uma marca secular e histórica, não permitindo que, em momento algum, ficasse à deriva.

Serenamente, os últimos anos foram de restruturação, dando uma nova luz à empresa que, com os seus fundadores, esteve no passado ligada à criação da região demarcada da Bairrada e à Confraria dos Enófilos da Bairrada, que, curiosamente, teve na sua liderança nos últimos anos Célia Alves, que mantém a gerência das Caves conjuntamente com os ativos sócios Fernando Sapinho e Enrique Castiblanques

No passado dia 24 de Junho, Dia de São João, as Caves São João destaparam o véu da revolução tranquila que têm operado, celebrando o seu 104º aniversário com várias novidades. A maior, e porque o palco escolhido para os festejos foi a Quinta do Poço do Lobo, revelou-se na expansão que aquela propriedade teve com esta nova estrutura societária. Ao longo dos últimos dois anos, entre reconversão de área de floresta em vinha e aquisição de parcelas contíguas, houve um aumento da área de vinha em 10 hectares, que se somam aos 30 já existentes. Com o aumento da produção de espumante no horizonte, nascem ali novas plantações das castas brancas Bical, Arinto e Maria Gomes (Fernão Pires).

Do Poço do Lobo ao Porta dos Cavaleiros

A casa, que mantém o classicismo que sempre a caracterizou, não descura o arrojo e ousadia e, na apresentação dos novos vinhos, mostrou que segue de perto as tendências e, para isso, não deixou de surpreender. O Baga Novo Natcool, um tinto da colheita de 2022, mostra toda a irreverência da casta, num vinho disruptivo mas totalmente assertivo. Nascido de uma parceria com a Niepoort, empresa familiar que possui relações comerciais com a empresa bairradina que remontam a meados do século XX, rompe com estigmas e mostra o quanto a Baga em jovem é capaz de criar vinhos absolutamente emocionantes. Nos espumantes, deu-se a conhecer a nova edição do Quinta do Poço do Lobo, na sua versão rosé, da colheita de 2021 e já com mais de 24 meses de estágio. Aqui reinam, num blend que casa com sucesso, a Baga e o Pinot Noir.

Os Porta dos Cavaleiros, marca criada nos anos 60 do século passado, consagrando a investida da empresa bairradina na região do Dão, surgem agora totalmente renovados, impondo, na rotulagem, um maior sentido histórico e arquitetónico, onde o monumento representativo – Porta dos Cavaleiros, como uma das medievais portas da cidade de Viseu – ganha um maior rigor e sentido iconográfico. Nos vinhos, a tradição mantém-se. As Caves adquirem os melhores lotes de tintos e brancos produzidos no Dão e, à maneira antiga, procedem à sua “afinação”, lançando-os no mercado. As duas propostas apresentadas foram o Porta dos Cavaleiros tinto 2022, e o Porta dos Cavaleiros Reserva Especial branco, este uma categoria rara no Dão, apenas ao alcance dos vinhos que se destacam em enorme qualidade na câmara de provadores.

Crescer, solidificar mercados, impor-se como marca de prestígio, aumentar área de vinha e ser um verdadeiro referencial da Bairrada do futuro. Este é o caminho que as Caves São João tão bem está a trilhar para este segundo século de vida que se segue.

Nota: O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico.

(Artigo publicado na edição de Setembro de 2024)

QUANTA TERRA VOLTA A SER DESTINO TURÍSTICO DE VINHO A NÃO PERDER EM 2025

Quanta Terra

Verona, em Itália, aplaudiu a atribuição do prémio “Best of Wine Tourism 2025” ao espaço Quanta Terra, dos enólogos Celso Pereira e Jorge Alves, situada na região do Douro Vinhateiro, que, pela segunda vez (a primeira foi 2023), voltou a ser reconhecida pelo seu potencial na categoria de “Arte e Cultura”, entre mais de 640 […]

Verona, em Itália, aplaudiu a atribuição do prémio “Best of Wine Tourism 2025” ao espaço Quanta Terra, dos enólogos Celso Pereira e Jorge Alves, situada na região do Douro Vinhateiro, que, pela segunda vez (a primeira foi 2023), voltou a ser reconhecida pelo seu potencial na categoria de “Arte e Cultura”, entre mais de 640 candidaturas. “Esta distinção, atribuída por especialistas internacionais, enaltece, naturalmente, o impacto da nossa marca no desenvolvimento do enoturismo e da região. Se, por um lado, nos envaidece, por outro também aumenta o nosso sentido de responsabilidade e a vontade incessante de continuar a fazer mais, e cada vez melhor”, destacam os fundadores, que em 2022, com uma exposição de Joana Vasconcelos e a presença da artista, inauguraram o Espaço Quanta Terra, “num formato fora da caixa”, que mistura a arte com as barricas, onde estagiam os vinhos e as antigas cubas de armazenamento de aguardente.

A marca que celebra 25 anos este ano, tem feito deste local, um projecto de recuperação da antiga destilaria da Casa do Douro assinado pelo arquitecto Carlos Santelmo, um espaço de arte e cultura, em comunhão com os vinhos Quanta Terra. Este ano a Quanta Terra surpreendeu com a inauguração de uma exposição com curadoria da plataforma cultural Underdogs, que inclui uma conceituada obra de Vhils.
A mostra pode ser visitada no espaço da marca, em Alijó, de quarta-feira a domingo, entre as 10h00 e as 17h30, até ao próximo dia 15 de Dezembro. A visita inclui uma prova de vinhos.

Importa referir que os prémios “Best of Wine Tourism” são promovidos pela plataforma Great Wine Capitals em onze das mais prestigiadas regiões vitivinícolas do mundo. Portugal é representado pelo Porto, com candidatos de um cluster das regiões Douro/Porto e Vinhos Verdes.
A categoria arte e cultura deste galardão distingue as adegas enquanto espaços culturais e artísticos de relevo, na forma de exposições temporárias ou permanentes, coleções de arte, museus ou eventos específicos.

Vale da Mata: O vinho da minha terra

Vale da Mata

Começo pelo óbvio. Eu sou das Cortes. Nasci ali há 56 anos e dali saí com 17 para estudar em Lisboa, onde passei a viver. A casa dos meus pais era em frente à Adega Cooperativa, onde na minha meninice passava horas a ver os tractores com atrelados carregados de uvas à espera de vez […]

Começo pelo óbvio. Eu sou das Cortes. Nasci ali há 56 anos e dali saí com 17 para estudar em Lisboa, onde passei a viver. A casa dos meus pais era em frente à Adega Cooperativa, onde na minha meninice passava horas a ver os tractores com atrelados carregados de uvas à espera de vez para as entregar. A fila ocupava a rua toda, e o processo prolongava-se noite adentro. Já maiorzito, tinha autorização para ir lá ver o que acontecia. Tudo muito industrial, um guindaste que pegava nas tinas de ferro e as despejava para um tegão onde um sem-fim as transportava para um buraco obscuro. Dali se fazia um vinho tinto que chegou a ter algum destaque, principalmente quando a colheita de 1980 conquistou um prémio nacional. Ainda tive a sorte de provar essa colheita, que era realmente bem boa.
As Cortes é uma aldeia (antes freguesia) pequena perto de Leiria. Demasiado perto talvez, uns 5km subindo o rio Lis, ficando assim entre Leiria e Fátima. A proximidade de certa forma impediu a aldeia de crescer, porque os filhos e netos dos habitantes facilmente saíam para Leiria ou outras cidades, mantendo a população estável, mas reduzida. Há alguma pequena indústria, alguma agricultura, muito baseada na fertilidade da várzea do Lis. Hortas e pomares, principalmente. As vinhas, de subsistência, ficavam situadas nas encostas, e originavam tradicionalmente vinhos pouco interessantes, acídulos e ligeiros. Mesmo assim, entre as freguesias locais, os vinhos tinham alguma fama, e não raras vezes no estrangeiro, falando com algum conterrâneo, logo me perguntavam se não tinha “vinho das Cortes.” Não, não tinha. Com terrenos férteis, castas predominantes Tinta Roriz, Baga e Castelão, e uma bem disseminada ignorância sobre enologia, o resultado era fraquito. Apesar disso, foram-se instalando empresas de vinhos ali perto, sendo a mais famosa as Caves Vidigal, que tem vinhos de várias origens, mas suponho que poucas uvas serão locais. Muito perto também fica a Quinta da Serradinha, pioneira de vinhos biológicos e agora estrela cintilante no universo alternativo dos vinhos alternativos. Um dia ainda tentarei escrever essa outra história.
A Adega Cooperativa reclamou várias vidas nos seus processos de elaboração de vinhos, com inúmeros acidentes fatais que muito incomodam a memória de uma aldeia pequena. Foi fazendo o seu negócio de vinho engarrafado em garrafa e muito em garrafão “palhinhas”, até que um dia tomou a decisão de fechar, e parece-me que não se perdeu muito. As instalações, muito centrais na aldeia, ao pé da famosa nora que é o seu ex-libris, foram até demolidas.

Uma nova vida

Este era o panorama do vinho das Cortes. Era, porque um dia chegou a Catarina Vieira com o seu pai, o saudoso Eng. José Ribeiro Vieira, e tudo mudou. As Cortes passaram a ter um novo vinho, chamado Vale da Mata. Foi lançada em 2010 a primeira colheita, de 2007. Podem imaginar a minha surpresa. O Eng. Vieira era um homem especial, um cidadão extremamente influente nas Cortes. Lembro-me dele desde a minha infância. Homem com uma presença incrível, irradiava segurança e humanidade. Empreendedor, criou negócios em vários sectores, incluindo o cultural, com uma livraria muito activa em eventos, e um jornal diário, o Jornal de Leiria. Para o mundo dos vinhos, interessa a compra da Herdade do Rocim, em 2000, 100ha na Vidigueira, desenhada para ser gerida pela filha, a enóloga Catarina Vieira.
Para a nossa história de hoje, temos de voltar atrás, e procurar os caminhos dos afectos. Catarina desde muito tenra idade passava muitos dias com os avós. O seu avô, Manuel Alves Vieira, levava as netas a passear nos campos, e explicava que das suas vinhas do Vale da Mata vinha o melhor vinho que fazia. Catarina teve aí o primeiro contacto com o que haveria de ser a sua vocação.

Estudou enologia no ISA, onde foi aluna de Amândio Cruz, mais tarde, desde 2003, consultor nos seus projectos de viticultura. Estagiou ainda em Itália, o que foi importante para estimular a sua veia experimentadora e de descoberta.
A sensibilidade e humanidade do pai Eng. Vieira levou-o a comprar para Manuel uma série de pequenos talhões de onde vem hoje o vinho Vale da Mata. Não é exactamente o talhão original. Quando neste princípio do Verão aceitei o convite para visitar os 4 hectares de vinhas nas encostas do Lis entre as Fontes e o Pé da Serra, a minha mãe ficou a espreitar da janela, nos Lourais, tentando sem sucesso mostrar aos meus filhos onde eu estava. A minha mãe, portanto, lembra-se do Vale da Mata original, mais chegado à Senhora do Monte, ao Pé da Serra. Hoje a vinha está mais abaixo, foi plantada em 2006 e o avô Manuel ainda se pôde orgulhar muito dos seus frutos, até ao seu falecimento em 2014. O avô Manuel é que deu nome ao vinho, em memória das suas velhas vinhas ali perto.

O vinho das Cortes, portanto, ressuscitou, e esta influência espalhou-se pelo resto da aldeia. Catarina conta que as pessoas das Cortes lhe telefonam, pedem conselhos e ajuda, vão plantando vinhas e elas vêem-se ali em volta, bonitas e bem cuidadas. As Cortes são conhecidas na região por serem um bom destino gastronómico, com vários restaurantes e tasquinhas tradicionais. O Vale da Mata começou a espalhar-se também por esta via, tornando-se o vinho local que se ligava à cultura gastronómica local. Um prazer sempre, encontrar vinhos do sítio onde se está, uma coisa rara poucas vezes apreciada em Portugal, onde apesar de tudo é frequente. Nas Cortes não é, e os locais orgulham-se hoje de terem o seu vinho, e os visitantes valorizam esse prazer.

Vinho e arte

Como cortesense, logo me enchi de orgulho do Vale da Mata, e passei a consumi-lo com regularidade. Acompanhei o seu progresso, e foi todo impante que visitei a vinha com Catarina Vieira e Pedro Ribeiro, o casal de enólogos do Rocim, e Amândio Cruz, consultor do projecto. Explicaram-nos as circunstâncias da vinha e seu terroir, e como lidar com as suas especificidades. Virada a Sul, protegida por serras e bem drenada para evitar excesso de humidade, está plantada com 3ha de Aragonez e Touriga Nacional e 1ha de Arinto, Vital e Viosinho. Decorre neste momento uma experiência de poda radical no princípio do Verão, deitando tudo abaixo incluindo cachos. Chama-se “crop-forcing”. Na Vidigueira são 1,5ha, aqui apenas uma linha com cerca de 100 cepas. Esta poda mega-precoce faz com que a vinha faça um “reset”, recomeçando tardiamente o ciclo e fazendo amadurecer as uvas nos meses onde o maior calor já passou. A expectativa é obter vinhos menos alcóolicos e com maior acidez natural, fintando assim os efeitos do aquecimento global. Vamos esperar para ver!

Entretanto, visitámos o Espaço Serra, mais uma criação de mecenato cultural do Eng. Vieira. Uma casa que ganhou o seu nome, onde são recebidos artistas de várias artes para em comum e com liberdade explorarem os seus vários misteres e mistérios. Para se ver a dimensão ambiciosa do projecto, bastaria dizer que os Silence4 começaram aqui os seus ensaios, há cerca de 30 anos. A casa e espaços circundantes ficam no lugar de Reixida (os cortesenses pronunciam “Arraxida”), onde era antes uma muito poluente fábrica de curtumes. Melhor assim, que foi numa curva do Lis que aprendi a nadar. Sabe-se lá o que aqueles químicos me fizeram… Hoje há espaço para residências artísticas, ateliers, estúdios, pequenos stands de valências diversas, como artes plásticas, cerâmica (cf. Cartolina Limão), construção de guitarras (fascinante trabalho do luthier Miguel Bernardo, um poeta das madeiras), música. Dão apoio a novas bandas, escolas, etc. Há ainda parcerias com outras entidades, como a Casota Collective, presidida por Miguel Ferrás, e ligada à música, por exemplo o festival Nascentes, nas Fontes (lugar onde nasce o Lis). Interessados, basta procurar o site na internet e enviar candidatura.

Já vai longo este desabafo, vão-me perdoar. O almoço servido por Alexandre Silva mostrou mais uma vez a sua sensibilidade para uma cozinha elegante e rigorosa, e a ligação com os vinhos estava perfeita. Provámos colheitas antigas e recentes, mostrando que o vinho suporta bem a prova do tempo. É coisa rara provar vinho das Cortes, e eu não tinha a noção do bem que estes vinhos se mostram passados 15 ou mais anos. Para mim, sempre vinho das Cortes, e não o Regional Lisboa que ostenta no rótulo e sempre me causou estranheza, sendo eu das Cortes, tão longe de Lisboa, e vivendo em Lisboa há quase 40 anos. Até porque a região tem a sua Denominação de Origem, Encostas de Aire. Lisboa para mim é outro sítio, as Cortes é a minha terra.

(Artigo publicado na edição de Setembro de 2024)

Van Zellers & Co: Os velhos Porto de Cristiano

Van Zellers & Co

Uma apresentação feita por Cristiano tem sempre um carácter especial. É que o apresentador – que parece ter nascido com a qualidade rara de saber prender a atenção da plateia – pertence àquele grupo de pessoas que tem a árvore genealógica da família na cabeça e debita nomes de primos que casaram com trisavós e […]

Uma apresentação feita por Cristiano tem sempre um carácter especial. É que o apresentador – que parece ter nascido com a qualidade rara de saber prender a atenção da plateia – pertence àquele grupo de pessoas que tem a árvore genealógica da família na cabeça e debita nomes de primos que casaram com trisavós e tetravós que já eram Cristianos e que deram origem a Guedes, a Roquettes e várias outras famílias que ainda hoje identificamos como estando associadas ao vinho e, em especial, ao vinho do Porto. É difícil seguir o raciocínio, mas a coisa resulta curiosa, desde que não se acredite que, não fora os van Zeller, e o vinho do Porto não existiria!!!

Especiais e raras

O motivo da apresentação prendeu-se com colocação no mercado de vinhos do Porto muito velhos. Esta é uma tendência que vem ocorrendo no sector de desde há mais de uma década: valorizar os vinhos muito velhos, vendê-los caros como merecem e, no caso das edições realmente especiais e raras, criar uma embalagem que dignifique o produto. Foi tudo isso que a família van Zeller fez e, no caso dos três vinhos do Porto do século XIX, com o apoio dos artesãos que tão bem trabalham a prata, como a Leitão & Irmão, cuja oficina e trabalho extraordinário tivemos a rara felicidade de poder conhecer in loco. Ali ficámos a conhecer maquinaria que deve ter muitas décadas e que continua em uso, e artesãos que precisam de 10 anos de trabalho para ascenderem à categoria de Mestre. Uma trabalheira! Foi ali que foram feitas as gargantilhas das garrafas.

Por sua vez, estas foram feitas à mão, um trabalho já raro dos vidreiros da Atlantis. O resultado são embalagens magníficas que enobrecem os vinhos que contêm, melhorados pelo trabalho de design criado por Rita Rivotti. Provámos todos e, claro, não há escala para os classificar porque a escala que usamos na Grandes Escolhas termina em 20. Mas se terminasse em 100 ou 200, a dificuldade era a mesma. Os três vinhos são vendidos em conjunto, numa caixa extremamente cuidada e são disponibilizados pelo valor de €22000. Para já são 75 conjuntos, sendo que uma já foi leiloada no ano passado, em Londres, e o valor foi destinado para a fundação Gerard Basset. São vinhos difíceis de datar por não haver registos, ainda que se pense que correspondem a Porto de 1860, 1870 e 1888. Aqui começaram as dúvidas da família: o que é que lhes vamos chamar, como é que os vamos vender, o que se pode fazer para reforçar a qualidade e fama dos portos velhos?

Para encontrar um momento comemorativo, Cristiano e Francisca procuraram, quer na história de Portugal quer na mundial, factos que pudessem ser associados àquelas datas. Chegaram assim a três momentos que identificam os vinhos: 1860 – Crafted by Liberty – ano da eleição de Abraham Lincoln; 1870 – Crafted by Family – ano do casamento dos trisavós de Cristiano e 1888 – Crafted by Poetry – ano do nascimento de Fernando Pessoa. Os outros vinhos – Colheitas em branco e tinto – vêm todos com a indicação Crafted by Time. Quando são lançados Vintages e LBV (que já estão no mercado e foram objecto de anterior apresentação) trazem a indicação Crafted by Nature.

Stock mínimo

A Van Zeller & Co. é, agora, depois da reorganização de 2017, um negociante, com stock mínimo. No caso dos vinhos do Porto antigos, cujas notas de prova apresentamos de seguida, a empresa dispõe de um stock de 35000 litros, adquiridos quer à Casa do Douro, onde continua a existir um enorme stock de vinhos, quer a lavradores, sobretudo do Baixo Corgo, a sub-região onde continua a ser possível encontrar vinhos velhos. Estes vinhos estão conservados em inox, recipiente óptimo para estes néctares antigos, porque não há evaporação e os vinhos não perdem álcool.
Em termos de modelo de negócio, os vinhos DOC Douro representam metade da facturação da empresa. Como nos disse Cristiano, “o vinho do Porto ganha protagonismo com os vinhos velhos.

Numa época de diminuição de consumo, o sector tem de apontar para as gamas altas e não apenas para os vinhos de entrada.” A empresa vai lançar agora os Reservas – White, Ruby e Tawny e um Crusted – um Porto que resulta de um lote de vários anos de Vintage, por norma dois ou três. Cristiano afirma que o sector apenas produz 4000 caixas de 12 garrafas deste tipo de Porto. A apresentação decorreu nas instalações dos Joalheiros em Lisboa, no Chiado. Local mais do que apropriado.

(Artigo publicado na edição de Setembro 2024)

A Sucessão de António Saramago

António Saramago

A vida de António Saramago, enquanto enólogo, – as regiões por onde passou, as experiências que adquiriu, as técnicas que desenvolveu – dava para escrever um livro. Mas não teve tempo para isto, pois estava sempre ocupado a produzir vinho, com grande entrega e paixão. Começou a trabalhar em 1962, quando foi admitido na José […]

A vida de António Saramago, enquanto enólogo, – as regiões por onde passou, as experiências que adquiriu, as técnicas que desenvolveu – dava para escrever um livro. Mas não teve tempo para isto, pois estava sempre ocupado a produzir vinho, com grande entrega e paixão.
Começou a trabalhar em 1962, quando foi admitido na José Maria da Fonseca. Na altura tinha apenas 14 anos. Mais tarde estudou enologia em Bordéus e é num dos enólogos mais antigos de Portugal. A partir dos anos 80 fazia consultadoria enológica em várias regiões do nosso país e foi responsável por alguns dos vinhos bem aclamados, como o Terras do Suão ou Tapada de Coelheiros, já sem falar no seu trabalho diário integrado na equipa de enologia de José Maria da Fonseca.

“Há um vinho que todos bem conhecem, mas o meu nome não está lá. Estava sempre escondido” – explica António Saramago. Sempre discreto, procurando rigor no seu trabalho, nunca perseguiu a fama. “A visibilidade, para mim, existe quando as pessoas provam os meus vinhos e dizem que são bons”, diz o enólogo com um ar calmo, mas convicto.

 

Outra convicção profissional consiste na dedicação. Estar presente, para António Saramago, é imprescindível, mesmo que isso implique viagens e deslocações. “Não faço vinhos por telefone. E, na vindima, estou sempre na adega, sejam sábados, domingos ou feriados.”
A discrição na postura não impediu que a ambição, vinda da alma, levasse à criação do seu próprio projecto. Com 40 anos de experiência, fundou, em 2002, a empresa familiar, com a sua esposa e filhos, a António Saramago Vinhos. “Queria fazer vinhos que tivessem o meu cunho e o meu nome no rótulo.” E sempre se manteve fiel ao seu estilo, assente na concentração, estrutura, estágios prolongados e uso de boas barricas.

Reconhece que os tempos podem mudar, mas nunca deixou que modas e tendências lhe desvirtuassem o caminho. “As regiões não podem ser estanques, nem os produtores, mas têm de ter uma identidade. Eu sou conhecido pelo quê?”, pergunta, deixando uma pausa no ar porque a resposta é óbvia, o estilo e o carácter dos vinhos de António Saramago são evidentes.

Por muitos vinhos que tenha feito em Portugal e no sul de Brasil, onde também tem trabalhado desde há 14 anos, o seu nome estará sempre ligado à casta Castelão. E nesta prova tivemos o privilégio de reviver alguns dos seus vinhos emblemáticos.

António Saramago

O enólogo, fundou, em 2002, já com 40 anos de experiência, a empresa familiar com a sua esposa e filhos, a António Saramago Vinhos.

 

Castelão e não só

O António Saramago Superior 2016 é proveniente de uma vinha muito antiga, não regada. Cada cepa traz dois a três cachos muito concentrados. Passou 18 meses em barrica nova e dois anos em garrafa. Hoje em dia é raro um produtor esperar pelo vinho. Tem fruta macerada e ervas aromáticas esmagadas, especiaria abundante, leve farmácia e notas balsâmicas e compotadas, para além de vegetal seco. Boca compacta, tanino apertado e bem presente, projectando, no palato, pó de mostarda, pimenta preta, louro, café e notas de soja.
A seguir foi o 2013, em magnum, da mesma vinha, mas de um ano mais quente. Ambiente de fruta escura, muito concentração no nariz, vegetal quase a lembrar pimenta verde. Bonito nesta sua austeridade, com muito estilo e carácter a revelar cerejas, amoras, mentolado e balsâmico, sous bois e musgo. Envolvente, logo no início agarra bem com tanino. Certa rusticidade não escondida dá-lhe carácter.
O AS 2015 é a segunda edição (depois do 2009). Provém de uma vinha jovem com muita potência. Lote com Touriga Nacional, Alicante Bouschet e um pouco de Cabernet Sauvignon. Muita especiaria no nariz, chocolate negro, balsâmico, eucalipto e alfarroba. Mastigável, tanino potente e muito aveludado na textura. Boca ampla, menos rugoso do que os Castelão puros. Final especiado e longo.
Estes vinhos já foram provados pela Grandes Escolhas em alturas diferentes e as respectivas notas de prova podem ser consultadas no site ou na aplicação. O momento alto da prova foi claramente o Sucessão Reserva Especial 2014.

António Saramago

 

“Tenho 76 anos. Não me considero velho, mas quando caminhamos para uma certa idade, pensamos noutras coisas da vida. A minha mãe morreu sem conhecer os netos. Eu tenho a felicidade de ter quatro: António, Maria, Filipe e Guilherme”, disse com ternura na voz.

É aos netos que quer dedicar o seu tempo a partir de agora e a eles dedicou o seu grande vinho, que foi pensado já há muito tempo e lançado só agora. “Para mim este é um dos melhores vinhos que bebi na minha vida” – resume sem falsas modéstias.

Feito de Castelão e Alicante Bouschet dos solos arenosos da Península de Setúbal, teve estágio prolongado, de 72 meses, em barricas de carvalho francês e mais 24 meses em garrafa. Foram produzidas apenas 900 unidades.
A seguir foi também apresentado o Moscatel Roxo de Setúbal 10 Anos que estagiou em barricas recuperadas do vinho tinto. Foi tudo raspado, mas não queimado para não conferir tosta ao vinho. Foram produzidas apenas 1000 garrafas. E, por fim, apetece citar António Saramago a declarar que “vinho é das melhores coisas que a natureza nos deu”. Quem dirá o contrário, depois de uma prova destas?

(Artigo publicado na edição de Setembro de 2024)