Kabuki: Um restaurante japonês com sotaque português

Kabuki

Já tinha lá ido algumas vezes, sempre em contexto profissional e a impressão geral foi  de franco agrado, tanto pelas propostas gastronómicas como pelo serviço de vinhos exemplar. É um daqueles sítios que guardamos na nossa bucket list para visitar mais tarde e com calma. Notícias recentes tinham anunciando a saída quase simultânea do chefe […]

Já tinha lá ido algumas vezes, sempre em contexto profissional e a impressão geral foi  de franco agrado, tanto pelas propostas gastronómicas como pelo serviço de vinhos exemplar. É um daqueles sítios que guardamos na nossa bucket list para visitar mais tarde e com calma. Notícias recentes tinham anunciando a saída quase simultânea do chefe Paulo Alves e do sommelier Filipe Wang e fizeram-me hesitar. Será que… Por isso, foi com um misto de curiosidade e de dúvida metódica que aceitei o convite para visitar, de novo, o belo espaço que se acolhe naquelas que foram as Galerias Ritz, de saudosas memórias. E ainda bem que o fiz. Recebeu-me Vitor Jardim, director do restaurante desde a sua abertura, e, afinal, a garantia de continuidade do conceito e do padrão da qualidade.

A minha visita começou no bar, que também serve alguns petiscos e fica no piso intermédio dos três que compõem o espaço, onde, com mestria e criatividade, o barista Telmo Santos tem vindo a desenvolver novos cocktails (com e sem álcool),  dos quais tive a oportunidade de provar dois. Comum a todos eles é a base das bebidas japonesas, a que este profissional acrescenta sabores e aromas frutados e plenos de frescura. Fiquei fã, devo confessar. Depois desta introdução descemos para a sala de jantar, um espaço cativante e acolhedor dominado por uma barra para oito comensais, por detrás da qual um impressivo mural origina um contraste entre a exuberância das cores e as linhas sóbrias da restante decoração. Naquela noite fui informado que o novo chefe, Sebastião Coutinho, não estava, o que, por um lado, me privou de o conhecer e de trocar algumas impressões com ele mas, por outro, me ajudou a tirar a prova dos nove.

Observar um restaurante estrelado sem o chefe executivo presente é, muitas vezes, a receita certa para uma refeição decepcionante. Não foi de todo o caso e isso afinal só abona em favor de uma equipa competente e bem lubrificada. O menu Kabuki que experimentei  (125€ com seis momentos) começa de uma forma misteriosa com a apresentação de uma bento box, uma caixa negra lacada, aberta à frente do cliente, que contém seis aperitivos tão sugestivos à vista como deliciosos. Seguiu-se salmonete e algas, irrepreensível de frescura e delicadeza, para continuarmos com um Akami Caviar, em que o atum foi tratado à sua mais alta expressão. A influência portuguesa foi bem visível no “À Bulhão Pato”, o prato seguinte, onde o lírio,  as amêijoas e o molho se casaram de forma harmoniosa. O prato seguinte, barriga de atum, ovas e raspa de atum foi, para mim, o menos conseguido. Mas isso não desilustrou uma refeição que, no seu conjunto, esteve em grande nível. O serviço de vinhos, agora da responsabilidade do sommelier Miguel Ribeiro, apresentou propostas acertadas de harmonização, que passaram por um espumante de Monção e Melgaço, um branco Donzelinho do Douro, um Riesling da Alsácia e um saké servido a preceito. Está bem e recomenda-se o “novo” Kabuki que, com Sebastião Coutinho, levou a influência mediterrânea a um toque mais português.

Kabuki

 

Kabuki

Morada: Rua Castilho 77 B – Lisboa

Tel.: 212 491 683 / 935 010 535

Experience (1º piso) – Só almoços, de terça a sexta-feira das 12:30 às 15:00 horas

Bar Kikibari  (Piso intermédio) – Terça a sexta das 12:30 às 00:00 horas

Sala Principal (Piso de baixo) – Só jantares, de terça a sábado das 19:30 às 00:00 horas

 

Harmonias: Delícias (muito) doces disponíveis para casar

Harmonias

Tarte de maçã Deve ser o bolo que faço há mais tempo, desde que me comecei a aventurar de forma sistemática na cozinha. Representa, além disso, o produto culinário mais “dás-me a receita” de todos. Não sei que magia vêem as pessoas nas receitas, quando o que mais conta é a volta que se dá, […]

Tarte de maçã
Deve ser o bolo que faço há mais tempo, desde que me comecei a aventurar de forma sistemática na cozinha. Representa, além disso, o produto culinário mais “dás-me a receita” de todos. Não sei que magia vêem as pessoas nas receitas, quando o que mais conta é a volta que se dá, e tem mil variáveis. Agora toda a gente faz a receita da Bimby – que é boa e funciona – como se fosse um salvo conduto para apresentar perante os pares, em jeito de competição. Eu nunca fui competitivo quanto a culinária. É um total desperdício de tempo. Exceptuando a maravilhosa tarte de maçã em massa folhada que se fazia na incrível Machado, em Caldas da Rainha, trata-se de uma tarte com maçã laminada no topo e base massuda de composição variável. Após algumas investidas no assunto harmonização, aponto com alguma segurança o branco de curtimenta – vulgo orange – como campeão. A maçã está muito exposta e a fruta secundária e oxidativa do vinho adora brincar com ela. A melhor experiência foi com Avesso de Baião, corpo e conteúdo a mostrar muito boa adequação.

Pastel de nata
Se a vida dá muitas voltas, a história não faz sequer intervalos. Em 1834, como é sabido, foi decretada a extinção das ordens religiosas, seguindo-se a expropriação e expulsão de religiosos e religiosas. Nos Jerónimos, a pequena ventura que ali grassava e que era a venda dos pequenos pastéis de nata inspirados nos pastéis de leite da Infanta Dona Maria, tornou-se rapidamente sustento da comunidade monástica. Em 1837 viria a nascer a Real Fábrica dos Pastéis de Belém, aproximadamente no mesmo local onde a encontramos hoje. Aspectos técnicos e um concurso de contornos difusos impedem-me de opinar sobre se serão ou não verazes e conforme a receita de então. Mas certo é que se trata de um bolo que perdurou até aos nossos dias. Representa hoje um ícone da diáspora portuguesa em todo o mundo. Sendo a massa folhada da taça que suporta a custarda feita com manteiga e levada a mais de 380ºC, o resultado tem destino marcado com um moscatel de Setúbal com mais de vinte anos. Copioso em açúcar e com uma acidez pronunciada, consegue a um tempo corte e harmonia. Madeira Malvasia poderá ser também hipótese a considerar.

Pão de ló
O pão de ló é um caso muito sério e, tal como o pastel de nata, o original, o primeiro de todos, perde-se nas brumas do tempo. As variantes hoje já incluem o de chocolate e quase todos levam doce ovos ou outra espécie de recheio. O meu padrão é aquele sobre o qual me debruço e é seco, fofo e foi feito em forno de lenha, exactamente como o de Margaride. De receita secular, configura standard forte do grande “sponge cake” português. Desde muito novo é o meu favorito, e com os anos fui fazendo experiências de harmonização com vinho e outras bebidas. Antes de avançar para a maridagem, há que identificar alguns aspectos determinantes para a bondade da ligação entre vinho e comida. O forno de lenha confere complexidade ao bolo pelas notas fumadas e de caruma seca que introduz, e os ovos fazem-se sentir. Além disso, existe um fundo de manteiga neste e na maioria das variantes da receita, o que lhe dá um gosto especial. Não hesito em recomendar a ligação com um estreme novo da casta Chardonnay, pelo património de pastelaria e notas amanteigadas que a casta oferece. Comece as suas experiências com vinhos pouco elaborados e depois vá “complicando”. Esperam-no anos de boas surpresas.

Duchesse
Também conhecido entre nós como duchese, é um bolo que está na linha do famoso Paris-Brest e consta de massa choux recheada com chantilly, decorado com maior ou menor intensidade com fios de ovos. Nas pastelarias tradicionais tem invejável procura e são raros os apreciadores que não os coloquem no topo das suas preferências. Tem tudo para ser comido à mão mas, na verdade, é mais indicado para comer com um garfo, pelos imprevistos que podem surgir. Confesso que é dos bolos que mais me intriga pela popularidade. Os portugueses não são muito dados a lanchar longamente numa pastelaria e vejo muitas vezes um duchese ao lado de um expresso, tanto na mesa como ao balcão. Curiosamente, o café é belíssima companhia, pelo óbvio contraste de texturas e pelo equilíbrio da doçura com os amargos do café. Excelente fica também com um rosé estruturado da região dos vinhos verdes ou de outra região que lhe garanta mineralidade e frescura. A minha melhor experiência aconteceu há pouco tempo, com o transmontano Valle Pradinhos, um rosé pronto para muitos desafios e o duchese é um deles.

Macarron
Estamos na zona da alta pastelaria quando falamos destas delícias de duas metades e recheios diversos. Tudo o que pensava saber sobre o assunto, com experiências diversas em pastelarias famosas pela Europa fora, fui forçado a rever com severidade quando conheci a Marbela, em Esposende. O grande chef pasteleiro Rui Costa tem ali o seu quartel e é de uma criatividade a toda a prova. Passar uma manhã com ele é uma grande instrução, pois trabalha com a maior naturalidade as soluções mais complexas que se possa imaginar e os macarrons são de antologia. Conheci-o há cerca de 15 anos e nunca mais perdi o contacto. Inesquecível a vez em que o assunto foi macarrons. Comparei com muitos outros e os dele tinham duas particularidades: duração e sabor. A massa de amêndoa de que as metades são feitas bate, em resultados, todas as outras e no seu caso coloca o recheio e aromáticos em primeiro plano sempre com crocância irrepreensível. Um Colheita Tardia do Tejo – do Casal Branco – faz uma ligação maravilhosa.

Pudim do Abade de Priscos
Começo pelo detalhe do presunto que, segundo a receita original, tem de ser “gordo, do de Chaves”. O dito presunto difere de todos os outros pelo facto de ser curado enguitado e não pendurado, ficando por isso com gordura entremeada mais rica e forte. Cinquenta gramas dessa gordura é tudo o que o pudim exige, além de 15 gemas de ovo, 500 gramas de açúcar amarelo, vidrado de um limão, pau de canela, um cálice de vinho do Porto e a arte culinária para o fazer na forma perfeita. A proteína animal é determinante e tem o incrível efeito temperador e integrador dos restantes ingredientes. É surpreendente a força e, ao mesmo tempo, a sublimidade do pudim. Quem o provou bem feito nunca mais esquece a experiência feliz. Experimentei com vários tipos de vinho do Porto e a minha preferência vai para o branco velho, o mesmo que gosto de utilizar para fazer o pudim. A ligação é sublime e a recombinação de sabores e aromas é surpreendente à medida que vamos explorando a sobremesa. Apesar de ser tido como altamente calórico, quando é bem feito fica equilibrado e aprecia-se-lhe o recorte elegante, sem excessos.

Harmonias

Pavlova de morango
A pavlova nasceu na Nova Zelândia há cerca de cem anos, criação do chef pasteleiro do hotel onde ficou hospedada a bailarina russa Ana Pavlova. Em jeito de homenagem à sua leveza, como se perfumasse o ar que graciosamente agitava ao dançar, assim nasceu esta sobremesa, hoje replicada no mundo inteiro e declinada das mais diversas formas. A estrutura merengada de suspiro, associada a frutos frescos, foi a imagem que surgiu na mente do chef de que nunca saberemos o nome. Sobretudo quando a canícula se faz sentir, a dicotomia doce-fruta tem um efeito particularmente refrescante. O suspiro e o morango reagem bem um com o outro e quase se podia dizer que uma outra sobremesa se cria no palato. O resultado é surpreendente pela forte textura sentida. Por outro lado, a acidez dos morangos pronuncia-se e pede complemento copioso. A harmonização correcta passa por um rosé igualmente copioso. Das diversas experiências feitas, a mais clara e acertada foi com o rosé da Quinta do Monte d’Oiro, produzido a partir de uvas da casta Syrah. Equilíbrio perfeito, aniquilação recíproca.

Crista de galo
Os livros de receitas dos conventos estão repletos de notas e mão de obra de pessoas que estavam em funções durante o dia e de tarde e de noite estavam em suas casas. São por isso repositórios de conhecimentos, detalhes e saberes que viviam tanto fora como dentro do complexo monacal. O corolário bom desta itinerância foi a secularização crescente do receituário, o que é em si mesmo já uma explicação para a disseminação rápida das delícias fora de portas. A Casa Lapão em Vila Real tem uma longa história e tem origem no convento de Santa Clara de Vila Real. No início do séc. XX, Miquelina Cramez, amassadeira, casa com Francisco Delfim, de alcunha Lapão por ser atarracado e bochechudo como os naturais da Lapónia. Criaram juntos a padaria Lapão. A costureira que os visitava tinha uma irmã no convento e, extinto este, conservou os segredos da doçaria que ali se praticava. Miquelina dedica-se desde logo à produção das verdadeiras Cristas de Galo e outras delícias que ainda hoje se fazem. A ferramenta com que se cortam tem mais de duzentos anos, e o melhor vinho para as comer é um bom moscatel de Favaios. Excelente acidez e perfil único, especialmente os que a Adega de Favaios está a fazer.

Marron glacé
Pode parecer capricho, mas não é. Somos terra de soutos, o mesmo é dizer de castanheiros e até tonéis e pipas para fazer e armazenar vinho outrora se faziam em castanho. A castanha é, além disso, primordial na nossa alimentação. Há que não esquecer que a batata é assunto recente no Velho Mundo. Tanto assim é que muitos pratos da grande tradição são ainda acompanhados por castanha e batata no mesmo tacho. O marron glacé – castanha glaceada – é a maior homenagem que se pode fazer a essa pérola antiga e ainda continua a ser francamente popular em França e até se vende em caixas como se de bombons se tratasse. Por cá a história é mais tímida, mas não é por isso que deixo de lhe fazer as loas. Há que escolher a variedade certa. É importante que tenham dureza e corpo para aguentar a cozedura ligeira e o tratamento posterior. Nunca consegui fazer de forma satisfatória, mas conheço mãos que as fazem com a maior naturalidade. Podem levar vários banhos em calda de açúcar, em dias sucessivos e o resultado é sublime. Maridagem competente oferece o abafado Five Years da Quinta da Alorna. Impossível comer apenas um.

Torrão real de Portalegre
O convento de São Bernardo em Portalegre foi fundado no início do séc. XVI, pelo Bispo da Guarda, para albergar “jovens sem dote” mas de muita virtude. Desenvolveu-se ali muito receituário, algum ainda por desbravar mesmo após a conversão em monumento nacional, em 1910, e com os livros de receitas devidamente salvaguardados. Conheci Ana Tomás numa hora feliz em pleno estúdio da RTP. Ela havia sido contemplada com um prémio pelo desempenho com os rebuçados de ovo de Portalegre, autêntico trabalho de chinês que aparentemente conseguia fazer na perfeição às centenas. Conheci melhor o seu trabalho em encontros diversos e dei com o seu torrão real, autêntica obra de arte, resultado do talento e de muito estudo e experimentação. Gemas, natas, amêndoa e açúcar estão no coração do torrão real de Portalegre e são vários os que tentam a sorte na produção do dito, mas o melhor para mim permanece o que sai das mãos de Ana Tomás. Pede harmonização valente e viril, e confirma toda a sua glória com um vinho Madeira Bual de 40 Anos.

Manjar branco
Termino o elenco doceiro à procura de casamento feliz com a delícia mais delicada: manjar branco. Juntamente com outra doçaria típica de Portalegre, não leva ovos e a história funde-se com a prática secular da mantença sustentável. O nome não podia estar mais correcto, pois é feito a partir de galinha e respectivo caldo, portanto sobras de cozinhados que em vez de ir para o lixo ganham glória e atingem pináculos de sabor. Entre os ingredientes estão ainda arroz ou farinha de arroz, leite e açúcar. As aparas de galinha são brevemente cozidas para depois se passar por água fria e desfiar fininho. Em lume muito brando, leva-se tudo a cozer mexendo sempre e quando começa a engrossar apaga-se o lume e continua a mexer-se até arrefecer. Coloca-se e serve-se em tacinhas esta maravilha e na hora de servir polvilha-se com açúcar. A versão mais feliz desta receita foi-me proporcionada pela mãe do chef José Júlio Vintém, de enorme talento culinário. Um doce feito a partir de proteína animal que nos leva ao céu. Como ligação vínica, proponho um Arinto de Portalegre com mais de três anos.

(Artigo publicado na edição de Julho de 2024)

Quinta do Carvalhido: Um projecto de família

Quinta do Carvalhido

O lugar, um vale rodeado de montanhas onde sulca o rio Tua perto de Abreiro, é encantador. É isso que se sente quando se observa a paisagem a partir da sala e da varanda da casa principal da família proprietária da Quinta do Carvalhido, parcialmente voltada para jusante do curso de água e para as […]

O lugar, um vale rodeado de montanhas onde sulca o rio Tua perto de Abreiro, é encantador. É isso que se sente quando se observa a paisagem a partir da sala e da varanda da casa principal da família proprietária da Quinta do Carvalhido, parcialmente voltada para jusante do curso de água e para as colinas de encostas, plantadas sobretudo com vinha e oliveiras e cobertas de mato. Fica longe, muito longe mesmo, a mais de quatro horas da capital, mas sabe bem estar ali, bem longe dos ruídos e da balbúrdia dos grandes centros urbanos. Terá sido certamente esta uma das razões que levaram Maria de Fátima Mendonça e Moura e o seu marido, Pedro Drummond Borges, a decidir investir na sua recuperação, quando a primeira recebeu a propriedade em herança da família, que é da região, em 2013.
“Nessa altura eu e a minha mulher fomos muito claros com os nossos filhos, quando lhes dissemos que queríamos investir nela, mas avançámos com a concordância de todos”, conta Pedro Drummond Borges, homem de negócios com vários franchisings da McDonalds desde 1997. Conta que, na altura, não tinha nenhum conhecimento de agricultura, mas como toda a sua vida tinha sido movida pela sua curiosidade em aprender, e pelo espírito empresarial que leva à construção de coisas, decidiu envolver-se na recuperação da propriedade, que tinha inicialmente 20 hectares, dos quais 5,4 de vinha e três de olival.
Os trabalhos começaram pela parte agrícola da quinta, com o apoio do viticólogo José Miguel Telles, que fez um projecto com tudo o que teria de ser feito para tentar recuperar algumas vinhas velhas e reconverter outras, que foi sendo desenvolvido entre 2014 e 2017. Neste último ano começaram a reconversão das vinhas, já com o apoio do consultor de enologia, Francisco Baptista. “Quando falei com ele, fui muito claro”, conta Pedro, dizendo que lhe comunicou que estava muito interessado em entrar no mundo dos vinhos, desde que conseguisse estar na parte superior da qualidade. “Nessa altura nem tinha grande quantidade de uva, pois tinha de cumprir o benefício legal de Vinho do Porto e sobrava pouca área de vinha para produzir vinhos DOC Douro”, conta.

Quinta do Carvalhido
O lugar, um vale rodeado de montanhas onde sulca o rio Tua, é encantador.

As primeiras experiências
A primeira experiência de produção de vinhos decorreu com uvas da colheita de 2017. Resultou num tinto produzido com as castas Touriga Nacional e Touriga Franca, engarrafado em 2019. Foram 1500 garrafas, as mesmas das duas colheitas seguintes, feitas sobretudo para procurar perceber se o perfil e a qualidade dos vinhos se mantinham ao longo dos anos. No final desse tempo, a equipa chegou à conclusão que estava preparada para dar o salto em termos comerciais, porque a qualidade vinho estava no segmento alto, aquele que tinha sido pré-determinado para o negócio da Quinta do Carvalhido.
Os vinhos das três primeiras colheitas tinham sido vendidos com facilidade, “o que não era difícil, porque a quantidade era muito pequena”, comenta Pedro Drummond Borges. Então foi necessário repensar a forma de a empresa e os seus vinhos estarem no mercado, já que isso implicavam novos investimentos, que avançaram, de novo, após decisão familiar.
Entretanto foi lançado um branco Quinta do Carvalhido, de 2021, e foi introduzida uma gama Colheita, de entrada, com a marca Carvalhido, lançada a partir de 2022, que inclui um branco, um rosé e um tinto. “Foi mais uma forma de despertarmos a atenção do mercado para a nossa marca”. E foi assim que a produção passou das 1500 garrafas nos primeiros três anos para as seis mil, em 2022 e 10 mil, no ano passado.
Em 2023, foi criada mais uma marca, para se posicionar entre a referência de topo e a de base, a Quinta do Carvalhido Concrete, cujos vinhos foram os primeiros a ser feitos na adega da quinta, um branco, um rosé e um tinto que estagiam em cubas de cimento. “Considerámos que o mercado estava com apetência para este tipo de vinhos e achámos que era uma boa forma de criar alguma diferenciação em relação ao que já estava a ser feito, embora outros produtores já tenham elaborado vinhos desta forma”, explica Pedro Borges. Diz, depois, que a sua empresa entrou agora em fase de amadurecimento, já que as três gamas lhe permitirão mostrar os vinhos que faz, e trabalhar para alcançar o reconhecimento do mercado.

Quinta do Carvalhido

 

Em 2023 foi criada a marca Quinta do Carvalhido Concrete, com vinhos estagiados em cubas de cimento.

 

Imagem e comunicação
“Temos tido o cuidado de explicar aquilo que estamos a fazer a todas as pessoas com que vamos interagindo, na distribuição, nas garrafeiras e na restauração e fizemos investimentos que considerámos importantes na selecção dos formatos e na rotulagem das garrafas”, explica Tiago Drummond Borges, filho de Pedro e “chief operating officer” da Quinta do Carvalhido, acrescentando que tudo é cuidado para realçar o posicionamento alto da marca. “É onde queremos que ela seja reconhecida e é para esse tipo de consumidores que queremos falar”, defende. “Claro que isso depende também do nosso trabalho de aproximação ao mercado”, salienta o pai. Para de investimento em comunicação, construíram um site e estão a implementar uma rede de distribuição em Portugal.
“Optámos por ter distribuidores pequenos, mais focados nas marcas que têm, por região do país, para ir trabalhando com eles com uma proximidade maior, de forma a percebermos como é que o mercado vai respondendo aos nossos produtos”, conta Tiago, acrescentando que foi assim que fecharam o Algarve, Porto, Leiria e Coimbra, e Lisboa com mais dificuldade. “É um mercado muito competitivo, onde se vendem 60-70% dos vinhos em Portugal”, explica, acrescentando que se foi apercebendo, com as apresentações que foi fazendo nas empresas de distribuição da capital, “que estas estão muito mais preocupadas com o preços do que as outras, devido à concorrência, o que fez com que este processo na capital levasse mais tempo”, conta Tiago, acrescentando que hoje têm o país praticamente coberto.
A Quinta do Carvalhido deverá vender 15 mil garrafas em 2024, uma evolução contida e assente com os “pés no chão”. “Não podemos ser demasiado ambiciosos, porque não temos capacidade ainda para responder a grandes aumentos de procura”, defende Pedro Drummond Borges. “Com a agência de comunicação, o site e as empresas que nos tratam das redes sociais, temos ido pé ante pé a todas as áreas, para criar curiosidade em relação à nossa casa e às nossas marcas”, conta o gestor, salientando que o objectivo, para o futuro, “daqui a dois a três anos”, é dar o salto e partir para outros voos, como a exportação. “Mas é, para mim, muito importante, ter um negócio sustentável em Portugal, antes de ir para fora”, diz. “Tenho de ter o mínimo de reconhecimento antes de avançar nesse sentido”, afirma.

Vinha e olival
Hoje a empresa tem 16 hectares de vinha, dos quais 13 hectares integram a propriedade principal, a que se juntam mais três situados na Verdeana, a 10 quilómetros da Quinta do Carvalhido. O encepamento é sobretudo de tintas, das castas Touriga Nacional, a Touriga Franca e a Tinta Roriz. A percentagem de uva branca ainda é pouco elevada, e são plantações mais recentes, apesar de Pedro Drummond Borges querer plantar mais quatro hectares nas zonas mais altas da propriedade, numa área que vai ser reconvertida. O seu objectivo é chegar aos 22/23 hectares de vinha, porque acredita que vai ter sucesso com a venda dos seus vinhos e tem de ter capacidade de resposta, em termos de produção, ao acréscimo das solicitações do mercado.
No início, a área de olival tinha apenas três hectares. Mas hoje já cresceu, por força de aquisição de parcelas vizinhas, para os 10, o que obrigou pai e filho a pensar em criar mais uma linha de negócio, a do azeite. “Vou fazer, aqui, exactamente o que fiz com o vinho, ou seja, estudar, planear e procurar conhecer e perceber, até ter a certeza de que o meu azeite tem a qualidade necessária que permita fazer investimento de mercado”, diz Pedro, acrescentando que, a jusante da produção, também fará o mesmo que fez com o vinho, começando por escolher a garrafa e quem faz os rótulos. “A nossa experiência com o vinho pode ajudar-nos bastante com este caminho”, defende.

(Artigo publicado na edição de Julho de 2024)

CAZAS NOVAS: A virar a região do Avesso

Cazas Novas

A região dos Vinhos Verdes apresenta uma longa e curiosa história. Muito longe vão os britânicos tempos em que os elegantes vinhos tintos, de cor aberta, eram embarcados a partir da foz do rio Lima, em Viana do Castelo, rumo a longínquas paragens. Mais tarde, esses mesmos tintos evoluíram para colorações bem mais fechadas e […]

A região dos Vinhos Verdes apresenta uma longa e curiosa história. Muito longe vão os britânicos tempos em que os elegantes vinhos tintos, de cor aberta, eram embarcados a partir da foz do rio Lima, em Viana do Castelo, rumo a longínquas paragens. Mais tarde, esses mesmos tintos evoluíram para colorações bem mais fechadas e retintas, servidos em alvas malgas capazes de estabelecer uma melhor ligação com a característica gastronomia tradicional minhota.
Esses novos tintos “de pintar a malga”, mais ao gosto das gentes do Minho, não receberam a mesma aceitação fora da região e o seu consumo ficou mais limitado às zonas de produção. Ainda assim, com a lenta passagem do tempo, alguns produtores ganharam elevada reputação e a procura os seus vinhos era grande, sendo transacionados por quantias bem interessantes, na época.
Na década de sessenta, a tradição começou a ganhar outras colorações. As produções de vinho branco começaram a aumentar anualmente e com elas iniciou-se uma reconquista de novos mercados. Ainda assim, a produção declarada de vinho branco, nesta época, oscilou entre os duzentos e cinquenta mil e os quinhentos mil hectolitros, enquanto a dos tintos chegou a ultrapassar os dois milhões de hectolitros. A mudança estava em curso.
Vinte anos mais tarde, o prolífico e reputado agrónomo Amândio Galhano escreveu sobre a enorme reestruturação das vinhas da região e apontava para a escolha das castas brancas, como a Trajadura e a Loureiro, em detrimento das tintas, Vinhão e Brancelho. A preferência pelas primeiras estava em linha com a procura dos mercados urbanos e internacionais por vinhos com características mais acídulas e frutadas.
No início da década de noventa assistiu-se a uma verdadeira revolução, os vinhos brancos ultrapassariam, pela primeira vez na história da região, a produção dos tintos. No final desse mesmo decénio, a produção declarada de tintos representou apenas 40% do total.
No seguimento desta radical mudança assistiu-se a uma curiosa especialização e alinhamento em função dos principais vales que abraçavam os rios da região. A norte, o vale do rio Minho continuou a especializar-se na casta nobre de elevado potencial enológico, a Alvarinho. No vale do rio Lima e zonas adjacentes a Braga, Penafiel e Lousada dedicaram-se mais especificamente às castas Loureiro, Pedernã (Arinto) e Trajadura. No extremo sul da região pontifica um imponente e extraordinário rio ibérico, o Douro. Nas suas margens que integram a região sub-região de Baião predominam a Azal e a Avesso.
No ano de 2022 a revolução encontra-se absolutamente normalizada: segundo dados da CVR dos Vinhos Verdes, a comercialização dos vinhos tintos cifrou-se em apenas 4% do total.

Cazas Novas

Baião, Avesso e Cazas Novas
A sub-região de Baião é uma das nove sub-regiões dos Vinhos Verdes e localiza-se no extremo sul, na fronteira com a região do Douro. Integra os concelhos de Baião e parte dos concelhos de Resende e Cinfães. Neste território encontram-se os solos mais pobres da região que, aliados ao clima muito quente no verão e mais frio e seco no inverno, são perfeitos para a evolução da casta Avesso, conhecida pela necessidade de calor para o desenvolvimento da sua maturação tardia. Em função do tempo de colheita, as uvas da casta podem demonstrar atributos de expressão aromática, acidez, frescura e concentração, revelando potencial enológico para vinhos com capacidade de envelhecimento.
O veículo em que nos deslocámos para conhecer o projecto Cazas Novas já conhecia a longa montanha russa e o lânguido serpentear da Serra do Marão e da Estrada Nacional 101, entre a saída da A4 e o vale do rio Douro. Os muitos quilómetros percorridos nos dois sentidos desta estrada já desgastaram muitas vezes os calços de travões, pneus e a caixa de velocidades de muitos visitantes, quase sempre com as vinhas da região do Douro como destino. No entanto, desta vez o destino seria um pouco mais a jusante do que o costume.
À espera, na localidade de Mínguas, próxima de Santa Marinha do Zêzere, em pleno vale do Douro, estava Vasco Magalhães, um dos quatro sócios e responsável pelo departamento de marketing e vendas do projeto Cazas Novas.
Cunha Coutinho, outro associado e principal impulsionador do projecto vitivinícola Cazas Novas, assume-se como um empreendedor com investimentos em diferentes áreas de negócio, mas tem procurado manter a ligação ao que verdadeiramente o apaixona, a terra. A enologia está a cargo de Diogo Lopes, uma personalidade da nova geração de profissionais que se encontra igualmente envolvido em outros projectos no Alentejo, Douro, Lisboa e Açores. Por fim, o mais recente sócio da parceria, André Miranda, que aporta toda a sua experiência enquanto produtor na terra onde nasceu, mais precisamente na região dos Vinhos Verdes.
O projecto Cazas Novas, criado em 2008, tem o seu centro nevrálgico na Quinta de Guimarães, património da família Cunha Coutinho há sete gerações, referiu Vasco Magalhães. Esta propriedade, juntamente com a Quinta das Cazas Novas e ainda duas outras debruçadas sobre o Douro, a Quinta do Adro e Quinta das Tias, agregam um património florestal e agrícola superior a 100 hectares, dos quais 24 são dedicados exclusivamente à viticultura da casta Avesso.

O Avesso domina
Esta é a maior área dedicada ao encepamento desta casta branca portuguesa, revela Vasco Magalhães, um verdadeiro tesouro concentrado num local considerado como de excelência para a expressão desta variedade tão exclusiva. O seu nome é ele próprio um enigma, sugerindo uma ideia de aversão ou hostilidade a algo. A casta não está entre as mais produtivas e, é um facto, fora do seu terroir de excelência, a viticultura não é fácil. Também por aí se define a sua exclusividade.
Vasco não tem dúvidas de que esta zona de transição entre os Vinhos Verdes e o Douro, e já com o rio como influência, com vinhas de encosta em solos de granito que enfrentam amplitudes térmicas elevadas, origina vinhos únicos, sem paralelo em qualquer outra região, que se caracterizam pela sua frescura, mineralidade e potencial de evolução. É o território da Avesso, casta que a Cazas Novas pretende guindar ao patamar de excelência e reconhecimento que a Alvarinho e a Loureiro já alcançaram.
O primeiro vinho engarrafado surgiu em 2008, Cazas Novas colheita, com a curiosa soma de 3333 garrafas. A partir de 2011, já com o apoio do enólogo Diogo Lopes e de Vasco Magalhães, desencadeou-se o estudo da casta Avesso e a base para o atual projecto vitivinícola. Este desenvolvimento motivou a introdução no mercado de duas novas referências: o Cazas Novas Pure e o Cazas Novas Origem.
Anualmente, as três referências que compõem o projecto perfazem cerca de trinta mil garrafas, sendo vinte e duas mil do Cazas Novas colheita, seis mil do Cazas Novas Pure e duas mil da referência topo de gama, Cazas Novas Origem.
Os resultados, são desde já, muitíssimo prometedores. E num futuro mais ou menos próximo será muito interessante perceber até que ponto o projecto Cazas Novas está, de facto, a mudar a percepção dos vinhos desta casta, dentro e fora da região.

(Artigo publicado na edição de Julho de 2024)

Ilha de Santa Maria: O renascimento de uma paisagem vinhateira única

Ilha de Santa Maria

Não é difícil a alguém apaixonar-se pela paisagem de vinhas da Ilha de Santa Maria, nos Açores. Esta primeira visita, que decorreu num tempo especial para a ilha e as suas pessoas, quando foram apresentados publicamente os sua primeiros vinhos, lançados depois de muitos anos em que a sua produção chegou praticamente a zero, foi […]

Não é difícil a alguém apaixonar-se pela paisagem de vinhas da Ilha de Santa Maria, nos Açores. Esta primeira visita, que decorreu num tempo especial para a ilha e as suas pessoas, quando foram apresentados publicamente os sua primeiros vinhos, lançados depois de muitos anos em que a sua produção chegou praticamente a zero, foi surpreendentemente positiva.
A vitivinicultura faz parte da história da ilha desde o seu povoamento, há mais de 500 anos. Inicialmente o Verdelho era a casta mais abundante e a produção de uva e vinho destinava-se ao autoconsumo, para subsistência dos seus habitantes. “Foi, também, a forma de aproveitar os terrenos marginais de encosta da ilha”, conta Duarte Moreira, presidente da Agromariensecoop – Cooperativa de Produtos Agro-Pecuários da Ilha de Santa Maria.
Segundo Rui Andrade, 44 anos, vogal na direcção da Agromariensecoop, e um estudioso da história da viticultura da ilha, “os primeiros povoadores trouxeram com eles vinho, com certeza, porque é uma bebida enraizada na cultura e tradições portuguesas”. Conta, também, que está comprovado que a estrutura das vinhas actuais já existiam há mais de 400 anos e que a sua produção era já significativa, servindo provavelmente também para abastecer os barcos que aportavam na costa da Ilha de Santa Maria onde ficava a capital dos Açores nessa época, porque era nela onde estava o capitão donatário de todas elas. A actividade vitivinícola da época é atestada pelos diversos lagares rupestres da ilha, escavados na rocha.

Ilha de Santa Maria

 

Quem é Duarte Moreira?

Natural da Ilha de Santa Maria, Duarte Moreira, 58 anos, é o presidente da Agromariensecoop. Descendente de uma família de agricultores, cresceu no mundo rural até frequentar Universidade dos Açores na Ilha Terceira, onde se licenciou em Engenharia Zootécnica. Regressou depois à sua ilha natal para integrar o serviço de Desenvolvimento Agrário secretaria da Agricultura dos Açores. Em 1996 passou a chefe de Divisão do serviço, onde esteve até 2008, sempre ligado à parte técnica e bovinicultura de carne, em conjunto com a gestão do serviço. Entretanto geriu também a empresa de família, a Quinta das Quatro Canadas, com o irmão, que se dedica à bovinicultura de carne, que vendeu há cinco. Desde 2008 é o presidente da Agromariensecoop, cuja actividade inclui, entre outros, o abate de bovinos de carne, a transformação de produtos locais em doces e compotas, principalmente de meloa, que é certificada, mas também de mel e, agora, a produção de vinho.

 

 

Trabalho duro
A descoberta da história da produção vitivinícola da ilha até ao seu quase desaparecimento, cerca dos anos sessenta do século passado, devido sobretudo a condições sociais e económicas, é aliciante. O trabalho na vinha era e ainda é duro, hercúleo e certamente penoso devido às dificuldades de acesso aos currais de encosta onde se desenvolvem as vinhas, à baixa produtividade de cada pé, em cada curraleta, ao seu difícil maneio, vindima e transporte das uvas colhidas, ladeira abaixo, para serem transportadas depois, muitas vezes de barco até Vila do Porto, porque não até meados do século passado não havia outra forma de o fazer, devido à dificuldade de acesso por terra.
A produção de vinho chegou a ser enviada para outras ilhas do arquipélago, o continente e outros países há alguns séculos. Mas o aparecimento de pragas como a filoxera e doenças como o míldio e o oídio originaram o desaparecimento das variedades de videira europeia no final do século 19, princípio de 20, e a sua substituição por produtores directos vindos do continente americano, como o Isabella e o Jacquez, “que produziam tanto que as pessoas se esqueceram da videira europeia”, conta Duarte Moreira. Entretanto, como o vinho de cheiro de Santa Maria tinha qualidade e a produção era excedentária, era vendido também para S. Miguel para ser misturado com o desta ilha, “para lhe dar mais cor e grau”. Mas esse negócio foi decaindo no século passado até que, em meados dos anos 60, o vinho passou a ser feito apenas por algumas habitantes da ilha para autoconsumo e a ter má qualidade. “Era intragável”, afirma Duarte Moreira. Com o tempo, as pessoas desaprenderam de tratar das vinhas, de fazer o vinho e perdeu-se o conhecimento tradicional.

Ilha de Santa Maria

 

Projecto de recuperação
Em 2021, a Agromariensecoop foi desafiada a integrar o projecto de recuperação da paisagem vitivinícola da Ilha de Santa Maria, com o objectivo de criar condições para receber as uvas, transformá-las e produzir vinhos. Depois de algum tempo de estudo, o projecto de investigação e desenvolvimento em meio empresarial Santa Maria Wine Lab, que teve início em 2022, com cubas pequenas e material apenas para investigação e experimentação, deu origem aos vinhos apresentados publicamente agora, que foram produzidos sob a responsabilidade do enólogo residente da cooperativa, João Letras. “O projecto também serviu para transmitir conhecimento aos viticultores porque, sem eles, não podia ser desenvolvido”, explica Duarte Moreira, acrescentando que o pagamento das uvas é feito de forma a envolvê-los na produção de vinhos da ilha e incentivá-los a empenhar-se na recuperação da sua paisagem vitivinícola ancestral, que se estava a perder. “O objectivo, para a além de ter mais um produto que contribua para a economia da ilha, é tentar recuperar uma paisagem que inclui um património histórico edificado único, feito por gerações com um esforço heróico, que faz parte da cultura da ilha e poderá gerar também mais valias a nível do enoturismo, com visitas às vinhas e à adega, onde poderão provar o vinho produzir a partir das vinhas das encostas das ilha”, explica Duarte Moreira, acrescentando que o negócio do vinho também pode ser interessante para a cooperativa, por aportar mais um sector de produção ao seu negócio, diversificando fontes de receita essenciais à economia de num meio tão pequeno como o da ilha.
Actualmente estão envolvidos no projecto mais de 30 viticultores, mas o potencial é superior. Só nas baias da Maia e de S. Lourenço, as duas paisagens protegidas da vinha na ilha, há cerca de 80 hectares de vinha e, no total da ilha, falando apenas nas baías tradicionais, cerca de 120 hectares. A produção média por hectare actual anda no quilo de uva por pé, para as castas nobres. Mas poderá crescer com uma viticultura mais profissional. Hoje é o enólogo João Letras que faz o acompanhamento no campo, mas a cooperativa pretende contratar mais um engenheiro agrónomo ou agrícola para apoiar os viticultores. “É fundamental essa ajuda, porque as pessoas deixaram de fazer o maneio da vinha que esteve praticamente abandonada e precisam de reaprender”, defende Duarte Moreira, acrescentando que têm sido já desenvolvidas acções de formação com técnicos da ilha e de fora.
Uma das grandes dificuldades ao desenvolvimento deste projecto é a mão de obra, já que é extremamente difícil trabalhar nas vinhas das baías de Santa Maria, e a sua mecanização ainda está longe de ser alcançada, apesar de o desenvolvimento da tecnologia ser constante e já haver a hipótese de utilizar drones para tratamentos fitossanitários. Mas como as vinhas precisam de mão de obra e na ilha não há capacidade de resposta, “provavelmente terá de ser recrutada mão de obra noutras origens”, como já acontece em Portugal Continental.

 

Vinhos com personalidade
Desde o início do processo de recuperação do património e da tradição vitivinícola de Santa Maria, todo o projecto de desenvolvimento do Santa Maria Wine Lab, para a transformação das primeiras uvas, estudo dos vinhos produzidos e lançamento dos primeiros três vinhos certificados, um branco de uvas tintas, um monocasta de Verdelho, desde sempre a casta mais tradicional da ilha, e um rosé feito com base em quatro castas tintas, todos frescos e elegantes, delicados, com o perfil mineral e alguma salinidade comum aos vinhos de outras ilhas açorianas, por vezes com alguma pederneira mas também com fruta delicada, mostram que o trabalho feito de recuperação dos vinhedos tradicionais da ilha, alcantilados em currais em algumas das suas encostas viradas para o Oceano Atlântico, até agora resultou e teve sucesso. Mas ainda há muito a fazer para recuperar as suas vinhas tradicionais, cerca de 120 hectares, plantando mais área, para produzir um maior volume de uvas e garantir o fornecimento anual de vinhos, para que a ilha consiga responder às solicitações futuras dos mercados, que irão surgir em relação aos vinhos de Santa Maria.
Para já, a Agromariensecoop, que tomou em mãos o projecto e o seu desenvolvimento, com o apoio do Governo Regional Açoriano, tem envolvido agricultores incentivando-os a produzir uvas, quando muitos tinham deixado de o fazer, para depois as transformar em vinho com o apoio de João Letras. Alentejano chegado há pouco mais de um ano à ilha, está muito empenhado no conhecimento das suas tradições vitivinícolas ancestrais e no desenvolvimento deste projecto. O seu principal desafio, desde que iniciou o projecto tem sido a viticultura, porque as vinhas ficam em declive e são de acesso difícil, é preciso ensinar e garantir que todas as operações de maneio da vinha são feitas, e ainda há problemas climáticos como a salga, que decorre quando os ventos que sopram do mar transportam e depositam água salgada sobre as plantas, o que pode originar a perda de produção se não chover nas 24 horas seguintes. Já “a produção de vinho é simples: é mostrar aquilo que a uva tem”, explica, de forma clara e simples, João Letras.

Ilha de Santa MariaQuem é João Letras?

Com 31 anos, o enólogo da Agromariensecoop licenciado em Bioquímica e mestre em Viticultura e Enologia pela Universidade de Évora, fez também uma pós-graduação em Segurança Alimentar na sua Faculdade de Medicina Veterinária para complementar as áreas de viticultura e enologia. Fez vários estágios de vindima, onde passou pela Herdade das Mouras, Casa Relvas, Dona Maria e Fundação Abreu Calado, onde se iniciou como enólogo residente antes de se mudar para a Herdade da Comporta, onde trabalhou três anos antes de surgir o desafio do projecto das vinhas e vinhos de Santa Maria, que quis abraçar. Diz que decidiu mudar, porque achou que estava com a idade certa para abraçar o desafio de produzir vinhos atlânticos, que sempre tinha tido vontade de fazer e porque a vitivinicultura da Ilha de Santa Maria era um “diamante em bruto” que podia moldar à sua maneira.

 

Novo roteiro de enoturismo
Para já, o enólogo, tem usado os seus conhecimentos de viticultura e enologia para produzir vinhos com qualidade, distintos, a expressar não só as características das ilhas, mas também um terroir que é realmente único, por incluir uma paisagem moldada por mãos humanas ao longo de séculos, nas encostas da ilha de Santa Maria. Pelo menos pela mostra dos vinhos lançados quando lá estive, durante uma festa que decorreu na presença do secretário Regional da Agricultura dos Açores, António Ventura e de algumas dezenas de pessoas mais, envolvidos no projeto, ou não, no Ponta Negra, o único restaurante da Baía de S. Lourenço, uma daquelas onde o património vitícola já se encontra em franca recuperação, em conjunto com a da Maia.
A Ilha de Santa Maria produz sobretudo bovinos de carne para venda em vivo ou em carcaça, tem a sua produção de mel certificada, tal como a sua meloa e um queijo de ovelha de pasta semimole que vale mesmo a pena experimentar. Bom peixe, restaurantes que sabem preparar comida bem cozinhada, e para todas as carteiras, diversos caminhos pedestres marcados para quem gosta de caminhar são algumas das ofertas de uma ilha que prepara agora a sua oferta de enoturismo, já que o futuro está já ali, a acrescentar às rotas de natureza de terra e mar já existentes, que incluem a observação de cetáceos e jamantas, entre outros.
“Estamos a desenvolver, já para este verão, um projecto de roteiro turístico que irá envolver as empresas locais que desenvolvem este tipo de ofertas, com visita à adega e prova de vinhos e uma pequena prova complementar de enchidos e queijos da ilha de Santa Maria”, conta Duarte Moreira. Uma primeira rota, ainda em projecto para ser concretizado, deverá contribuir para aumentar o afluxo de turistas a Santa Maria e juntar o útil, a produção de vinhos de qualidade, para assegurar o pagamento das uvas aos agricultores e remunerá-los da forma adequada, ao agradável que é o aumento de receitas da ilha, com a futura venda dos seus vinhos, também nos mercados externos, e do aumento das receitas com os turistas que irão, a partir de agora, visitar também a ilha motivados pelo seu património vitícola e pela qualidade dos seus vinhos.

Ilha de Santa Maria

(Artigo publicado na edição de Julho de 2024)

Nova era na Quinta do Sampayo

Quinta do Sampayo

Ora a “Hospedeira Casa do Sr. L.S.” a que Almeida Garrett se refere, nas suas “Viagens na Minha Terra” é precisamente a Casa de Luíz Sampayo (L.S.), aquando da sua visita à quinta, em Julho de 1843. De facto, as raízes históricas da Quinta do Sampayo remontam a 1718, existindo registos históricos de produção de […]

Ora a “Hospedeira Casa do Sr. L.S.” a que Almeida Garrett se refere, nas suas “Viagens na Minha Terra” é precisamente a Casa de Luíz Sampayo (L.S.), aquando da sua visita à quinta, em Julho de 1843. De facto, as raízes históricas da Quinta do Sampayo remontam a 1718, existindo registos históricos de produção de vinho desde essa data.
Em Junho de 1860, D. Pedro V atribui o título de I Visconde do Cartaxo a Luiz Teixeira de Sampayo, conservando a actividade vinícola na Quinta do Sampayo, havendo, inclusive, registos do vinho já nessa altura ser engarrafado e rotulado sob a insígnia dos Viscondes do Cartaxo.
A Quinta do Sampayo é propriedade do Grupo Agroseber desde 1995. Localiza-se no concelho do Cartaxo, na União das Freguesias do Cartaxo e de Vale da Pinta, a menos de uma hora de Lisboa. O passado dia 23 de maio de 2024 marcou o início de uma nova era para a Quinta do Sampayo.
Ana Macedo – e restante equipa – apresentou, perante uma vasta plateia de convidados, todas as novidades da Quinta, honrando-se o passado e as suas memórias, mas brindando-se à mudança, ao futuro e, sobretudo, a novos princípios! Segundo Ana Macedo, filha de José Macedo (responsável maior pela grande transformação da Quinta), que assumiu desde Novembro de 2022 a decisão de reerguer a Quinta do Sampayo, após 10 anos de estagnação: “Voltar à Quinta do Sampayo significa honrar a visão do meu Pai e, de alguma forma, continuá-la, à luz da minha própria visão do que a Quinta pode ser, da marca que pode deixar na região e nos vinhos produzidos. É uma honra receber-vos hoje. A nova era da Quinta do Sampayo começa hoje, neste momento tão importante e especial para nós”.
O plano passa, pois, por colocar a Quinta do Sampayo de volta ao mapa vínico nacional, bem como estabelecer-se como referência no panorama do enoturismo.

Quinta do Sampayo

 

Ana de Macedo assumiu a decisão de voltar a reerguer a quinta após 10 anos de estagnação.

Vinhos de excelência
Para o efeito conta com uma equipa composta por Marco Crespo, enólogo, Alberto Miranda, viticólogo, Renata Abreu, consultora comercial, bem como a chef Justa Nobre, responsável pela oferta gastronómica dos eventos.
Alberto Miranda revelou-nos que “a missão é ambiciosa: criar vinhos de excelência. Para isso, e desde que se tomou a decisão de retomar a produção de vinhos na Quinta do Sampayo, preservando a sua essência, apostámos numa nova abordagem: o RIR – Renovar, Inovar e Rejuvenescer.” Atentos às novas tecnologias, a novos métodos de produção, mas também às alterações climáticas e à sustentabilidade, a Quinta do Sampayo renovou equipamentos, apostou na diminuição da contaminação dos solos, promove activamente a biodiversidade, entre outras estratégias, que visam atingir os objetivos propostos.
Por seu turno, Marco Crespo, enólogo da Quinta do Sampayo partilhou que se pretende “um crescimento sustentável nas vinhas, que têm uma capacidade de produzir até 1 milhão de litros de vinho”. Ainda longe desses números, claro, Marco Crespo defende uma estratégia a longo prazo para que se aposte na qualidade dos vinhos produzidos e disponíveis no mercado, mas também na renovação do olival com uma idade média de 50 anos, que permitirá, mais tarde, num intervalo de 3 a 5 anos, avançar para a produção de azeite.
Renata Abreu, consultora comercial com historial e provas dadas em nomes importantes do panorama vínico português, definiu o posicionamento dos vinhos apresentados como pertencentes ao segmento médio. Serão distribuídos pelos canais tradicionais para posicionar e construir a marca, quer seja nos distribuidores regionais, canal HoReCa ou através do retalho especializado, permitindo assim um crescimento sustentado e de forma orgânica.
Foi ainda revelado que, o projecto de enoturismo avança, para já, sem alojamento, mas concentrado nas visitas à Quinta, provas de vinhos e eventos enogastronómicos corporativos e/ou privados. A Quinta do Sampayo dispõe de uma cozinha profissional, que contará com o selo de qualidade da chef Justa Nobre, e espaços próprios para a organização de eventos.
Uma menção especial é devida aos novos rótulos, que pretendendo traduzir a identidade da Quinta do Sampayo, conseguem transmitir uma dualidade visual bastante agradável, isto é, a casa principal da Quinta rodeada pelo tracejado dos campos das vinhas é, ao mesmo tempo uma impressão digital em tamanho gigante… precisamente a nova identidade da renovada Quinta do Sampayo!

(Artigo publicado na edição de Julho de 2024)

 

Quinta do Noval: Cada vez mais Douro, sem deixar o Porto

Quinta do Noval

Tal como muitas outras empresas da região, a Quinta do Noval começou por apenas produzir vinhos do Porto. Mas o apetite por vinhos DOC Douro levou a empresa, que hoje pertence à AXA Millésimes (Ch. Pichon Baron, Ch. Suduiraut, Ch. Pibran, entre outros) a interessar-se, inicialmente pelos tintos e mais recentemente pelos brancos. Foi assim […]

Tal como muitas outras empresas da região, a Quinta do Noval começou por apenas produzir vinhos do Porto. Mas o apetite por vinhos DOC Douro levou a empresa, que hoje pertence à AXA Millésimes (Ch. Pichon Baron, Ch. Suduiraut, Ch. Pibran, entre outros) a interessar-se, inicialmente pelos tintos e mais recentemente pelos brancos. Foi assim que começámos por conhecer uma primeira marca DOC Douro – Quinta do Noval – e logo de seguida uma segunda marca – Cedro do Noval – também ela inicialmente apenas tinto, mas agora muito forte também nos brancos. O interesse nos tintos estendeu-se também a vinhos varietais de castas portuguesas – Touriga Nacional e Tinto Cão – e de fora, como a Syrah, a Petit Verdot ou Cabernet Sauvignon. Mas a grande surpresa, como nos confessou Carlos Agrellos, que lidera a enologia da quinta “é a procura de brancos que nos vai levar a plantar mais área de vinha com castas brancas (e reenxertar outras), porque na quinta só temos 5,6 ha de uva branca. A procura estendeu-se também aos vinhos do Porto brancos, especialmente o Dry que está a crescer, ao contrário o Porto Lágrima (mais doce) cuja procura tem vindo a diminuir”. A Quinta do Noval tornou-se mundialmente conhecida pelos seus vinhos do Porto mas, reconhece Christian Seely, o CEO da empresa, “os tempos não correm de feição para os vinhos doces e mesmo em Sauternes, o Ch. Suduiraut está hoje a fazer mais vinhos secos do que doces com Botrytis (o clássico Sauternes); é triste dizer mas estamos agora a ganhar mais dinheiro com os brancos secos do que com os Sauternes!”
O Noval alargou a sua área com a inclusão da Quinta do Passadouro, adquirida em 2019, e cujas uvas podem entrar nos vinhos da quinta, considerada como é uma parcela do Noval. No entanto, do Passadouro continuaremos a ter quer vinhos DOC Douro quer vinhos do Porto.
Este momento foi aproveitado para dar a conhecer uma boa parte do portefólio da empresa. Juntaram-se aqui as novidades, com a forte aposta nos brancos, os vinhos da colecção Terroir Series e os novos vintages, todos da edição de 2022: Quinta do Passadouro, Quinta do Noval e Quinta do Noval Nacional.
Recordemo-nos que a empresa Quinta do Noval está intencionalmente fora da clássica dicotomia (desde sempre conotada com as empresas inglesas) entre Vintage Clássico e Vintage Single Quinta. A quinta do Noval tem declarado Vintage quase todos os anos, seja ou não o ano considerado como clássico por outros operadores. O ex-libris da casa continua, naturalmente, a ser o Vintage Quinta do Noval Nacional, um vinho original e raro, envolto numa aura de mistério que, na realidade, ninguém quer mesmo desvendar. É raro, faz-se em pequena quantidade e é muito caro. Neste ano de 2022 agora provado, não houve dúvidas: como a escala só tem até 20…não pudemos dar uma nota mais alta.

 

Quinta do Noval
O Noval alargou a sua área com a inclusão da Quinta do Passadouro, adquirida em 2019.

 

Seguem-se algumas indicações sobre a origem e vinificação dos vinhos provados:

Passadouro branco 2023 – prensagem cacho inteiro, solo de xisto; a casta Códega do Larinho entra aqui em 35%, é uma variedade pouco usada noutros vinhos, o que acontece também com a Fernão Pires e Gouveio.
Cedro do Noval branco 2023 – O lote inclui Códega do Larinho, Viosinho, Gouveio, Arinto e Rabigato. A Rabigato é uma casta tardia, tal como a Arinto e foram plantadas em zonas mais quentes para se poderem vindimar mais cedo; a Viosinho resiste muito bem à madeira nova não ficando muito marcada e por isso aqui esta casta fermenta em casco. As barricas estão sobre esferas para facilitar a bâtonnage sem abrir a barrica – durante um mês a bâtonnage é diária e depois passa a semanal – e decorrem sete meses desde a fermentação até ao engarrafamento. Neste vinho, em consequência da procura, a produção passou de 6.000 para quase 50.000 garrafas.
Cedro do Noval Reserva branco 2023 – Uvas compradas em Alijó. Aqui usa-se barrica da Borgonha e Bordéus para fermentar parte do mosto. Agrellos recorda que “sempre que o Viosinho se portar bem, como em 2023, teremos Cedro do Noval Reserva branco”. 14 500 garrafas produzidas
Quinta do Noval Reserva branco 2023 – Estas uvas vêm de uma vinha situada na cota mais alta da quinta; o mosto é 100% fermentado em barrica. Na totalidade, o vinho entre fermentação e estágio fica seis meses na madeira. Este branco é também a resposta à procura crescente de brancos secos, “a categoria que mais cresce no Douro”, diz Carlos Agrellos.
Passadouro Reserva tinto 2020 – Uvas desengaçadas e fermentação em cuba. Como nos recordou o enólogo: “este ano a Touriga Francesa foi muito precoce e ficou em passa logo no início da vindima, não se sabe porquê. A casta era a espinha dorsal do vinho e deixou de ser por causa disso. Já no caso das vinhas velhas, elas estão sempre bem, faça chuva ou faça sol”. O vinho esteve 12 meses em meias barricas, 90% novas.
Quinta do Noval Reserva tinto 2020 – Neste tinto Quinta do Noval, cerca de 40% dos encepamentos são Touriga Nacional e 9% são vinhas velhas. Este tinto, após fermentação em inox, esteve um ano em barricas de 225 litros, 40% novas e 60% de segundo ano.
Terroir Series Vinhas da Marka tinto 2020 – Esta é uma colecção especial; como nos informam “aqui mandam as vinhas velhas de castas misturadas, mas nada impede que possa haver um dia um vinho desta colecção que seja varietal, quer branco quer tinto, assim surja uma parcela especial”. Esta vinha foi plantada em 1930, tem um rendimento de 15 hl/ha. A exposição da vinha é curiosa: fica em frente à Vinha Maria Teresa (Quinta do Crasto) e apesar de ter orientação sul/poente, a meio da tarde deixa de ter sol directo, o que favorece a maturação mais lenta. Esta é a 2ª edição deste tinto. Feito em inox e estagiado em barrica (80% nova).
Terroir Series Vinhas do Passadouro tinto 2020 – Vinhas com orientação NW com 5500 pés por ha e uma produção de 12 hl/ha. O momento certo da vindima “é um feeling”, refere Agrellos. Este vem de uma parcela de menos de um hectare, plantada nos anos 30. Tem todas as castas das vinhas velhas antigas, aqui são cerca de 20. Desengaçado, fermenta em cubas troncocónicas, estagia um ano em meias barricas, 90% novas.

Quinta do Noval
A Quinta do Noval tornou-se mundialmente conhecida pelos seus vinhos do Porto.

 

Os Vintage, sempre
No caso dos vinhos do Porto, a empresa irá manter as marcas Passadouro e Quinta do Noval. Mas a marca Silval, que abandonaram em 2015, não voltará ser editada. Para a elaboração dos vinhos do Porto são adquiridos três a quatro lotes diferentes de aguardente e, depois, aqui fazem o lote conforme o tipo de Porto. Os Vintage agora apresentados foram de 2022, “um ano semelhante ao 2017, o mesmo calor e secura, mas os vinhos surpreenderam pela frescura apesar do calor”. Com muita regularidade têm também declarado o Noval Nacional: de 2017 a 2022 declararam todos os anos com a excepção do 2018 por causa da granizada de Maio.
Passadouro vintage 2022 – O ano 22 foi muito seco, choveu metade do que choveu em 2021. Ano seco – cachos pequenos – pouca produção – ano vintage! Esta é a sequência clássica. No entanto o classicismo choca com as alterações climáticas. “Já estávamos a fazer vinhos do Porto em finais de Agosto, não estes, mas isso é o reflexo do calor do ano”, refere o enólogo, acrescentando que “choveu a 12, 13 e 14 de Setembro, parámos a vindima e a recta final correu bem com boa maturação fenólica mas é preciso correr riscos”. Este Passadouro foi feito com pisa a pé nos lagares e estagiou 18 meses em toneis.
Quinta do Noval Vintage 2020 – O normal é começar a vindimar para Vintage em meados de Setembro e estender a vindima até Outubro. Este vintage corresponde a 6% da produção da quinta. “Seria possível fazer cinco vezes mais, mas não queremos aumentar”, afirma Christian Seely.
Quinta do Noval Nacional 2022 – A quinta tem viveiros de cepas da vinha do Nacional (uma pequena parcela em pé-franco) mas demoram vários anos a enraizar. Replantam 20 a 30 pés por ano. A vinha de pé franco demora 7 anos a dar os primeiros cachos; “fazemos uma autêntica jardinagem na vinha e na vindima pára tudo no dia x, dia em que se vindima tudo de seguida”. Pisado a pé num lagar pequeno e envelhece sempre no tonel antigo de carvalho e castanho com 2500 litros de capacidade.

(Artigo publicado na edição de Julho de 2024)

Adega Mayor: Do avô Rui à neta Rita

Adega Mayor

Quando se troca correspondência com alguém da Adega Mayor (e presumo que em todo o Grupo Nabeiro seja igual), recebemos sempre um mail de resposta e onde se lê no fim: Obrigado Sr. Rui, em letras grandes e negras para que não restem dúvidas de quem foi e continua a ser o inspirador do projecto. […]

Quando se troca correspondência com alguém da Adega Mayor (e presumo que em todo o Grupo Nabeiro seja igual), recebemos sempre um mail de resposta e onde se lê no fim: Obrigado Sr. Rui, em letras grandes e negras para que não restem dúvidas de quem foi e continua a ser o inspirador do projecto. Rui Nabeiro, que faleceu em 2023, foi a figura tutelar que sempre se notabilizou pela forma, muito especial, diga-se, como conduziu os negócios e como se relacionava com todos os trabalhadores, sempre de sorriso na cara. Conta-se que, quando tinha de vir a Lisboa de carro, nunca usava a auto-estrada, preferindo vir por estradas secundárias onde podia ir parando para falar com os seus clientes. A empresa editou mesmo um pequeno livro onde se lêem frases habitualmente ditas pelo Comendador e que nos ensinam que a vida é bem mais fácil de levar e mais agradável se formos generosos, simpáticos e amigos dos que connosco colaboram. Com demasiada frequência somos confrontados com gente que, como se conclui rapidamente, não leu, não sabe da existência e não está interessada na forma como Rui Nabeiro conduziu a vida e chegou a rico. É pena…
A Adega Mayor é um projecto de viticultura e enologia integrado no Grupo Nabeiro. Os vinhos geraram, em 2023, um volume de negócios de 7,39 milhões de euros, mas esse valor apenas representa uma pequena percentagem dos 500 milhões de facturação do grupo Nabeiro, no mesmo período. O vinho é, assim, um complemento pequeno de um projecto enorme que também inclui negócios na distribuição e imobiliário, entre outros.
A produção de vinhos iniciou-se antes da adega estar concluída e Paulo Laureano foi o primeiro enólogo responsável. As primeiras marcas a surgir foram Monte Mayor e Reserva do Comendador, em 2002. Hoje a Adega, dirigida por Rita Nabeiro (neta do fundador) tem 10 marcas no mercado, algumas delas com vários vinhos sob o mesmo chapéu, como é o caso dos monocasta. Um breve passeio pelas vinhas permitiu perceber a filosofia que está subjacente à faina vitícola. Francisco Pessoa dirige a equipa do campo e enquadra todo o trabalho agrícola numa visão de respeito pelo ambiente, pelos solos e pelo equilíbrio que é pretendido numa perspectiva de sustentabilidade. O caminho para uma certificação bio não é fácil e a própria vinha tem de se ir adaptando. E, neste processo, umas castas reagem melhor que outras. Por exemplo, foi uma luta tentar “domar” a casta Galego Dourado, muito famosa na região de Carcavelos e já utilizada em algumas outras regiões (como Setúbal, por exemplo). Francisco Pessoa confessa que, ao fim de alguns anos, conseguiram “finalmente perceber a casta e rentabilizá-la do ponto de vista enológico; mas foi uma luta!” Está a ser feita a zonagem e, em algumas parcelas, esse trabalho já está terminado, o que permite conhecer melhor a interacção casta/solo. A vinha, como se sabe, é empresa a céu aberto e as possibilidades do ciclo vegetativo correr mal são enormes, a começar nas doenças, as clássicas míldio e oídio, os insectos (cicadela, cochonilha) e as doenças do lenho, as que muitas dores de cabeça trazem aos lavradores e para as quais os argumentos de luta são fracos, como é o caso da esca (uma doença que ataca a cepa).

Adega Mayor
A adega desenhada por Siza Vieira foi inaugurada em 2007 mas a produção de vinhos começou em 2002.

Castas muito diversas
A vinha tem rega instalada, um instrumento que pode ser fundamental em épocas de alterações climáticas. Tudo se complica mais quando o objectivo é apontar para uma certificação bio, mas, o que tem acontecido de positivo, é que as próprias empresas de produtos para a agricultura estão a trabalhar em alternativas aos clássicos insecticidas e é provável que, a médio prazo, seja possível uma viticultura mais amiga do ambiente e eficaz. Desde 2015 que o Grupo Nabeiro integra o Programa de Sustentabilidade dos Vinhos do Alentejo e o tema é aqui levado muito a sério, com todos os resíduos da empresa a serem preparados para futura reciclagem ou transporte para fora da quinta por empresa certificada.
As dúvidas neste momento já não existem. Por aqui as fichas todas estão colocadas no Arinto e Verdelho nos brancos e na Touriga Nacional e Alicante Bouschet nos tintos. Mas há outras que se portam bem, como a Syrah (o factor da consistência de produção e qualidade é também aqui referido), mas também a Touriga Franca e a Petit Syrah, uma variedade que está aqui desde o início do projecto.
Menos surpreendente é ouvir dizer que a Trincadeira é uma casta muito caprichosa, uma opinião que percorre quase toda a região, capaz do melhor e do pior, dependente do clima, da rega, da gestão da canópia. Não é para a amadores, está bom de ver. O que é bom de ouvir é a afirmação de Rita Nabeiro que “vamos voltar em força à casta Castelão; para já temos quatro hectares, mas vamos aumentar a área, até porque ela gera vinhos que se enquadram melhor no panorama actual, que pede vinhos mais leves e menos concentrados; ora a Castelão tem isso tudo”.
Jogando com um conjunto de castas muito alargado, a colecção dos vinhos varietais vai estar sujeita à qualidade dos vinhos, colheita após colheita. Por aqui o que não faltam são castas que poderão originar vinhos varietais: Touriga Nacional, Verdelho, Pinot Noir, Viognier, Trincadeira, Alfrocheiro, Sangiovese, Viosinho, Gouveio, Moscatel Galego Roxo, Merlot e Arinto, a que há a acrescentar a Syrah, Petit Syrah, Aragonez, Castelão, Roupeiro, Antão Vaz, Sercial, Alvarinho, Cabernet Sauvignon, Pinot Gris e Alicante Bouschet.

Adega Mayor

Na adega há projectos que poderão um dia ser concretizados, como os vinhos de talha, mas “a sério”, como salienta o enólogo Carlos Rodrigues.

 

De Campo Maior à Serra de São Mamede
A adega, localizada numa zona plana, pontilhada por leves ondulações de terreno, está rodeada de vinhas, com uma grande diversidade de solos. O tempo que levam de trabalho no campo, foi permitindo perceber melhor o comportamento das castas, a sua melhor localização e a adaptação a uma agricultura que se encaminha para uma certificação biológica que, como nos informaram, é um objectivo para se concluir em 2026. Entre vinhas próprias em diferentes herdades e parcelas arrendadas falamos, então, de 120 ha de vinhas em produção. Em Portalegre, na serra de São Mamede, adquirem-se uvas a produtores locais.
Na adega há projectos que poderão um dia ser concretizados, como os vinhos de talha, mas “a sério” como nos referem os dois enólogos que tomam conta da adega, Carlos Rodrigues e Soraya De La Flor, espanhola que vem da vizinha Badajoz para aqui trabalhar. A capacidade instalada é de cerca de 310.000 litros de branco e rosé e podem vinificar 160 toneladas de uvas tintas de cada vez. No ano de 2023 a produção total aproximou-se dos 850.000 litros em todas as gamas. Como as tais talhas “a sério” ainda não estão por cá, a vinificação segue os parâmetros normais entre inox e estágio em barrica. O parque de barricas atinge as 650, mantendo-se este número estável, entre compra de novas e a saída das barricas mais velhas.
As vinhas da serra de São Mamede estão na base dos vinhos da marca Altitude. Beneficiando de um clima próprio, mais fresco, e com o privilégio de trabalhar com inúmeras castas nas vinhas velhas, os vinhos são por isso bem diferentes dos que se produzem em Campo Maior. Não necessariamente melhores, mas seguramente mais personalizados e mais originais. Desta forma, a regra por aqui parece mesmo ser o não haver regas fixas e “vamos acompanhando as vinhas e os vinhos e decidimos depois, conforme a qualidade; uns vão para lotes e outros poderão originar vinhos varietais”, como nos disse Rita Nabeiro.
É também essa ideia de inovação que levou à criação da colecção Esquissos (que outros poderiam chamar Ensaios ou Projectos por serem vinhos de ensaio e experimentação), que incorporará vinhos considerados fora da produção normal da casa. Neste caso foi um palhete ou, como diria o actor António Silva no filme O Páteo das Cantigas, “um tinto apalhetado” que junta 30% de uva branca à restante uva tinta, com castas misturadas e, daí, o designativo, bem divertido, de se apelidar Tudo ao Molho. Para os próximos Esquissos já há candidatos e vamos esperar sempre algo surpreendente.

Vinho, azeite e turismo
A gama Maestro apenas se produz em magnum. Diz-nos Rita que “aqui estamos a falar em vinhos monocasta que exprimem o melhor que por aqui se faz, sempre num registo de alta qualidade”. Esta série começou por ser editada em 2020 e as castas escolhidas desde então foram a Galego Dourado, Petit Verdot, Chardonnay, Encruzado e a Rabigato, sempre com um PVP de €70. No mercado está agora o vinho feito com Rabigato, mas tivemos oportunidade de provar também o Encruzado que, apesar de estar já em ruptura de stock, se mostrou de altíssimo gabarito, revelando toda a capacidade da casta para gerar vinhos de grande intensidade gastronómica, o que foi amplamente comprovado.
O portefólio está assim muito alargado, com algumas marcas eliminadas (Solista) e outras que têm vindo a surgir. Da entrada de gama – Caiado – até ao topo – Adega Mayor Pai Chão, o leque é imenso e está à disposição dos visitantes na loja da adega. Além do vinho, o azeite é parte importante da oferta mas o peso do enoturismo ainda poderá crescer: 7000 foi o número de visitantes em 2023.
Com 91% das vendas na restauração e um preço médio de €6 por garrafa, a Adega Mayor também aposta na exportação, sobretudo nos quatro mercados preferenciais: Angola, Luxemburgo, Brasil e Dinamarca.
Em Campo Maior, a herança e o projecto idealizado por Rui Nabeiro está em boas mãos. No ar não há “cheirinho” a café, mas o ambiente está por aqui muito bem preservado: cheira a campo, a ervas, a terra e a flores. Não precisamos de mais.

(Artigo publicado na edição de Julho de 2024)