Editorial Outubro: Lisboa é um mundo

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Editorial da edição nrº 90 (Outubro 2024) Tenho uma relação ambivalente com a cidade de Lisboa, de onde saí há quase 30 anos, rumando a norte para me instalar numa pacata vila no coração da Bairrada. Na altura queria muito deixar a capital, fugir do trânsito da A5 e do bulício da Baixa, buscando uma […]

Editorial da edição nrº 90 (Outubro 2024)

Tenho uma relação ambivalente com a cidade de Lisboa, de onde saí há quase 30 anos, rumando a norte para me instalar numa pacata vila no coração da Bairrada. Na altura queria muito deixar a capital, fugir do trânsito da A5 e do bulício da Baixa, buscando uma certa ruralidade que associava a qualidade de vida. Para trás deixei muitas coisas boas: a baía de Cascais, a rua Direita, o Guincho, a marginal ao sábado de manhã, o sol de inverno no Terreiro do Paço, a oferta gastronómica da cidade grande. Nunca me arrependi, porém, e hoje cada fugidia visita a Lisboa reforça – e de que maneira! – a certeza da decisão.

Fazendo da escrita de vinhos profissão, queria habitar numa região vitivinícola. Curiosamente, o destino bairradino foi um acaso, uma oportunidade, não a primeira escolha. Essa, estava há muito fixada em Alenquer e seus arredores. Relativamente perto da urbe, para não cortar de vez todos os laços, mas suficientemente longe para poder usufruir da paz rural. Viver entre colinas, vinhedos e moinhos, com a serra e o mar, casas de traça antiga recuperadas com bom gosto. Infelizmente, não era o único lisboeta a pensar assim e logo percebi que as bonitas casas de Alenquer estavam fora do meu alcance. Mas o gosto pela então chamada Estremadura, e pelos vinhos ali produzidos, nunca se perdeu.

Os vinhos de Lisboa, hoje, pouco têm a ver com os de há 30 anos, quando marcas como Quinta da Abrigada, Quinta de Pancas, Quinta das Cerejeiras ou Casa das Gaeiras brilhavam nos restaurantes da capital, entre uma imensidão de vinho indiferenciado que a região produzia e vendia a granel. A faixa litoral a que hoje chamamos região dos vinhos de Lisboa (ex Oeste, ex Estremadura), sempre foi terra de produtores de vinho com larga visão empresarial, gente capaz de rapidamente converter vinhas e adegas para oferecer ao mercado aquilo que, num dado momento, o mercado precisa. E historicamente assim foi com África, com as tabernas lisboetas, com os supermercados do Reino Unido, com os exigentes consumidores do norte da Europa ou dos EUA. Nos primeiros oito meses de 2024, os números de Lisboa estão em contraciclo: crescimento de 4% face o mesmo período de 2023 e 80% do vinho exportado.

A Grande Prova que publicamos nesta edição mostra a enorme diversidade da oferta, assente num verdadeiro caleidoscópio de castas e perfis de vinho, que a dinâmica região de Lisboa disponibiliza. Basicamente, os produtores de Lisboa estudam as condições do seu território em termos de solos e clima – sendo a proximidade do mar e a maior ou menor protecção da serra de Montejunto determinantes – e definem as variedades que querem plantar em função do seu modelo de negócio ou do perfil de vinho que ambicionam. Não existe uma receita infalível para o sucesso: é possível desenvolver um projecto recompensador com base em 20 ton/ha de Caladoc ou 6 ton/ha de Castelão. Tudo depende da dimensão da exploração e do mercado alvo. E o produtor da região está sempre pronto a experimentar coisas novas. Veja-se o notável desempenho da casta Viosinho, a caminho de se tornar mais famosa em Lisboa do que na região de origem…

Quer isto dizer que a heterogeneidade dos vinhos de Lisboa apaga a sua identidade regional? Não, de modo algum. E não é preciso ir buscar as DOC históricas de Colares, Bucelas ou Carcavelos para o atestar. A dimensão atlântica dos vinhos de Lisboa, a sua frescura, é um fio condutor que nos guia entre os múltiplos aromas e sabores. E, com o tempo, aprendemos a distinguir e a apreciar as nuances próprias de cada origem: Alenquer, Óbidos, Torres Vedras, Arruda, Encostas d’Aire… Afinal de contas, Lisboa é um mundo. LL

 

 

 

Editorial Setembro: Sentido de origem

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Editorial da edição nrº 89 (Setembro 2024) Gosto de vinhos com forte identidade regional, com aquela particular combinação de aromas e sabores que toca as nossas memórias sensoriais e nos remete de imediato para um local, um território, uma origem. Esses denominadores comuns que sentimos no copo são, sobretudo, construídos com base em clima, solo […]

Editorial da edição nrº 89 (Setembro 2024)

Gosto de vinhos com forte identidade regional, com aquela particular combinação de aromas e sabores que toca as nossas memórias sensoriais e nos remete de imediato para um local, um território, uma origem.

Esses denominadores comuns que sentimos no copo são, sobretudo, construídos com base em clima, solo e casta (ou castas). O peso da variedade de uva nesta conjugação é muito importante e o único factor de construção identitária – além do trabalho na vinha e na adega, claro – que depende mais do Homem do que da Natureza. Tão importante é a casta na definição de uma Denominação de Origem que, na tradição vitivinícola europeia, nunca é deixada ao livre-arbítrio do produtor. Ou seja, na prática, quem quiser ser amparado pela protecção e estatuto DOC de Bordeaux, Barolo, Rioja, Bourgogne, Chianti, Champagne, Rueda, etc., tem de se cingir a um conjunto de variedades “tradicionais” previstas na lei, em alguns casos com percentagens mínimas obrigatórias para as mais relevantes. Mas quem quiser usar as castas em que mais confia, não deixa de poder fazer grandes vinhos: terá sempre ao dispor as muito menos restritivas IG (Vinho Regional). No meio de tudo isto, claro, há regiões mais “fechadas” e regiões mais “abertas” quanto à introdução (sempre progressiva e muito escalonada no tempo), de castas externas, sendo que as DOC mais antigas tendem a estar no campo das primeiras e as mais recentes nas segundas.

Sendo a mais antiga do mundo, o Douro é um bom exemplo. Na prova de rosés que publicamos nesta edição, dos 15 vinhos provados, 14 combinam as variedades Touriga Nacional, Touriga Franca, Tinta Roriz e Tinto Cão (esta última cada vez mais usada para rosés ambiciosos), em conjunto ou em separado. O único (por sinal, belíssimo) que sai fora do “alinhamento” utiliza Pinot Noir e não pode por isso ser Douro, sendo certificado como IG/Regional Duriense. No Douro, o Pinot Noir é apenas admissível para espumante.

Regra geral, nas regiões clássicas, apesar de haver muitas “castas históricas” disponíveis, os produtores utilizam um número reduzido, reforçando assim, mais ainda, a identidade regional. É o caso da Bourgogne onde, com mais de dúzia e meia de uvas brancas e tintas legalmente admissíveis, 90% do encepamento se divide entre Chardonnay e Pinot Noir. Já nos tintos de topo do Douro temos vindo a assistir a um processo de concentração semelhante, com uma nuance, focada em dois modelos distintos: um, maioritário, assenta no blend Touriga Franca/Touriga Nacional, com ou sem tempero residual de outras castas; outro, minoritário, recorre ao field blend de vinhas velhas, onde a localização é, quase sempre, mais importante do que o encepamento.

A Bairrada seguiu um caminho totalmente oposto ao do Douro. Em 2003 abraçou um vastíssimo catálogo de variedades nacionais e estrangeiras – praticamente todas as de que se lembraram – ao invés de as relegar para o IG (convenhamos, o nome – Beira Atlântico – não ajuda nada), tornando-se assim a DOC mais “aberta” de Portugal. Um passo, a meu ver, disparatado e contra o qual me insurgi por diversas vezes. Sem questionar a qualidade das “novas”, temia que a vontade declarada de substituir as uvas clássicas por Cabernet, Viognier, Sauvignon, Merlot, Syrah, Petit Verdot, diluísse completamente a identidade regional. Hoje, a minha indignação de há duas décadas dá-me vontade de rir. Devia ter tido mais fé na região, na resiliência dos poucos produtores que não embarcaram no canto da sereia e no seu exemplo mobilizador. Vinte anos volvidos, a Grande Prova deste mês espelha a Bairrada de hoje: entre 26 tintos, apenas 3 incluem castas provenientes do descontrolo varietal de 2003…. Podia ter poupado o meu latim. LL

 

Editorial Agosto: A crise, outra vez

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Editorial da edição nrº 88 (Agosto 2024) “Isto está mal”, dizem produtores de vinho, distribuidores, donos de restaurantes e garrafeiras. A culpa é da crise, da perda de poder de compra, da falta de confiança, do receio de gastar em produtos supérfluos. Mas será “A Crise” (com maiúsculas…) a única culpada das dificuldades que o […]

Editorial da edição nrº 88 (Agosto 2024)

“Isto está mal”, dizem produtores de vinho, distribuidores, donos de restaurantes e garrafeiras. A culpa é da crise, da perda de poder de compra, da falta de confiança, do receio de gastar em produtos supérfluos. Mas será “A Crise” (com maiúsculas…) a única culpada das dificuldades que o sector do vinho atravessa?

Estou convencido que a crise veio apenas avolumar os efeitos de um vasto conjunto de deficiências crónicas que o sector possui. O sector do vinho em Portugal é pesado, pouco criativo, pouco atento ao mercado e ao consumidor e (ainda) pouco profissional.

Apesar de não existirem estatísticas sobre essa matéria, certamente não irei errar se disser que bem mais de metade dos agentes económicos ligados à produção de vinho não são profissionais. Ou seja, não fazem do vinho a sua actividade principal e não possuem escala para criar e manter uma estrutura profissional. Uma situação confrangedora quando se compara com a realidade espanhola ou francesa, para já não dizer americana ou australiana, onde o vinho é encarado como uma indústria, um negócio, e não como a “concretização de um sonho”.

Na verdade, uma parte considerável dos novos produtores surgidos em Portugal na última década é constituída por profissionais liberais, industriais, comerciantes, que herdaram ou compraram vinhas, que durante algum tempo venderam uvas e que a dada altura quiseram ver o seu nome ou da sua quinta numa garrafa. A sobrinha que tem jeito para o desenho deu uma ajuda no rótulo, o restaurante onde come todos os dias prometeu vender umas caixas, os amigos que dizem que o vinho é uma maravilha vão ficar com algum e, portanto, não haverá dificuldade alguma em vendê-lo, até porque são só 50 mil garrafas. Pois é… O mercado nacional acabou inundado de produtores que têm 50 mil garrafas para vender. Mas o mercado não é infinito e, naturalmente, quando há menos dinheiro disponível, retrai-se. Resultado: está (quase) toda a gente a vender menos do que esperava.

A solução, dirá qualquer profissional, está em procurar novos mercados. Mas quantos destes produtores “amadores” têm disponibilidade para passar meses viajando pelo mundo, fazendo contactos, procurando distribuidores, promovendo o seu vinho? Se nem em Portugal têm tempo ou vontade para abordar pessoalmente ou acompanhar vendedores a garrafeiras e restaurantes, preferindo esperar que o vinho se venda por si! Está difícil vender? Mas porque é que havia de ser fácil? Se até para os que vivem disto dá muito trabalho…

Não há mal nenhum em satisfazer uma paixão, mesmo uma paixão cara como é a produção de vinho. Aliás, alguns dos grandes vinhos do mundo são propriedade de pessoas que ganharam dinheiro noutras áreas e chegaram ao vinho movidos pela simples paixão. Mas que só foram bem-sucedidos porque tiveram dimensão ou meios para criar uma estrutura profissional capaz de levar o negócio avante. Os outros ficaram pelo caminho, fartos de perder dinheiro todos os anos num negócio que tem exigências a que não conseguiam corresponder. Algo que, inevitavelmente, virá a acontecer a muitos produtores portugueses.

É que, no vinho, a paixão e o negócio são coisas diferentes, ainda que complementares. E se é verdade que o negócio do vinho precisa de paixão para se desenvolver, a paixão, só por si, não garante nada. Na maior parte dos casos, aliás, só garante dissabores…

 

Nota: Fiz uma pesquisa nos mais de 400 editoriais mensais que escrevi desde 1989 e a “Crise” foi tema 7 vezes, com vários anos de intervalo. O texto que em cima reproduzo foi publicado em Agosto de 2003, faz precisamente agora 21 anos. É assustador perceber que continua actual e que em mais de duas décadas não aprendemos nada.

Editorial Julho: Ouro dos Tolos

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Editorial da edição nrº 87 (Julho 2024)   Existe a ideia generalizada de que um produtor de grande dimensão não consegue atingir o patamar máximo da excelência. Casas como a Penfolds, na Austrália, ou a Sogrape, em Portugal, para mencionar apenas estes, contrariam esse dogma.   Desde os primórdios da humanidade que os bens mais […]

Editorial da edição nrº 87 (Julho 2024)

 

Existe a ideia generalizada de que um produtor de grande dimensão não consegue atingir o patamar máximo da excelência. Casas como a Penfolds, na Austrália, ou a Sogrape, em Portugal, para mencionar apenas estes, contrariam esse dogma.

 

Desde os primórdios da humanidade que os bens mais raros, difíceis de encontrar ou conseguir, são os mais valorizados. No fundo, faz parte da natureza humana tudo fazer para possuir o que os outros não têm. Veja-se o ouro, por exemplo, matéria-valor por excelência. Enquanto metal, tem muito pouca utilidade prática. E, no entanto, travaram-se guerras por ele (ainda hoje se travam guerras por petróleo, um bem, apesar de tudo, mais disponível e muito mais útil…)

O mesmo princípio se aplica a todos os bens de consumo, das roupas aos automóveis, passando pela comida e, claro, pelo vinho. No que respeita a este último, existe, até certo ponto, uma relação directa entre a qualidade e a quantidade disponibilizada. A razão é simples: nem todos os territórios (regiões) têm o mesmo potencial para alcançar excelência; mesmo nas melhores zonas das melhores regiões, nem todas as vinhas possuem a mesma aptidão qualitativa; e mesmo as melhores videiras, plantadas nos melhores locais, necessitam ter a sua produção limitada (natural ou artificialmente) para originar as melhores uvas. Os grandes vinhos não existem em grandes quantidades.

Ainda assim, podemos encontrar marcas de excelência mundial a produzir volumes apreciáveis em cada vindima. Alguns exemplos: Château Mouton Rotschild, 240 mil garrafas, sensivelmente a mesma quantidade do Lafite Rothschild; Château Latour, 200 mil; Château Margaux, 120 mil; Vega Sicilia Único, 100 mil; Sassicaia, 100 mil; Cheval Blanc, 72 mil. Tenha-se igualmente em conta que várias das melhores marcas do mundo podiam perfeitamente produzir mais garrafas com a mesma qualidade. Mas há um limite para o que o mercado pode absorver a um determinado preço num determinado momento. E é preciso gerir a escassez para que o preço não caia. O Porto Vintage é um bom exemplo: apesar de haver todas as condições qualitativas (vinha, adega e conhecimento) para se produzir bastante mais, a verdade é que a produção global é muito inferior à registada há 30 ou 40 anos.

Existe a ideia generalizada de que um produtor de grande dimensão, pela sua própria cultura empresarial, não consegue atingir o patamar máximo da excelência, ficando esse privilégio reservado aos pequenos produtores. Casas como a Penfolds, na Austrália, ou a Sogrape, em Portugal, para mencionar apenas estes, contrariam esse dogma. A Sogrape é mesmo um caso de estudo, já que produz, ao mesmo tempo, a referência mais vendida (Mateus) e a de maior notoriedade (Barca Velha).

Mas parece evidente que, em Portugal e no mundo, existe uma tendência para sobrevalorizar a raridade vínica. Os restaurantes mais exclusivos procuram oferecer aos seus clientes vinhos igualmente exclusivos, produzidos em pequeníssimas quantidades, por vezes algumas centenas de garrafas, associadas a uma boa estória que o sommelier transmite ao cliente.

Nada de errado nisto, um vinho vale aquilo que se está disposto a pagar por ele. Mas é importante que quem compra saiba, pelo menos, duas coisas. Primeiro, poucas garrafas produzidas não significam, necessariamente, qualidade acrescida. Segundo, pequeno produtor não implica maior atenção ao produto ou maior proximidade à origem – aliás, vários desses vinhos “exclusivos” foram comprados já feitos em grandes adegas e quem assina o rótulo nunca viu as vinhas onde nasceram.

Quando da corrida ao ouro em vários estados dos EUA, ao longo do século XIX, ficou famoso o “fool’s gold”, o ouro dos tolos. Basicamente, pirite de ferro que os garimpeiros menos experientes tomavam por ouro, acreditando ter ficado ricos. Muitos enlouqueciam quando descobriam a crua verdade: nem tudo o que luz é ouro.

 

Editorial Junho: Barrel Haters

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Editorial da edição nrº 86 (Junho 2024) Peço desculpa pelo título em inglês, mas é o que melhor retrata aqueles a que me refiro: os que odeiam, desprezam, criticam vinhos com aromas e/ou sabores provenientes da barrica de madeira. O vinho, como tudo na vida, não está imune a modas e tendências que determinam comportamentos. […]

Editorial da edição nrº 86 (Junho 2024)

Peço desculpa pelo título em inglês, mas é o que melhor retrata aqueles a que me refiro: os que odeiam, desprezam, criticam vinhos com aromas e/ou sabores provenientes da barrica de madeira. O vinho, como tudo na vida, não está imune a modas e tendências que determinam comportamentos. É assim na arquitectura, na cultura, na indústria automóvel, no vestuário, na música, até na medicina.

A ligação entre o vinho e a madeira é multisecular, primeiro como vasilha para o transportar e guardar, mais tarde como processo de afinamento. A primeira vez que o enófilo nacional contactou, de forma generalizada, com o efeito da barrica nova de carvalho terá sido com os vinhos da antiga JP Vinhos (hoje Bacalhôa), em tintos como Quinta da Bacalhôa, Má Partilha, Meia Pipa ou o branco Catarina. Na altura, final dos anos 80, era a escola australiana que ditava as regras e lembro-me bem do enorme frenesim que toda aquela baunilha e tosta causou junto de apreciadores ávidos de coisas novas. Rapidamente, a barrica tornou-se símbolo de estatuto, luxo, sinal exterior de riqueza. E ainda hoje, queiramos ou não, mantém esses atributos. Em Portugal ou no mundo, raro é o vinho com ambição que não passa por barrica nova, no todo ou em parte. De tal forma o poder aspiracional da barrica foi abraçado pelo consumidor que o “efeito madeira” se estendeu aos vinhos mais humildes, que não gerando valor que permita ter a coisa verdadeira, utilizam eficazmente os seus sucedâneos. Quem compra um Reserva tinto por €3,49 também tem direito a saborear a baunilha, pois então! Como bem sabemos, quando muita gente gosta da mesma coisa, surgem os ódios de estimação, com o único objectivo de vincar uma diferença e uma suposta superioridade. Quantas vezes assisti, em sessões de prova, ao arrasar de um vinho com o singular argumento de que se “sente a madeira”…

A barrica de madeira é uma ferramenta enológica como qualquer outra, como o lagar, como o ovo de cimento (hoje na moda, mas o ódio virá um dia), como a ânfora de barro. E como toda a ferramenta, é preciso saber usá-la. A diversidade (e qualidade!) das barricas disponíveis no mercado é gigante. Uma barrica de inferior qualidade, de tipo não adequado ao fim em causa (origem, tosta, grão) ou mal empregue, origina um vinho desequilibrado, onde a ferramenta usada se sobrepõe ao produto criado. Como pode acontecer com um lagar ou uma ânfora de barro.

Curiosamente, quem diaboliza a mais leve sugestão de fumado ou especiaria da barrica, é capaz de acolher embevecido e lacrimejante de prazer o aroma a pez da talha ou o sabor taninoso do engaço verde no lagar. Mais espantoso ainda: esses “haters” inchados de conhecimento, para quem qualquer reminiscência de barrica num vinho português é sinal de vulgaridade, são precisamente os mesmos que idolatram os Gran Reserva clássicos de Rioja, como Murrieta Castillo Ygay, Viña Ardanza, Viña Tondonia, Muga Prado, Contino ou Cvne Imperial. Vinhos que passaram três, quatro ou mais anos em barricas novas de carvalho. E carvalho americano, sobretudo!

No que a vinhos respeita, gosto de ser eclético. Aprecio tudo o que cheira e sabe bem. Se tiver forte personalidade, melhor ainda. Ygay ou Quinta do Crasto, por exemplo, usam a barrica nova para exprimir a sua identidade. Outros fazem-no através do lagar de granito, da talha pesgada, do tonel centenário, do ovo de cimento ou até (sim!), do inox. Quem nunca provou Encruzado ou Alvarinho largos anos estagiados em inox não sabe o que é bom.

Há tanta intolerância e imbecilidade no mundo. Deixem lá a madeira em paz.

Editorial Abril: Doce

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Editorial da edição nrº 84 (Abril 2024)  Dizem os especialistas do gosto que, dos distintos sabores primordiais, o doce é aquele que mais fácil e imediatamente cativa o ser humano. Há quem explique essa atracção (não propriamente fatal, se comedida) pelo facto de ser doce o primeiro sabor experimentado pelo recém-nascido ao beber o leite […]

Editorial da edição nrº 84 (Abril 2024)

 Dizem os especialistas do gosto que, dos distintos sabores primordiais, o doce é aquele que mais fácil e imediatamente cativa o ser humano. Há quem explique essa atracção (não propriamente fatal, se comedida) pelo facto de ser doce o primeiro sabor experimentado pelo recém-nascido ao beber o leite materno. Mesmo que a relação não esteja cientificamente comprovada é, pelo menos, uma boa desculpa para os mais gulosos.
Porém, no que aos vinhos doces respeita (o que em Portugal significa quase sempre licorosos), os ventos parecem não ir de feição. Em grande parte do mundo assiste-se a um certo afastamento dos consumidores relativamente aos vinhos doces, atingindo mesmo os não fortificados, Sauternes incluído. Até o vinho do Porto, que parecia imune à erosão de mercado sentida por muitos dos outros célebres congéneres (caso do Jerez, por exemplo), entrou numa lenta, mas inexorável, decadência de consumo, perdendo 20% em volume nas últimas duas décadas. Em 2023, de novo, caiu em quantidade e valor face ao ano anterior. No vinho Madeira essa tendência é menos evidente, mas existe: de 2022 para 2023, decresceu em quantidade, ainda que ganhando muito ligeiramente em valor. Paradoxalmente, é o mais doce (e, porventura, o mais subvalorizado) de todos os fortificados nacionais, o Moscatel de Setúbal, tema de capa desta edição da GE, que melhor se tem “aguentado”. Partindo embora de uma base muito mais pequena, nas últimas duas décadas quase duplicou o volume certificado. E as vendas mostram uma certa estabilidade, com crescimentos moderados. O que não deixa de espantar, se pensarmos que mais de 90% do negócio é feito em Portugal. E, mais interessante ainda, ao invés do que acontece com Porto e Madeira, o consumo em território nacional é feito sobretudo por portugueses, não por turistas estrangeiros. Já agora, comportamento muito semelhante tem o Moscatel do Douro, este com uma fatia um pouco maior de exportação. Significa isto que os portugueses são particularmente gulosos?
Dizia a minha avó (e aposto que muitas avós) que o que é doce nunca amargou. Eu nunca fui por aí. Prefiro os amargos, ácidos e salgados, um pastel de nata de quando em vez já é extravagância. Mas se o aforismo estiver certo, a verdade é que os grandes licorosos do mundo, de uma forma geral, não estão a ganhar muito com isso, antes pelo contrário. Resumindo, o que parece doce e é doce, está na mó de baixo. Mas, estranhamente, o que não parece doce e é doce, continua em alta e sem indícios de perder a boa onda. A esmagadora maioria dos vinhos tintos (portugueses, espanhóis, italianos, franceses, chilenos, argentinos, etc.) de preço moderado e médio, vendidos na Europa, Ásia e Américas, tem uma quantidade apreciável de MCR (mosto concentrado rectificado) adicionada. Ou seja, são, enfim, a modos que…docinhos.
Nada contra, é absolutamente legal e, quase diria, necessário, vai ao encontro do que o mundo pede, ou melhor, exige. E atenção, não são só os consumidores “de supermercado”, supostamente menos “conhecedores”, que os adoram. Muitíssimos destes vinhos são crónicos vencedores de concursos internacionais, onde são provados por sommeliers, enólogos, jornalistas, e ali batem concorrentes bem mais ambiciosos. Assim sendo, talvez o problema dos doces e licorosos não esteja, afinal, na doçura. A minha avó tinha outra na manga para estas ocasiões: “todo o burro come palha, é preciso saber dar-lha”.

Editorial Março: Os Melhores

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Editorial da edição nrº 83 (Março 2024) Quando se fala de vinhos, poucas coisas haverá mais discutíveis do que reduzir aromas e sabores a um número. Mais difícil ainda será partir de uma lista com idênticas classificações e escolher um vinho em detrimento de outro. Para sermos, tanto quanto possível nestas circunstâncias, justos, na Grandes […]

Editorial da edição nrº 83 (Março 2024)

Quando se fala de vinhos, poucas coisas haverá mais discutíveis do que reduzir aromas e sabores a um número. Mais difícil ainda será partir de uma lista com idênticas classificações e escolher um vinho em detrimento de outro. Para sermos, tanto quanto possível nestas circunstâncias, justos, na Grandes Escolhas procuramos que esta responsabilidade seja partilhada entre todos os provadores, através de uma eleição. Mas mesmo assim não é fácil. E no final, é mais do que certo, ninguém sai satisfeito. Nem os produtores que não viram os seus vinhos destacados como “os melhores” (seja lá o que isso for…); nem os provadores que não obtiveram “votos” suficientes nos vinhos que propuseram e defenderam.
Apenas duas coisas acalmam, de alguma forma, os naturais desapontamentos (pelo menos, os nossos). Primeiro, a noção de que fizemos tudo para sermos rigorosos, independentes, justos; segundo, a absoluta certeza de que, quer os 30 vinhos eleitos como “os melhores do ano”, quer os cinco apontados como vencedores em cada categoria, são indiscutivelmente grandíssimos vinhos. Adjectivo que se ajusta por inteiro aos nomes vencedores: o espumante Murganheira Assemblage Grande Reserva 2006, o branco Bacalhôa 1931 Vinhas Velhas Bical 2021, o rosé Quanta Terra Phenomena 2022, o tinto Quinta do Crasto Vinha Maria Teresa 2019 e o fortificado Dalva Tawny 50 anos.
Se destacar vinhos grandes entre os grandes tem sempre uma elevada subjectividade, esse grau multiplica-se quando se trata de avaliar pessoas, empresas, instituições.
A reunião anual da redacção para escolher “Os Melhores”, espaço onde cada um apresenta as suas propostas, depois submetidas a debate e votação, é sempre o momento mais tormentoso do ano. As discussões são épicas e duram horas. A coisa fica tão feia que, normalmente, organizamos o jantar de Natal da empresa nessa mesma noite, na esperança de que o espírito natalício e umas belas garrafas de vinho promovam as reconciliações. Normalmente, resulta.
O mais importante é que, quando na noite dos Melhores do Ano subimos ao palco para anunciar os nomes vencedores, cada um de nós assume essa escolha colectiva como sua e defende-a intransigentemente.
Mais uma vez, e como acontece com os vinhos, como seria possível de outra forma, face à qualidade dos premiados? Senão vejamos. No que à gastronomia respeita, este ano pontificam os restaurantes Pedro Lemos, Três Pipos e Soão, todos eles referência no seu estilo de cozinha, a loja gourmet Comida Independente, que com poucos anos de vida já deixou marca, e a historiadora e investigadora Isabel Drumond Braga, com importante obra feita na área. No retalho e serviço de vinhos, três nomes incontornáveis: o wine bar Mind The Glass, a garrafeira Imperial e o talentoso sommelier Filipe Wang. Wine in Moderation e Algarve Wine Tourism são outros conceitos/projectos em evidência. Quanto a produtores, destacamos as boas surpresas do Domínio do Açor e da Herdade da Cardeira, a singularidade de Baías e Enseadas, a consistência da Adega Cooperativa de Ponte de Lima, a ambição da Menin Wine Company, o pioneirismo da Barbeito e a excelência clássica da Fundação Eugénio de Almeida. Na vinha e na adega, há que “tirar o chapéu” a Álvaro Martinho Lopes, Manuel Henrique Silva e Francisco Antunes. E, por fim, grande aplauso para um autêntico Senhor do Vinho, António Soares Franco.
Foram as escolhas certas? Cada qual que decida. Foram as nossas escolhas e estamos muito satisfeitos com elas.

Editorial Janeiro: Fama

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Editorial da edição nrº 81 (Janeiro 2024) A chegada de amadores (no sentido daquele “que ama”) ao sector do vinho é relativamente recente, o fenómeno teve o seu “boom” já no século XXI. Gente financeiramente bem-sucedida noutras áreas de actividade, mas completamente desconhecida do grande público, viram nesta bebida uma forma de satisfazer um hobby […]

Editorial da edição nrº 81 (Janeiro 2024)

A chegada de amadores (no sentido daquele “que ama”) ao sector do vinho é relativamente recente, o fenómeno teve o seu “boom” já no século XXI. Gente financeiramente bem-sucedida noutras áreas de actividade, mas completamente desconhecida do grande público, viram nesta bebida uma forma de satisfazer um hobby e, ao mesmo tempo, alimentar o ego de forma saudável. Quem pode ser criticado por gostar de ver o seu nome (ou da sua empresa) no rótulo de uma garrafa? E, com sorte e trabalho, alcançar os ambicionados “15 minutos de fama”?
Mais difíceis de entender serão as razões que levam alguém que já tem dinheiro e espaço nos media a enveredar pelo mundo do vinho. Apesar de glamouroso, o vinho nunca poderá competir com a notoriedade que se alcança enquanto profissional do cinema, da música ou do desporto, por exemplo. Nunca ninguém rico e famoso vai ficar mais famoso por investir no vinho. E vai, quase de certeza, ficar menos rico.
Apesar disso, pessoas a quem pediríamos autógrafos na rua continuam a entrar neste universo vínico, bem mais pequeno e limitado do que aquele de onde vieram. Os exemplos são incontáveis e surgem, sobretudo, dos Estados Unidos da América (mas não só) com gente do cinema à cabeça. Francis Ford Coppola foi pioneiro com a sua marca, em 1979, (em Napa Valley, depois Sonoma, mais tarde Oregon) e o que mais longe chegou no ultrapassar dos naturais preconceitos dos “conhecedores”, tornando-se um produtor de vinho bastante respeitado enquanto tal. Muitos outros e outras o seguiram: George Lucas (Skywalker Vineyards – só podia… – em 1991) Drew Barrymore, Emilio Estevez, Sam Neil, Cameron Diaz, Brad Pitt, Angelina Jolie, Kurt Russell, Goldie Hawn, Antonio Banderas e, até o hoje tão discutido – pelas piores razões – Gérard Depardieu, são apenas alguns dos nomes da sétima arte que possuíram ou possuem adegas e vinhas, nos EUA, Espanha, França, Itália ou Nova Zelândia. Do mundo da música, Cliff Richards (que teve a Adega do Cantor no Algarve), será o exemplo mais próximo. Mas também Dave Matthews, Mary Blige, Brandi Carlile, Mick Fletwood, Kylie Minogue, Sting, Pink e Snoop Dogg fazem parte da lista. Lista essa que se estende ao desporto, com o basquetebolista Yao Ming, o piloto Mario Andretti, os golfistas Nick Faldo e Greg Norman e os futebolistas David Ginola, Ronaldo “Fenómeno” e Andrés Iniesta, entre vários.
Como já perceberam pela capa desta revista, abordo o tema por causa de Francisco Costa, o Costinha do futebol. Quando nos cruzámos pela primeira vez, há quase duas décadas, já Costinha era um apreciador de vinhos, gosto que ganhou no Mónaco, para onde foi jogar com 20 e poucos anos. Hoje, é um profundo conhecedor do que de melhor se faz em Portugal e no mundo. E também um pequeno produtor que participa activamente em todo o processo, na vinha e adega, e engarrafa um vinho de excelência.
Chegados a este ponto, talvez percebamos melhor o que é que o vinho tem, capaz de atrair ricos e famosos a este mundo tão particular. Não é certamente a razão que os move, antes o coração. A paixão, o prazer da descoberta, a exaltação dos sentidos, não coisas que se expliquem. O vinho tem tudo isso e Costinha sabe-o bem.

PS: A peça sobre o novo desafio de Costinha foi a última escrita nesta revista pela jornalista Mariana Lopes. Também ela troca de profissão, mas, felizmente, mantém-se ligada ao mundo vínico. O seu talento vai agora estar do “outro lado”, onde o vinho nasce. No seu lugar, a partir da edição de Fevereiro, coordenando a redacção da Grandes Escolhas, estará o experiente jornalista José Miguel Dentinho, com muitos anos de escrita nesta área. A ambos desejo muita sorte e sucesso.