Melhores do Ano: celebrar 2021

Luís Lopes

Luís Lopes Como habitualmente, esta edição de Março é dedicada aos Prémios Grandes Escolhas. Aqui distinguimos os vinhos, as pessoas, as empresas e organizações, os projectos que em 2021 mais se evidenciaram junto dos profissionais e dos apreciadores. E sobre o ano que passou existem muitos e bons motivos para celebrar. Editorial da edição nº59 […]

Luís Lopes

Como habitualmente, esta edição de Março é dedicada aos Prémios Grandes Escolhas. Aqui distinguimos os vinhos, as pessoas, as empresas e organizações, os projectos que em 2021 mais se evidenciaram junto dos profissionais e dos apreciadores. E sobre o ano que passou existem muitos e bons motivos para celebrar.

Editorial da edição nº59 (Março 2022)

Na Grandes Escolhas acompanhamos de muito perto o sector do vinho e os que indirectamente lhe estão ligados, como o comércio especializado ou a restauração, por exemplo. Experimentamos por isso quer as dificuldades, quer os momentos de superação de empresas e pessoas que, apaixonadamente, fazem deste mundo vínico o seu modo de vida. E seguimos e estudamos com afinco a dinâmica dos mercados e os padrões dos consumidores, pois produção, comércio e consumo fazem todos parte da mesma fileira, a fileira do vinho.

Nesse sentido, estamos convencidos de que 2021 foi, para todos em geral, um ano cheio de significado, pela positiva. Contrariando as incertezas e fantasmas alimentados pela pandemia, o sector do vinho mostrou extraordinária resiliência e dinamismo, superando as adversidades e voltando à senda de crescimento sustentado que caracterizou o primeiro trimestre de 2020, até o vírus nos cair em cima. O vírus aí continua, é certo, mas agora sabemos viver com ele e, sobretudo, sabemos viver apesar dele, não comprometendo a nossa forma de estar, a nossa felicidade, o nosso futuro.

Vamos, pois, celebrar 2021 através dos prémios Grandes Escolhas. Celebrar, desde logo, os vinhos. E de entre os muitos que premiámos, permitam-me que destaque aqui os grandes vencedores em cada categoria: o espumante Vértice Pinot Noir 2011, o branco Vinha dos Utras 2019, o tinto Quinta da Manoella VV 2018, o rosé Kopke Winemaker’s Collection Tinto Cão 2020, o fortificado Ramos Pinto RP30 Tawny 30 anos, todos eles merecedores dos maiores encómios.

Celebremos igualmente a estóica resistência à adversidade e a fantástica recuperação dos restaurantes em 2021. Com perfis e conceitos bem distintos, premiámos o trabalho de três casas de bem comer e bem servir: Come Prima, Cisco e Essencial. E, a propósito de serviço, talvez a mais valiosa função do sommelier, é de enaltecer a enorme categoria de Marc Pinto.

Há casas onde o vinho se sente em casa. Ou de onde o podemos levar para nossa casa. A Garrafeira Nacional, em constante adaptação e modernização, é uma referência incontornável, como também o é a loja gourmet Tradicional. O wine bar Capela Incomum marca pelo espaço e pelo que lá está dentro. E que dizer do acolhimento familiar num Alentejo genuíno que experienciamos no enoturismo da Herdade do Sobroso?

Ao nível do desempenho de empresas e produtores, apreciámos a transformação da “nova” Sovibor, a consistência da Adega de Penalva e o sólido crescimento da Costa Boal. Apostando numa filosofia muito própria, a Reynolds Wine Growers destacou-se pela singularidade associada à qualidade. A revolucionária Azores Wine Company mexeu com toda uma região, a Wine & Soul provou que, mesmo no conservador vinho do Porto, “small” pode ser “beautiful”. E a viticultura sustentável da Herdade de Coelheiros é um exemplo a seguir. Em tempo de celebração, celebremos também a solidariedade e a partilha, através da associação Bagos d’Ouro.

Finalmente, mas não por último, as pessoas que, pelo seu talento, conhecimento e obra, se destacaram. No que a enologia respeita, vibrámos com os vinhos feitos por Sandra Tavares da Silva, no Douro e Lisboa, e por Pedro Sá, em Carcavelos. O chef Diogo Rocha oficia de forma inigualável nos fogões mas também na divulgação da gastronomia portuguesa: o prémio que leva o nome do grande jornalista David Lopes Ramos, está muito bem entregue.

Termino com o galardão mais ambicionado. Poucas pessoas terão, como Jorge Dias, contribuído em tantas e tão distintas áreas para o desenvolvimento e reconhecimento do Douro e do Vinho do Porto. É, sem sobra de dúvida, um grande Senhor do Vinho.

Editorial: Porto sentido

Luís Lopes

LUÍS LOPES Como português e apaixonado pelo vinho do Porto, não posso deixar de ficar triste com a forma como o vinho pátrio de maior notoriedade mundial foi recentemente notícia na comunicação social, dentro e fora de fronteiras. Mas a verdade é que nos pusemos a jeito. Editorial da edição nº58 (Fevereiro 2022) “E é […]

LUÍS LOPES

Como português e apaixonado pelo vinho do Porto, não posso deixar de ficar triste com a forma como o vinho pátrio de maior notoriedade mundial foi recentemente notícia na comunicação social, dentro e fora de fronteiras. Mas a verdade é que nos pusemos a jeito.

Editorial da edição nº58 (Fevereiro 2022)

“E é sempre a primeira vez
Em cada regresso a casa
Rever-te nessa altivez
De milhafre ferido na asa”

A letra da famosa canção de Rui Veloso/Carlos Tê data de 1986 e é uma verdadeira declaração de amor à cidade do Porto, à cidade velha, histórica, orgulhosa, mas também, à época, algo abandonada e decadente, como “milhafre ferido na asa”. Ferido também ficou, na sua honra e estatuto, o nosso vinho do Porto, com as recentes notícias.  Para quem passou ao lado da informação, aqui vai, resumida ao essencial. A Universidade de Groningen, na Holanda, realizou um estudo de datação, com base no isótopo carbono-14, aplicado a um conjunto de vinhos do Porto com indicação de idade, nomeadamente 10 e 20 anos. Os resultados do estudo indicaram que, dos 20 vinhos investigados, 14 tinham idade diferente da mencionada no rótulo, sendo 4 mais velhos e 10 mais jovens (um deles, muito mais jovem). O caso foi objecto de notícia na televisão holandesa e de reportagem no jornal Expresso de 14 de janeiro, repercutida depois nos canais televisivos nacionais. Na sequência, quer o Instituto do Vinho do Douro e Porto (IVDP), que tutela a região, quer a Associação das Empresas de Vinho do Porto (AEVP), emitiram comunicados repudiando veementemente a forma como as notícias foram veiculadas e o estudo que lhes deu origem, e reafirmando a qualidade dos vinhos e do seu processo de certificação. 

A meu ver, ambos os comunicados, importantes e necessários, sem dúvida, afastam-se do essencial. É que, apesar das notícias (e, sobretudo os títulos sensacionalistas) terem lançado um absurdo manto de suspeita sobre o vinho do Porto, não está causa, de modo algum, a excelência dos vinhos, a idoneidade das casas produtoras ou a capacidade do IVDP para assegurar a qualidade, genuinidade ou conformidade legal dos mesmos. No fundo, o que está em causa é a adequabilidade da legislação que rege o Porto Tawny com indicação de idade: 10, 20, 30 e 40 anos. E saber se esta lei serve os interesses do vinho do Porto e dos modernos consumidores.

Simplificando, o que a lei diz, é que para ostentar um rótulo de Tawny 10 anos, por exemplo, o vinho deve ter as características de cor, aroma e sabor adequadas à categoria. Como se sabe, os Tawny com indicação de idade são obtidos a partir da lotação (mistura) de vinhos de diferentes idades, uns mais jovens outros mais velhos, até se chegar ao perfil pretendido por cada casa. Assim sendo, em termos legais, não é a média de idades que é avaliada e certificada, mas sim se a prova do vinho corresponde ao que se espera de um vinho com essa idade na rotulagem. Ou seja, por outras palavras, 10 anos (ou 20 ou 30) não é uma idade, mas um estilo. 

Agora, tentem explicar isto a um consumidor americano, brasileiro ou holandês. Sei do que falo, porque ao longo da minha vida profissional já o fiz muitíssimas vezes em acções de formação. Quando descrevo como se faz um Tawny com indicação de idade, há sempre alguém na plateia que pergunta: “então, 20 anos, é a idade média dos vinhos que compõem o lote?” E eu lá sou forçado a responder, algo como, “não é bem assim, mas quase, é mais ou menos isso”, e dou a volta à questão falando dos vários tipos e métodos de envelhecimento, vasilhas e temperaturas de estágio, etc. E fujo à pergunta porque, sinceramente, não tenho a lata de dizer que “20 anos não é idade, é um tipo de vinho, um estilo”. Arriscaria que alguém retorquisse: “Ah, então um Porto 20 anos é um vinho que não é, apenas parece ser”. E parecer, em vez de ser, é uma facada tremenda na reputação de um vinho com mais de 300 anos de história.

A validade do estudo de Groningen pode até revelar-se bastante discutível (custa-me muito acreditar, por exemplo, que um vinho apresentado como 10 anos passe na Câmara de Provadores do IVDP se tiver apenas 3 anos de idade média, como ali foi apontado…). E até posso admitir a possibilidade de a datação por carbono-14 não ser adequada às especificidades de um vinho de lote de várias colheitas, podendo apresentar resultados inconsistentes. Mas, de novo, essa não é a questão. A questão é apenas uma, clara, esmagadora, incontornável: um consumidor que compra uma garrafa de um vinho que no rótulo diz 10 anos, espera que esse vinho tenha, no mínimo, 10 anos. Se esse vinho não tem a idade referida na rotulagem, então o consumidor está a ser induzido em erro.

Esse mesmo consumidor, quando numa loja compra um Queijo DOP Ilha de S. Jorge com 12 meses de cura, espera que tenha 12 meses. Dir-me-ão, e com alguma razão, que o queijo resulta de uma ordenha feita num determinado dia/semana e não numa mistura de vinhos de diferentes anos. Falemos então de vinho. Na DO Setúbal, um Moscatel de Setúbal com indicação de idade (de 5 a +40 anos) também é feito a partir de lotes de várias colheitas. Mas só pode indicar essa idade na rotulagem se o vinho em causa, ou cada uma das parcelas do lote que o originou, tiver, no mínimo, a idade indicada. Ou seja, o vinho mais jovem que integrou o lote de um Setúbal 10 anos deverá ter, pelo menos, 10 anos. O mesmo se passa, por exemplo, num Scotch Whisky, feito a partir de múltiplas origens e destilações: num 12 anos, o destilado mais jovem do blend é obrigado a ter, no mínimo, 12 anos. Nestes vinhos e destilados, a legislação traduz a percepção do consumidor: um produto designado como 10, 12 ou 20 anos deverá ter a idade que ostenta no rótulo.

Este modelo da idade mínima da mais jovem componente do lote contraria as práticas e tradições de mais de 300 anos de vinho do Porto? Talvez, ainda que as diversas formas de condicionar o envelhecimento (dimensão e tipo de vasilhame, temperaturas, etc.) colocados à disposição dos produtores confiram suficiente margem de manobra para manter a consistência do lote em cada engarrafamento. Mas, se não for este o caminho, produtores e reguladores deverão, em conjunto, encontrar outro, que pode passar pela média de idades do lote ou outra qualquer que a experiência, talento e arte dos profissionais do sector definam como adequada. Não podemos é continuar a deixar que aquela que (para mim, pelo menos), é a mais complexa e singular categoria de vinho do Porto, o Tawny com indicação de idade, assente as suas bases num modelo legal que não faz sentido para o consumidor. 

Além de que, convenhamos, as práticas e tradições, por muito seculares que sejam, não são imutáveis, são dinâmicas, adaptam-se aos tempos e às necessidades. Há 200 e tal anos o Porto não era um vinho doce fortificado com aguardente para parar a fermentação; os vinhos do tipo LBV começaram a fazer-se nos anos 60; durante anos e anos e até 1970, muito Vintage foi exportado em pipas para Inglaterra, onde era engarrafado mais tarde do que os dois a três anos hoje regulamentares; há 20 anos, não havia Porto Colheita branco nem Porto rosé. E, já agora, a lei que estabelece e rege a própria categoria dos Tawny com indicação de idade (10, 20, 30 e +40 anos), só entrou em vigor a 1 de janeiro de 1974. Portanto, se é preciso mudar a lei, mude-se.

Em resumo, nada há de errado com a qualidade e genuinidade dos vinhos ou o rigor do processo de certificação. Errado está o enquadramento legal dos Tawny com indicação de idade, confundindo e baralhando quem quer conhecer melhor este já de si complexo mundo do vinho do Porto. E muito pior do que confundir, originando no consumidor infundadas suspeitas de que está a ser enganado.

Do formador mais qualificado ao funcionário da empresa que, em Gaia, dá os vinhos a provar aos turistas, há décadas que os profissionais sabem que apresentar um 10 ou 20 anos como um estilo e não uma idade, um parecer em vez de ser, é absolutamente incompreensível para o consumidor. Esta foi, pois, uma tempestade há muito anunciada e previsível. Agora, é limitar os danos e mudar o que tem de ser mudado, para que o vinho do Porto continue a ser grande entre os grandes, um vinho sublime não apenas na excelência que está na garrafa mas também na confiança que transmite a quem a compra.

Editorial: Do que eu não gosto

Editorial da revista nº57, Janeiro 2022 LUÍS LOPES Um recente trabalho de Ricardo Felner no Expresso identificou-me, de certo modo, como “inimigo” dos chamados vinhos “naturais”. Sinceramente, não sou inimigo de nada nem de ninguém. Mas existem, é verdade, comportamentos no sector do vinho que me incomodam. Com 60 anos feitos, 33 dos quais a […]

Editorial da revista nº57, Janeiro 2022

LUÍS LOPES

Um recente trabalho de Ricardo Felner no Expresso identificou-me, de certo modo, como “inimigo” dos chamados vinhos “naturais”. Sinceramente, não sou inimigo de nada nem de ninguém. Mas existem, é verdade, comportamentos no sector do vinho que me incomodam. Com 60 anos feitos, 33 dos quais a escrever sobre vinhos, acho que posso abrir o livro e deixar claro aquilo de que não gosto. Então aí vai.

Não gosto de colocar tudo no mesmo saco: orgânico, biodinâmico, leveduras indígenas, sustentabilidade, filtração, sulfuroso, “natural”. São produtos, práticas e conceitos diferentes e, alguns, até antagónicos. Só o Esporão, por exemplo, tem mais área de vinha orgânica do que todos os “naturais” juntos. Luis Pato faz alguns vinhos e espumantes sem adição de sulfuroso mas não é orgânico. A Casa de Mouraz é mesmo biodinâmica mas protege os seus vinhos com sulfuroso. Mário Sérgio Nuno, da Quinta das Bágeiras, nunca colocou uma levedura nos lagares ou nos toneis de fermentação. E o gigante espanhol Miguel Torres é referência mundial em produção sustentável e protecção ambiental e há muito que abandonou o modelo orgânico.

Não gosto de rótulos, a não ser nas garrafas. “Natural” por oposição a “tecnológico” é ver o mundo a preto e branco. O vinho, é tudo menos isso, é uma paleta infinita de cores, um universo de diversidade, estilos e conceitos, distintas formas de trabalhar e de transformar o fruto da videira numa bebida apaixonante.

Não gosto do primado da diferença sobre a qualidade. É fantástico quando conseguimos associar, num copo, qualidade e diferença. Mas prefiro qualidade sem diferença, do que diferença sem qualidade.

Não gosto de confundir gosto e qualidade. Gosto discute-se, qualidade não. A qualidade é imediatamente reconhecível, mesmo por quem não é especialista ou conhecedor. Se um vinho cheira mal, não há quem me convença de que cheira bem. Uma couve podre é uma couve podre, um guisado queimado é um guisado queimado. Não há volta a dar.

Não gosto de catequismos. Não sou crente, mas respeito todas as crenças. Desde que não insistam em catequizar-me. Quando um sommelier me disser, condescendente, que não aprecio um vinho que cheira e sabe mal apenas porque não estou acostumado a ele, irei responder como Susana Esteban o fez, nas mesmas circunstâncias: “pois não, estou habituado a beber vinhos bons”.

Não gosto da demonização da ciência. Rejeitar a enologia é como rejeitar a medicina. É verdade que alguns o fazem. Mas eu não queria estar na pele deles quando tiverem uma apendicite aguda.

Não gosto do elitismo. O vinho não pode ser algo apenas ao alcance de um grupo de iluminados que se acham superiores. Enquanto produto, o vinho é, e deve continuar a ser, democrático, acessível a todas as bolsas. Para poder ter preços acessíveis tem de ser feito em volumes grandes. Uma vez que estabilizar dois milhões de litros não é o mesmo que cuidar de duas barricas, existem para o efeito produtos enológicos, legalmente autorizados e fiscalizados. Bebo muitas vezes vinhos de €2,49? Raramente. Tal como raramente vou ao McDonald’s. Mas prefiro, de longe, comer um hambúrguer de carne fresca do que um robalo de mar com 15 dias de frigorífico.

Não gosto da publicidade enganosa, das aldrabices, da mentira. Exemplos? Quando se impinge a turvação de um vinho como valorizadora, apenas porque não se esperou o tempo suficiente antes de engarrafar. Quando um produtor “orgânico” apanha com um ataque de míldio e utiliza o que for preciso para salvar as uvas. Quando se inundam as redes sociais de fotos das galinhas e ovelhas nos 2 hectares de vinha biodinâmica e se compram 200 toneladas de uva aos vizinhos que até glifosato usam. Quando se afirma que o espumante é “natural” porque não levou sulfuroso, mas depois leva 7 gramas de açúcar no licor de expedição. Quando dizem “fazer” vinho e não sabem podar uma videira, quando se assumem “vignerons” e não têm vinha. Em boa verdade, há muito mais coisas de que não gosto, mas acho que já chega.

Editorial – A Bairrada do espumante

Editorial da revista nº56, Dezembro 2021 Mais do que uma região onde tradicionalmente se produz espumante, a Bairrada é uma região onde o espumante faz parte da tradição. Parecendo a mesma coisa, é bem diferente. No primeiro caso, envolve apenas os produtores; no segundo, todos, produtores e população, vivem a cultura do espumante.   Quando, […]

Editorial da revista nº56, Dezembro 2021

Mais do que uma região onde tradicionalmente se produz espumante, a Bairrada é uma região onde o espumante faz parte da tradição. Parecendo a mesma coisa, é bem diferente. No primeiro caso, envolve apenas os produtores; no segundo, todos, produtores e população, vivem a cultura do espumante.

 

Quando, em 1890, José Maria Tavares da Silva levou a cabo as primeiras experiências de espumantização na então chamada Escola Prática de Viticultura e Pomologia, em Anadia, estaria longe de pensar o efeito transformador que o seu trabalho traria para a região da Bairrada. A apresentação oficial dos seus espumantes, em 1891, desencadearia um processo de industrialização que daria o primeiro passo em 1893 com a criação da Associação Vinícola da Bairrada (produtora do apelidado “Champagne Portuguez”) e teria a sua explosão a partir dos anos 20 do século seguinte, com o nascimento de dezenas de “Caves”.

Na década de 60, as Caves davam trabalho a uma boa parte da população local e contribuíam para o sustento de milhares de pessoas: praticamente todas as famílias acumulavam um emprego (na indústria metalomecânica ou cerâmica, sobretudo) com o amanho de uma ou mais parcelas de vinha, entregando as uvas nas adegas cooperativas (que depois vendiam o vinho às Caves) ou fazendo os vinhos nas suas adegas caseiras, onde os compradores das Caves os iam depois escolher e adquirir.

Quando visitei pela primeira vez a Bairrada do vinho, no início de 1990, o espumante era um produto comum a todos os agentes económicos da fileira, grandes e pequenos. Ao mudar-me de Lisboa para Sangalhos, em 1995, reparei que a cultura do espumante era transversal a toda a população, mesmo a que nada tinha a ver com a produção de vinho: qualquer casa que visitasse me recebia com “uma tacinha de espumante”. E em qualquer refeição, a garrafa de espumante estava presente, do início ao fim. Só aí entendi que a região da Bairrada, e não apenas os profissionais do vinho, sentia e vivia espumante, numa interiorização cultural da bebida por parte das gentes locais que só encontrei paralelo em Champagne e, em menor grau, em algumas vilas da Catalunha.

De então para cá, algumas coisas mudaram. Nos anos 90, a produção de espumantes em Portugal estava quase totalmente centrada em dois grandes núcleos: Lamego e Távora-Varosa (com Raposeira e Murganheira) e a Bairrada, com as suas Caves. Hoje, são centenas os produtores de vinho nacionais, desde o Vinho Verde ao Algarve, que fazem também um espumante como complemento de gama. Ainda que, na sua esmagadora maioria, os novos produtores recorram a diversos “facilitismos” e dispensem, entre outras, três práticas que fazem a diferença entre um bom espumante e um grande espumante: leveduras livres, espumantização/estágio a temperatura baixa e constante e, sobretudo, largo tempo em garrafa sobre as borras da segunda fermentação. O genuíno método clássico (outrora chamado, não por acaso, “método champanhês”), como sabemos, não abdica de nada disto. Mas esse é tema para outra conversa.

Interessante é que, apesar da dispersão geográfica da sua produção, ainda hoje, 60% do vinho espumante produzido em Portugal é feito entre Coimbra e Aveiro. Deste, cerca de metade obtém a certificação Bairrada ou IG Beira Atlântico, e foi uma amostra desse universo que provei para esta edição da Grandes Escolhas. Preservando o estilo de cada casa e o carácter das castas utilizadas, a qualidade geral dos espumantes da região é notável.  Segredo, não existe. Ou, se quisermos, são muitos: clima, solos, castas, história, caves, conhecimento técnico, cultura, tempo. É tudo isso e muito mais que faz da Bairrada uma grande região de espumantes. A Bairrada, na verdade, respira espumante. Afinal de contas, sempre são 130 anos disto.

Editorial – Desafiante

Editorial da revista nº55, Novembro 2021 Terminada que está a colheita das uvas, talvez a melhor forma de classificar a vindima de 2021 será dizer que, quando pensarmos nela no futuro, não suscitará grandes saudades. Quero com isso sugerir que foi uma vindima medíocre? Não, de forma alguma. Mas, poderia ter sido bem melhor, como […]

Editorial da revista nº55, Novembro 2021

Terminada que está a colheita das uvas, talvez a melhor forma de classificar a vindima de 2021 será dizer que, quando pensarmos nela no futuro, não suscitará grandes saudades. Quero com isso sugerir que foi uma vindima medíocre? Não, de forma alguma. Mas, poderia ter sido bem melhor, como 2011, por exemplo…

 

Convenhamos: uma vindima perfeita, como foi 2011, só acontece uma vez em cada década, ou até mais raramente. Desde a minha estreia na escrita de vinhos assisti a 33 vindimas, percorrendo vinhas e adegas de todo o país. E provei nas cubas, barricas e garrafas os seus resultados. Considero, assim, poder fazer uma avaliação global minimamente informada e realista. Portugal é, felizmente, um país muito diverso, em climas, solos e castas. Com muita frequência, uma mesma vindima é excelente numa região e apenas sofrível noutra. Quase nunca acontece uma mesma colheita ser nacionalmente considerada medíocre ou extraordinária. No primeiro caso, lembro-me de 1993 e, em parte, 2002. No segundo, sem qualquer dúvida, 2011.

Uma década passada sobre a vindima de 2011, não há produtor de vinho que não se recorde das suas circunstâncias. Maturações lentas e de regular progressão, sem excessos de calor. Uvas sanitariamente perfeitas. Ausência de chuva durante o período de colheita. Foi um daqueles anos em que as uvas amadureceram devagar, preguiçosamente, e o lavrador esperou por elas, descansado, sem stress, porque a previsão meteorológica a duas semanas nada anunciava de preocupante. Cada talhão foi colhido no momento certo e as uvas permaneceram nos depósitos todo o tempo que precisaram, sem pressa de sair para dar lugar à carga seguinte. Hoje, independentemente de alguns eventuais excessos de concentração (mais por “moda” da época do que por culpa das uvas), a verdade é que os 2011 se destacam, imponentes, em qualquer prova vertical que se faça dos vinhos de um dado produtor, de norte a sul do país.

2021 foi muito diferente. Antes da vindima, foi difícil controlar pragas e doenças. Depois, as maturações das uvas estavam globalmente atrasadas, e houve que esperar. Com as brancas, sobretudo nas zonas mais quentes, tudo correu pelo melhor e há muitos bons (e bastantes excelentes) vinhos. Com as tintas, não foi bem assim. Ainda que as maturações dos taninos se tenham antecipado (o que evitou vinhos amargos e verdes) o açúcar não estava lá, e sem uvas maduras não há aromas e sabores. As uvas tardaram muitíssimo em chegar ao ponto certo e antes de o alcançarem vieram as chuvas. A generalidade dos produtores resolveu, e bem, esperar em busca de uma aberta no tempo que permitisse aos cachos eliminar a água e reganhar concentração. Em muitos casos, assim aconteceu, uma vindima às pinguinhas, com avanços e recuos, mas que deu bons resultados. Em muitos outros, quando as uvas estavam quase prontas vinha nova chuvada e, a dada altura, só havia uma decisão possível: apanhar o mais que se puder no primeiro dia de sol e não parar a partir daí. Para os produtores, foi uma vindima muito longa e, acima de tudo, bastante extenuante, física e mentalmente. Como um enólogo me dizia, “foi uma vindima desafiante, mas desafiante com M…”

O que podemos então esperar? Provei mais de 300 amostras de vindima desta campanha e, posso dizer que, globalmente, os resultados estão acima das minhas expectativas. Não estamos perante um 2002 e, muito menos, um 1993, bem longe disso. Há mesmo muitos vinhos tintos surpreendentes pela qualidade da fruta e frescura de boca, com menos álcool que o habitual, claro, mas isso até é positivo. Mais uma vez, as pessoas fizeram a diferença. A qualidade e quantidade de profissionais de campo e adega nada tem a ver com a de há uma ou duas décadas. Prevenir, tratar, decidir, separar. Assim se conseguiram os melhores vinhos de 2021. Vindima desafiante? Porque não? Sempre é melhor do que o tão batido “vindima atípica”…

Editorial – A Serra

Editorial da revista nº54, Outubro 2021 Esta edição da Grandes Escolhas tem como tema de capa os vinhos da Serra de São Mamede. Dizer apenas “Portalegre” já seria suficiente para despertar a atenção, justificada pelos recentes investimentos feitos nesta sub-região do Alentejo e pela qualidade e carácter dos vinhos ali produzidos. Mas Serra de São […]

Editorial da revista nº54, Outubro 2021

Esta edição da Grandes Escolhas tem como tema de capa os vinhos da Serra de São Mamede. Dizer apenas “Portalegre” já seria suficiente para despertar a atenção, justificada pelos recentes investimentos feitos nesta sub-região do Alentejo e pela qualidade e carácter dos vinhos ali produzidos. Mas Serra de São Mamede, enquanto parte da DOC Alentejo-Portalegre, é diferente, uma unidade geográfica e uma realidade vitivinícola com uma identidade vincada e muito própria.

Quando se fala de Portalegre numa perspectiva de vinha e de vinho, devemos visualizar (pelo menos) três realidades distintas, correspondendo a outras tantas unidades geográficas. Primeiro, o distrito de Portalegre, que coincide com o chamado Alto Alentejo, limitado a norte pela Beira Baixa. É uma vasta região que vai desde Elvas e Campo Maior, a sul, até Gavião e Nisa, a norte. Este é claramente um Alentejo mais verde na paisagem, mais ondulado na orografia e mais fresco no clima. Embora não olhemos hoje para os 15 concelhos do distrito como sendo, globalmente, de forte implantação vitivinícola (ao contrário do que acontece com muitos outros concelhos dos distritos de Évora e Beja), não podemos esquecer que aqui se situam algumas das mais antigas casas de vinho do Alentejo, desde logo Tapada do Chaves (Portalegre), Mouchão (Sousel) e, mesmo, Fundação Abreu Callado (Avis) que, embora sem a notoriedade das anteriores, engarrafa vinho desde os anos 50.

Quando apertamos o foco geográfico, chegamos então a Portalegre enquanto sub-região da Denominação de Origem Alentejo. Aqui encontramos a vinha e o vinho em todo o seu esplendor, numa expressão diferenciadora do carácter Alentejo, já de si muito diversificado em função da multiplicidade de solos, orografias, climas, castas.

A DOC Alentejo-Portalegre abrange o concelho de Portalegre e pequenas partes dos concelhos de Castelo de Vide, Crato, Marvão e Sousel. Os vinhos DOC Alentejo-Portalegre são claramente marcados pela Serra de São Mamede, que exerce a sua influência desde as explorações situadas no seu sopé até aos vinhedos localizados mas zonas mais altas. Muitas das vinhas mais antigas do Alentejo situam-se precisamente em Portalegre (como as parcelas tinta e branca da Tapada do Chaves, com registos de plantação de 1901 e 1903), para além de várias outras espalhadas pela Serra e cuja recuperação e preservação contribui decisivamente para o carácter dos vinhos aqui produzidos.

Dentro da DOC, porém, existe uma unidade geográfica mais pequena que, embora não esteja oficialmente individualizada em termos vitivinícolas (ao contrário do que é habitual noutros países europeus), revela uma forte identidade em termos dos vinhos que origina: a Serra de São Mamede propriamente dita, local mágico onde a altitude dita a sua lei. Ali, a floresta alterna com vinha, plantada, regra geral, entre os 500 e os 700 metros de altitude.

Vinhas velhas e vinhas mais recentes, produtores de perfil mais clássico ou mais moderno, juntam-se num fantástico mosaico vitivinícola e cultural, dando corpo àquilo a que podemos – por enquanto apenas “oficiosamente” – chamar, os vinhos da Serra de São Mamede. Nem melhores nem piores do que outros grandes vinhos de Portalegre ou do Alentejo, mas, sem dúvida alguma, diferentes. E, também por isso, tremendamente entusiasmantes.

Editorial – Bairrada em branco

Editorial da revista nº53, Setembro 2021 Num mercado, nacional e internacional, onde a procura de vinhos brancos de superior qualidade continua, globalmente, a crescer, é impossível ficar indiferente à oferta da Bairrada nesta categoria. A Bairrada é uma extraordinária região de brancos, e acredito que essa faceta só ainda não teve o reconhecimento que merece […]

Editorial da revista nº53, Setembro 2021

Num mercado, nacional e internacional, onde a procura de vinhos brancos de superior qualidade continua, globalmente, a crescer, é impossível ficar indiferente à oferta da Bairrada nesta categoria. A Bairrada é uma extraordinária região de brancos, e acredito que essa faceta só ainda não teve o reconhecimento que merece devido ao desempenho e buzz mediático dos seus tintos e espumantes.

 

Faz algum sentido avaliarmos o padrão das nossas opções vínicas em função do espaço que cada região ou tipo de vinho ocupam nas nossas garrafeiras. E digo “algum sentido” e não “todo o sentido”, porque frequentemente, a oportunidade, a proximidade geográfica, ou o preço, têm um peso importante nas nossas compras. Abstraindo-me dessas nuances, e admitindo que as minhas escolhas de garrafeira se norteiam exclusivamente pela qualidade intrínseca, potencial de longevidade e gosto pessoal, no que a brancos diz respeito, logo a seguir a Monção e Melgaço, são as garrafas de Bairrada que mais “área de prateleira” tomam em minha casa. Acho que isto diz do apreço que tenho pelos vinhos brancos desta região.

Mas vou mais longe. Ando nisto há mais de três décadas, e conservo vinhos desde, pelo menos, meados dos anos 80, abrindo frequentemente garrafas com mais de 10, 15 ou 20 anos. Por isso, se me centrar apenas no critério longevidade (importante para saber o que guardar sem sobressaltos) posso avaliar com relativa precisão a capacidade que os brancos de cada região têm para envelhecer com nobreza. E aí, salvaguardadas as devidas excepções (brancos longevos existem em todas as regiões), não tenho qualquer dúvida em afirmar que os melhores brancos de garrafeira são, em primeiro lugar, Bairrada, seguida de muito perto pelo Dão, com Monção e Melgaço a fechar o pódio.

Curiosamente, porém, quando o apreciador, mesmo o mais esclarecido, pensa em Bairrada, no seu “top of mind” estão invariavelmente tintos (em particular os Baga) e espumantes. Muitos, provavelmente, pensarão que o grande Bairrada branco é coisa residual. Mas está longe de o ser, como se vê no elevadíssimo nível médio dos brancos bairradinos provados por Mariana Lopes para esta edição. Por outro lado, a cada vez maior utilização de uvas tintas Baga nos espumantes, associada à progressiva valorização dos brancos tranquilos (já existem muitos exemplos acima dos €15, €20, €30…), tem permitido “libertar” maior quantidade de uvas brancas para fazer vinhos de topo. E novas referências surgem, vindima após vindima.

Desde há muito que Luís Pato (pioneiro e referência incontornável) afirma com veemência que, no seu entender, Bairrada é, sobretudo, região de brancos. Apesar da minha ilimitada paixão pelos tintos Baga, tendo a dar-lhe razão. É que, enquanto apenas uma minoritária parte da Bairrada vinícola (solos de argila e calcário, em encosta, com boa exposição solar) consegue originar Baga de excelência, as mais nobres uvas brancas utilizam todos os recursos da região em seu proveito: argila, calcário, areias e, claro, o fresco clima atlântico. Não fora o facto de, tradicionalmente, para as uvas brancas estarem reservados os piores terrenos (espumante obriga…) e o esplendor dos brancos bairradinos seria ainda mais evidente.

Espantosa é igualmente a capacidade que a Bairrada tem de imprimir a sua marca qualitativa a uma grande diversidade de castas, clássicas ou “modernas”. Em que outro lugar se faz Maria Gomes (Fernão Pires) com 14% de álcool e 7,5 de acidez? E que dizer do Bical que ali atinge elegância inigualável? Junte-se o polivalente e seguríssimo Arinto, o Cerceal (absoluta estrela em ascensão), o raro e enigmático Sercialinho ou, se quisermos sair da tradição, Alvarinho, Chardonnay e Sauvignon Blanc, e percebemos que, na Bairrada, não falta matéria para atingir a máxima grandeza. Os vinhos aí estão, para dissipar dúvidas e preconceitos.

 

Editorial – Elogio da Castelão

Editorial da revista nº52, Agosto 2021 Dois eventos com o mesmo denominador comum, num curto espaço temporal, trouxeram-me ao copo e à mente uma variedade de uva com a qual tenho convivido de perto desde o início da minha carreira: Castelão. Uma casta outrora dominante, depois caída em desgraça, e que ainda hoje, apesar de […]

Editorial da revista nº52, Agosto 2021

Dois eventos com o mesmo denominador comum, num curto espaço temporal, trouxeram-me ao copo e à mente uma variedade de uva com a qual tenho convivido de perto desde o início da minha carreira: Castelão. Uma casta outrora dominante, depois caída em desgraça, e que ainda hoje, apesar de tímidas tentativas de reabilitação, está longe de ser consensual.

 

No passado mês de julho tive dois encontros marcantes com a Castelão como protagonista. Primeiro, levei para um almoço muito especial, onde só são admitidos vinhos de idade avançada, um conjunto de preciosidades da minha garrafeira, brancos e tintos, entre eles um Periquita 1986. Desgraçadamente, dos 14 vinhos diferentes que abri nessa manhã, era o único com gosto a rolha. Odeio quando isso acontece com um vinho velho, considero quase uma ofensa pessoal e uma desconsideração pelo tempo e carinho que dediquei à garrafa em questão. Por isso, como sabia ter ainda uma outra garrafa em casa, arranjei pretexto para a abrir dois dias mais tarde: estava sublime, firme, complexo, com tanino ainda presente e fantástico equilíbrio de acidez. O blend não podia ser mais original e retrata uma época e um local: Castelão, em larga maioria, com Monvédre e Espadeiro.

O segundo momento Castelão teve a ver com uma muito interessante prova organizada pela CVR do Tejo (ver página 34). Com vinhos velhos e novos, a iniciativa visou reavivar esta casta clássica regional, junto dos produtores locais e dos apreciadores.

Houve tempos, não muito longínquos, em que a Castelão era a casta tinta mais plantada em Portugal. Quando Jorge Bohm escreveu, em 2005, o seu “O Grande Livro das Castas” (obra de consulta obrigatória) já tinha deixado de o ser, perdendo a posição para a Tinta Roriz/Aragonez. Desde então foram raríssimas as novas plantações de Castelão. Ao invés, milhares de hectares desta casta foram substituídos por Syrah, Touriga Nacional ou Alicante Bouschet.

Em 1995, a Castelão ainda era a primeira ou segunda casta tinta em algumas sub-regiões do Alentejo, como Redondo, Borba e Reguengos. Há muito que deixou os lugares cimeiros, e embora continue presente em vários vinhos de entrada de gama, quase ninguém a usa nos lotes mais ambiciosos. Nas vinhas antigas de sequeiro, porém, ainda permanece, contribuindo com o seu perfume e elegância para a elaboração de alguns tintos marcantes, como o Sem Vergonha de Susana Esteban, um estreme de Castelão.

No Tejo, mantém-se a tinta mais plantada, com 1.500 hectares, e está presente na maioria dos lotes regionais. Porém, há apenas dois ou três os tintos 100% Castelão. Mas existem sinais positivos vindos de casas como Companhia das Lezírias ou Quinta da Alorna. Esta última irá lançar em breve, um belíssimo Castelão 2017 de uma só parcela.

Junto do apreciador, no entanto, o “solar” do Castelão está hoje claramente identificado com a Península de Setúbal (onde, curiosamente, a casta chegou vinda do Tejo) e em particular com os solos pobres e arenosos de Palmela. Ali encontramos diversas vinhas de sequeiro que são a base de quase duas dezenas de vinhos de Castelão, entre eles alguns de topo, que se destacam pela textura, elegância e potencial de longevidade. Segundo a CVR local, estão certificados e cadastrados 5.273 hectares de castas tintas, dos quais 3.255 ha de Castelão, um verdadeiro tesouro para quem o saiba usar.

Como já perceberam depois de toda esta conversa, gosto de Castelão. Tenho-a como uma variedade versátil (espumantes blanc de noirs, rosés, tintos) que pode originar vinhos que primam, não pela cor e pela potência, mas pela qualidade da fruta, pelo equilíbrio de acidez, pela finura. Apesar de ser utilizada sobretudo para esse fim, não é a fazer tintos bons e baratos que mostra o que vale, outras cumprirão melhor essa tarefa. Acredito que, se for bem tratada na vinha e na adega, pode tornar-se em mais uma daquelas pérolas do património vitícola nacional que, de quando em vez, resgatamos do baú do esquecimento para brilhar resplandecente e fazer toda a diferença.

O que (realmente) bebemos

Editorial da revista nº51, Julho 2021 Um jantar de amigos cujos vinhos me fazem reflectir, pela enésima vez, sobre a eterna questão do poder versus elegância. A sensação de dejá vu (ou melhor, “dejá escrito”) que me transporta a um editorial de há quase duas décadas. E a conclusão de que, por muito que as […]

Editorial da revista nº51, Julho 2021

Um jantar de amigos cujos vinhos me fazem reflectir, pela enésima vez, sobre a eterna questão do poder versus elegância. A sensação de dejá vu (ou melhor, “dejá escrito”) que me transporta a um editorial de há quase duas décadas. E a conclusão de que, por muito que as tendências vínicas vão mudando, na hora de “fazer figura”, o tipo de vinho que escolhemos não muda tanto assim.

 

Façamos o seguinte exercício. Perguntemos às amigas e amigos que entendem e apreciam vinhos de qualidade, qual a garrafa que levavam para a (inevitável) ilha deserta. Aposto que as respostas irão: primeiro, privilegiar os vinhos brancos; segundo, Borgonha e Champagne à cabeça, ou talvez (os mais patriotas) Dão Encruzado ou Monção e Melgaço Alvarinho ou Pico Verdelho. Muito poucos irão referir um tinto do Alentejo ou do Douro, um Bordéus ou Barolo clássicos, ou mesmo um Porto Vintage. Coloquemos então a questão de outra forma, mais directa: qual o perfil de vinho que mais apreciam? Garanto que 99% dos apreciadores inquiridos irão apontar para a santíssima trindade dos atributos vínicos: leveza, elegância, frescura.

Agora deixemo-nos de exercícios e passemos à realidade. Cenário: um lauto jantar entre cinco amigos, na casa de um deles, onde foi pedido a cada um que levasse uma garrafa. Atenção, não se escolhe uma garrafa qualquer para um jantar entre gente que sabe de vinho. É preciso algo que não se beba todos os dias, que impressione, que nos permita sair no final com a sensação, mesmo que enganadora, de que o “vinho da noite” foi o nosso. Então, dito isto, e depois dos espumantes/champagnes de entrada, que vinhos estiveram na mesa? Um branco “vin jaune” de Jura invulgarmente bom (pelo menos para mim, que não sou fã da região) e quatro tintos, todos eles de elevadíssimo nível: um Rioja “moderno”, um “super toscano”, um Toro “tradicional” e um Bairrada “clássico”. O que estes vinhos tinham em comum? Ainda que a nenhum faltasse frescura e alguns manifestassem mesmo uma certa elegância, nenhum deles encaixava propriamente no estereotipo de “leve, elegante e fresco”.

Onde é que eu quero chegar com tudo isto? Apenas salientar que, apesar de em nossas casas (e falo por mim), preferirmos beber vinhos mais leves no álcool e mais vivos na acidez, quando queremos mesmo impressionar, arrasar a “concorrência”, mandamos o vinicamente correcto às malvas e vamos buscar a artilharia pesada. E isto, note-se, entre pessoas que têm acesso a vinhos ultra premium. Se olharmos para o que bebe a esmagadora maioria dos consumidores do mundo, consumidores comuns que não têm de “esnobar” (deliciosa expressão brasileira!) ninguém, a cor, a concentração, a opulência e, em muitos casos, o álcool, são os maiores atributos.

Então, em que ficamos? Poder ou elegância? Respondo com um excerto de um editorial que escrevi no longínquo ano de 2002. “Quem possui algum interesse pelos grandes vinhos do mundo, já provavelmente ouviu falar na dicotomia ‘Bordéus-Borgonha’, como exemplo de dois estilos de vinho completamente opostos: de um lado o poder e a concentração, do outro lado a elegância e a finura. Normalmente, os apreciadores procuram colocar-se de um lado ou do outro, defendendo a sua ‘dama’ com diversos tipos de argumentos. É uma discussão fútil, quanto a mim, porque o poder e a elegância não são incompatíveis. Ou seja, o grande vinho é quase sempre, ao mesmo tempo, poderoso e elegante.“

Já agora, para aquele jantar, fui eu que levei o Bairrada clássico. O vinho, Baga de vinhas velhas, tem 14,5% de álcool, garra, tanino, acidez, muito sabor e frescura. A elegância também virá, com o tempo em cave. E, claro, em minha opinião, como não podia deixar de ser, foi o vinho da noite.

Tanto Douro

Editorial da revista nº50, Junho 2021 Provavelmente, muitos não terão ainda dado por isso, mas a verdade é que os vinhos do Douro mudaram, e bastante, ao longo, sobretudo, da última década. O território continua o mesmo, imponente, marcante. Mas as opções vínicas são, hoje, muito mais diferenciadas, deixando o tom monocromático de outrora para […]

Editorial da revista nº50, Junho 2021

Provavelmente, muitos não terão ainda dado por isso, mas a verdade é que os vinhos do Douro mudaram, e bastante, ao longo, sobretudo, da última década. O território continua o mesmo, imponente, marcante. Mas as opções vínicas são, hoje, muito mais diferenciadas, deixando o tom monocromático de outrora para exibirem toda a paleta do arco-íris.

 

Aviso à navegação: vou dizer algo que pode chocar as almas vínicas mais sensíveis. Se for o caso, por favor, parem de ler por aqui. Continuo? Então aí vai: durante muito, muito tempo, a prova dos melhores tintos do Douro, com trinta ou quarenta vinhos, era a avaliação mais aborrecida, monótona, física e mentalmente extenuante, do calendário anual de provas da nossa equipa. Pronto, está dito.

Agora, deixem que justifique tão singular afirmação. O desafio principal desse painel de prova assentava no facto de os vinhos serem cansativamente bons (sem os altos e baixos que facilitam avaliar grande número de amostras) e, ao mesmo tempo, insuportavelmente parecidos uns com os outros. E porquê? Porque a uniformidade de decisões de adega tomadas pelos produtores e enólogos para os tintos mais ambiciosos do seu portefólio, acabava por esbater consideravelmente a origem das uvas.

O Douro moderno, no que aos vinhos “não Porto” diz respeito, nasceu no início dos anos 90. Ramos Pinto, Niepoort, Alves de Sousa, Quinta do Crasto foram alguns desses pioneiros, seguidos no final dessa década por nomes como Vallado, Vale Meão, Quinta da Leda, Chryseia, entre outros. Na década seguinte o Douro já fervilhava. E uma nova geração de produtores e enólogos partilhava entre si conhecimentos e experiências enriquecedoras, consolidando, colheita após colheita, a qualidade dos seus vinhos, empurrados por um mercado receptivo e entusiástico. Nunca tantos e tão bons vinhos se tinham feito no Douro. Apenas um senão, aquele que acima mencionei: ao contrário dos vinhos pioneiros, que assentavam num processo de aprendizagem, e também por isso bem diferentes entre si, estes vinhos partiam de técnicas e equipamentos comuns (quase toda a gente fazia as mesmas macerações e remontagens e comprava as barricas nas mesmas tanoarias…) e eram demasiado semelhantes no conceito e no estilo.

Nos últimos nove ou dez anos, o panorama tem vindo a mudar. Resolvido o conhecimento técnico, existe agora muito mais margem de manobra para experimentar com segurança. E os profissionais durienses estão a tirar o máximo partido disso. Todos os recipientes de fermentação e estágio são válidos (lagar, inox, cimento, barro, até plástico alimentar…), a madeira não tem a preponderância de outrora, a marcação da vindima já é feita em função do estilo de vinho pretendido (encontramos belos tintos, entre os 12,5% aos 15,5%…).

Mais importante do que tudo o resto: o respeito pela origem está na primeira linha das preocupações de produtores e enólogos. Baixo Corgo, Cima Corgo, Douro Superior, vale do Tua, do Torto, do Pinhão, do Távora, do Côa, exposição solar, altitude, castas, constituem um imenso puzzle que começa agora, verdadeiramente, a fazer sentido. Já não basta dizer que o vinho é do Douro. Cada vez mais, um local concreto se expressa nos aromas e sabores do vinho, tão ou mais importante do que as decisões de vinha e adega.

Duas reportagens publicadas nesta edição sobre novos vinhos durienses constituem os melhores exemplos do que acabo de referir. A Quinta de Ervamoira exalta o Douro moderno: a vinha ao alto, a Touriga Franca e a Touriga Nacional, o carácter do Côa na suprema qualidade da fruta e polimento de taninos.

A Quinta da Manoella é um monumento ao Douro antigo: a vinha velha com inúmeras castas, o field blend, a personalidade de Vale de Mendiz na notável complexidade silvestre, terrosa e fresca.

Hoje, podemos continuar a dizer que os vinhos do Douro nunca foram tão bons. Mas devemos acrescentar que nunca foram tão diferentes e respeitadores das suas muitas origens. A região chegou, finalmente, à sua idade do ouro.