Tempo

Editorial da revista nº49, Maio 2021 Regra geral, quando chamados a associar vinho e tempo, de imediato pensamos na forma como o primeiro se comporta na garrafa com o passar dos anos, na sua curva de crescimento, na fase de aquisição de complexidade, na fase de declínio, no ponto óptimo de consumo. Mas raramente, se […]

Editorial da revista nº49, Maio 2021

Regra geral, quando chamados a associar vinho e tempo, de imediato pensamos na forma como o primeiro se comporta na garrafa com o passar dos anos, na sua curva de crescimento, na fase de aquisição de complexidade, na fase de declínio, no ponto óptimo de consumo. Mas raramente, se é que alguma vez o fazemos, reflectimos sobre a nossa própria evolução enquanto criadores ou consumidores de vinho.

 

A chamada “prova horizontal”, consiste na avaliação de várias marcas ou referências, do mesmo produtor/região e do mesmo ano, e oferece-nos uma excelente oportunidade para perceber as características específicas daquela colheita num determinado local, buscando denominadores comuns do ano vitícola e efeitos distintos consoante a casta, solo, exposição solar ou altitude, por exemplo. Neste modelo, o foco está numa colheita concreta, e é ela que nos transmite a informação que pretendemos.

Por contraponto, a “prova vertical” permite-nos avaliar a mesma referência, do mesmo produtor, ao longo de várias colheitas. “Horizontais” e “verticais” são modelos de prova totalmente diferentes e que visam objectivos distintos. Embora aprecie imenso ir de cuba em cuba, numa adega, provando os vinhos do ano acabadinhos de fazer, confesso que prefiro as provas verticais, sobretudo quando estou perante uma marca com larga história e muitas colheitas para apresentar. E a principal razão desta preferência tem a ver com o factor tempo, que pode ser abordado de múltiplas formas.

Claro que, numa primeira linha de avaliação, está o comportamento do vinho na garrafa e a forma como superou (ou não) a prova do tempo. É interessantíssimo verificar como, na grande maioria dos casos (sobretudo se estivermos perante uma marca/referência de nível superior), os vinhos (brancos ou tintos) precisam de tempo para atingir o seu auge. Mas nem sempre essa ascensão qualitativa é uniforme, ou previsível. Acontece muitas vezes enfrentarmos uma colheita jovem precocemente envelhecida e outra bem antiga e surpreendentemente jovem. É a magia do vinho a funcionar.

No entanto, numa prova vertical, gosto igualmente de imaginar o que ia na cabeça do produtor/enólogo durante vindima, qual era a sua abordagem, que vinho pretendia fazer há cinco, dez, quinze, vinte anos. Se pensarmos nas avassaladoras mudanças que o mundo do vinho tem atravessado em espaços temporais relativamente curtos, mudanças ao nível da produção (viticultura, enologia, tecnologia, conceitos) e ao nível do mercado (gosto do consumidor, comercialização, modas e tendências) facilmente chegamos à conclusão, tantas vezes evidenciada pela sequência de vinhos que temos nos copos, de que a abordagem do criador ao vinho foi mudando ao longo do tempo. O que nos leva a uma constatação ainda mais complexa: no caso de vinhos que levam vários anos em cave até chegarem ao mercado, como acontece com alguns tintos e espumantes mais ambiciosos, o perfil do vinho que acabámos de comprar na loja pode já nem sequer corresponder inteiramente àquilo que o seu produtor/enólogo entende hoje como o perfil ideal para o seu produto.

O mesmo se passa, claro, com o nosso comportamento enquanto consumidores. O tempo muda a forma como olhamos para um vinho. E fá-lo de forma tão gradual e subtil que, frequentemente, nem damos por isso.  Falo por mim: vinhos que adorei há duas décadas continuam a extasiar-me hoje, sempre que vou à cave e abro uma garrafa; e outros que avaliei bem alto há apenas 7 ou 8 anos, já pouco me dizem. Dou por mim a abrir a garrafa, provar, e despejar na pia. Não porque o vinho tenha perdido qualidades, longe disso. Embora mais velho, continua muito bom, exactamente como eu o descrevi na altura. Mas, vá lá saber-se porquê, já não me apetece, não me entusiasma, não mexe comigo, não me dá prazer. As coisas que o tempo faz…

Onde tudo começa

Editorial da revista nº48, Abril 2021 Terra, pedra, textura. Vale, encosta, planalto. Vento, chuva, escaldão, geada. Podar, empar, vigiar, tratar. Enfrentar o frio e o calor, provar os bagos para avaliar sabor, açúcar, acidez, taninos. Regressar triste ou contente, desalentado ou entusiasmado. Será que o tempo aguenta até à vindima? É ali, na vinha, que […]

Editorial da revista nº48, Abril 2021

Terra, pedra, textura. Vale, encosta, planalto. Vento, chuva, escaldão, geada. Podar, empar, vigiar, tratar. Enfrentar o frio e o calor, provar os bagos para avaliar sabor, açúcar, acidez, taninos. Regressar triste ou contente, desalentado ou entusiasmado. Será que o tempo aguenta até à vindima? É ali, na vinha, que tudo tem início. Quem não sente a videira, não pode verdadeiramente sentir o vinho.

Em mais de três décadas a escrever sobre vinhas e vinhos já assisti a muitos ciclos de produção e comercialização. Quando comecei, em 1989, a esmagadora maioria das marcas existentes no mercado correspondiam a vinhos que não tinham sido feitos pela empresa que os engarrafou. Em muitos casos, o proprietário da marca, sobretudo as de maior volume, não tinha sequer ideia da origem do vinho que comprou e que depois vendeu com o seu rótulo. Salvo honrosas excepções, vinha, vinho e marca eram três mundos separados que só se relacionavam através de transações comerciais. Algumas casas entre as grandes possuíam adegas e vinhas próprias, é certo. Mas estas representavam uma parte irrisória das suas necessidades de uvas e vinho. E, mesmo dentro de casa, a vinha era algo longínquo para quem estava na adega e na sala de provas. Em muitas empresas, o enólogo chefe raramente sujava as botas na vinha e, quando o fazia, não era com prazer.

Entretanto, o consumidor foi-se tornando mais conhecedor e exigente. E, a dada altura, deu-se um momento de viragem, quando encontrou valor acrescentado nos chamados “vinhos de quinta”. As empresas maiores sentiram então a necessidade de ter mais controlo sobre a matéria-prima que recebiam. Começaram a aumentar a sua área de vinha, a profissionalizar a vertente agrícola, a valorizar os conhecimentos dos técnicos de viticultura.

No início no século XXI, cresceu entre o apreciador a vontade de saber mais, de chegar até à origem do vinho, de visitar a vinha onde este nasceu. Ao mesmo tempo, já não lhe bastava aceder a um bom produto, o vinho tinha também de ser diferenciador, de ter uma história para contar. Aliada esta vontade do mercado à necessidade de manter a consistência das marcas, as grandes casas reforçaram o seu investimento em terra, em vinha e nos recursos humanos que lhe estão associados. Hoje em dia, é quase impensável para as empresas de maior dimensão, e com marcas em diversos segmentos de preço, não controlar a maioria das uvas, seja nas vinhas próprias, seja nas dos fornecedores.

Curiosamente, porém, nos últimos dois ou três anos, tenho vindo a assistir a algo que, até há pouco, julgaria impensável: o nascimento de marcas de nicho alicerçadas num nome “cool” e num rótulo atractivo, e potenciadas pelas redes sociais. Marcas sem vinha, sem adega, sem vinho (!), protagonizadas por pessoas oriundas de outras áreas de actividade que se insinuam junto de um produtor e que, perante dez ou doze amostras que lhe colocam à frente, escolhem uma para vender com o seu nome. E depois, apesar de nunca terem pegado numa tesoura de poda, enchido uma cuba, colocado uma rolha, contam no Facebook uma história sobre uma vinha que não conhecem e sobre um vinho que “ajudaram a fazer”. Alguns, não têm vergonha de acentuar que até “ensinaram” o enólogo a melhorar o lote. E vendem essas garrafas como vinho “de autor”, cinco vezes mais caro. Só cai quem quer, é verdade, e gente com talento para tomar como seu o trabalho dos outros sempre houve em todas as áreas de negócio. O que me espanta, no entanto, é que são precisamente os apreciadores que valorizam a genuinidade e a diferença que vão no logro, e compram esta falsa exclusividade a um preço muito acima do seu valor qualitativo.

Tenho para mim que, quanto mais ambicioso e oneroso for um vinho, mais fácil deverá ser para o consumidor seguir as suas pegadas até à origem. E a origem de um grande vinho é terra, é vinha, é gente. É verdadeiramente ali que tudo começa. Sem essa rastreabilidade, o vinho é apenas uma marca, mais uma.

O que guardar de 2020

Luís Lopes

Editorial da revista nº47, Março 2021 Como fazemos todos os anos, a edição de março é dedicada aos Prémios Grandes Escolhas. Aqui distinguimos os vinhos, as pessoas, os agentes económicos, os projectos, as organizações que em 2020 deixaram marca junto de profissionais e consumidores. E hoje, talvez mais do que nunca, este reconhecimento é merecido […]

Editorial da revista nº47, Março 2021

Como fazemos todos os anos, a edição de março é dedicada aos Prémios Grandes Escolhas. Aqui distinguimos os vinhos, as pessoas, os agentes económicos, os projectos, as organizações que em 2020 deixaram marca junto de profissionais e consumidores. E hoje, talvez mais do que nunca, este reconhecimento é merecido e necessário. 

Luís Lopes

Que 2020 não foi um ano normal (nem 2021 o está a ser), já todos o sabemos. Fiquemos por aqui. Recuso-me, nestas linhas, a utilizar as palavras que leio e oiço todos os dias, as palavras que devoram todas as outras como se mais nenhumas houvesse para escrever ou dizer. Não as irão ler nesta página. 

Prefiro falar do que de bom aconteceu em 2020. Dos belíssimos vinhos que provámos e bebemos (e foram tantos!); das pessoas que deram o máximo do seu talento e conhecimento, realizaram sonhos, lançaram marcas, recuperaram tradições, comunicaram histórias de sucesso, transformaram produtos da terra e do mar em vinhos e comidas que vieram alegrar as nossas mesas; das empresas que se dinamizaram, inventaram ou reinventaram, criaram ou mantiveram empregos, contribuíram para o desenvolvimento regional ou nacional, levaram mais longe o nome da qualidade “made in Portugal”. Vamos, pois, falar de coisas boas. 

Permitam-me que comece pelos vinhos e que, entre os muitos que premiámos, destaque apenas quatro, os eleitos para liderar cada categoria. E que grandes vinhos são o espumante Murganheira Vintage 2011, o branco Guru NM, o tinto Quinta das Bágeiras Pai Abel 2015 e o fortificado Sandeman Vintage 2018! 

Não foi por 2020 ser 2020 que deixámos de poder apreciar e avaliar a excelência na cozinha, na mesa, ou na sala. E muito impressionados ficámos com o trabalho dos restaurantes Toca da Raposa, Marmoris Narcisus Fernandesis e JnCquoi Asia. Conceitos e estilos bem distintos, o mesmo empenho e arte. Arte que não falta ao esmerado e competentíssimo serviço de vinhos de Fernando Ruas. Nem à escrita de Alexandra Prado Coelho que, todas as semanas, e sem precisarmos sair do ninho, nos transporta para um mundo de prazeres gastronómicos, como tão bem o fazia o mestre das letras David Lopes Ramos que dá o nome ao prémio com que foi distinguida.  

Em 2020 visitámos espaços de referência onde os vinhos se sentem em casa, como a garrafeira Wines 9297 e a Enoteca 17.56 (curiosa coincidência, esta coisa dos números), ou onde o vinho é a casa, como o World of Wine. E mesmo um espaço virtual que entra em nossa casa, como a loja gourmet online Unique Flavours. 

No lado das empresas e organizações também há muitos motivos para aplaudir. Desde o salto, nos números e no mercado, por parte da região do Tejo, para o qual a Comissão Vitivinícola Regional muito contribuiu, até ao elevado desempenho da Vercoope, um dos motores dos Vinhos Verdes e da Sogevinus, referência no vinho do Porto. Sentimos e aplaudimos a fantástica revolução e dinâmica operadas na Quinta do Gradil (Lisboa) e Falua (Tejo). E que dizer da recuperação da mais profunda matriz cultural e vinícola do Alentejo, materializada nas ânforas da Adega José Piteira, na Amareleja, e da XXVI Talhas, em Vila Alva? Ou do enorme impacto da nova estrela do Dão, a Taboadella 

Deixei para o fim o princípio, as pessoas que pensam e moldam os vinhos. Profissionais talentosos, sabedores, criativos, que na vinha, na adega, na sala de provas, nas caves de estágio, fazem acontecer. Amândio Cruz, na viticultura, Manuel Lobo e Domingos Soares Franco, na enologia, possibilitaram aos apreciadores momentos inesquecíveis. E Anselmo Mendes, cujas qualidades humanas, capacidade de trabalho e conhecimento técnico recolhem respeito e admiração unânime entre enófilos e colegas de ofício, é o nosso grande Senhor do Vinho. 

Devemos a todas estas pessoas e entidades o nosso profundo reconhecimento, merecido e necessário, por tudo o que nos deram em 2020. E é isto, sobretudo, que devemos guardar do ano que passou. 

Red line

Luís Lopes

Editorial da revista nº46, Fevereiro 2021 Figurativamente, a linha vermelha representa uma fronteira, uma demarcação, um limite. Ultrapassada essa linha, existem sempre consequências, e normalmente não são boas. No entanto, muitas das mais geniais obras da humanidade derivaram precisamente da capacidade de arriscar, de caminhar sobre a linha vermelha. E no vinho não é diferente.  […]

Editorial da revista nº46, Fevereiro 2021

Figurativamente, a linha vermelha representa uma fronteira, uma demarcação, um limite. Ultrapassada essa linha, existem sempre consequências, e normalmente não são boas. No entanto, muitas das mais geniais obras da humanidade derivaram precisamente da capacidade de arriscar, de caminhar sobre a linha vermelha. E no vinho não é diferente. 

Luís Lopes

Gosto das pessoas e das coisas que são diferentes, quando são boas. Prefiro, de muito longe, algo diferente e bom do que algo apenas bom. A diferença mexe comigo, faz-me pensar, questiona-me, desafia-me. Isto é válido para tudo, da pintura ao futebol, da literatura aos comportamentos sociais, da comida ao vinho. Porém, é impossível fazer a diferença sem correr riscos. A segurança está, sem dúvida, na base da eficácia e até, admito, da perfeição. Mas dificilmente é um caminho para a singularidade 

Tenho por isso uma admiração sem limites por aqueles que arriscam e que, na sua vida ou na sua actividade, caminham na chamada red line. É uma linha muito fina, onde é extremamente difícil manter o equilíbrio. Um passo em falso, e o que podia ser brilhante transforma-se numa coisa sem préstimo. 

Deixem-me puxar pela minha paixão futebolística para fazer uma analogia com dois jogadores de vanguarda, Zlatan Ibrahimovic, sueco de ascendência bósnia e croata, e Mario Balotelli, italiano de ascendência ganesa. Dois egos do tamanho do mundo, ao ponto de um e outro, frequentemente, se compararem a deuses. Dois talentos extraordinários com a bola, duas personalidades complexas, no limite do risco na sua vida pessoal e profissional. Zlatan sempre caminhou na red line, deslizando na borda do precipício. Aos 39 anos, joga no Milan (equipa que lidera o campeonato italiano) e ainda esta época já marcou por cinco vezes dois golos numa partida. Mario, que tinha tudo para chegar ao mesmo nível e jogou nas melhores equipas do mundo, foi expulso de quase todas por comportamentos inaceitáveis recorrentes e, aos 30 anos, joga (até ver…) no Monza, segunda divisão italiana.  

Uma última analogia, esta vinda da experiência pessoal: todos os que fazem ou fizeram competição automóvel sabem que, para ambicionar resultados, é preciso arriscar e andar muitas vezes na faixa vermelha do conta rotações. Mas também conhecem as consequências de um motor partido… 

Tudo isto para, finalmente, falar de vinho. Cada vez aprecio mais vinhos diferenciadores, vinhos que me surpreendem com aromas e sabores que fogem do habitual. Para os fazer, é preciso arriscar, é necessário assumir um certo descontrolo controlado. Ao contrário do que muitos pensam e dizem, a menor utilização de produtos químicos nas videiras e nas cubas, que eu defendo em absoluto, deve corresponder sempre a uma muito maior intervenção física na vinha e na adega. A chamada “enologia de não intervenção ou intervenção mínima”, é uma irresponsabilidade que conduz, quase inevitavelmente, a maus vinhos.  

Só quem sabe muito de viticultura e enologia se pode dar ao luxo de abdicar da segurança e correr riscos. Mas só correndo riscos se criam vinhos que nos seduzem e impressionam pela sua qualidade, originalidade, personalidade. E mesmo com todo o conhecimento, talento e atenção, quem caminha na linha vermelha sabe que, por vezes, as coisas correm mal. Aí há que admitir o falhanço, descartar o vinho, e tentar de novo. Andar na red line não é para todos. Uns são Zlatan. Outros, Mario.

Baga, paixão e razão

Luís Lopes

Editorial da revista nº45, Janeiro 2021 Há poucas variedades de uva com um carácter tão distintivo quanto a Baga. Difícil na vinha, irreverente na adega, é base de vinhos tão marcantes e inconfundíveis quanto difíceis e polarizadores, sempre de acidez elevada, frequentemente de taninos vigorosos. Não buscando unanimidades, a Baga oferece, cada vez mais, qualidade, […]

Editorial da revista nº45, Janeiro 2021

Há poucas variedades de uva com um carácter tão distintivo quanto a Baga. Difícil na vinha, irreverente na adega, é base de vinhos tão marcantes e inconfundíveis quanto difíceis e polarizadores, sempre de acidez elevada, frequentemente de taninos vigorosos. Não buscando unanimidades, a Baga oferece, cada vez mais, qualidade, identidade, notoriedade e valor, a produtores e apreciadores que procuram tudo isso 

Luís Lopes

A casta Baga e os vinhos que origina (sobretudo) na Bairrada está longe de ser consensual. E não é difícil perceber porquê. A forte personalidade dos seus tintos afasta-a completamente da grande maioria dos consumidores que, muito naturalmente, prefere vinhos com fruta madura e doce e sabor suave e polido. Mas esse mesmo vincado carácter atrai uma legião de fãs, dentro e fora de portas, que ali encontra aromas e sabores que saem fora do mainstream”, independentemente do estilo adoptado por cada produtor. 

Visitei a Bairrada pela primeira vez, na pele de director de uma revista de vinhos, em 1989. Numa época em que pouquíssimos consumidores sabiam o que era uma casta de uva, foi nessa visita que percebi verdadeiramente a Baga. Acostumado a vinhos com alguma idade e de perfil austero e clássico (em 1984, aos 23 anos, o meu primeiro salário de jornalista foi comemorado com uma garrafa de Pasmados!) os tintos da Bairrada foram para mim uma revelação. E nomes como Casa de Saima, Luis Pato, Quinta da Dôna, Quinta de Baixo, Sidónio de Sousa e Quinta das Bágeiras saltaram para o topo das minhas preferências vínicas. Essa paixão pelos Baga da Bairrada solidificou-se com o tempo e com o conhecimento. E ampliou-se mesmo, nos últimos cinco ou seis anos, devido a dois motivos: o aparecimento de novos produtores apostados traduzir a plasticidade da uva em diferentes interpretações, sem perder a identidade que a caracteriza; e a “explosão” dos espumantes Baga-Bairrada que vieram dar outra dimensão e popularidade à casta e, ao mesmo tempo, resolver o problema da Baga inadequada (que existe!) para vinho tinto.  

O trajecto da Baga na Bairrada não tem sido fácil. Se nos anos 90 era inquestionável, nos anos 2000 passou a ser demonizada, culpada de todos os males, acusada de estar desenquadrada das tendências de mercado e ocasionar o descalabro nas vendas dos tintos da região. Pessoas desesperadas tomam, compreensivelmente, medidas desesperadas. De um momento para o outro, a Bairrada tornou-se na Denominação de Origem portuguesa mais permissiva em termos de castas, ao ponto de hoje um Bairrada tinto poder ser feito de, entre outras, Syrah, Cabernet Sauvignon, Merlot, Petit Verdot ou Pinot Noir. E, no entanto, os grandes tintos de Baga, elaborados a partir de vinhas plantadas no local certo e com produção controlada através de monda, mantiveram o seu percurso, continuaram a ganhar notoriedade e valor. Quase duas décadas passadas de uma “liberalização” que regiões como Dão ou Douro, por exemplo, nunca aceitariam, os vinhos mais reputados e valorizados da Bairrada são, hoje e cada vez mais, baseados em Baga. Para chegarmos aqui, no entanto, convém não esquecer aqueles que, rejeitando o canto da sereia dos Merlot e afins, se mantiveram irredutíveis no seu caminho, até o tempo (e o mercado) acabar por lhes dar razão. Luis Pato e Mário Sérgio Nuno, sobretudo eles, são, sem sombra de dúvida, os grandes guardiões da Baga, conseguindo através do seu exemplo de sucesso mudar práticas e mentalidades. Sem eles, a Bairrada seria outra coisa. A entrevista que publicamos nesta edição e que, pela pela primeira vez, fazem em conjunto, é bem ilustrativa do seu percurso, do que os separa, do que os une.  

Na Bairrada, a Baga nunca poderá fazer vinhos baratos e de volume. Mas pode assumir-se, enquanto casta identitária, como determinante para a valorização e notoriedade dos vinhos da região. Num mercado que busca, cada vez mais, a diferença com qualidade, a Baga pode ser, ao mesmo tempo, paixão e razão. 

Que venha 2021

Luís Lopes

Editorial da revista nº44, Dezembro 2020 O ano que agora caminha para o final, claramente, não deixa saudades. Há doze meses, nesta mesma página, procurando antecipar as tendências vínicas para 2020, escrevia eu que “todos esperam ou desejam que o novo ano seja melhor do que o anterior”. Estávamos muito longe de imaginar o que […]

Editorial da revista nº44, Dezembro 2020

O ano que agora caminha para o final, claramente, não deixa saudades. Há doze meses, nesta mesma página, procurando antecipar as tendências vínicas para 2020, escrevia eu que “todos esperam ou desejam que o novo ano seja melhor do que o anterior”. Estávamos muito longe de imaginar o que aí vinha. 2020 termina, porém, com alguns sinais de esperança e alento. Vamos, pois, virar vigorosamente a página e, em conjunto, fazer de 2021 um ano (muito) melhor. 

Luís Lopes

Antecipar tendências em anos “normais” é sempre difícil e falível. Num quadro de tantas incertezas é-o muito mais. No caso concreto do sector do vinho, nunca ninguém pensou que o comportamento dos consumidores, das empresas ou dos mercados, pudesse estar dependente de uma coisa tão simples quanto uma vacina. Mas este é o novo normal, e é com ele que vamos viver em 2021. 

Algumas tendências assinaladas para 2020 vão manter-se no próximo ano. Acredito, por exemplo, que os espumantes vão continuar a crescer, depois da quebra acentuada que certamente ocorrerá na quadra festiva condicionada que se aproxima. Também estou certo de que vectores como a sustentabilidade ambiental (a noção do efémero leva-nos a olhar com mais atenção para o que realmente importa), os vinhos brancos de topo (de castas como Alvarinho ou Encruzado, terroirs especiais ou lotes com alguma idade), as transacções de propriedades (inevitáveis com a descapitalização das empresas menos “almofadadas”) vão acentuar-se em 2021.  

Por outro lado, as tremendas dificuldades que a HORECA enfrenta, em particular nos segmentos mais orientados para o “fine dining” e para o turismo, bem como a menor afluência presencial às lojas de vinho (parcialmente mitigada pelas vendas online), vieram desvalorizar o aconselhamento personalizado que encontramos naqueles pontos de venda e consumo e, ao mesmo tempo, reforçar desmesuradamente o peso da chamada distribuição moderna, super e hipermercados. A esmagadora maioria dos vinhos são ali vendidos em promoção, com descontos monumentais. E se nos habituámos, nos últimos anos, a ver algumas marcas de menor estatuto (mas que fazem números impressionantes) em “promoção permanente, agora deparamo-nos com marcas clássicas, algumas com várias décadas de idade, a entrar no mesmo modelo. Implanta-se a fidelização à promoção e não à marca. Ou seja, o cliente dos hipers compra apenas o vinho que estiver em promoção e não a marca que reconhece; e as marcas tradicionais promocionadas arriscam nunca mais poder voltar aos seus preços de referência.  

Mas há coisas boas que se vão manter. O consumidor de nicho vai, muito provavelmente, continuar a procurar a diferença. Os vinhos de talha estão em alta (quem diria…), quando há pouco mais de uma década, em muitas casas alentejanas reconstruídas para os novos proprietários citadinos, as talhas eram partidas para fazer entulho. Os brancos de curtimenta, brancos de tintas, vinhos de castas raras ou de vinhas centenárias, orgânicos, “naturais”, “pet nat” e outros que tais, vão manter a procura, alicerçada nas redes sociais e na venda online. 

Estes vinhos diferenciadores são importantes para assegurar a vitalidade e diversidade de um sector que provavelmente se vai bipolarizar, entre os “promocionados” dos hipermercados que ocupam quase todo o espaço e os “alternativos” que ficam com as especialidades. Dificuldades acrescidas para muitos dos melhores e mais consistentes vinhos portugueses, que não são nem “promocionados” nem “alternativos”, e que correm o risco de ficar encalhados em terra de ninguém. Deixo dois conselhos aos seus produtores: resistam o mais que puderem, mantenham-se firmes no projecto que criaram, nas vinhas e nos vinhos que amam como se filhos fossem; e aprendam a construir e a contar uma boa história, utilizando para a comunicar todas as plataformas que estão ao vosso dispor. Pela nossa parte, continuaremos a apoiá-los e a ajudar a estreitar os laços entre quem produz e quem consome. 

Termino com um prognóstico que não deve falhar: 2021 será melhor do que 2020. Que chegue depressa o novo ano. Saúde para todos, fiquem bem. 

Online

Luís Lopes

Editorial da revista nº43, Novembro 2020 A internet aumentou desmesuradamente o seu peso nas nossas vidas profissionais (e pessoais!) desde março de 2020. No sector do vinho, a verdade é que o online, não resolvendo nada e, muito menos (longe disso), substituindo a interação pessoal, atenua os efeitos que o distanciamento social nos impõe. E […]

Editorial da revista nº43, Novembro 2020

A internet aumentou desmesuradamente o seu peso nas nossas vidas profissionais (e pessoais!) desde março de 2020. No sector do vinho, a verdade é que o online, não resolvendo nada e, muito menos (longe disso), substituindo a interação pessoal, atenua os efeitos que o distanciamento social nos impõe. E em algumas áreas, quando bem usadas, as soluções online são de tal forma eficazes que, acredito, nunca mais voltaremos a trabalhar como antes da pandemia.

Luís Lopes

Reuniões, apresentações, vendas, muito do que fazemos hoje deixou de ser presencial e passou a virtual. No meu caso, nunca acreditei naqueles que, quando o covid-19 dinamitou os negócios, apontaram o e-commerce como solução milagrosa. Hoje, a grande maioria dos produtores de vinho portugueses possui uma loja online ou trabalha com um parceiro nessa área, mas quase todos confessam que as vendas são residuais.  

No que respeita à comunicação produtor/líderes de opinião ou produtor/consumidor, também, confesso, desconfiei da eficácia do online. As muitas apresentações de vinhos a que assisti através das habituais plataformas (Zoom, Teams...) reforçaram essa desconfiança. Algumas foram absolutamente patéticas, com produtores calados e estáticos enquanto meia dúzia de jornalistas e sommeliers provavam, igualmente sisudos, o vinho que fora enviado para casa, interrompendo o desconfortável silêncio com uma ou outra pergunta do tipo “que grau tem este vinho? mostrando que nem a ficha técnica do produto se tinham dado ao trabalho de consultar. No entanto, no meio de tudo isso, uma ou outra apresentação dinâmica, bem conseguida, interventiva, sugeriu-me que o online poderia funcionar como ponte de comunicação, desde que bem utilizado. Recentemente, dois eventos completamente distintos, derrubaram as minhas dúvidas e revelaram-me o enorme potencial da ferramenta que temos em mãos.  

Num deles, participei como convidado na adega de um produtor, enquanto através do Zoom era feita a apresentação de um vinho para um grupo de 20 jornalistas e sommeliers de topo no Brasil. Não foi uma apresentação vulgar. Espalhados pela gigantesca metrópole de São Paulo, esses 20 profissionais receberam, ao mesmo tempo, um kit composto por um prato de bacalhau elaborado por um famoso restaurante de cozinha portuguesa e um frappé selado com garrafa e gelo. Na adega, um ecrã de grande formato revelava as caras dos participantes, incluindo o importador local. O almoço decorreu como se estivéssemos todos na mesma sala. O produtor, e eu próprio, fomos bombardeados com perguntas interessantes e interessadas, ouvidas e respondidas mais facilmente do que se nos encontrássemos numa comprida mesa. Saí dali a pensar que: primeiro, a acção deve ter saído muito mais barata ao produtor do que se tivesse voado para São Paulo e pago a refeição num restaurante; segundo, muitas daquelas pessoas nem sequer iriam comparecer no restaurante e ali estavam todas, confortavelmente, em suas casas; terceiro, nenhum deles se vai esquecer nem do momento nem do vinho. 

O outro evento foi muitíssimo mais ambicioso, na escala e nos meios envolvidos. Nunca, no mundo, se fez algo como o Vinhos de Portugal, realizado nos dias 23, 24 e 25 de outubro e transmitido online para os domicílios de quase 1100 pessoas, que compraram os bilhetes (com a opção de packs de vinhos) no Brasil e em Portugal. O evento dos jornais Público, O Globo e Valor Económico, em parceria com a Viniportugal, e em que tive o privilégio de participar como um dos orientadores das sessões, realizou 62 lives/entrevistas de 25 minutos com produtores e 16 provas temáticas de 60 minutos. A milhares de quilómetros do local da acção, grupos de amigos e famílias abriam as garrafas recebidas, assistiam às provas, questionavam oradores e produtores.  

O enorme sucesso desta iniciativa substitui o contacto pessoal e a interacção numa sala de provas? Não, definitivamente. Mas evidenciou-se como um modelo alternativo, agora, e complementar, no futuro. O online é uma ferramenta, como um martelo ou um automóvel. Posso estragar uma parede quando queria pregar um prego ou atropelar alguém quando apenas pretendia levar-me a um local. No fundo, o online não é mais do que o reflexo das pessoas que o usam. 

Atípico

Luís Lopes

Editorial da revista nº42, Outubro 2020 Enquanto martelo o teclado, já se vão lavando a maior parte dos cestos da colheita de 2020. Como profissional da escrita de vinhos, esta foi a trigésima primeira vindima que acompanhei, percorrendo vinhas e adegas de todo o país. São muitas colheitas, todas diferentes, cada uma com particularidades e […]

Editorial da revista nº42, Outubro 2020

Enquanto martelo o teclado, já se vão lavando a maior parte dos cestos da colheita de 2020. Como profissional da escrita de vinhos, esta foi a trigésima primeira vindima que acompanhei, percorrendo vinhas e adegas de todo o país. São muitas colheitas, todas diferentes, cada uma com particularidades e perfis de vinhos bem distintos.

Luís Lopes

Fazendo um esforço de memória, recordo-me de todas as trinta e uma vindimas que experienciei, bem como das características mais marcantes dos anos vitícolas a que estão associadas. Posso agrupá-las de muitas e variadas maneiras: as vindimas frescas; as vindimas quentes; as vindimas molhadas; as vindimas secas; as vindimas escassas; as vindimas abundantes; a vindimas precoces; as vindimas tardias. E, claro, posso igualmente categorizá-las em termos da qualidade média dos vinhos a que deram origem. Porém, uma vindima nunca se se integra numa única categoria. Uma dada vindima pode ser, ao mesmo tempo, quente, escassa e precoce, por exemplo. Os anos vitícolas também ficam marcados por uma grande diversidade de factores: as temperaturas médias ou a pluviosidade em fases decisivas do ciclo da videira – abrolhamento, floração, pintor, maturação…; acidentes climatéricos muito localizados (geada, granizo) ou um pouco mais generalizados (escaldão); ou ainda, a maior ou menor incidência de pragas e doenças da videira.  

As variáveis ao longo de um ano vitícola que culmina na colheita são inúmeras, tornando cada vindima completamente diferente da anterior. E sendo certo que assim é, não se torna fácil perceber de imediato a razão pela qual tantos viticultores e produtores de vinho, sobretudo ao longo da última década, escolhem a mesma palavra para definir a vindima que acabaram de viver: atípica. Foi assim em praticamente todas as colheitas desde 2014. Curiosamente, ninguém classificou 2011 como um ano atípico. No final dessa vindima, “excelente” era a expressão que se ouvia de todas as bocas e que desde logo se colou aos vinhos desse ano 

Mas afinal o que é uma vindima “típica, por oposição à “atípica”? Não será, no fundo, uma vindima idealizada? Ou seja, aquela que resulta de um ano em que a chuva caiu na quantidade e época certa, granizos e geadas, pragas e doenças não fizeram grandes estragos, o verão foi ameno, com noites frescas e maturação a decorrer sem pressas, culminando numa colheita genericamente seca, com alguns chuviscos pontuais que refrescaram as uvas, possibilitando colher todos os cachos no momento perfeito de equilíbrio entre açúcar, acidez e taninos. Que maravilha! O problema é que essa vindima perfeita é coisa cada vez mais rara, e talvez tenhamos de nos habituar a uma “tipicidade” feita de excessos climatéricos, estações do ano desnorteadas e, sobretudo, um elevado nível de imprevisibilidade.  

Mas mesmo aceitando esse “novo normal como dado adquirido, não sei como classificar a colheita de 2020, a não ser como a mais insana de que me lembro. Desde logo, porque foi a vindima da covid-19, com tudo o que isso implicou em termos logísticos, económicos, psicológicos, até. Foi uma vindima associada a um ano de desavinho, granizo, oídio, míldio, cicadela, escaldão, desidratação, vagas de calor prolongadas. Foi uma vindima em que as maturações pareciam não querer avançar e depois dispararam quase incontroláveis, perdendo-se a preciosa acidez nas castas mais precoces. Foi um ano de enorme heterogeneidade entre regiões, mas também heterogeneidade na mesma vinha, na mesma cepa, no mesmo cacho. Um ano em que se colheram tintos antes de brancos, uma vindima onde açúcares e ácidos desafiaram a lógica, uma colheita onde, para meu desgosto, a Touriga Nacional deu 10 a 0 à Francesa. 

O ano vitícola e a vindima de 2020 exigiram o máximo de competência, dedicação, esforço, resiliência, por parte de todos aqueles que fazem da vinha e do vinho a sua vida. Um ano atípico? Se atípico significar que, por um lado, não se vai repetir tão depressa e, por outro, que dentro das dificuldades vai originar grandes vinhos, atípico seja. 

A gente que faz o vinho

Luís Lopes

Editorial da revista nº41, Setembro 2020 No dia em que escrevo estas linhas já as uvas estão a ser colhidas um pouco por todo o país. Em algumas regiões, a vindima vai em velocidade de cruzeiro, noutras cortam-se os primeiros cachos. Este tempo de colheita faz-me pensar no trabalho dos muitos profissionais, produtores, viticólogos, enólogos, […]

Editorial da revista nº41, Setembro 2020

No dia em que escrevo estas linhas já as uvas estão a ser colhidas um pouco por todo o país. Em algumas regiões, a vindima vai em velocidade de cruzeiro, noutras cortam-se os primeiros cachos. Este tempo de colheita faz-me pensar no trabalho dos muitos profissionais, produtores, viticólogos, enólogos, que têm agora a sua “prova de fogo”, o momento por que esperaram ao longo de um ano inteiro.  

Luís Lopes

A vindima é feita de gente. Em nenhum outro período do ano há tamanho movimento de pessoas numa propriedade vitivinícola. No meio das vinhas, de tesoura na mão ou caixa às costas, nos tractores e atrelados, nas máquinas de vindimar, descarregando as uvas nas prensas, puxando mangueiras na adega, medindo mostos no laboratório, vigiando as fermentações. Muitas destas pessoas só ali vão uma vez por ano, precisamente nestas semanas em que se cortam os cachos e se transformam em vinho. Outras, estão no local praticamente todos os dias, ajudando as videiras no seu percurso até à vindima seguinte ou acompanhando os vinhos que se fizeram na colheita anterior. 

Onde há pessoas existe pensamento e acto, reflexão e decisão. Sendo um fruto da natureza, o vinho não é feito por ela, é produto exclusivo da intervenção humana.  As uvas que agora se colhem são tanto o resultado das condições do ano vitícola como das opções que foram seguidas para mitigar, em alguns casos, ou potenciar, noutros, a obra da natureza.   

Muitas dessas decisões aconteceram bem antes da vindima. Já nem falo das que estiveram na base da criação da vinha e que resultam de opções estratégicas de longo prazo: onde, quando, como, o que plantar. Bastam-me todas aquelas operações que ocorrem ao longo do ciclo vegetativo da videira e que implicam processos de ponderação e decisão quase diários: podas, empas, tratamentos, desfolhas, correções de solos, rega, mondas, a lista é infindável. O ano de 2020 foi especialmente desafiante nesse sentido, com ataques de míldio e oídio difíceis de controlar e tudo isto num contexto agravado pela pandemia e os cuidados a ter na gestão do espaço e do movimento das pessoas. O trabalho do viticólogo e da sua equipa vai a exame agora, à medida que os cachos entram na adega. Não sei o que passará pela cabeça do chamado “pessoal de campo”: ansiedade, sentimento de dever cumprido, ou aquele misto de preocupação e alívio que os pais sentem quando um filho se emancipa e sai de casa?  

O fruto que uns entregam fica agora a cargo de outros, a gente da enologia, na adega. E, de novo, as decisões sucedem-se, frequentemente sem tempo para reflectir o suficiente antes de as tomar. Prensagens, pisas, fermentações, remontagens, desencubas, lagares, cubas, barricas. Em muitos casos, fruto do histórico de anos anteriores, as uvas que chegam à adega já têm um destino específico, esperam-se que origine um vinho concreto. Umas vezes cumprem, outras não. Nunca esqueço o que o enólogo Michel Rolland me disse, há quase 20 anos: partindo das mesmas uvas, a diferença entre um vinho muito bom e um grande vinho está nos detalhes. Ou seja, de cada vez que, pressionados pelas circunstâncias, decidimos por um compromisso, facilitamos num detalhe, descemos um degrau na escada que leva à grandeza.   

Opções são tomadas minuto a minuto enquanto os mostos fermentam. Assentes na experiência e no saber empírico, ou alicerçadas no conhecimento científico, são essas decisões que, somadas às que aconteceram na vinha, vão definir os vinhos que agora nascem e que vamos beber dentro de alguns meses ou daqui a muitos anos 

Neste tempo de vindima, enquanto apreciador e profissional da escrita, agradeço sentidamente a todos aqueles que fazem o vinho acontecer. O vinho tem, obviamente, uma base natural que não dominamos. Não está nas nossas mãos criar um terroir de excelência onde ele não existe, não conseguimos evitar um granizo ou um escaldão. Do mesmo modo que um pescador não domina o mar onde pesca. Mas ao contrário do peixe, o vinho é um produto transformado, fruto de decisões humanas. E é muito bom saber que algumas coisas ainda dependem de nós. 

Um vinho à procura de si próprio 

Luís Lopes

Editorial da revista nº40, Agosto 2020 O rosé, mais do que qualquer outro tipo de vinho, mostra bem a volatilidade das modas e dos estilos. Basta atentar no que tem sido o seu percurso ao longo dos últimos anos. O que hoje é verdade, amanhã é mentira, o que agora está in, daqui a pouco […]

Editorial da revista nº40, Agosto 2020

O rosé, mais do que qualquer outro tipo de vinho, mostra bem a volatilidade das modas e dos estilos. Basta atentar no que tem sido o seu percurso ao longo dos últimos anos. O que hoje é verdade, amanhã é mentira, o que agora está in, daqui a pouco está out. Cor clara ou escura? “Bica aberta” ou “sangria”? Levemente doce ou absolutamente seco? Inox ou madeira? A expressão “à vontade do freguês” nunca fez tanto sentido. 

Luís Lopes

Recuemos vinte anos, não é preciso mais. Até aí, tudo era simples, claro, objectivo, no panorama dos rosés nacionais. Havia o Mateus, o Lancers, o Casal Mendes e mais alguns outros, o perfil estava perfeitamente definido – leve, frutado, com pouco álcool, algum gás e uma boa dose de açúcar para equilibrar a viva acidez – e os rosés de Portugal vendiam muitos contentores, na exportação, claro, que por cá era visto como “vinho de senhoras” e de estrangeiros 

Depois, a pouco e pouco, o rosé foi timidamente abrindo caminho no mercado nacional, dando um salto enorme na última década com a explosão do turismo. O turista trouxe com ele, numa primeira fase, um aumento da procura interna do modelo “frutado e doce”, mas logo a seguir, o visitante mais viajado e endinheirado passou a pedir o chamado “rosé tipo Provence”, caracterizado pela cor rosada muito clara. O Algarve do sol, praia e restaurantes transformou-se num importante mercado de rosé, os vendedores que fazem essa região começaram a exigir aos produtores o rosé clarinho e a cor tornou-se no principal elemento para definir o perfil do vinho: rosa escuro/clássico (outra palavra para “antiquado” no mundo rosado) ou rosa claro/moderno. Ainda os enólogos não estavam refeitos das dores de cabeça que tiveram para afinar a cor pretendida pela equipa de vendas, já começavam a chegar outras orientações: aquele quer mais seco, este quer mais doce, um cliente diz que rosé de sangria é feito de restos, outro só quer bica aberta. Como resultado, produtores há que experimentaram tudo e mais alguma coisa até assentarem no estilo (supostamente) “certo” para o seu rosé.  

Depois dos rosés “comerciais”, chegaram aos vinhos mais ambiciosos. Objectivo: através de castas menos comuns (Pinot Noir virou um must have), vinificação (fermentação em barrica à cabeça) ou embalagem, oferecer um produto de preço superior e com maior percepção de requinte. Como quase sempre acontece, na busca da diferença extremam-se posições/perfis: de um lado, rosés praticamente sem cor e com muito pouco álcool; do outro, rosés ostensivamente corados, tipo claretes, e com álcool elevado. Por vezes, um mix dos dois, bem clarinho e com 14%… 

Neste ponto do texto, e para evitar que se pense que não gosto de rosés, devo dizer que sou um fã. Conheço muito pouca gente que beba rosé em tantas ocasiões quanto eu. Há uma dezena de anos, li uma crónica de um conhecido jornalista britânico que dizia algo como: “não há nada que um rosé faça, que um branco ou tinto não faça melhor”. Se se referia à excelência absoluta, mesmo que contrariado, tenho de lhe dar razão. Claro que há rosés muitíssimo bons (nesta edição da Grandes Escolhas provámos vários) mas com excepção de Champagne, não vejo este vinho atingir, globalmente, o mesmo nível de sofisticação, complexidade, longevidade, de um grande branco ou tinto. (Antes de alguém levantar a espada em defesa da honra dos rosados, por favor, compare o número de garrafas de branco, tinto e rosé que tem em casa...) 

Mas será que o rosé precisa mesmo desse estatuto de excelência para ter sucesso? Há imensas situações em que um rosé me sabe melhor e se mostra mais adequado do que um branco ou um tinto. Ainda há pouco tempo, num almoço com 8 amigos, só bebemos rosés, portugueses e franceses (já agora, os nossos eram bem melhores, apesar dos nomes consagrados de Provence). 

Acredito que, mais do que qualquer outro tipo de vinho, o rosé é um vinho de momentos, lugares, pessoas. E é por isso que a busca do rosé “certo” é uma quimera. Qual o rosé de que mais gosto? Geralmente, prefiro rosés secos, com álcool médio/baixo e acidez elevada, aprecio corpo e sabor, e a intensidade da cor é-me completamente indiferente. Mas tem dias…