O Tempo dos vinhos por Luís Antunes

O vinho é um produto agrícola de ciclo muito longo. Na sua produção, o tempo do vinho, o ciclo da vinha, é um ano. Podemos fazer um zoom-out para percebermos que quando se planta uma vinha — e uma vinha pode produzir vinho durante muitas décadas—, essa decisão afectará muitos destes ciclos anuais. A decisão […]
O vinho é um produto agrícola de ciclo muito longo. Na sua produção, o tempo do vinho, o ciclo da vinha, é um ano. Podemos fazer um zoom-out para percebermos que quando se planta uma vinha — e uma vinha pode produzir vinho durante muitas décadas—, essa decisão afectará muitos destes ciclos anuais. A decisão de arrancar ou reconverter uma vinha velha é, então, obviamente, uma decisão de peso, que tem impacto durante muitas décadas no estilo do vinho a produzir. Uma vinha velha não se define apenas pela sua idade. Também se define pelas castas que inclui em cada parcela, pela condução das vinhas que, trazendo mais ou menos energia do Sol para cada cacho, pode representar mais maturação ou mais frescura no vinho que ali se produz.
O ciclo vegetativo anual é também uma consequência dessas decisões de fundo. Uma casta de ciclo longo vai amadurecer mais devagar, preservando melhor os preciosos ácidos enquanto reúne os açúcares no amadurecimento, garantindo assim um equilíbrio que o consumidor depois agradece. Uma casta de ciclo mais curto ajuda a que o amadurecimento chegue antes que os orvalhos do Outono apodreçam as uvas. Cada sítio quer assim as suas escolhas, provando que o terroir inclui sempre o homem, não apenas os solos, climas, exposições solares e castas. Decisões antigas com fé reafirmada em cada vindima.
Na vindima é o tempo que acelera. As semanas são cheias de dias, as uvas não esperam, as fermentações têm tempos críticos. Os dias são cheios de acção, é a colheita, a fermentação, a limpeza, muita limpeza, as trasfegas, os lagares, as mantas regadas, mil-e-uma tarefas para cuidar dos vinhos que se fazem, libertar espaço para os vinhos que se vão fazer, cuidar dos vinhos já feitos. Ainda por cima, nestes tempos de turistas e visitantes, há sempre gente a entrar e a sair, jornalistas, curiosos, apaixonados do vinho, parceiros comerciais, tempo ocupado, ainda tempo para cuidar disto tudo, refeições para serem cozinhadas, e apreciadas com os vinhos de anos passados, sonhando com os anos futuros.
Quando a coisa abranda, as decisões podem ser mais espaçadas, mas não são menos importantes. Estágios, lotes, marcas, rótulos, engarrafamentos, rolhas, vendas. Um vinho que se estagia na adega é um vinho que tarda mais em vender. Fica o empate de capital, fica o espaço e vasilhame para o guardar, e às colheitas seguintes que se queiram fazer. Um estágio que se faça em barrica obriga a investir em barricas, o que, para além do custo delas próprias, inclui o custo da mão de obra para as cuidar. As vasilhas não podem ficar a meio e, por isso, quanto menores, mais mão de obra exigem. A sofreguidão destes trabalhos acelera quando se fazem as fermentações malolácticas, mas depois abranda até ao Verão seguinte. Aí vêm os engarrafamentos e o planeamento da próxima vindima. Vendas, transportes.
E neste ciclo de produção entra em jogo o consumidor. Que vai comprando vinho ao longo do seu ano, com os seus tempos, se calhar mais rosés e brancos no tempo quente, mais tintos e fortificados no tempo frio. E comprando, vai abrindo e bebendo. Quando? Ora, diz-se como lenda que o tempo médio que decorre entre a compra de uma garrafa e a sua abertura e consumo é cerca de duas horas. Tempo curto, nem sei como arrefecem os brancos. Se calhar compram já fresco. Por mim, aprecio um vinho bebido no seu tempo próprio. No auge da sua evolução.
Ao longo dos anos têm melhorado muito os vinhos brancos portugueses e os melhores já são agora postos à venda com alguns anos de estágio, uma cortesia do produtor que os aproxima desse tempo ideal. Mas mesmo quando são postos à venda ainda no ano da sua vindima, muitas vezes sou eu que faço questão de os estagiar devidamente. O meu melhor exemplo talvez seja o Alvarinho de Monção e Melgaço. Tão bom de beber logo que sai, tão melhor de o degustar com alguns anos. Muitas vezes escondo uma caixa de garrafas na garagem, esperando esquecer-me dela para a ir buscar anos mais tarde. Se, das seis garrafas, duas evoluírem demasiado, vale a pena, que as outras quatro mais do que compensam. E um truque para as outras duas é bebê-las com um queijo de ovelha curado, a combinação tradicional que quase caía em esquecimento.
Os tintos sempre aguentaram melhor a espera e também esses os faço esperar. Prefiro comprar menos variedade e mais garrafas de cada vinho. De Bordeaux costumava comprar sempre uma caixa de 12, e nunca as abria antes de 8 ou 10 anos. Aí uma garrafa por ano, para avaliar a evolução do vinho. Se estava de urgência, acelero o ritmo, se não, abrando. Um vinho antigo, nunca o decanto. O vinho que esperou muito tempo com pouco contacto com o ar fica guloso de oxigénio quando se tira a rolha. Tira-se então a rolha com cuidado, saca-rolhas de lâminas, e deixa-se respirar aquele nadinha de vinho do gargalo. Depois serve-se com poucos safanões a garrafa toda, para cada comensal apreciar no copo o seu bouquet. Decantar é só para vinhos novos, para lhes amaciar os taninos espigados. Mas é sempre melhor esperar que o tempo lhes arredonde as arestas.
Mas para nenhum vinho é verdade que “quanto mais velho melhor”. Mesmo os fortificados mais poderosos, grandes Portos ou Madeiras, devem ser bebidos no seu tempo certo. Esperar demasiado pode prejudicar o vinho, deixemos essas longas esperas para quem conhece melhor essas artes, os enólogos que nas caves os envelhecem e loteiam, que os provam continuamente para colocar na garrafa no tempo certo. Um grande Porto vintage envelhece longamente na garrafa e podemos fazê-lo nós em casa, mas não convém esperar demais. Também aqui é preciso ir provando, pois vale sempre a pena conhecer o que temos na garrafeira, convidar uns amigos e abrir as garrafas. Um Porto tawny e especialmente um Madeira podem envelhecer para sempre, mas não necessariamente melhorar em garrafa na nossa cave. Por isso é dar-lhe, não esperar mais do que o devido.
De princípio a fim falei sempre de tempo, do tempo dos vinhos. Espirais de tempo, grandes e pequenas, que envolvem terras, cepas, uvas, mostos, lagares, cubas, barricas, garrafas, vinhos, copos. Que nos envolvem a nós e à nossa vida. Agora, é tempo de ir beber um vinho. LA
(Artigo publicado na edição de Julho de 2024)
Editorial Agosto: A crise, outra vez

Editorial da edição nrº 88 (Agosto 2024) “Isto está mal”, dizem produtores de vinho, distribuidores, donos de restaurantes e garrafeiras. A culpa é da crise, da perda de poder de compra, da falta de confiança, do receio de gastar em produtos supérfluos. Mas será “A Crise” (com maiúsculas…) a única culpada das dificuldades que o […]
Editorial da edição nrº 88 (Agosto 2024)
“Isto está mal”, dizem produtores de vinho, distribuidores, donos de restaurantes e garrafeiras. A culpa é da crise, da perda de poder de compra, da falta de confiança, do receio de gastar em produtos supérfluos. Mas será “A Crise” (com maiúsculas…) a única culpada das dificuldades que o sector do vinho atravessa?
Estou convencido que a crise veio apenas avolumar os efeitos de um vasto conjunto de deficiências crónicas que o sector possui. O sector do vinho em Portugal é pesado, pouco criativo, pouco atento ao mercado e ao consumidor e (ainda) pouco profissional.
Apesar de não existirem estatísticas sobre essa matéria, certamente não irei errar se disser que bem mais de metade dos agentes económicos ligados à produção de vinho não são profissionais. Ou seja, não fazem do vinho a sua actividade principal e não possuem escala para criar e manter uma estrutura profissional. Uma situação confrangedora quando se compara com a realidade espanhola ou francesa, para já não dizer americana ou australiana, onde o vinho é encarado como uma indústria, um negócio, e não como a “concretização de um sonho”.
Na verdade, uma parte considerável dos novos produtores surgidos em Portugal na última década é constituída por profissionais liberais, industriais, comerciantes, que herdaram ou compraram vinhas, que durante algum tempo venderam uvas e que a dada altura quiseram ver o seu nome ou da sua quinta numa garrafa. A sobrinha que tem jeito para o desenho deu uma ajuda no rótulo, o restaurante onde come todos os dias prometeu vender umas caixas, os amigos que dizem que o vinho é uma maravilha vão ficar com algum e, portanto, não haverá dificuldade alguma em vendê-lo, até porque são só 50 mil garrafas. Pois é… O mercado nacional acabou inundado de produtores que têm 50 mil garrafas para vender. Mas o mercado não é infinito e, naturalmente, quando há menos dinheiro disponível, retrai-se. Resultado: está (quase) toda a gente a vender menos do que esperava.
A solução, dirá qualquer profissional, está em procurar novos mercados. Mas quantos destes produtores “amadores” têm disponibilidade para passar meses viajando pelo mundo, fazendo contactos, procurando distribuidores, promovendo o seu vinho? Se nem em Portugal têm tempo ou vontade para abordar pessoalmente ou acompanhar vendedores a garrafeiras e restaurantes, preferindo esperar que o vinho se venda por si! Está difícil vender? Mas porque é que havia de ser fácil? Se até para os que vivem disto dá muito trabalho…
Não há mal nenhum em satisfazer uma paixão, mesmo uma paixão cara como é a produção de vinho. Aliás, alguns dos grandes vinhos do mundo são propriedade de pessoas que ganharam dinheiro noutras áreas e chegaram ao vinho movidos pela simples paixão. Mas que só foram bem-sucedidos porque tiveram dimensão ou meios para criar uma estrutura profissional capaz de levar o negócio avante. Os outros ficaram pelo caminho, fartos de perder dinheiro todos os anos num negócio que tem exigências a que não conseguiam corresponder. Algo que, inevitavelmente, virá a acontecer a muitos produtores portugueses.
É que, no vinho, a paixão e o negócio são coisas diferentes, ainda que complementares. E se é verdade que o negócio do vinho precisa de paixão para se desenvolver, a paixão, só por si, não garante nada. Na maior parte dos casos, aliás, só garante dissabores…
Nota: Fiz uma pesquisa nos mais de 400 editoriais mensais que escrevi desde 1989 e a “Crise” foi tema 7 vezes, com vários anos de intervalo. O texto que em cima reproduzo foi publicado em Agosto de 2003, faz precisamente agora 21 anos. É assustador perceber que continua actual e que em mais de duas décadas não aprendemos nada.
Editorial Julho: Ouro dos Tolos

Editorial da edição nrº 87 (Julho 2024) Existe a ideia generalizada de que um produtor de grande dimensão não consegue atingir o patamar máximo da excelência. Casas como a Penfolds, na Austrália, ou a Sogrape, em Portugal, para mencionar apenas estes, contrariam esse dogma. Desde os primórdios da humanidade que os bens mais […]
Editorial da edição nrº 87 (Julho 2024)
Existe a ideia generalizada de que um produtor de grande dimensão não consegue atingir o patamar máximo da excelência. Casas como a Penfolds, na Austrália, ou a Sogrape, em Portugal, para mencionar apenas estes, contrariam esse dogma.
Desde os primórdios da humanidade que os bens mais raros, difíceis de encontrar ou conseguir, são os mais valorizados. No fundo, faz parte da natureza humana tudo fazer para possuir o que os outros não têm. Veja-se o ouro, por exemplo, matéria-valor por excelência. Enquanto metal, tem muito pouca utilidade prática. E, no entanto, travaram-se guerras por ele (ainda hoje se travam guerras por petróleo, um bem, apesar de tudo, mais disponível e muito mais útil…)
O mesmo princípio se aplica a todos os bens de consumo, das roupas aos automóveis, passando pela comida e, claro, pelo vinho. No que respeita a este último, existe, até certo ponto, uma relação directa entre a qualidade e a quantidade disponibilizada. A razão é simples: nem todos os territórios (regiões) têm o mesmo potencial para alcançar excelência; mesmo nas melhores zonas das melhores regiões, nem todas as vinhas possuem a mesma aptidão qualitativa; e mesmo as melhores videiras, plantadas nos melhores locais, necessitam ter a sua produção limitada (natural ou artificialmente) para originar as melhores uvas. Os grandes vinhos não existem em grandes quantidades.
Ainda assim, podemos encontrar marcas de excelência mundial a produzir volumes apreciáveis em cada vindima. Alguns exemplos: Château Mouton Rotschild, 240 mil garrafas, sensivelmente a mesma quantidade do Lafite Rothschild; Château Latour, 200 mil; Château Margaux, 120 mil; Vega Sicilia Único, 100 mil; Sassicaia, 100 mil; Cheval Blanc, 72 mil. Tenha-se igualmente em conta que várias das melhores marcas do mundo podiam perfeitamente produzir mais garrafas com a mesma qualidade. Mas há um limite para o que o mercado pode absorver a um determinado preço num determinado momento. E é preciso gerir a escassez para que o preço não caia. O Porto Vintage é um bom exemplo: apesar de haver todas as condições qualitativas (vinha, adega e conhecimento) para se produzir bastante mais, a verdade é que a produção global é muito inferior à registada há 30 ou 40 anos.
Existe a ideia generalizada de que um produtor de grande dimensão, pela sua própria cultura empresarial, não consegue atingir o patamar máximo da excelência, ficando esse privilégio reservado aos pequenos produtores. Casas como a Penfolds, na Austrália, ou a Sogrape, em Portugal, para mencionar apenas estes, contrariam esse dogma. A Sogrape é mesmo um caso de estudo, já que produz, ao mesmo tempo, a referência mais vendida (Mateus) e a de maior notoriedade (Barca Velha).
Mas parece evidente que, em Portugal e no mundo, existe uma tendência para sobrevalorizar a raridade vínica. Os restaurantes mais exclusivos procuram oferecer aos seus clientes vinhos igualmente exclusivos, produzidos em pequeníssimas quantidades, por vezes algumas centenas de garrafas, associadas a uma boa estória que o sommelier transmite ao cliente.
Nada de errado nisto, um vinho vale aquilo que se está disposto a pagar por ele. Mas é importante que quem compra saiba, pelo menos, duas coisas. Primeiro, poucas garrafas produzidas não significam, necessariamente, qualidade acrescida. Segundo, pequeno produtor não implica maior atenção ao produto ou maior proximidade à origem – aliás, vários desses vinhos “exclusivos” foram comprados já feitos em grandes adegas e quem assina o rótulo nunca viu as vinhas onde nasceram.
Quando da corrida ao ouro em vários estados dos EUA, ao longo do século XIX, ficou famoso o “fool’s gold”, o ouro dos tolos. Basicamente, pirite de ferro que os garimpeiros menos experientes tomavam por ouro, acreditando ter ficado ricos. Muitos enlouqueciam quando descobriam a crua verdade: nem tudo o que luz é ouro.
Editorial Junho: Barrel Haters

Editorial da edição nrº 86 (Junho 2024) Peço desculpa pelo título em inglês, mas é o que melhor retrata aqueles a que me refiro: os que odeiam, desprezam, criticam vinhos com aromas e/ou sabores provenientes da barrica de madeira. O vinho, como tudo na vida, não está imune a modas e tendências que determinam comportamentos. […]
Editorial da edição nrº 86 (Junho 2024)
Peço desculpa pelo título em inglês, mas é o que melhor retrata aqueles a que me refiro: os que odeiam, desprezam, criticam vinhos com aromas e/ou sabores provenientes da barrica de madeira. O vinho, como tudo na vida, não está imune a modas e tendências que determinam comportamentos. É assim na arquitectura, na cultura, na indústria automóvel, no vestuário, na música, até na medicina.
A ligação entre o vinho e a madeira é multisecular, primeiro como vasilha para o transportar e guardar, mais tarde como processo de afinamento. A primeira vez que o enófilo nacional contactou, de forma generalizada, com o efeito da barrica nova de carvalho terá sido com os vinhos da antiga JP Vinhos (hoje Bacalhôa), em tintos como Quinta da Bacalhôa, Má Partilha, Meia Pipa ou o branco Catarina. Na altura, final dos anos 80, era a escola australiana que ditava as regras e lembro-me bem do enorme frenesim que toda aquela baunilha e tosta causou junto de apreciadores ávidos de coisas novas. Rapidamente, a barrica tornou-se símbolo de estatuto, luxo, sinal exterior de riqueza. E ainda hoje, queiramos ou não, mantém esses atributos. Em Portugal ou no mundo, raro é o vinho com ambição que não passa por barrica nova, no todo ou em parte. De tal forma o poder aspiracional da barrica foi abraçado pelo consumidor que o “efeito madeira” se estendeu aos vinhos mais humildes, que não gerando valor que permita ter a coisa verdadeira, utilizam eficazmente os seus sucedâneos. Quem compra um Reserva tinto por €3,49 também tem direito a saborear a baunilha, pois então! Como bem sabemos, quando muita gente gosta da mesma coisa, surgem os ódios de estimação, com o único objectivo de vincar uma diferença e uma suposta superioridade. Quantas vezes assisti, em sessões de prova, ao arrasar de um vinho com o singular argumento de que se “sente a madeira”…
A barrica de madeira é uma ferramenta enológica como qualquer outra, como o lagar, como o ovo de cimento (hoje na moda, mas o ódio virá um dia), como a ânfora de barro. E como toda a ferramenta, é preciso saber usá-la. A diversidade (e qualidade!) das barricas disponíveis no mercado é gigante. Uma barrica de inferior qualidade, de tipo não adequado ao fim em causa (origem, tosta, grão) ou mal empregue, origina um vinho desequilibrado, onde a ferramenta usada se sobrepõe ao produto criado. Como pode acontecer com um lagar ou uma ânfora de barro.
Curiosamente, quem diaboliza a mais leve sugestão de fumado ou especiaria da barrica, é capaz de acolher embevecido e lacrimejante de prazer o aroma a pez da talha ou o sabor taninoso do engaço verde no lagar. Mais espantoso ainda: esses “haters” inchados de conhecimento, para quem qualquer reminiscência de barrica num vinho português é sinal de vulgaridade, são precisamente os mesmos que idolatram os Gran Reserva clássicos de Rioja, como Murrieta Castillo Ygay, Viña Ardanza, Viña Tondonia, Muga Prado, Contino ou Cvne Imperial. Vinhos que passaram três, quatro ou mais anos em barricas novas de carvalho. E carvalho americano, sobretudo!
No que a vinhos respeita, gosto de ser eclético. Aprecio tudo o que cheira e sabe bem. Se tiver forte personalidade, melhor ainda. Ygay ou Quinta do Crasto, por exemplo, usam a barrica nova para exprimir a sua identidade. Outros fazem-no através do lagar de granito, da talha pesgada, do tonel centenário, do ovo de cimento ou até (sim!), do inox. Quem nunca provou Encruzado ou Alvarinho largos anos estagiados em inox não sabe o que é bom.
Há tanta intolerância e imbecilidade no mundo. Deixem lá a madeira em paz.
Editorial Maio: Bolhas

Editorial da edição nrº 85 (Maio 2024) A capa desta edição da Grandes Escolhas é dedicada à Raposeira, notável casa de espumantes. Para quem cresceu nos anos 80, espumante era Raposeira. Na época, os vinhos nem seriam grande coisa, (a compra pela Seagram levou ao desinvestimento no produto e foco na distribuição, ciclo negativo que […]
Editorial da edição nrº 85 (Maio 2024)
A capa desta edição da Grandes Escolhas é dedicada à Raposeira, notável casa de espumantes. Para quem cresceu nos anos 80, espumante era Raposeira. Na época, os vinhos nem seriam grande coisa, (a compra pela Seagram levou ao desinvestimento no produto e foco na distribuição, ciclo negativo que durou duas décadas, até à entrada da Murganheira) mas estavam em todo o lado. Eu que o diga, já que, na adolescência, cabia-me ir à pastelaria buscar o bolo e a garrafa de Raposeira meio-seco para comemorar aniversários e festividades familiares.
O espumante, no Portugal urbano nas décadas de 80 e 90, era isto. Doce e meio-seco, bebido a acompanhar sobremesas (a Bairrada e o leitão eram caso à parte) e reservado para eventos e momentos especiais. Esses tempos já lá vão, felizmente. Hoje, nos principais mercados vínicos do mundo, o espumante é a categoria que mais cresce. E apesar desse crescimento ser feito, sobretudo, à conta de Champagne, Prosecco e Cava, outras regiões e países produtores surfam velozes a onda das bolhinhas. Portugal não é excepção. A tendência não passa despercebida aos produtores nacionais e sinal disso é encontrarmos espumante no portefólio de tantas marcas, mesmo em regiões onde nunca houve tradição desta bebida.
A “democratização” da produção de espumante, evidentemente positiva, esconde uma vertente menos boa. É que, para muitos produtores, produzir espumante parece ser coisa fácil. Ainda mais facilitada, nos dias de hoje, pelas leveduras encapsuladas, que simplificam (não oferecendo, embora, os mesmos resultados que as leveduras livres) o moroso trabalho de removimento das garrafas. Mas se produzir um bom vinho com gás é algo aparentemente simples, criar um grande espumante não está ao alcance de todos.
Acontece que o espumante é a bebida vínica mais especializada que existe. Produzir um espumante de nível superior requer não apenas um profundo conhecimento (feito de experiência e ciência) como também condições e equipamentos muito específicos, que vão desde a prensagem da uva para o vinho base até ao degorgement da garrafa espumantizada. Não é certamente por acaso que a quase totalidade das mais famosas marcas de espumante do mundo têm origem em casas totalmente focadas neste tipo de vinho.
Poderia dar muitos exemplos, mas um bastará para percebermos o que quero dizer. Absolutamente crucial na definição da qualidade e complexidade de um espumante é a fermentação na garrafa e o estágio em cave a uma temperatura constante (idealmente 13/14ºC) ao longo de todo o ano. O tempo passado nesse ambiente faz toda a diferença. Sabendo isso, os empresários portugueses que, nas primeiras décadas do século XX, se dedicaram à produção de espumante, construíram laboriosamente túneis debaixo do chão, para ali colocar as preciosas garrafas. Apropriadamente, chamamos Caves a estas empresas.
Como é então possível que, quase 100 anos depois, e quando temos ao dispor tecnologia de climatização que os antigos nem sonhavam, tantos produtores nacionais acreditem que é possível fazer um espumante de qualidade superior deixando as garrafas empilhadas em locais que atingem 7ºC no inverno e 35ºC no verão?
É por isso que os vinhos elaborados pela Raposeira (e pelos produtores que, em diversas regiões, encaram o espumante como produto principal) têm algo de diferente. Quem quiser fazer tão bem quanto eles, só tem um caminho a seguir: pensar o espumante não como um simples complemento de gama, mas como um vinho de topo, digno da máxima atenção e de particulares cuidados. O espumante e os seus apreciadores merecem.
Editorial Abril: Doce

Editorial da edição nrº 84 (Abril 2024) Dizem os especialistas do gosto que, dos distintos sabores primordiais, o doce é aquele que mais fácil e imediatamente cativa o ser humano. Há quem explique essa atracção (não propriamente fatal, se comedida) pelo facto de ser doce o primeiro sabor experimentado pelo recém-nascido ao beber o leite […]
Editorial da edição nrº 84 (Abril 2024)
Dizem os especialistas do gosto que, dos distintos sabores primordiais, o doce é aquele que mais fácil e imediatamente cativa o ser humano. Há quem explique essa atracção (não propriamente fatal, se comedida) pelo facto de ser doce o primeiro sabor experimentado pelo recém-nascido ao beber o leite materno. Mesmo que a relação não esteja cientificamente comprovada é, pelo menos, uma boa desculpa para os mais gulosos.
Porém, no que aos vinhos doces respeita (o que em Portugal significa quase sempre licorosos), os ventos parecem não ir de feição. Em grande parte do mundo assiste-se a um certo afastamento dos consumidores relativamente aos vinhos doces, atingindo mesmo os não fortificados, Sauternes incluído. Até o vinho do Porto, que parecia imune à erosão de mercado sentida por muitos dos outros célebres congéneres (caso do Jerez, por exemplo), entrou numa lenta, mas inexorável, decadência de consumo, perdendo 20% em volume nas últimas duas décadas. Em 2023, de novo, caiu em quantidade e valor face ao ano anterior. No vinho Madeira essa tendência é menos evidente, mas existe: de 2022 para 2023, decresceu em quantidade, ainda que ganhando muito ligeiramente em valor. Paradoxalmente, é o mais doce (e, porventura, o mais subvalorizado) de todos os fortificados nacionais, o Moscatel de Setúbal, tema de capa desta edição da GE, que melhor se tem “aguentado”. Partindo embora de uma base muito mais pequena, nas últimas duas décadas quase duplicou o volume certificado. E as vendas mostram uma certa estabilidade, com crescimentos moderados. O que não deixa de espantar, se pensarmos que mais de 90% do negócio é feito em Portugal. E, mais interessante ainda, ao invés do que acontece com Porto e Madeira, o consumo em território nacional é feito sobretudo por portugueses, não por turistas estrangeiros. Já agora, comportamento muito semelhante tem o Moscatel do Douro, este com uma fatia um pouco maior de exportação. Significa isto que os portugueses são particularmente gulosos?
Dizia a minha avó (e aposto que muitas avós) que o que é doce nunca amargou. Eu nunca fui por aí. Prefiro os amargos, ácidos e salgados, um pastel de nata de quando em vez já é extravagância. Mas se o aforismo estiver certo, a verdade é que os grandes licorosos do mundo, de uma forma geral, não estão a ganhar muito com isso, antes pelo contrário. Resumindo, o que parece doce e é doce, está na mó de baixo. Mas, estranhamente, o que não parece doce e é doce, continua em alta e sem indícios de perder a boa onda. A esmagadora maioria dos vinhos tintos (portugueses, espanhóis, italianos, franceses, chilenos, argentinos, etc.) de preço moderado e médio, vendidos na Europa, Ásia e Américas, tem uma quantidade apreciável de MCR (mosto concentrado rectificado) adicionada. Ou seja, são, enfim, a modos que…docinhos.
Nada contra, é absolutamente legal e, quase diria, necessário, vai ao encontro do que o mundo pede, ou melhor, exige. E atenção, não são só os consumidores “de supermercado”, supostamente menos “conhecedores”, que os adoram. Muitíssimos destes vinhos são crónicos vencedores de concursos internacionais, onde são provados por sommeliers, enólogos, jornalistas, e ali batem concorrentes bem mais ambiciosos. Assim sendo, talvez o problema dos doces e licorosos não esteja, afinal, na doçura. A minha avó tinha outra na manga para estas ocasiões: “todo o burro come palha, é preciso saber dar-lha”.
Editorial Março: Os Melhores

Editorial da edição nrº 83 (Março 2024) Quando se fala de vinhos, poucas coisas haverá mais discutíveis do que reduzir aromas e sabores a um número. Mais difícil ainda será partir de uma lista com idênticas classificações e escolher um vinho em detrimento de outro. Para sermos, tanto quanto possível nestas circunstâncias, justos, na Grandes […]
Editorial da edição nrº 83 (Março 2024)
Quando se fala de vinhos, poucas coisas haverá mais discutíveis do que reduzir aromas e sabores a um número. Mais difícil ainda será partir de uma lista com idênticas classificações e escolher um vinho em detrimento de outro. Para sermos, tanto quanto possível nestas circunstâncias, justos, na Grandes Escolhas procuramos que esta responsabilidade seja partilhada entre todos os provadores, através de uma eleição. Mas mesmo assim não é fácil. E no final, é mais do que certo, ninguém sai satisfeito. Nem os produtores que não viram os seus vinhos destacados como “os melhores” (seja lá o que isso for…); nem os provadores que não obtiveram “votos” suficientes nos vinhos que propuseram e defenderam.
Apenas duas coisas acalmam, de alguma forma, os naturais desapontamentos (pelo menos, os nossos). Primeiro, a noção de que fizemos tudo para sermos rigorosos, independentes, justos; segundo, a absoluta certeza de que, quer os 30 vinhos eleitos como “os melhores do ano”, quer os cinco apontados como vencedores em cada categoria, são indiscutivelmente grandíssimos vinhos. Adjectivo que se ajusta por inteiro aos nomes vencedores: o espumante Murganheira Assemblage Grande Reserva 2006, o branco Bacalhôa 1931 Vinhas Velhas Bical 2021, o rosé Quanta Terra Phenomena 2022, o tinto Quinta do Crasto Vinha Maria Teresa 2019 e o fortificado Dalva Tawny 50 anos.
Se destacar vinhos grandes entre os grandes tem sempre uma elevada subjectividade, esse grau multiplica-se quando se trata de avaliar pessoas, empresas, instituições.
A reunião anual da redacção para escolher “Os Melhores”, espaço onde cada um apresenta as suas propostas, depois submetidas a debate e votação, é sempre o momento mais tormentoso do ano. As discussões são épicas e duram horas. A coisa fica tão feia que, normalmente, organizamos o jantar de Natal da empresa nessa mesma noite, na esperança de que o espírito natalício e umas belas garrafas de vinho promovam as reconciliações. Normalmente, resulta.
O mais importante é que, quando na noite dos Melhores do Ano subimos ao palco para anunciar os nomes vencedores, cada um de nós assume essa escolha colectiva como sua e defende-a intransigentemente.
Mais uma vez, e como acontece com os vinhos, como seria possível de outra forma, face à qualidade dos premiados? Senão vejamos. No que à gastronomia respeita, este ano pontificam os restaurantes Pedro Lemos, Três Pipos e Soão, todos eles referência no seu estilo de cozinha, a loja gourmet Comida Independente, que com poucos anos de vida já deixou marca, e a historiadora e investigadora Isabel Drumond Braga, com importante obra feita na área. No retalho e serviço de vinhos, três nomes incontornáveis: o wine bar Mind The Glass, a garrafeira Imperial e o talentoso sommelier Filipe Wang. Wine in Moderation e Algarve Wine Tourism são outros conceitos/projectos em evidência. Quanto a produtores, destacamos as boas surpresas do Domínio do Açor e da Herdade da Cardeira, a singularidade de Baías e Enseadas, a consistência da Adega Cooperativa de Ponte de Lima, a ambição da Menin Wine Company, o pioneirismo da Barbeito e a excelência clássica da Fundação Eugénio de Almeida. Na vinha e na adega, há que “tirar o chapéu” a Álvaro Martinho Lopes, Manuel Henrique Silva e Francisco Antunes. E, por fim, grande aplauso para um autêntico Senhor do Vinho, António Soares Franco.
Foram as escolhas certas? Cada qual que decida. Foram as nossas escolhas e estamos muito satisfeitos com elas.
Editorial Fevereiro: 35 Vindimas

Editorial da edição nrº 82 (Fevereiro 2024) Nascido e criado no meio urbano, a primeira vez que assisti a uma vindima já era jornalista encartado, quase cinco anos a coordenar revistas de computadores e automóveis todo-o-terreno, entre outras. Tinha 28 anos feitos quando, por dever de ofício (íamos lançar uma publicação de vinhos) vi entrar […]
Editorial da edição nrº 82 (Fevereiro 2024)
Nascido e criado no meio urbano, a primeira vez que assisti a uma vindima já era jornalista encartado, quase cinco anos a coordenar revistas de computadores e automóveis todo-o-terreno, entre outras. Tinha 28 anos feitos quando, por dever de ofício (íamos lançar uma publicação de vinhos) vi entrar uvas numa adega.
Parece que foi ontem, mas já passou muito tempo. Cumpri no ano que passou a minha 35ª vindima. Não foram vindimas a fazer vinho, nem nada que se pareça. Não possuo a formação necessária e, ao contrário de alguns, acredito que para fazer vinho com qualidade e consistência é preciso ter conhecimentos técnicos e científicos. Também, confesso, não tenho especial interesse em “meter as mãos na massa”. Se algum dia podei cepas, colhi uvas, pisei lagares, lavei prensas, trasfeguei depósitos e vasilhas, foi unicamente para perceber como se fazia, não porque tivesse grande vontade de o fazer.
Uma coisa faço, porém, com enorme prazer pessoal e empenho profissional. Em cada uma dessas 35 vindimas percorro dezenas de adegas, procurando acompanhar de perto aqueles que sabem do seu mister, totalmente focado em ver, ouvir, perguntar, aprender. E, dois ou três meses mais tarde, faço questão de provar os vinhos nas cubas e barricas.
Ter boa memória ajuda. Lembro-me dos primeiros brancos fermentados com temperaturas controladas, revelando um mundo novo de aromas e sabores a enólogos e consumidores, maravilhados com tanta fruta. Lembro-me da chegada da barrica nova ao estágio de tintos e fermentação de brancos, e daquelas baunilhas, tostas e fumos que nós, inocentemente, associávamos a vinhos luxuosos. Lembro-me de dezenas de produtores, apostados em fazer vinhos de maior qualidade, a abandonar auto-vinificadores, cubas de cimento, tonéis de madeira, talhas de barro, lagares, prensas verticais (e hoje a recuperar tudo isso…). Lembro-me de passar dias no Dão a provar vinhos brancos sem ouvir mencionar a casta Encruzado. Lembro-me de estar uma semana no Douro, a visitar quintas, e ninguém me apontar uma vinha velha como sendo algo de especial. Lembro-me de como se fazia a selecção dos vinhos base para espumante, com as amostras dos lavradores alinhadas, a passarem no crivo do chefe de cave, “este serve, aquele não serve”. Lembro-me dos ciclos de amor e ódio à Trincadeira, no Alentejo, e de como estes alternavam entre os anos quentes e secos e frescos e húmidos. Lembro-me de ter aterrado na Bairrada em pleno levantamento das “forças vivas” contra a Baga e dos muitos que queriam substituí-la, definitivamente, por Cabernet Sauvignon. Lembro-me de um orgulhoso produtor do Tejo me mostrar um Fernão Pires com 17 graus acabadinho de fermentar. Lembro-me de estar à beira de um tegão de recepção, ainda Lisboa era “Estremadura, conhecida por Oeste”, e durante uma vindima de chuva inclemente o reboque largar as uvas numa nuvem de pó cinzento que cobriu tudo. E o enólogo ter de fazer (e fez mesmo) um vinho decente com aquilo.
Enfim, lembro-me de muitos, muitos mais momentos e conversas na azáfama da colheita que não cabem ou não é próprio mencionar aqui. Lembranças de 35 vindimas significam, é claro, que não vou para mais novo. Essa é a parte má. A parte boa é o prazer de cruzar o histórico acumulado com a prova dos vinhos, sabendo de onde vieram, como nasceram e cresceram, que decisões foram tomadas, relacionando assim inúmeras variáveis. Acreditem, é um exercício entusiasmante que suscita intensa reflexão e de onde surgem, por vezes, conclusões interessantíssimas. De tal modo que, ainda os cestos estão a lavar, e já anseio pela 36ª vindima. Tenho coisas para aprender e dúvidas para esclarecer.