Editorial Maio: Hard Times

Editorial

Editorial da edição nrº 97 (Maio de 2025) Um amigo enviou-me cópia de um artigo publicado na revista Time, a 14 de abril último. O título diz praticamente tudo: “Como relaxar e espairecer sem beber álcool”. O artigo assenta na premissa de que a bebida alcoólica é o meio mais utilizado para libertar a mente […]

Editorial da edição nrº 97 (Maio de 2025)

Um amigo enviou-me cópia de um artigo publicado na revista Time, a 14 de abril último. O título diz praticamente tudo: “Como relaxar e espairecer sem beber álcool”. O artigo assenta na premissa de que a bebida alcoólica é o meio mais utilizado para libertar a mente e a tensão após um dia difícil no trabalho. Antes de retorquirmos que isto é coisa de americano e de bebidas espirituosas, pensemos melhor. Mesmo para quem não conhece intimamente a sociedade norte-americana, sobretudo a mais urbana, basta ver um filme ou ler um livro para perceber que o vinho é, naquele e noutros países, (alguns do norte da Europa, por exemplo), mais utilizado neste contexto de “relaxante”, do que como complemento de uma refeição.

“Historicamente assim tem sido”, diz o artigo assinado por Angela Haupt, “mas a maré está a mudar”. Um dos pontos de viragem foi o relatório do Surgeon General (o Director Geral de Saúde lá do sítio), de janeiro passado, afirmando que mesmo pequenas quantidades de álcool podem causar cancro. A peça da Time refere uma recente sondagem que indica que metade dos americanos está a cortar no consumo de álcool, mais 44% do que em 2023.

Contextualizado o “problema”, surge a pergunta: “O que é que podemos fazer para relaxar e espairecer sem beber álcool? Há uma maneira mais saudável de libertar a mente?” Os psicólogos e académicos consultados concordam que é difícil – “pegar num copo de vinho é tão mais fácil do que fazer caminhada ou ir a uma aula de yoga”, diz um – mas que depois de encontrada a “alternativa saudável” – recuperar hobbies antigos, ginásio, meditação, spa, escolher amigos que “não nos pressionam a beber”, são algumas das apontadas – “há um enorme sentimento de libertação”.

Colocar o vinho ao nível das chamadas “drogas recreativas” é algo tremendamente estranho para um consumidor português, espanhol, francês ou italiano. Para o apreciador, o vinho não é um meio para atingir um fim, seja o relaxamento ou, no limite, o oblívio. Nós bebemos vinho porque seus aromas e sabores nos dão prazer. Apreciamos vinho porque nele descobrimos incontáveis nuances e uma complexidade sensorial semelhante à que obtemos ao admirar uma obra de arte ou uma paisagem natural. E não apenas gostamos de o beber, como também de aprender e falar sobre ele, uma forma de enriquecimento cultural. Acontece que o chamado “americano médio” não compreende isto. Nem o compreendem muitos europeus, sobretudo das gerações mais jovens.

O relatório do OIV (o regulador internacional da vinha e do vinho, reunindo 51 países), apresentado no passado dia 16 de abril, mostra o efeito da crescente cruzada contra o álcool e o vinho. Deixo alguns dados relevantes: em 2024 o consumo global de vinho manteve tendência de descida, caindo 3,3% face a 2023 (total de 214 milhões de hectolitros), o valor mais baixo desde 1961; nos Estados Unidos, o maior mercado, o consumo baixou 5,8%; na base do decréscimo geral estarão “factores económicos e geopolíticos que geram inflação e incerteza” (ou seja, o vinho está mais caro – e ainda não chegaram as tarifas de Trump!); também mercados tradicionais caíram “devido à evolução das preferências de estilo de vida, mudanças de hábitos sociais e mudanças geracionais no comportamento do consumidor”. Há boas notícias? Talvez duas: vários países combinam “forte consumo global e muito grande população, oferecendo enorme margem de crescimento”; e, na Europa, Espanha (+1,2%) e Portugal (+0,5%) contrariaram a tendência de queda (haja turismo!). A estes juntaria um outro aspecto positivo, não mencionado no relatório: a comprovada resiliência do sector do vinho europeu, em geral, e português em particular. Vai ser decisiva nos tempos que se avizinham. L.L.

 

Editorial Abril: Brancos de tintas

Editorial

Editorial da edição nrº 96 (Abril de 2025) Vinhos brancos de uvas tintas não é coisa nova. Os franceses fazem-no há séculos para espumantes e, nomeadamente, para os Champanhe, onde a designação blanc de noirs é sinónimo de espumante branco feito exclusivamente de Pinot Noir e Pinor Meunier. Também em Portugal os espumantes brancos elaborados […]

Editorial da edição nrº 96 (Abril de 2025)

Vinhos brancos de uvas tintas não é coisa nova. Os franceses fazem-no há séculos para espumantes e, nomeadamente, para os Champanhe, onde a designação blanc de noirs é sinónimo de espumante branco feito exclusivamente de Pinot Noir e Pinor Meunier. Também em Portugal os espumantes brancos elaborados a partir de uvas tintas obtiveram assinalável sucesso, desde logo com a casta Pinot Noir a demonstrar uma capacidade surpreendente para, num clima quente como o nosso, originar grandes bases de espumante (já quando aqui vinificada em tinto, o resultado é muitas vezes inconsistente ou decepcionante). Mas também em casas como Murganheira ou Vértice, variedades nacionais como Touriga Nacional, Tinta Roriz ou Touriga Franca, a solo ou em blend com uvas brancas, são desde há muito usadas para elaborar excelentes espumantes.

O maior sucesso nesta área será certamente o da variedade Baga, que na Bairrada começou a ser ensaiada como base de espumante ainda nos anos 90 e a partir de 2015 deu origem a uma categoria regulamentada e certificada – Baga@Bairrada – que conquistou o mercado. Hoje são cerca de 31 as empresas da região a produzir Baga@Bairrada e mais se juntam a cada ano que passa. A Baga vinificada em branco constituiu uma espécie de 5 em 1: criou um negócio que não existia anteriormente, contribuindo para o crescimento do espumante Bairrada; lançou uma marca institucional que associou uma casta a uma região; aumentou a rentabilidade do produtor – uma vinha de Baga para espumante pode produzir o dobro sem afectar a qualidade; desviou da vinificação em tinto as uvas Baga menos capazes, elevando a qualidade média dos tintos Bairrada; e veio suprir a carência de uvas brancas, permitindo que estas fossem melhor aproveitadas e valorizadas.

O trajecto dos brancos de tintas em vinhos tranquilos é bem mais recente. Entre nós, o caso de estudo (diria que a nível mundial) é o Invisível, um branco de Aragonez produzido no Alentejo pela Ervideira. O vinho imaginado pelo produtor Duarte Leal da Costa foi criado na colheita de 2009, tendo-se enchido 9 mil garrafas. Da colheita de 2024, agora lançada, fizeram-se 135 mil garrafas, vendidas ao preço médio de €14. A próxima colheita será de 150 mil garrafas. O sucesso do Invisível deve-se, sobretudo, a dois aspectos: a consistência qualitativa e o factor diferenciador, sendo distinto na cor, aroma e sabor de qualquer vinho branco. Na senda do Invisível, ainda que em volumes muito inferiores, temos hoje quase duas dezenas de brancos de tintas tranquilos oriundos de todo o país. Confesso que não sou grande fã de brancos de tintas, sinto sempre que lhes falta a componente citrina que aprecio nas uvas brancas, mas reconheço a qualidade e, até, como já comprovei no Invisível, a versatilidade à mesa e longevidade.

O que me leva à grande questão: o que buscamos quando fazemos um branco de tintas? Se a ideia é marcar pela originalidade, então deverá ser o mais diferente possível de um branco “normal”. Mas existe um outro caminho, que pode e deve funcionar em paralelo com este, e que é imposto pela necessidade. Hoje, em regiões como Alentejo, Douro ou Dão, temos uvas tintas a mais e brancas a menos, um desequilíbrio que as tendências de consumo vão continuar a acentuar. Não deveríamos, sobretudo para os brancos mais simples, procurar que as uvas tintas, misturadas ou não com brancas, viessem suprir essa carência, como algumas casas já estão a fazer, discretamente, no Dão? Isso implica uma abordagem totalmente distinta: tentar fazer de um branco de tintas um vinho em tudo semelhante a um branco de brancas. Um enorme desafio, sem dúvida, para quem orienta a vinha e a adega. L.L.

 

Editorial Março: Tempo de escolher

Editorial

Editorial da edição nrº 94 (Março de 2025) A excelência é fácil de reconhecer. Difícil é apontar, escolher, dizer “este é mais excelente do que aquele”. Confesso que é uma responsabilidade que, pessoalmente, aceito com algum desconforto. Quantas vezes penso: “porquê este e não aquele”? Felizmente, não escolho sozinho, e o meu voto vale tanto […]

Editorial da edição nrº 94 (Março de 2025)

A excelência é fácil de reconhecer. Difícil é apontar, escolher, dizer “este é mais excelente do que aquele”. Confesso que é uma responsabilidade que, pessoalmente, aceito com algum desconforto. Quantas vezes penso: “porquê este e não aquele”? Felizmente, não escolho sozinho, e o meu voto vale tanto quanto o de qualquer outro membro do núcleo de redactores e provadores desta revista. Mas nem essa diluição de responsabilidades ameniza a sensação de que podemos ter cometido injustiças (e certamente que o fizemos). A consciência, porém, está tranquila, assente na certeza de que procurámos ao máximo ser independentes, rigorosos, justos, dentro da subjectividade que qualquer escolha encerra, ainda mais quando é de vinhos que se trata.

Excelência, portanto, é disso que aqui falamos. Qualificativo que se aplica por inteiro aos 30 eleitos como os melhores vinhos provados em 2024 e, dentro destes, aos cinco grandes vencedores, um por cada categoria. Quem pode negar essa qualidade a monumentos vínicos como o espumante Kompassus Grande Reserva Pinot Noir 2016, o branco Morgado de Oliveira NV, o rosé M Mingorra Tinto Cão 2023, o tinto Barca Velha Douro 2015 ou o fortificado Graham’s Tawny 50 anos?

Em Portugal, regra geral, bebemos os vinhos à mesa. E que mesas experienciámos em 2024! Restaurantes como Plano e Kabuki, em Lisboa, ou Cozinha do Manel, no Porto, são referências, cada um na sua categoria e estilo. Os vinhos ganham em ser bem servidos, harmonizados, sugeridos. Por sommeliers como Gonçalo Patraquim, um profissional de mão cheia que está a criar escola em diversos espaços. E adquiridos em locais emblemáticos como a garrafeira Vinho & Eventos, na Mêda, acompanhados pelas imperdíveis iguarias das lojas Apolónia no Algarve ou degustados em bares especializados como a incontornável Sala Ogival da Viniportugal, em Lisboa, que tanto tem feito pelos vinhos nacionais. Tal como Nuno Mendes, vencedor do troféu David Lopes Ramos, tem feito pela cozinha portuguesa no mundo.

No enoturismo, premiámos a revolução que a Taboadella trouxe à região do Dão. Pelo trabalho absolutamente crucial para a preservação e desenvolvimento do riquíssimo património genético das castas portuguesas, mereceu destaque a PORVID. Quanto a produtores, a Ode Winery, do Tejo, foi fantástica revelação, enquanto a Herdade da Mingorra, no Alentejo, confirmou duas décadas de bem fazer, a WineStone reforçou a sua ambição multiregional, a CARMIM, de Reguengos, veio dizer que sabe conjugar dimensão e especialidades, a madeirense Justino’s viu os seus Frasqueira reconhecidos entre os melhores e a bairradina Kompassus comprovou que qualidade e diferença podem (e devem) andar juntas.

Empresas e projectos de sucesso vivem de pessoas, de grandes profissionais. Como o enólogo Jorge Sousa Pinto, que em muitas casas de Vinho Verde cria belos vinhos respeitando sempre a identidade de cada uma; ou, no lado dos fortificados, Carlos Agrellos, que mantém bem alto o nome icónico da Quinta do Noval. E como não há vinho sem uvas, que dizer de José Luís Marmelo, a quem os hoje famosos Portalegre da Serra de São Mamede tanto devem?

Finalizo, como sempre, com o máximo galardão, entregue a quem ao vinho dedicou uma vida de trabalho exemplar e deixou obra para as gerações seguintes. Domingos Alves de Sousa, é o nosso Senhor do Vinho. Esta é uma escolha que, acredito, não suscita dúvidas, só aplausos.

 

Editorial Fevereiro: A Touriga, sempre

Editorial

Editorial da edição nrº 94 (Fevereiro de 2025) A incontornável Touriga Nacional é o tema central desta edição de fevereiro da GE, com uma prova de 46 vinhos.  “Uva bandeira de um país”, assim a titulamos na capa, epíteto justificado pela dispersão geográfica, pela adaptabilidade a diferentes solos e climas, pela personalidade vincada, pela qualidade […]

Editorial da edição nrº 94 (Fevereiro de 2025)

A incontornável Touriga Nacional é o tema central desta edição de fevereiro da GE, com uma prova de 46 vinhos.  “Uva bandeira de um país”, assim a titulamos na capa, epíteto justificado pela dispersão geográfica, pela adaptabilidade a diferentes solos e climas, pela personalidade vincada, pela qualidade que empresta aos lotes e varietais, pela notoriedade internacional.

Não sendo uma casta consensual, qualquer profissional do vinho, questionado sobre qual a uva tinta mais bem posicionada para representar o Portugal vitivinícola, dificilmente encontrará outra que não a Touriga Nacional. E, no entanto, a forma como o sector a tem encarado ao longo das últimas décadas é quase bipolar, com surtos de amor e ódio, num dia elevada a salvadora da pátria, noutro acusada de castradora da diversidade vitivinícola do País. Eu próprio já olhei para ela de diferentes formas em distintos momentos.

Por exemplo, em 2006, soaram os alarmes. Na prova de Touriga Nacional que fizemos, para enorme surpresa, os vencedores vieram do Alentejo. Antevi futuras desgraças, escrevi que o Alentejo nada ganharia em ter Touriga nos vinhos mais ambiciosos, que ficariam iguais a tantos outros de Portugal. E defendi a inutilidade da coisa, face à qualidade e carácter de variedades como Aragonez, Trincadeira, Alicante Bouschet, entre outras.  As previsões alarmistas não se confirmaram. Não apenas a Touriga não dominou as castas autóctones, como ela mesmo se “aculturou”: um Touriga alentejano (varietal ou blend) continua a cheirar e a saber a Alentejo.

Em 2011 a coisa era mais grave: a Viniportugal decidira que os vinhos portugueses deveriam ser promovidos internacionalmente sob a égide da Touriga Nacional, emulando os binómios Argentina/Malbec ou Chile/Carménère. Discordei veementemente, claro. E apontei, entre muitas razões, a desvalorização do conceito de região e de blend, a colagem a um conceito novo mundista de casta, o passar da mensagem errónea de que os melhores vinhos portugueses dizem Touriga Nacional no rótulo. Felizmente, um ou dois anos depois a Viniportugal alterou a estratégia e a catástrofe prevista não aconteceu.

Em 2016, afastado o receio da “tourigação nacional”, a minha reconciliação com a casta começou a tomar forma, à medida que, na vinha e na adega, se trabalhava melhor com ela. Na prova de Touriga Nacional realizada nesse ano, aqueles vinhos super florais, perfumados, monocórdicos, davam lugar a tintos complexos, longevos e, sobretudo, com aromas e sabores onde se sentia mais a origem do que a uva. Quase uma década passada, a prova que este mês publicamos reforça esta percepção, pois não apenas é evidente a região além da casta, como o próprio perfil do vinho varia imenso consoante a abordagem vitícola e enológica de cada produtor.

Hoje, a posição da Touriga no vinho português é clara: espinha dorsal dos melhores lotes do Dão, parceira da Touriga Franca no Douro “moderno”, valor acrescentado sempre que solicitada em distintas regiões. Dito isto, não deixa de ser sintomático que, mesmo no Dão onde nasceu, raramente (ou nunca) o melhor vinho da casa é um 100% Touriga Nacional.

Olhando para a forma como a Touriga foi encarada ao longo destes últimos 20 anos, vemos que a casta desperta paixões, rejeições, aplausos e incómodos. Só as grandes uvas o fazem. A Touriga é exuberante, egocêntrica, dominadora, excessiva. Mas hoje sabemos domá-la, o que fazer com ela, que peso pode ou não ter no vinho que ambicionamos. Nenhum país vinícola se pode dar ao luxo de desprezar uma casta como esta. Tenhamos, pois, orgulho em afirmá-la e defendê-la, como defendemos a bandeira nacional, mesmo que não apreciemos muito as cores.

Harmonias: O fabuloso mundo dos azeites

Nada satisfaz mais o português que a ideia de abundância à mesa. O azeite é uma gordura muito especial por isso mesmo e não há melhor recompensa que uma nódoa do ouro líquido na camisa ou na gravata. A técnica mudou muito, mas a glória permanece e faz-se sentir nas grandes e pequenas declinações culinárias. […]

Nada satisfaz mais o português que a ideia de abundância à mesa. O azeite é uma gordura muito especial por isso mesmo e não há melhor recompensa que uma nódoa do ouro líquido na camisa ou na gravata. A técnica mudou muito, mas a glória permanece e faz-se sentir nas grandes e pequenas declinações culinárias. O tempo e o modo pedem azeite novo e em troca obtemos as maiores alegrias.

 

Das gorduras utilizadas pelo mundo na cozinha, o azeite é porventura a mais sofisticada, pelo simples facto de que intervém, com toda a sua personalidade, tanto no gosto como no aroma.

Não é uma gordura neutra e altera as suas características com o tempo, dois factores a ter em conta em qualquer utilização que se faça. Mas há mais. A cor do azeite não tem qualquer significado quanto a origem, qualidade ou acidez. Isto vale para os que vêem virtude nos azeites de uma certa cor, preterindo uns em relação a outros. É tanto assim quanto a prova de azeite é normalmente feita em gobelês de vidro azul, para que a coloração do conteúdo não influencie o juízo que se está a tentar fazer.

Outra falácia bastante comum é a presunção da acidez a partir da prova em boca. Um erro que se encontra muitas vezes entre os provadores de vinhos, referindo-se à acidez titulada em ácido tartárico ou sulfúrico. Acontece que a acidez do azeite se refere ao teor de ácido oleico, que o nosso sistema gustativo não consegue julgar. Há que não confundir com os amargos de certo azeite, que comunicam informação semelhante mas sem qualquer relação possível entre uma coisa e outra. Já o mesmo não se pode dizer dos aromas, que podemos e devemos julgar livremente com os receptores que utilizamos no quotidiano. É de resto nesta etapa da degustação que avaliamos defeitos nos azeites, caso por exemplo da tulha, ranço e mofo. A tulha tem origem no armazenamento precário e amontoado das azeitonas, que fermentaram por isso mesmo. Já o ranço é devido à oxidação da matéria-prima, e o mofo tem a ver com humidade residual, contaminando e condenando o estado da fruta antes do processo extractivo que origina o azeite. Um azeite defeituoso nunca melhora e vai arruinar todo e qualquer cozinhado que se faça com ele.

harmonias azeite

A prova de azeite é normalmente feita em gobelês de vidro azul, para que a coloração do conteúdo não influencie o juízo que se está a tentar fazer

Pelas virtudes é que vamos

A prova de azeites é completamente diferente da prova de vinhos e exige prática recorrente. Recomendo um caminho na exploração dos aspectos positivos, mais do que dos negativos de cada azeite. Tal como no vinho, detemo-nos nos aromas primeiro, e procuramos destrinçar as notas de fruta verde, como noz e maçã, das sensações mais maduras como ameixa  e dióspiro. Depois temos de colocar no tabuleiro variáveis como especiarias, flores e notas balsâmicas, tal como fazemos com o vinho numa prova. Talvez não seja de imediato, mas em três tempos vai tornar-se especialista e aprender a explorar sem ajuda o fabuloso mundo dos azeites. Desde que seja virgem extra, o sentido de descoberta instala-se rapidamente, para nunca mais nos deixar.

Como tempero de saladas, utilizamos abundantemente um bom azeite e logo os componentes individualizados se manifestam como um instrumento musical numa orquestra. O mesmo acontece com o vinagre, e não é à toa que azeite e vinagre entram juntos à mesa, quase com o mesmo valor de sabor, pois no equilíbrio é que está o ganho. A fritura é manifestação feliz dos pontos positivos de uma gordura na cozinha, ajudando a conservar os alimentos e, ao mesmo tempo, conferindo-lhes a crocância que tanto apreciamos numa boa tempura. O azeite pode, neste caso, ser uma boa influência. Mas, na maioria das situações, um óleo alimentar de origem vegetal consegue melhores resultados. Face aos alimentos crus que estamos a trabalhar, adornados por gorduras abundantes, o conselho de harmonização recai inevitavelmente sobre um Loureiro sem madeira, da região dos Vinhos Verdes. A acidez fixa elevada resolve, o sabor consola. Se acrescentar frutos secos como amêndoas ou nozes, o acréscimo na textura vai encontrar contraponto de luxo no vinho da casta rainha de Ponte de Lima.

harmonias azeite

A variante lagareiro

A primeira declinação culinária que nos vem à mente, no tocante a azeite e proteína, é a posta de bacalhau assada no forno, bem regada e orlada com bastante alho. Sabores que estão incrustados na nossa alma desde que nascemos, com os quais crescemos bem nutridos e felizes, passando o testemunho para as gerações seguintes. Seja bacalhau, polvo, lulas ou outro ingrediente principal, encontramos esta solução culinária sob a designação “lagareiro”, justamente por ter o azeite como condutor do calor para o cozinhado. Em casa, dizemos apenas que é assado em azeite, mas, de facto, justifica-se alguma reflexão, porque não é exactamente assim.

Aproveito para introduzir alguma entropia – leia-se agitação – no assunto, indo aos postulados que reconhecemos como fundadores do processamento lagareiro. Um Vinhão do Minho ou um Cabernet Sauvignon do Tejo fazem as loas ao assado magistral, conferindo-lhe realeza e novos matizes de sabor. Ultimamente tenho feito experiências com vinhos Chardonnay do Tejo com madeira, exactamente com esta preparação de bacalhau com azeite, e quase sempre resultou. Há que experimentar e provar com persistência. Por muito que se evoque a tradição, sabemos que é coisa incriada e sempre aberta a novos processamentos.

Em tempos idos, enquanto se extraía o azeite novo nos lagares, aproveitava-se para ir lascando, respeitando o colagénio existente em abundância na posta. Em termos de temperatura, estava-se longe da fervura, que, como todos sabemos, é prejudicial à saúde do bacalhau, correndo o risco de secar e encortiçar. Era como se a posta soltasse pétalas de extremo sabor e tenrura. Entretanto, sobre as brasas mortiças repousavam batatas rachadas que, no momento de consumir, se juntava e regavam com o azeite novo e morno. Esta história ficcionada tem um fundo autêntico e situa-se nas Beiras, onde tem raízes a epopeia do bacalhau na mesa portuguesa. Fica maravilhosamente bem com um branco de Fonte Cal da Beira Interior, aliás como qualquer perfil de bacalhau. Gosto de fazer o paralelo com o torricado do Ribatejo. As incisões numa fatia de pão velho em diagonais cruzadas, o alho esfregado e o azeite acabado de fazer, depois enriquecido com pedaços de proteínas diversas, são iguaria digna dos deuses. Talvez nestas circunstâncias devamos orientar-nos para um Fernão Pires de Almeirim, copioso e não muito frio, para que a alquimia de boca se cumpra. Não se deixe intimidar pela eventual desconfiança no bacalhau congelado, em pratos que queremos executar rapidamente pode mesmo ser a solução indicada. Eu tenho, por hábito, demolhar bacalhau seco para depois demolhar a preceito e congelar. Para mim o sal deve pronunciar-se sobre a goma e a única forma de o conseguir é com esta abordagem. Mas há produtos cortados e corrigidos que vão ao encontro dos nossos gostos e bolsas, que dão rendimento muito apreciável em termos de sabor e integração em pratos de forno. Importante é que se cumpra o desígnio inicial, que é ter sempre bom bacalhau na mesa.

harmonias azeite

As variantes da variante

Em tempos que já lá vão reinou entre nós uma das sérias figuras da alta cozinha, chamado Aimé Barroyer. A cozinha do Pestana Palace, em Lisboa, vibrou e ficou ao rubro diversas vezes, com as criações do grande chef francês. Inesquecível a forma cândida com que Barroyer assumiu a sua perplexidade ante jóias da nossa cozinha, como a massa de pastel de bacalhau. Provei mais de uma dúzia de pratos feitos com a dita massa, a que confesso que nunca havia dado a atenção que o genial chef deu. Talvez a mais incrível de todas tenha sido a sua bola de massa de pastel de bacalhau em cama de percebes. No fundo, tratava-se de uma bola de massa próxima da brandade, que ia a fritar com batata palha à laia de raios de sol e vinha servida em cama de percebes. A experiência vínica mais fascinante que fiz com esta maravilha aconteceu com um Sauvignon Blanc do Douro, talvez mesmo a mais notável das experiências que me foi dado fazer com a casta.

Cebola, azeite e bacalhau são capazes de nos surpreender quando menos esperamos. A preparação dita à moda de Braga é exemplar. Posta de bacalhau frita com cebolada em azeite, batata frita às rodelas, tudo levado ao forno quente por pouco tempo, é uma das formas de perceber as mais valias que a cebola pode ter junto de bom azeite. O Bacalhau à Narcisa preenche praticamente os mesmos requisitos e, na verdade, muitos outros bacalhaus tradicionais bebem todos da mesma fonte sábia e ancestral. A cebola adora vinho branco, se lho soubermos dar, e a maravilha do bacalhau à minhota – outra designação possível do prato – acontece com um Arinto velho. Se for da Bairrada, tanto melhor, pois temos mineralidade forte e desempenho genial com azeite fervido em termos de sabor.

As incisões numa fatia de pão velho em diagonais cruzadas, o alho esfregado e o azeite acabado de fazer, depois enriquecido com pedaços de proteínas diversas, são iguaria digna dos deuses.

E não esqueçamos o galego Brás, que oficiava outrora na sóbola empena que vinha do Tejo e ia até ao céu sempre que houvesse interessados na jornada. Das muitas figuras do meu relicário gastronómico, é de longe aquele a quem mais impus a minha própria fantasia. Nos parcos e tíbios cursos que ministrei, o bacalhau à Brás pontifica, é eterno em nós e é do povo, não admitindo qualquer tipo de discriminação. Peguemos então numa aba fina de bacalhau seco. Esfiapamo-la com pressão da unha do polegar contra a do indicador. Fibra a fibra, vamos libertando os fios do fiel e vamos reparando que o sal vai saindo também. Terminada a empreitada, temos um montinho de sal, que deitamos fora. O passo seguinte é o corte de batatas em juliana fina, que reservamos após passadas por várias águas. Finalmente cortamos cebolas segundo o veio em bitola semelhante à da juliana de batata, que colocamos em sertã grande, mais larga que funda, em azeite virgem extra, lume no mínimo. Quando a cebola amolece, juntamos-lhe a batata, devidamente escorrida. Com a colher de pau, envolvemos ambos os legumes. Entretanto passamos por água corrente abundante, no fio da torneira, o bacalhau esfiapado da etapa inicial. Enxaguamos, e secamos com um pano. Levantamos um pouco o lume, até atingir fervura ligeira, às batatas e à cebola, que nesta altura devem estar chochas e mortiças. Integramos então o bacalhau, envolvendo sempre. Logo que volta a atingir fervura, apaga-se o lume. Deita-se uma gema batida por pessoa, mexendo sempre, deita-se coentros picados e azeitonas pretas e está pronto a servir. Há muitos caminhos para chegar ao objectivo final na cozinha portuguesa. Acompanhe com Bical do Dão com alguma madeira.

Artigo publicado na edição de Dezembro de 2024

Editorial Janeiro: O que podemos esperar

Editorial

Editorial da edição nrº 93 (Janeiro de 2025) O ano de 2024 já era, deixando pistas sobre o que esperar do que agora se inicia. Acentuaram-se os desequilíbrios entre a oferta e a procura, e a conjuntura complexa que o sector do vinho atravessa passou dos meios profissionais para a opinião pública, merecendo abertura de […]

Editorial da edição nrº 93 (Janeiro de 2025)

O ano de 2024 já era, deixando pistas sobre o que esperar do que agora se inicia. Acentuaram-se os desequilíbrios entre a oferta e a procura, e a conjuntura complexa que o sector do vinho atravessa passou dos meios profissionais para a opinião pública, merecendo abertura de telejornais na época de vindima, com a exploração mediática a deixar um retrato menos positivo (e tantas vezes injusto) dos vinhos de Portugal. Bater no fundo, no entanto, também tem coisas boas: questiona vícios antigos e obriga a agir. Estou por isso convencido que 2024 foi um marco de viragem, impulsionando toda uma fileira para fazer mais e melhor. O que podemos, então, esperar de 2025?

Menos vinho. O mundo está a beber menos vinho e Portugal não é excepção, por muito animadores que sejam os números “oficiais”, pouco condizentes com aquilo que sentem os produtores, distribuidores, restaurantes. O objectivo estratégico das empresas vai, necessariamente, passar de vender mais para vender melhor.

Mais fiscalização/regulamentação. É fundamental recuperar a confiança do consumidor. Irão acabar os rótulos com nomes associados a locais e patrimónios portugueses em embalagens com vinhos nascidos noutras geografias. E os chamados Vinhos da UE (absolutamente legais, note-se!) serão muito mais claramente identificados na rotulagem.  A fiscalização vai aumentar, mas é preciso ir além dos vinhos baratos ou de volume. Também os segmentos de nicho, como os orgânicos ou biodinâmicos, por exemplo, necessitam de muito maior rigor, sobretudo para detectar utilização de produtos proibidos e mistura de uvas ou vinhos que não cumprem a certificação.

Mais aquisições/fusões. O tempo dos amadores passou. Num mercado internacional tão competitivo, vão prosperar os grandes, com estruturas profissionalizadas e uma gestão de recursos optimizada e eficaz; e os pequenos, que com poucos custos oferecem vinhos de origem, diferenciadores e de valor acrescentado. O meio da ponte é o pior local para se estar.

Menos álcool. A tendência é clara: um pouco por todo o mundo, os apreciadores de vinho querem-no com menos álcool. Um desafio para quem trabalha na vinha e na adega, sobretudo enfrentando uma sequência de anos quentes. Há que fazer vinhos intensos, saborosos, complexos, mas com menos 1 ou 1,5% de álcool. E, mais difícil ainda, sem colocar em causa o sentido de lugar e sem atalhos fáceis, como vindimar uvas verdes: não vejo que interesse possa ter um tinto do Douro ou do Alentejo com 11%: é apenas água, álcool e acidez, a origem perdeu-se.

Mais bebidas de vinho. Digo “bebidas” de propósito, pois legalmente não podemos chamar-lhes vinho. Mas o mercado internacional está cada vez mais aberto a bases de vinho coloridas, aromatizadas ou total ou parcialmente desalcoolizadas. E quando há procura, a oferta aparece.

Mais brancos. É uma evidência incontornável: em Portugal e no mundo cai o consumo de tintos e aumenta o de brancos. No Dão, por exemplo, Encruzado transformou-se numa categoria de vinho, e não há uva que chegue para as encomendas. Em regiões onde a uva tinta é claramente excedentária, a sua vinificação em branco vai passar de “brincadeira” a obrigação.

Mais diferença. Seja na vinha (castas raras, videiras centenárias, altitude…), seja na adega (brancos de curtimenta, pet nat, ânforas, cimento, foudres…) surgem cada vez mais vinhos orientados para consumidores que valorizam o que é diferente. Nem sempre o que é diferente, é bom. Mas sempre que adicionamos carácter e diferença à qualidade, criamos um produto mais refinado.

Melhores vinhos. De todos os “prognósticos” para 2025, este é o que podemos tomar como garantido. A cada ano que passa, nascem em Portugal melhores vinhos, brancos, rosados e tintos. Não sei quando o mundo vai verdadeiramente reconhecer (e pagar) a grandeza destes vinhos. Mas pouco importa, eu sei onde os encontrar.

Editorial Dezembro: Questão de identidade

Editorial

Editorial da edição nrº 92 (Dezembro 2024) Na Grande Prova desta edição, dedicada aos tintos mais ambiciosos do Alentejo, Nuno de Oliveira Garcia levanta uma questão bem interessante que tem a ver com a identidade regional. Diz o autor que “a prova demonstrou um padrão maioritário de perfil muito bem definido, com várias semelhanças entre […]

Editorial da edição nrº 92 (Dezembro 2024)

Na Grande Prova desta edição, dedicada aos tintos mais ambiciosos do Alentejo, Nuno de Oliveira Garcia levanta uma questão bem interessante que tem a ver com a identidade regional. Diz o autor que “a prova demonstrou um padrão maioritário de perfil muito bem definido, com várias semelhanças entre si. Vinhos intensos, exuberantes e capitosos, fantásticos na sedução, mas, em vários casos, parecidos uns com os outros. Numa região com sub-regiões tão diversas, e terroirs distintos (…), seria positivo encontrar registos mais diversificados.” Acrescenta Nuno de Oliveira Garcia que o mesmo se passa com outras regiões. E dá o exemplo das recentes provas de Lisboa ou Douro, em que “os topos de gama tendem a uma uniformização no que respeita ao ponto de maturação fenólica e ao uso da barrica”.

Esta é uma daquelas questões em que, como no dito popular, se “é preso por ter cão e preso por não ter”. Por um lado, pretendemos que uma região vitivinícola tenha uma evidente identidade, que os seus vinhos obedeçam a um denominador comum. Ou seja, que os aromas e sabores de um Barolo, um Borgonha, um Douro, um Alentejo, nos remetam para a sua origem. Por outro lado, quando compramos vinhos de uma dada região não queremos que nos cheire e saiba tudo ao mesmo. Sobretudo, quando a região é, em si mesma, diversa. E o Alentejo, é, claramente, a região mais diversa de Portugal, pela dimensão e pela quase infinita combinação de solos, climas e castas que abraça. Não por acaso, o Alentejo está hoje dividido em 8 sub-regiões, um número que até poderia (e deveria) ser alargado. Se conjugarmos identidade e massa crítica, faz hoje todo o sentido que Beja obtenha igual estatuto. E, no futuro, assim adquira produtores suficientes, também o Alentejo litoral.

No que a vinhos respeita, a identidade estabelece-se em três níveis. O primeiro, mais alargado, é o regional. E aqui, o Alentejo cumpre inteiramente. Um “clássico” blend de Alicante Bouschet, Aragonez e Trincadeira sabe a Alentejo, do mesmo modo que um “moderno” blend de Syrah, Alicante e Tinta Miúda sabe a Alentejo.
Um segundo nível de identidade está no perfil sub-regional. E aqui, concedo, são poucos os vinhos alentejanos que o manifestam. Uma das razões poderá estar na generalização do Alicante Bouschet a praticamente todos os tintos de topo produzidos na região. É difícil evitá-lo, já que esta casta alentejana de adopção, quando bem trabalhada na vinha e na adega, dá origens a vinhos esplendorosos, tornando-se a espinha dorsal dos melhores blends ou resultando em varietais de grande impacto. Mas se o propósito for expressar a sub-região (um caminho que cada produtor é livre de seguir ou não) acredito que variedades antigas e hoje minoritárias, como Castelão, Moreto, Alfrocheiro, Tinta Grossa, Tinta Caiada ou, mesmo, Trincadeira, serão bem mais eficazes. Os vinhos das vinhas velhas, que felizmente ainda existem em várias sub-regiões, dão sustento a esta tese.

O terceiro e derradeiro patamar de identidade está no estilo do produtor. Mas para se ter um estilo, reconhecido pelo consumidor, é preciso saber exactamente o que se quer, ser determinado e criativo, seguir o seu caminho, eventualmente contra modas e opiniões. Isso não é para todos, seja no Alentejo, no Douro ou em qualquer outra região de Portugal ou do mundo. No entanto, eles andam aí. Caso paradigmático: apesar de baseados na mesma casta (Alicante Bouschet, o tal “uniformizador”…), estarem ambos situados no norte do Alentejo, e terem origens históricas na mesma família, Gloria Reynolds e Mouchão têm estilos muito próprios, inconfundíveis. E termino com o exemplo do famoso Pêra-Manca, tinto de singular personalidade. Curiosamente, aqui não há Alicante Bouschet, só Trincadeira e Aragonez de parcelas especiais, balseiros para fermentação e tonéis antigos para estágio. Parece fácil, não é? L.L.

Minha rica caldeirada

caldeirada

O povo português leva ao peito todo o peixe e marisco que a natureza lhe entrega, para depois processar de mil maneiras, declinando os mais gloriosos pratos segundo receituário simples e de matriz popular. De raiz profunda na cozinha de pescador, é desde sempre que retalhamos e aparamos peixes, levando-os a lume brando sobre legumes […]

O povo português leva ao peito todo o peixe e marisco que a natureza lhe entrega, para depois processar de mil maneiras, declinando os mais gloriosos pratos segundo receituário simples e de matriz popular. De raiz profunda na cozinha de pescador, é desde sempre que retalhamos e aparamos peixes, levando-os a lume brando sobre legumes diversos para produzir caldeirada. Não há quem não tenha a sua favorita e está no coração de todos.

A diversidade de espécies, a qualidade notável que, desde sempre, o imenso mar Atlântico garante, fez com que nos tenhamos apoiado, como fonte segura, no manancial de pescado que alimenta a nossa mesa. Em Portugal saboreamos com desarmante simplicidade um peixe grelhado nas brasas sem véus nem disfarces. O mesmo é dizer sem tempero que não seja sal, azeite e vinagre. Quanto mais nos aproximamos das extremidades, vísceras e espinhas maior é a intensidade de sabor que sentimos e nos vicia desde que nascemos. Estamos nos domínios da cozinha de pescador, em que o umami é fonte inesgotável de felicidade, além de espaço de mantença rica e valor pobre. Águas muito frias, correntes fortes e constância nos fluxos são alguns dos aspectos diferenciadores do produto marítimo nacional, a que há ainda a juntar a quantidade. Seja como for, certo é que os que andam na faina pelo nosso mar, chegado o momento sacramental da venda em lota ou da pesca artesanal de anzol, retêm para si os pináculos de sabor enjeitados pelos distraídos e deprimidos urbanos e fazem a festa entre si com muito mais proveito. Está apresentada a principal origem da caldeirada.

Somos, por definição e teimosia, adeptos fanáticos da lógica do produto inteiro; da fixação em aproveitar tudo num mesmo peixe, a tudo dando destino culinário. Na minha fantasia romântica – e urbana – a caldeirada nasceu a bordo de barcos e fragatas pesqueiras, seguindo o esteio da simplicidade extrema. O corte das cabeças e o aproveitamento das vísceras produz só por si, apenas com o suado de cebolas e outros hortícolas de guarda, fundos caldosos de sabores ricos e concentrados. Depois era juntar peças ou aparas para obter copiosas refeições a bordo, sem qualquer prejuízo da qualidade. Aventura igual acontecia em terra firme, depois de vendidos os mais nobres exemplares, no aconchego e recato da praia no lusco-fusco e na configuração de potes de ferro e lume de chão. Quem nunca fez a experiência não imagina o que perde. Quem já fez nunca mais dispensa.

 

De norte a sul, de lés a lés

Viajamos em modo de voo rasante para sondar e absorver o principal do tema da caldeirada e damo-nos conta da extraordinária variabilidade. Nos cocurutos minhotos do território damos com uma preparação canónica, baseada em congro – o peixe exemplar que vive tão bem em águas salgadas como em água doce – e nos belos exemplares que quase podemos dizer que existem para proporcionar a caldeirada perfeita. São eles, entre outros o ruivo, a raia e o tamboril. Consome muita cebola, timidamente ponteada com alho e bastante louro. Batata às rodelas grossas, montadas com a cebola a fazer cama, colorau. Segue-se o cortejo de peixes, cobre-se de água, rega-se com vinho verde branco e azeite e está pronto o tacho para o sacrifício sápido que sabemos de cor. Sempre em lume muito brando, que a transformação é lenta. Deve beber-se o mesmo Vinho Verde branco que se utilizou na confecção da caldeirada.

Descemos um pouco na geografia ribeirinha, até Aveiro, a sacrossanta capital da caldeirada monoproteína. Estamos na altura das enguias e é justamente nessa que nos concentramos. Falamos do peixe que vem de latitudes baixas, cerca do Golfo do México ainda bebé e que por orientação misteriosa sobe até às águas tumultuosas da Ria, regressando por intuição geomagnética ao lugar onde foi concebido. As enguias são despojadas das cabeças e cortadas em segmentos e a ordem de montagem é cebolas, batatas – ambas às rodelas – e os pedaços de enguia. Monta-se em camadas alternadas, e encima-se com unto. Sim, banha! Leva ainda gengibre, bastante vinagre e muita ciência culinária e, quando resulta, torna-nos por osmose um pouco divinos. Neste caso, a harmonização ideal pode passar por um tinto ligeiro, com pouca extracção, ou alternativamente um bom Viognier alentejano.
Parceira de vinho tinto ainda melhor é a maravilhosa caldeirada de petingas, também de Aveiro, de sabores bem vincados e com bastante tomate na composição. À mesa é como num passe de mágica, vinho e comida desmaiam nos braços um do outro. Em Aveiro também é rainha a caldeirada multiproteína, com amêijoas, tamboril, safio, congro e lulas, bastante tomate e muita cebola. Dependendo da frescura do peixe, é prato para nos colocar às portas do céu. E o que bebemos? Um bom Cercial da Bairrada.

Continuamos para sul e damos com a incrível e apetitosa caldeirada à fragateira, em que pontificam os peixes ribeirinhos, de mar e rio, consoante as povoações. Eram outrora cozinhadas a bordo das fragatas. A fataça (tainha), e as enguias constituem o núcleo central, podendo juntar-se saboga, barbo, safio, cação e tamboril. É uma grande surpresa para quem nunca provou e pede a assessoria de um Fernão Pires do Tejo com alguma idade. Olleboma – António Maria de Oliveira Bello – era fã incondicional deste prato de tacho de tradição rústica, que situava no Ribatejo, Lisboa e Sesimbra. Em termos de sabor apoiava-se muito no caldo inicial de cabeças de peixe, e não se fez rogado nas que em sua opinião eram as que mais contribuíam para o sabor final. Por ordem decrescente, eram estas: pescada, congro, goraz, pargo, robalo, enguia, linguado e ruivo. Um trabalho de sistematização notável, reconheça-se. Nesta profusão de sabores marítimos são de salientar a utilização de duas lagostas de quilo e um quilo de camarão da costa. Ou seja, é na Grande Lisboa que adquire estatuto de nobreza a nossa querida caldeirada. Para este colossal e patrimonial prato, propomos um Arinto com madeira e mais de seis anos em garrafa, A acidez natural irá fazer um bom trabalho na resolução dos excessos proteicos, que são de esperar em termos de complexidade.

Do Alentejo chega-nos a caldeirada de eirós (enguias), de preparação canónica e ao mesmo tempo símbolo de rendição à ancestral menta alentejana que é o poejo. É, como sabemos, a erva que mais rendimento de aroma e sabor dá, e a que mais se presta à cozedura extractiva lenta, com provas dadas através de inefáveis pratos estufados, como é o caso do cação. Leva também tomate e o vinho branco é referencial obrigatório, pelo que propomos um vinho estreme da casta Roupeiro/Síria, se possível com alguma idade. Prima não tanto pelo corte de gorduras e proteínas, mais pelo conforto e envolvência do palato, a proporcionar estabilidade e persistência de aromas e texturas, além do estímulo extremo do palato. Neste caso, quanto mais acidez fixa, melhor.

Já no enigmático e subtil Algarve gastronómico, damos com a caldeirada rica, marcada pela presença de pata-roxa, corvina, sargo, besugo, linguado, robalo, tainha, rodovalho, salmonete e garoupa. Exige longas e aturadas preparações de cada peixe, numa muito eficaz fusão e sabores e texturas. Nunca nos podemos esquecer de que o Algarve é fonte de inspiração e manancial de aromas e texturas. Temos sempre de estar preparados para mais uma nova revelação. A experiência com um Negra Mole algarvio é uma grande e fundadora instrução para subsequentes e certeiras explorações. A harmonização com um Arinto dos Açores tem efeito imediato e universal. As tonalidades vulcânicas e a acentuada acidez fixa confirmam acentuadamente a capacidade de resolução de proteínas e mineralidade deste vinho.

Nos Açores, o caldo de peixe apresenta-se-nos como uma proverbial caldeirada, com sargo, garoupa, bicuda e muge na base, a que devemos juntar emoções e sensações de temperos como pimenta da terra e açafrão como ingredientes que vão equilibrar as diversas sensações de sabor. Ligação de excelência com um bom Arinto dos Açores do Pico.

 

caldeirada

Caldeirada europeia

No espaço e mares europeus, a exploração acontece naturalmente para dentro do espaço continental, já que do outro lado espera-nos o imenso oceano. Logo aqui ao lado, nas Astúrias, as receitas de caldeirada sucedem-se, na história e na riqueza. A celebrada “caldereta de Gijón” é uma das mais belas rendições à glória do peixe e do marisco disponíveis. É muito semelhante à nossa abordagem de caldeirada, excepção feita à utilização de caldos de conserva que se armazenam separadamente e que nós não utilizamos. É considerada localmente com a mais digna e nobre expressão que o mar asturiano tem para dar.

Avançamos para França e encontramos a famosa bouillabaisse concatenação de “bouille” – fervura com “baisse” – baixa e que significa, strictu sensu, cozedura a baixa temperatura e que, na literatura de índole gastronómica, entendemos como categoria culinária à parte. Itália também tem lugar reservado para as caldeiradas. Por lá, encontramos nos cardápios declinações felizes semelhantes às nossas. Carinhosamente, chamam-lhe cioppino, para indicar que se trata de um prato feito com base na fervura lenta de cortes de peixe integrados num caldo único.

O universo marítimo da mesa é um imenso e rico manancial de significados e significantes, com matizes que vêm e se perdem nas brumas do tempo. Que nunca nos faltem as caldeiradas!