Grande Prova: Monção e Melgaço – O expoente do Alvarinho

GRANDE PROVA MONÇÃO E MELGAÇO

Se fossem necessárias algumas razões, bastariam duas para justificar o presente trabalho: por um lado, a fama secular dos vinhos desta sub-região e, por outro, a sua originalidade centrada na casta Alvarinho que ganhou, e bem, um lugar especial nos consumidores nacionais e estrangeiros. Mas voltemos atrás para recordarmos o nosso colega João Paulo Martins […]

Se fossem necessárias algumas razões, bastariam duas para justificar o presente trabalho: por um lado, a fama secular dos vinhos desta sub-região e, por outro, a sua originalidade centrada na casta Alvarinho que ganhou, e bem, um lugar especial nos consumidores nacionais e estrangeiros. Mas voltemos atrás para recordarmos o nosso colega João Paulo Martins quando este referia, nas edições do seu Guia de Vinhos de Portugal nos finais dos anos 90, que existiam Vinhos Verdes e, depois, existiam os Alvarinhos, numa clara alusão ao elevado padrão qualitativo destes últimos, e sempre com destaque para os provenientes de Monção e Melgaço. Claro está que os Verdes de hoje nada têm a ver com os dos anos 90, numa evolução que acompanhou a da generalidade dos brancos nacionais. Mas os vinhos de Monção e Melgaço continuam a ser algo de muito especial, diferente em todos os sentidos, com uma notoriedade histórica onde, já naquela altura, pontificavam marcas como Cêpa Velha, Deu-la-Deu ou Palácio da Brejoeira, todas elas verdadeiros marcadores de um perfil de Alvarinho proveniente de um território de excelência.

Solos e altitudes

Mas afinal que território é este? Protegido por montanhas, com um microclima mais continental do que a média da restante região dos Vinhos Verdes (ou seja, com maior amplitude térmica), Monção e Melgaço caracteriza-se climatericamente por invernos frios e chuvosos e verões que se podem qualificar como quentes. Tanto assim é que, no verão, entre Caminha no litoral e Monção, separada do mar por uma cadeia montanhosa, a diferença de temperatura pode chegar aos 15ºC apesar da mera distância ser de 35 quilómetros. Tal como sucede um pouco pelo país, existem em Monção e Melgaço diferenças de solos e altitudes, sendo que tanto o Alvarinho como as suas declinações de perfil são mais moldadas pela importância dos primeiros. Com efeito, mais do que a altitude, é o tipo de solo de origem granítica (terraços fluviais, com ou sem calhau rolado, aluviões ou franco-arenosos) que melhor determina o resultado de cada néctar. Da mesma forma, é considerando cada tipo de solo que se deve privilegiar o uso de barrica, nova ou usada sendo que, por regra, é nos solos franco-arenosos aqueles em que as barricas de segundo ano dão melhores resultados, originando alguns dos melhores vinhos da sub-região e do país.

Reconhecido há quase um século, em 1929 (vinte anos depois da demarcação da Região dos Vinhos Verdes), este território já foi terra de tinto, com grande sucesso na exportação no final do século XIX, quer pela sua qualidade, quer pela crise na produção europeia que se seguiu à filoxera. Conhecida desde o século XVII como “a terra dos vinhos”, Monção tem fama desde a Idade Média e, como todas as vetustas regiões de vinho no mundo, foi-se adaptando. Mas foi preciso chegar a meados do século XX para o Alvarinho se começar, aos poucos, a impôr. Com referências desde o século XVIII, só a partir da segunda metade do século passado se começa a comprovar que o Alvarinho, em Monção e Melgaço, é especial. Nos anos 60 começam os relatos dos bons resultados da casta e, já nos anos 70 surgem, ainda que timidamente, marcas que engarrafam um branco com base em Alvarinho de perfil tendencialmente seco e delicado (em garrafa escura para não oxidar…), longe das versões mais ácidas e desequilibradas que se encontravam em restaurantes e pensões por todo o norte do país.

O Alvarinho e a barrica

Saltando vários anos em diante, encontramos dois outros marcadores essenciais do tempo para este sub-região. Um primeiro, em 1974 e 1982, respetivamente a data da plantação da primeira vinha contínua de Alvarinho e a data da criação da primeira marca de Alvarinho de Melgaço, ambas pela conhecida Quinta de Soalheiro. Depois, em 1987, quando Anselmo Mendes começa os seus ensaios de Alvarinho fermentado em barrica. A escolha do carvalho e da floresta, das tostas, a dimensão da barrica, o aperfeiçoamento da bâttonage (considerando que o bago do Alvarinho é pequeno, originando mostos intensos à partida) e o controlo da oxidação, tudo são técnicas que vários produtores da sub-região vão abraçar e que Anselmo Mendes preconizou com antecipação. De tal forma que, já no presente século, encontramos quase duas dezenas de Alvarinhos de Monção e Melgaço fermentados e/ou estagiados em barrica, muitos deles num patamar altíssimo de qualidade.

A par de Anselmo Mendes e da Quinta do Soalheiro (sobretudo na referência Reserva) já referidos, há vários anos que encontramos produtores a usar parcial, ou totalmente, barricas, casos da Quinta do Regueiro, Quinta de Santiago, Quintas de Melgaço, sem esquecer a Provam ou a Adega Cooperativa de Monção, João Portugal Ramos, entre outras referências. Na prova que relatamos abaixo, e a par dos nomes já referidos, também os produtores Márcio Lopes, Casa de Paços, Constantino Ramos e, bem assim, as marcas Milagres, Barão do Hospital e Nostalgia usam barrica parcial ou totalmente.

Não espanta, assim, que a área de vinha em Monção e Melgaço não tenha parado de crescer, sinal de vitalidade da área. O número de hectares aproxima-se dos 2000 (grandíssima parte plantados com Alvarinho), sendo a zona de Melgaço a que mais cresce. A notoriedade da casta e da sub-região está consolidada a nível nacional, os vinhos são procurados sobretudo nos restaurantes, e o preço médio é claramente mais alto comparado com o restante Vinho Verde e com muitos dos brancos do país. Para tudo isto também contribuiu o bom trabalho das respetivas cooperativas. Falta, talvez, uma maior projeção internacional, havendo caminho a percorrer na especificação e destaque de Monção e Melgaço relativamente à região dos Vinhos Verdes, já de si bastante internacionalizada e procurada, mas muito centrada em gamas de entrada. Nota final para uma nova vaga de produtores na região, alguns deles enólogos noutras parte do país, caso de Luís Seabra, Márcio Lopes, Constantino Ramos, David Baverstock e António Braga. Isto para não falar de players de mercado que não querem perder a oportunidade de ter uma operação em Monção e Melgaço, casos de João Portugal Ramos e, mais recentemente, da Symington Family Estates. Esta circunstância de atratividade de excelentes profissionais espelha bem o potencial da região e os vinhos em prova, cujas notas deixamos abaixo, confirmam plenamente.

(Artigo publicado na edição de Julho 2025)

 

Bairrada: Uma região de “clássicos”

Bairrada

Criada apenas em 1979, após vários anos de hesitações entre o poder político e os interesses dos agentes económicos, a Região Demarcada da Bairrada, antes de acolher regulamentação legal, já se afirmava há mais de dois mil anos nas práticas vitivinícolas, crendo-se, pelo menos, desde a romanização do território. Muitos são os testemunhos, enraizados nos […]

Criada apenas em 1979, após vários anos de hesitações entre o poder político e os interesses dos agentes económicos, a Região Demarcada da Bairrada, antes de acolher regulamentação legal, já se afirmava há mais de dois mil anos nas práticas vitivinícolas, crendo-se, pelo menos, desde a romanização do território. Muitos são os testemunhos, enraizados nos vestígios arqueológicos, que nos reafirmam a vitivinicultura como uma das principais atividades agrícolas que se estenderam desde a ocupação romana e perduram até à atualidade.

Se porventura nos quisermos apoiar no rigor do suporte documental, pode atestar-se que, já no ano 950, o seu território era conhecido como região vinhateira, conforme nos revela um documento existente na Torre do Tombo referente a uma doação ao Mosteiro do Lorvão de terras e vinhas na Silvã (Mealhada). Um outro documento refere uma “vinha em Rippela sob o monte Buzacco”, em 1086. Ou uma outra doação àquele Mosteiro, de “uma casa em São João e vinha na Pocariça” (Cantanhede), em 1176.

Contudo, o documento mais curioso é datado de 1137, e encontra-se igualmente na Torre do Tombo, no qual “D. Afonso Henriques autoriza a plantação de vinha na herdade de Eiras, sob o caminho público de Vilarinum (Vilarinho do Bairro, Mealhada) ao monte Buzacco (Bussaco), com a condição de lhe darem 1/4 do vinho, sem mais encargos e eles fiquem com as primícias e décimas do vinho…”. Um testemunho de inigualável valor que atesta a qualidade do vinho ali produzido, o qual servia de meio de pagamento dos impostos ao Rei.

OS PRIMÓRDIOS DA BAIRRADA

Não se pense que a criação da Região Demarcada do Douro, peticionada por 14 dos “principais lavradores de Cima do Douro e Homens Bons da cidade do Porto”, estribados pela visão de Sebastião José de Carvalho, não terá tido influência em diversas outras regiões do país onde se cultivava vinha e produzia vinho. A representação dirigida ao rei D. José I, em 31 de Agosto de 1756, foi estabelecida por Alvará, confirmado a 10 de Setembro desse mesmo ano, demarcando e, diz-se, protegendo a região duriense dos demais territórios produtores.

Se é certo que a instituição da Companhia Geral de Agricultura das Vinhas do Alto Douro somente aos vinhedos daquela região dizia respeito, a realidade mostrou-nos que, nos anos seguintes, houve extensas demandas legislativas que intervieram noutras zonas vinhateiras, determinando o arranque de diversas vinhas em “terrenos das vargens, lezírias e campinas” que fossem mais próprias, pela sua natureza, para nelas se promover a cultura cerealífera, tão necessária para a alimentação básica dos portugueses. Medidas drásticas que alteraram a paisagem vitivinícola portuguesa, dizimando a produção de vinha em larga escala. À data, tais medidas eram justificadas pela carência de cereais e falta de pão para o consumo das gentes. Por outro lado, visava-se diminuir a produção excessiva de vinho de qualidade inferior que, em concorrência desleal, acarretava elevados prejuízos para os de qualidade superior.

A região da Bairrada não terá ficado imune a estas medidas, por força dos alvarás que aplicaram a mesma lei às margens e campinas dos rios Mondego e Vouga e a mais terras que fossem de paul e lezírias. E, apesar de nesses alvarás se fazerem referências elogiosas aos vinhos produzidos “nos terrenos de Anadia, Mogofores e outros das mesma qualidade”, igualando estes vinhos aos criados nos “termos de Lisboa, de Oeyras, de Carcavelos, do Lavradio, de Torres Vedras, Alenquer…”, nesses tempos com notoriedade semelhante aos vinhos durienses, certo foi que, outro Alvará, agora de 18 de Fevereiro de 1766, já impunha como sujeição imediata o arranque de vinhas existentes em Anadia, Mogofores, Arcos, Avelãs de Caminho e Fermentelos”, terras bairradinas por excelência, duas delas citadas com louvor cinco meses antes.

Numa visão otimista, podemos considerar que o génio ímpar de Pombal, além de ter criado a primeira Região Demarcada do mundo, terá ensaiado outras demarcações, embora sem lhes ter dado o tratamento legislativo adequado. A da Bairrada terá tido atenção do seu pensamento, pois, pelo menos por duas vezes, referenciou os terrenos Anadia e Mogofores como sendo de óbvia qualidade para a produção de vinho.

 

“A Região Demarcada da Bairrada (…) já se afirmava há mais de dois mil anos nas práticas vitivinícolas, crendo-se, pelo menos, desde a romanização do território”

 

O PAIZ VINHATEIRO

Em 1866, por Portaria de 10 de Agosto, foi nomeada pelo Ministro do Reino, Andrade Corvo, uma comissão encarregada de estudar as diversas regiões do país “durante a vindima e da feitura do vinho nos principais districtos vinhateiros do reino”. Desta comissão faziam parte três membros e a cada um dos quais foi delimitada a respetiva área de estudo.

O Visconde de Villa Maior ficou com a área a norte do Rio Douro, António Augusto de Aguiar ficou responsável pela área de território entre os rios Douro e Tejo, excluindo o distrito de Lisboa, cabendo, por fim, a Joaquim Inácio Ferreira Lapa o distrito de Lisboa e todos os territórios a Sul do Tejo.

Publicado em 1867, nesse trabalho conjunto, mas com as respetivas indicações de cada um dos seus autores, existe um único mapa. E este, no conjunto de tantas outras regiões vitivinícolas nela representadas, refere-se apenas a uma, designado “Paiz Vinhateiro da Bairrada”. Um mapa que, mesmo desatualizado ao tempo da criação da região demarcada, mais de cem anos depois, serviu de base à sua delimitação. Naquele mapa há já uma marcação, a cores diversas, de três sub-regiões, ainda que em moldes distintos daquelas que foram, por exemplo, definidas em França. Neste, as sub-regiões são designadas por região de vinho branco, região de vinho tinto de embarque e região de vinho de consumo. Estabelecem-se, também, limites geográficos, definindo, a Sul, o concelho de Mealhada, ao tempo considerado o coração da Bairrada, e parte do concelho de Cantanhede; ao centro, o concelho de Anadia; a Norte o concelho de Oliveira do Bairro. Excluídos ficaram, a Sul, a freguesia de Souselas, no Centro, parte do concelho de Cantanhede e todos os de Vagos e Aveiro, e, a Norte, parte do concelho de Oliveira do Bairro.

As zonas nobres para vinhos tintos de embarque delimitavam-se, aos concelhos da Mealhada e de Anadia, enquanto as mais aptas para vinhos brancos situavam-se na margem esquerda do rio Certoma, até Óis do Bairro, S. Lourenço e Mogofores. Fora destes limites situavam-se as zonas de vinhos para consumo, classificando-se detalhadamente os de primeira, segunda e terceira categorias. Interessante é constatar o detalhe com António Augusto de Aguiar estudou a composição dos solos, identificando, com denodo, uma zona hoje muito bem conhecida por produzir vinhos de extrema elegância: “da Mealhada para o Luso, do Travasso para a Vacariça encontra-se uma mistura de solos, em que figuram retalhos de arenatas do terreno quaternário…”. Falamos, em parte, da zona de Cadoiços, onde se encontram hoje algumas das mais imponentes vinhas velhas da Bairrada e das quais nasce um dos grandes vinhos que constituem o painel de prova deste artigo.

Elaborado este estudo pouco após a grande crise do oídio, que afetando toda a viticultura nacional também não poupou o território da Bairrada, é um exercício curioso constatar como se dá a evolução do encepamento na região. Em 1850, o oídio surge de modo lancinante e, durante quase uma década, destruiu, quase por completo, toda a produção de uva na região. As castas mais atacadas foram, nas tintas, o Castelão e a Trincadeira, e, nas brancas, o “Boal Cachudo”, o Arinto e Mourisco. Perante estas adversidades, eis que surge uma uva salvífica, a Baga, fortemente resistente ao oídio. A partir de 1860, a atual intitulada casta rainha da Bairrada, conhece uma expansão até então nunca vista, tendo António Augusto de Aguiar, que por ela não morria de amores, escrito que, “se o amor por ella continuar como até agora, dentro de poucos anos toda a Bairrada fará plantações e vinhos extremes de uma casta só”.

A 28 de Dezembro de 1979, nasce a Região Demarcada da Bairrada, e com ela a sua delimitação geográfica que, curiosamente, não é assim tão distante daquela que havia sido desenhada mais de 100 anos antes por António Augusto de Aguiar.

 

ANTEVISÃO DE UMA REGIÃO

Com a industrialização do espumante e o nascimento das grandes casas engarrafadoras a partir dos anos 20 do século passado, assistiu-se a um crescimento exponencial da região. Caves São João, Caves Messias, Caves Aliança ou Caves São Domingos, entre outras, tornam-se os grandes centros produtores do país, engarrafando, comercializando e exportando vinhos para as colónias e Brasil. A demarcação era, à data, e já após o Dão ter procedido à sua demarcação enquanto região em 1908, uma temática não muito do agrado das grandes casas, que adquiriam vinhos em diversas regiões limítrofes para satisfazer a as suas necessidades de grande volume.

No início dos anos 50 dá-se início a uma contenda feroz entre, por um lado, os defensores da não demarcação, liderados pela maior referência da enologia nacional, Mário Pato, e, do outro lado, uma linha vanguardista defensora da necessidade de criar a região demarcada, tendo na linha da frente o Professor Américo Urbano.

Mário Pato, numa publicação de 1 de Outubro de 1953, no Boletim da Federação dos Grémios da Lavoura da Beira Litoral, clamava que a região começava a sofrer de uma “delimitomania” ou mania das regiões delimitadas, que amolece as faculdades mentais dos viticultores e lhes paralisa a atividade. Para o enólogo, o pedido de intervenção do Governo na delimitação da sua região causaria um atavismo e um encerramento dentro de si própria, que motivaria uma não evolução no acompanhamento do desenvolvimento dos métodos enológicos e, consequentemente, uma desvalorização dos vinhos produzidos. À data, dava como exemplo as regiões de Bucelas, Colares e Carcavelos, cujos vinhos começavam a perder notoriedade, invocando igualmente os exemplos do Dão e Vinhos Verdes que também não se mostrariam brilhantes.

Já Américo Urbano trazia para a defesa da demarcação preocupações que não são díspares das da atualidade, mostrando toda a pertinência. A este preocupava-o a concorrência feroz vinda das terras a Sul, onde os custos do granjeio eram muito inferiores e a qualidade dos vinhos, em que “milhentas de pipas de água anualmente são adicionadas aos mesmos”, era manifestamente inferior.

No meio das contendas, Américo Urbano não foi parco em palavras, acusando Mário Pato de ser o principal responsável pelo uso de técnicas enológicas que privilegiavam a produção de vinhos destinados ao lote, ao invés de dar o seu contributo para o aperfeiçoamento das características organoléticas que sempre distinguiram os vinhos da Bairrada. Uma conceção visionária que, ainda hoje, define o modo como se entende uma Bairrada de características muito distintas.

O interesse pela demarcação da região vai crescendo ao longo dos anos 60 e, em 1973, é criado o Grupo de Trabalho incumbido do estudo da Demarcação da Bairrada, composto pelos agrónomos Melchior Barata de Tovar e Octávio da Silva Pato, contando ainda com a colaboração de Mateus Augusto dos Anjos e de Luís Azevedo Correia. O relatório veio a revelar-se extremamente relevante para constituir as bases para a futura demarcação, incidindo sobre a orografia e hidrografia, geologia, solos, clima, práticas agrícolas, castas cultivadas, métodos de vinificação e tipos de vinho, proposta de demarcação e delimitação da região produtora e, entre outras, do direito à denominação de origem. Estava quase…

Para dar força a este movimento, Luiz Ferreira da Costa, figura icónica das Caves São João, agrega uma série de figuras relevantes da região e cria a Confraria dos Enófilos da Bairrada, em Junho de 1979, associação que foi absolutamente determinante, através de diversas iniciativas e contactos com as esferas do Governo, para derrubar as últimas barreiras tendentes à Regulamentação da Região Demarcada da Bairrada.

POR FIM, A DEMARCAÇÃO

A 28 de Dezembro de 1979, pela Portaria nº 709-A/79, nasce a Região Demarcada da Bairrada e, com ela, a sua delimitação geográfica que, curiosamente, não é assim tão distante daquela que havia sido desenhada mais de 100 anos antes por António Augusto de Aguiar. Exigindo-se a condução da vinha em forma baixa, definem-se, desde logo, as castas autorizadas, que serão objeto de apreciação e cadastro pelos serviços competentes, definindo-se, como tintas autorizadas, a Baga com mínimo de 50%, Castelão ou Moreto e Tinta Pinheira, autorizando-se, desde que não excedessem 20% do povoamento total, o Alfrocheiro Preto, Bastardo, Preto de Mortágua, Trincadeira, Jaen e Água Santa. Nas castas brancas, exigindo um mínimo de 60% do povoamento, Bical, Maria Gomes (Fernão Pires) e Rabo-de-Ovelha, autorizando-se com um máximo de povoamento total de 40%, o Arinto, Cercial, Chardonnay e Sercialinho, lista que mais tarde havia de ser revista. Nesta primeira abordagem que, até aos dias de hoje, havia de ter diversas alterações, definiu-se a obrigatoriedade de a vinificação ser realizada dentro da região em adegas inscritas para o efeito, limitou-se a produção a um máximo de 55 hectolitros por hectare de vinha, parametrizou-se um teor alcoólico mínimo de 11% vol. para os vinhos e fixou-se estágios obrigatórios mínimos de 18 meses para tintos e 10 meses para brancos.

Bairrada

Inicialmente, ou seja, em 2003, a menção “Clássico” ficou destinada apenas a vinhos tintos, cingindo-se às castas Baga, Camarate, Castelão (Periquita) e Touriga Nacional

 

“CLÁSSICO”, UM SELO DE IDENTIDADE

Após a demarcação e até ao virar do século, muitas foram as mudanças de paradigma a que se assistiu na Bairrada. As Adegas Cooperativas e as grandes casas engarrafadoras foram colocadas perante uma nova realidade de produção e consumo. O mundo pedia vinhos com maior identidade, vinhos de Quinta, produções menores, mas muito mais exigentes e qualitativamente nos antípodas daquilo que até então se fazia. Os mercados das colónias haviam desaparecido, o Brasil minguava na procura. Uma nova Bairrada despontava e muitas foram as grandes casas que soçobraram. Adegas Cooperativas, como Vilarinho do Bairro, Mogofores e Mealhada, ou casas engarrafadoras como Barrocão, Valdarcos, Monte Crasto, entre outras, finaram-se. Felizmente, houve casos de grande sucesso na mudança, como foram as Caves São João, que já em 1971 haviam adquirido a Quinta do Poço do Lobo, ou as Caves Messias, com produção de vinhos de uvas próprias na Quinta do Valdoeiro.

Algo havia a fazer para contrariar uma certa desorientação estratégica que afetava a Bairrada. A preocupação dos agentes económicos centrava-se na adequação das potencialidades da região, sempre associadas a uma nomenclatura de qualidade e certificação, alcançando a sua melhor valorização no mercado.

A Portaria nº 428/2000, de 17 de Julho, vem fixar as castas aptas à produção de vinho em Portugal. Nessas condições, entendia-se como necessário efetuar algumas alterações relativamente aos encepamentos existentes permitidos para a DOC Bairrada, do mesmo modo que era crível que podia haver uma maior variedade de vinhos de qualidade produzidos na região e reconhecidos no mercado. Subjacente a estas alterações, que viriam alterar substancialmente o número de castas autorizadas à menção DOC, nada mais, nada menos que 26, algumas delas com pouca expressão na região, um juízo avisado justificou a criação de uma certificação especial para os vinhos da Bairrada que pudessem respeitar determinados parâmetros de tradição e práticas antigas, tanto de viticultura como de vinicultura, adotando-se, por via dessa premissa, a menção “Clássico”. Inicialmente, ou seja, em 2003, a menção “Clássico” ficou destinada apenas a vinhos tintos, cingindo-se às castas Baga, Camarate, Castelão (Periquita) e Touriga Nacional, obrigando os vinhos a representar, em conjunto ou separadamente, 85% do encepamento, não podendo a Baga representar menos de 50%. Obrigava, ainda, a que a uva fosse proveniente de vinhas com rendimento não superior a 55 hectolitros por hectare, não podendo o vinho tinto possuir um teor alcoólico inferior a 12,5%. É, no que toca ao tempo de estágio, que surgem as condições mais exigentes, obrigando os vinhos tintos com aquela menção a poderem apenas ser comercializados  após um estágio mínimo de 30 meses, 12 dos quais obrigatoriamente em garrafa. A Portaria 211/2014, de 14 de Outubro, repõe a justiça e concede, igualmente, aos vinhos brancos a possibilidade de ostentarem a menção “Clássico”, definindo como castas aptas à mesma a Maria Gomes (Fernão Pires), Bical, Cercial e Rabo-de-Ovelha. Aqui, houve também a preocupação em regular a produção máxima por hectare, que seria idêntica à das castas tintas, limitando o volume alcoólico dos brancos aos 12% mínimo, obrigando ainda a um estágio mínimo antes de comercialização a 12 meses, seis dos quais em garrafa. Em matéria de reposição de injustiças, a Portaria nº 335/2015, de 6 de Outubro, veio colmatar uma ausência inadmissível, colocando a histórica Arinto, casta já referenciada por António Augusto de Aguiar, em 1867, como uma das mais relevantes uvas brancas do encepamento do território da Bairrada.

Terminamos esta longa, mas rica história de um território abençoado pela proteção das Serras do Bussaco e Caramulo, bafejado pela influência do Atlântico, com a afirmação de qualidade superior dos vinhos que ostentam a menção “Clássico”, concedendo à Bairrada um estatuto de maior relevância em boa hora regulamentada, e que tão bem é expressa nos 12 vinhos que brilharam na nossa prova.

* O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

(Artigo publicado na edição de Junho de 2025)

GRANDE PROVA: No Dão, os brancos vão na frente

dão

A região do Dão, delimitada na primeira leva de demarcações do séc. XX, ainda em monarquia, desde cedo se caracterizou por ser uma região polivalente, tanto de brancos como de tintos. Ao contrário de outras regiões então também demarcadas, como Bucelas, que apenas estava vocacionada para vinhos brancos, em terras beirãs os brancos e os […]

A região do Dão, delimitada na primeira leva de demarcações do séc. XX, ainda em monarquia, desde cedo se caracterizou por ser uma região polivalente, tanto de brancos como de tintos. Ao contrário de outras regiões então também demarcadas, como Bucelas, que apenas estava vocacionada para vinhos brancos, em terras beirãs os brancos e os tintos cresceram lado a lado, um pouco ao sabor das modas. Hoje todos falam que há um crescente interesse nos vinhos brancos um pouco por todo o país, mas nem sempre foi assim. A flutuação de mais brancos ou mais tintos dependeu sempre das modas e dos gostos. Em resumo, ainda hoje depende do mercado.
Esta região, como quase todas as outras do país, cresceu associada a um certo modelo vínico, gerando sobretudo vinhos de lote onde se combinavam as várias castas que a região conhecia.
Antigamente os lotes eram feitos na vinha, sobretudo nas mais velhas, em que o plantio se fazia a eito ou, a partir dos anos 60, por parcela de castas mas sempre jogando no lote final com o contributo de diversas variedades. Assim era o Dão, e também por isso nós não conhecemos vinhos varietais antes dos anos 90 do século passado. Apenas as experiências do Centro de Estudos de Nelas, nomeadamente com Encruzado e Touriga Nacional, nos ajudam na busca de vinhos de casta.
Os anos 90 trouxeram uma verdadeira revolução, com novas experiências, novos produtores, novas adegas, novos conceitos. Nesse sentido, o Dão de hoje é tributário desses pioneiros onde encontramos a Quinta da Pellada, Quinta dos Carvalhais, Quinta dos Roques, Casa de Santar ou Casa da Ínsua, só para citar alguns. Foi então que os consumidores se familiarizaram com os vinhos de Encruzado e os varietais das tintas Touriga Nacional, Tinta Roriz, Alfrocheiro e Jaen, nomes até então ausentes do léxico dos apreciadores.

O Dão ganhou enorme prestígio na “família” dos vinhos brancos à custa da Encruzado. É uma variedade enigmática que ali nasceu e dali não parece querer sair.

 

Encruzado sim, mas…

Segundo os dados mais recentes fornecidos pela CVR do Dão, as castas brancas ocupam 1950 ha, o que corresponde a cerca de 21% dos encepamentos. Dentro das brancas, as mais plantadas são a Malvasia Fina (27,28%), a Fernão Pires (19,90%), a Encruzado (12,83%) e a Bical com 12,57%. Seguidamente, e num registo mais contido, temos a Branda (8,56%), Cerceal-Branco (2,30%), Uva-Cão (1,14%) e Gouveio e Rabo de Ovelha, ambas com 1,11%.

O Dão ganhou enorme prestígio na “família” dos vinhos brancos à custa da Encruzado. É uma variedade enigmática que ali nasceu, e dali não parece querer sair, uma vez que não tem grande apetência por viagens e, noutras regiões, dá resultados apenas satisfatórios. Os consumidores começaram a ouvir falar de Encruzado nos anos 90, tornando-se quase sinónimo de vinho branco do Dão, a casta considerada emblemática da região, uma espécie de porta-estandarte. Não é, porém, uma uva totalmente consensual entre os profissionais, sendo mais difícil de domar do que à primeira vista se poderia pensar. Porquê? Porque os vinhos Encruzado nascem pouco faladores, pouco expressivos em termos aromáticos e, por isso, precisam de ser acarinhados para poder crescer bem. Manuel Vieira (enólogo na empresa Caminhos Cruzados) afirma que “pelo facto de os vinhos da casta serem pouco expressivos em novos, há quem lhes dê um tom forçadamente aromático logo à nascença, com aromas tropicais, algo que rejeito completamente; a Encruzado precisa de tempo e só com a evolução em garrafa é que finalmente mostra as suas virtudes e a madeira (bem integrada) pode ter aí um papel importante”.

Já a enóloga Patrícia Santos (Quinta da Alameda, Primado, entre outros produtores) não é tão efusiva com a Encruzado. Segundo nos disse, “reconheço-lhe a plasticidade para diferentes formas de vinificação e estágio, mas acho que não é uma casta excelente. Não tem, por exemplo, a excelência de uma Alvarinho. Continuamos à procura e tenho estado a trabalhar a Uva-Cão onde encontro grande potencial de qualidade”. Ambos os enólogos são pouco entusiastas das castas também muito plantadas na região, como a Malvasia Fina e a Bical. Para lotes sim, como varietais nem por isso.

Uma visita a uma garrafeira de grande superfície mostra-nos que há imensos brancos do Dão a preço muito acessível, não sendo por isso aceitável que se diga que os vinhos são caros.

 

Brancos de excelência

Ainda assim, actualmente uma prova de brancos do Dão tende naturalmente a incidir em vinhos de Encruzado, ainda que, no nosso caso, tal não tinha sido imposto aos produtores a quem solicitámos amostras. O que pudemos verificar é que as escolhas de vinhos a enviar foram bem diversas e com critérios que apenas os próprios produtores poderão definir: tivemos vinhos mais novos, outros com mais idade, varietais e de lote, com madeira evidente e sem ela presente e com uma tremenda flutuação de preços indicativos.
Conclui-se, assim, que pode não ser muito fácil criar um padrão, um modelo de branco que se possa dizer sem rebuço: isto é um branco do Dão! De qualquer forma, há um elemento que percorre e unifica todos os brancos, independentemente do modelo escolhido. Refiro-me à acidez que estes vinhos sempre apresentam, associada a um brilho, uma elegância e uma proporção que é notável e é traço indicativo da região.

Aqui também se procuram novos modelos, novos horizontes para os vinhos brancos. Uma visita a uma garrafeira de grande superfície mostra-nos que há imensos brancos do Dão a preço muito acessível, não sendo por isso aceitável que se diga que os vinhos são caros. No entanto, como pedimos aos produtores que enviassem o melhor que tinham ou o que entendiam que melhor representava a orientação vínica da quinta ou empresa, os preços dos vinhos deste painel são em geral elevados. A região ganha com isso, é elevando o patamar que o Dão pode ganhar prestígio. Mas os tempos vão difíceis para vinhos mais caros e esse facto torna muito exigente o esforço de cada produtor para se afirmar, quer interna, quer externamente.

Acreditamos que, independentemente do modelo vínico escolhido, o branco tem de ser uma bandeira, tem de representar a região. Ora isto pode acontecer, independentemente do preço e, por isso, alguns vinhos de preço acessível estão aqui muito bem classificados e outros, bem mais caros, se quedaram por classificações mais modestas.
A conclusão final é muito fácil: estamos a falar de uma das melhores regiões do país para gerar vinhos brancos muito originais, a tal região que um winewriter americano apelidou de “A Borgonha dos vinhos portugueses”. Vamos assinar por baixo.

(Artigo publicado na edição de Junho de 2025)

 

Grande Prova: Tintos do Tejo “On Fire”

tejo

O rio define a região de vinho a norte de Lisboa, que se estende Tejo acima até Tomar. Resultado de uma restruturação de nome em 2008, da qual resultou uma identidade centrada no rio e seu nome: é a Indicação de Proveniência Regulamentada Tejo e a Denominação de Origem Protegida DoTejo. Os seus 12 mil […]

O rio define a região de vinho a norte de Lisboa, que se estende Tejo acima até Tomar. Resultado de uma restruturação de nome em 2008, da qual resultou uma identidade centrada no rio e seu nome: é a Indicação de Proveniência Regulamentada Tejo e a Denominação de Origem Protegida DoTejo. Os seus 12 mil hectares de vinha produzem 65 milhões de litros de vinho, dos quais 30 milhões são certificados, 90% como Regionais e 10% como DOC.

Havia várias DOs na região, mas em 2008 passaram a ser admitidas como sub-regiões, que, na verdade, são raramente usadas ou comunicadas pelos produtores. São elas Almeirim, Cartaxo, Chamusca, Coruche, Santarém e Tomar. Na verdade, a CVR, liderada desde 2014 por Luís Castro, tem enfatizado os três terroirs mais marcantes da região: o Bairro, o Campo e a Charneca. A CVR encomendou estudos que levaram a que a zona de maior altitude, perto de Tomar, se vá tornar, em breve, na quarta subdivisão da região do Tejo.

Esta é a melhor prova de vinhos tintos do Tejo alguma vez feita.

 

Vinhos de grande nível

A grande batalha do Tejo nas últimas décadas tem sido a conversão da região para a produção de vinhos de qualidade. Luís Castro, como muitos outros na região, defendem que essa batalha está ganha há muitos anos, mas o consumidor não tem essa percepção. A CVR tem feito o seu papel, os produtores também, mas o consumidor não vê o Tejo com os mesmos bons olhos de outras regiões, e quer dali vinhos bons e baratos. Não estou necessariamente de acordo com essa visão. Penso que o Tejo deu passos em frente, mas depois estagnou durante alguns anos, e navegou com alguma complacência as águas da qualidade, quantidade e percepção. A aritmética da escola primária chega para perceber que se pode ganhar mais dinheiro com um vinho mais caro, e muito mais dinheiro com uma quantidade grande desse vinho. Mas isso já não importa, porque esta prova me mostrou que essas dúvidas foram resolvidas. Já há alguns anos que vejo os melhores tintos do Tejo a alcançar uma dimensão até há poucos anos impensável e, neste momento, vejo uma quantidade já significativa de produtores a contribuírem com vinhos de grande nível. Ou seja, bem-vindo, Tejo!

Nos vinhos brancos, a casta rainha é a Fernão Pires, com cerca de 80% do encepamento. Os enólogos foram percebendo melhor a casta e suas especificidades, e conceberam soluções para melhorar os vinhos, fosse em lotes com outras castas, fosse entendendo melhor e adaptando a produção a cada terroir. Nos tintos sempre houve mais variedade. A casta mais plantada é o Castelão, seguida da Trincadeira. Também há muita Touriga Nacional, Tinta Roriz, Alicante Bouschet e Syrah. Mas neste segmento dos topos de gama, o Castelão, e até a Trincadeira, aparecem apenas residualmente. Por outro lado, aparece com alguma frequência a Touriga Franca nos lotes. Também neste capítulo, o Tejo se redefine. Obviamente, para os topos de gama é usual o estágio em barricas de carvalho, novas ou usadas. Fiquei muito contente de verificar que eram poucos os vinhos com graus alcoólicos muito elevados. A região é muito quente, mas há já talento para controlar as maturações excessivas. Em geral, os vinhos mostraram muita qualidade e apelo, com vários a apresentar notas excelentes e muita adaptação à mesa.

 

Uma região precisa das suas estrelas, e são essas que puxam tudo para a frente.

 

Afinado e sedutor

Falei com Pedro Pinhão, enólogo da Quinta da Lagoalva de Cima, que me explicou que o vinho na casa, como em muitas outras do Tejo, é apenas mais uma das múltiplas culturas. Eventualmente, isso atrasou a tal mudança da ênfase da quantidade para a qualidade. Hoje em dia há mais experiência, maior foco na vinha e nos vinhos, melhor divisão de tarefas e pessoal mais especializado. A Lagoalva esteve na primeira linha dos vinhos do Tejo logo a partir dos anos 1990, e mostra hoje este topo de gama muito afinado e sedutor.

Não se viu nesta prova, mas a minha experiência com os vinhos do Tejo mostra-me um salto em frente também nas entradas de gama. A região trabalhou para oferecer vinhos com boa relação qualidade preço em todas as gamas, e o tal déficit de percepção de qualidade, de que Luís Castro falou, foi combatido com uma abordagem mais focada na exportação, onde essa percepção não existia. Segundo ele, a CVR apoia também os seus produtores com aconselhamento de críticos internacionais, como Charles Metcalfe ou Dirceu Vianna, e ainda visitas a produtores concorrentes nas feiras internacionais.

Olhando os resultados da prova, vemos claramente essa qualidade marcada por preços bem acessíveis, mas vemos também vinhos cujo preço começa a subir bastante. Não vejo isso como negativo, mesmo que isso nos faça poder bebê-los menos vezes. Uma região precisa das suas estrelas, e são essas que puxam tudo para a frente. Vejo ainda, e por agora, independentemente dos diferentes lotes de várias castas, uma certa uniformidade de estilo neste topo da pirâmide da qualidade. Creio que isso faz parte da evolução de uma região, como o temos visto noutras, onde já nos habituámos a constatar qualidade de primeira água. Creio ainda que o próximo passo é vermos diferentes produtores, alguns deles mais pequenos e mais ousados, fazerem topos de gama mais especiais, mais diferenciados, onde o terroir vai ser explorado mais em profundidade, cada vinho mostrando individualidade. Em alguns desses casos o avanço vai dar-se para trás, ou seja, vai haver netos que regressam aos modos dos seus avós, mas com a sua visão mais moderna, mais apoiada na técnica e na ciência. Isto ou eu a adivinhar novos e excitantes caminhos para o Tejo. São bons tempos os que vivemos.

(Artigo publicado na edição de Abril de 2025)

 

Colares contra Collares: A Lisboa do desassossego

Colares

Nem de propósito encaixo-me nas ondas que os tempos trazem. Ainda há pouco protestava que, fazendo uma prova de Lisboa, onde tanto acontece, me limitei a encarar tintos topos de gama que seguem cânones que já não são tanto destes tempos, salvas as devidamente assinaladas excepções e sem deixar de aceitar a grande qualidade dos […]

Nem de propósito encaixo-me nas ondas que os tempos trazem. Ainda há pouco protestava que, fazendo uma prova de Lisboa, onde tanto acontece, me limitei a encarar tintos topos de gama que seguem cânones que já não são tanto destes tempos, salvas as devidamente assinaladas excepções e sem deixar de aceitar a grande qualidade dos vinhos provados. Também há pouco tempo me lamentava, em tom sentimental, de como a minha terra tinha levado com o selo “Lisboa”, sendo eu da Leiria tão distante.

Pois agora a providência juntou-se com os actores certificados e não certificados e foi-me entregue um desafio: perceber o puzzle espacial, temporal, ampelográfico e estilístico (chega para começar?) de Colares. Já explico de que forma isto agrava todos os meus problemas anteriores, mas também adianto já a conclusão: enquanto houver ventos e mar, a gente não vai parar. Muito menos a gente de Colares. Ou será Collares?

Uma pequena região de velhas tradições

Começamos já com tempo e espaço. Colares é uma pequena região muito próxima de Lisboa, onde as velhas tradições impuseram regras rígidas na especificação dos vinhos. Incluída na segunda leva de criação de denominações de origem, em 1908, tinha já pergaminhos que remontavam ao século XIII, e gentes com convicções fortes sobre as regras. DOC Colares só de Malvasia ou Ramisco, com videiras plantadas em pé-franco (sem porta-enxerto americano) em terra de areia, numa área circunscrita a partes bem demarcadas de três freguesias: Colares, São João das Lampas e São Martinho. Há alguma discussão sobre a Malvasia, que é na verdade uma família de castas. Diz, quem sabe, que a Malvasia de Colares é uma casta diferente da Malvasia Fina, a Bual/Boal da Madeira. Aliás, diga-se que também na Madeira as discussões sobre as várias Malvasias são acesas e incluem a rara Malvasia Cândida e a hoje predominante  Malvasia de São Jorge. Onde há diversidade há origens antigas.

A terra de areia + pé-franco tem origem na praga da filoxera, já que só em algumas condições a filoxera (americana) não destrói a velha Vitis vinífera (europeia), obrigando ao porta-enxerto de Vitis rupestris (americano). Uma dessas condições é a terra de areia, e temos Collares. Com dois Ls porque é antigo.

Estas histórias foram já todas contadas, mas há muitas, muitas mais. A Adega Regional de Colares (ARC) é uma cooperativa (1931) que agrupa vários papéis, que já incluíram o de certificador (hoje é a CVR Lisboa). Em 1941, a escassez de uvas levou à criação de uma lei que obrigava todos os produtores a entregar as uvas na ARC, que fazia o vinho para mais tarde ratear pelos seus associados. Esta obrigação durou muito mais do que a escassez de uvas, até cerca de 1994. O carácter híbrido da instituição impediu-a de se candidatar a subsídios europeus. E não se modernizou, nem pôde apoiar a modernização das vinhas da região. Hoje a ACR não tem vinhas, mas aceita uvas dos seus associados que as têm, elabora os vinhos (pela mão de Francisco Figueiredo e sua equipa), estagia-os e vende-os a produtores da região, com os quais está historicamente comprometida. Isto faz com que muitas empresas vendam na verdade o mesmo vinho, com ligeiras variações de lote e estágio. Por outro lado, a ACR faz hoje marcas próprias, incluindo os DOC Arenae, para além de outros vinhos de Chão Rijo, que aliás é sua marca registada.

Um puzzle complexo e fascinante

Em várias visitas de reportagem, e com o apoio do próprio Francisco Figueiredo e do dinâmico Diogo Baeta, da Viúva Gomes, procurei decifrar este puzzle até um ponto que vo-lo consiga explicar. Aqui importa explicar melhor o contexto. São 1000 anos de história, mas vou focar nos mais recentes.

Praticamente todos os actores de Colares são pessoas ali nascidas e criadas, que vivem profundamente um grande amor pelo seu sítio e têm um grande orgulho pela sua tradição. Se têm opiniões diferentes sobre o rumo a tomar, isso não se deve a falta desta devoção.

Ainda não falei das terras que não são de areia, o Chão Rijo, que engloba nessa definição todos os solos que não são de areia. Mas rijos ou moles, ambos têm muita variação, um incrível degradé de composições que explica a especificidade do terroir, se lhe juntarmos a proximidade ao mar (há vinhas literalmente a 40 m do Atlântico) e a exposição aos terríveis ventos salgados que tudo queimam e obrigam a carinhos e desvelos, incluindo técnicas e instrumentos próprios para evitar as humidades do solo e aproveitar os raios do sol que se podem tornar raros. Os muros e paliçadas são icónicas destas vinhas, que se fazem muito rasteiras, e ainda têm de disputar os terrenos com as muito apreciadas maçãs reinetas locais, que todos os anos têm o seu próprio festival. Terra de areia (ou seja, DO Colares) é um total de 24ha, na posse de 12 produtores de vinho e uns 20 viticultores (não necessariamente os mesmos).

Para explicar o imbróglio é preciso dizer que o amor dos locais pelo seu chão e o seu vinho não os impede de repetir, pelo contrário, paradoxalmente até o dizem com um certo orgulho, que em Lisboa se dizia amiúde: “este vinho ou está azedo ou é de Colares.” O Ramisco é uma casta feroz de taninos. A maturação não era assegurada, a enologia seria possivelmente optimista, e eu, na minha vida de provador de vinhos, habituei-me a tintos de Colares rústicos, herbáceos, magros, por vezes sujos, exigindo muitas dezenas de anos para amaciar, ou então não amaciando de todo. Mas por vezes uma réstia de esperança lá saía de dentro de uma garrafa e eu percebia algum do velho e prometido encanto.

Entram a enologia e viticultura modernas, o poder do povo, o vinho para o povo, e todos nos habituámos a vinhos mais encorpados, concentrados, macios, bebíveis mais cedo. Colares foi ficando para trás. Veja-se o que aconteceu na Bairrada, onde os Merlot e Syrah iam afastando a Baga, tal como a má moeda afasta a boa moeda. Veja-se como a Bairrada tradicional resistiu, sobreviveu e se impôs pelo carácter dos seus vinhos que respeitam o terroir local e a gastronomia. Pois o mesmo aconteceu em Colares. Começou de mansinho, com o vinho branco, a Malvasia impondo uma mudança súbita de métrica, onde a secura salina oferecia qualidades sedutoras, e depois o Ramisco, afinado aos tempos modernos, a oferecer salinidade e autenticidade com moderação da rusticidade. Em suma, num mundo mais global e globalizado, estes vinhos começaram a oferecer diferença, e a sua raridade impôs preços altos e o regresso aos radares do mercado.

Areia ou nada?

Se tudo isto é novo para o meu caro leitor, também o é para mim, só posso recomendar que volte a acreditar e vá provar os vinhos. Vai valer a pena.

O problema é que a região tem apenas 24 ha de terra de areia, e tudo o que não é terra de areia tem de cair no imenso tegão dos “Regionais Lisboa” (Como o vinho da minha terra Cortes, lembram-se? Só que as Cortes não têm o mesmo peso histórico). Os fervorosos produtores defensores de Colares querem, ao mesmo tempo, defender o seu velho cânone (chamemos-lhe, por argumento, Collares), um dos mais específicos e rigorosos de que há registo. Mas os mesmos produtores não conseguem viver das poucas garrafas que produzem (alguns fazem 200, outros 400). E para os vinhos oriundos do outro chão (que “chão rijo” é marca registada), não podem nem escrever a palavra Colares no rótulo, nem como endereço postal da sua adega. Collares vs. Colares, uma espécie de Kramer contra Krammer (cf. Google).

As uvas para DO Colares chegam a ser vendidas a €5 o quilo, e há sempre falta. Não ouvi ninguém a defender que Colares deixasse de exigir areia e pé-franco. Mas ouvi produtores protestando que há empresas e marcas que só querem ter um Colares no seu portefólio para aumentar o interesse nos seus outros vinhos, que depois vão comprar já feitos muito longe das encostas salgadas da Praia das Maçãs, Adraga ou Azenhas do Mar.

Quem acredita em Collares faz vinhos de extraordinário carácter, cada vez melhores e com uma identidade própria do lugar, um incrível terroir cuja dimensão impõe raridade e preços altos. São, sempre, vinhos para a mesa. À volta de Colares fervem projectos, com mais ou menos identidade, mas que são essenciais para manter vivas e sustentáveis as adegas. Se têm falta de um nome que os una, têm pelo menos uma vantagem. Estão próximos uns dos outros e conseguem sentar-se à volta de uma mesa. Apareça a identidade, que o nome aparecerá, porque este incrível amor pelo seu sítio vai dar frutos, e nós agradecemos esta teimosia milenar.

Quem é Quem em Colares 

A Adega Regional de Colares tem 13 associados com 14ha de vinhas em chão de areia, ou seja, mais de metade da área disponível para DOC. Elabora o vinho destes associados e vende-o a alguns deles e alguns negociantes que pagam um royalty. Ou seja, há produtores com vinha e viticultores sem adega.

Viúva Gomes é um produtor já muito antigo, que passou por diversas e históricas mãos até que em 1988 foi comprado pela família Baeta. Hoje é liderado por José Baeta, pai de Diogo, que nasceu nesse mesmo ano. Diogo estudou enologia e insuflou uma nova tendência à Viúva Gomes, que pouco a pouco deixou de ser apenas “négociant” e passou a “vigneron.” O trabalho de Diogo na adega e principalmente na vinha leva a Viúva Gomes a ser um dos principais motores da renovação da região de Colares, em estreita colaboração com a ACR e em sintonia com valores locais e respeito pelo terroir e seu futuro.

António Bernardino Paulo da Silva, por vezes referido pelo nome da sua marca, Chitas, é um histórico da região. Sediado nas Azenhas do Mar, mesmo de frente para o oceano bravio, aos 96 anos ainda gere a sua companhia, com marcas históricas como o Colares Chitas ou o Beira-Mar. Não tem vinhas, compra o vinho na ARC (da qual a sua casa é sócia fundadora), e estagia-o, loteia-o e engarrafa-o na sua adega.

Daniel Afonso produz há vários anos o Baías e Enseadas. Apaixonado e rigoroso, tem fascínio pela prova e é a prova que o leva a respeitar o terroir e explorá-lo da forma menos interventiva possível, mas sempre seguindo as suas convicções.

O Casal de Santa Maria ficou famoso no mundo do vinho quando o Barão Bodo von Bruemmer plantou uma vinha, em 2006, já com a bonita idade de 96 anos. Ainda viveu muitos anos para ver o sonho de fazer o seu vinho em Almoçageme, no coração da DO Colares. Plantou castas internacionais, mas a propriedade também faz vinhos DOC de grande qualidade. Hoje liderada pelo neto, Nicholas von Bruemmer, tem enologia de António Figueiredo e Jorge Rosa Santos, que continuam a tradição dos vinhos da magnífica quinta.

João Corvo e a sua filha Ana Bárbara são os orgulhosos cuidadores das vinhas do Mare et Corvus, as vinhas mais ocidentais do continente europeus, a escassos 40m da falésia sobre a icónica – e cónica – pedra Vitoreira, uma visão deslumbrante que se eleva do mar selvagem. Os Corvos têm Ramisco e Malvasia, mas também Fernão Pires e Chardonnay, que não dão DOC, em vinhas belíssimas, cujas uvas são vinificadas à parte na ACR.

Alexandre Guedes é o responsável pela Vinhas e Vinhos, que produz os vinhos da Quinta de San Michel, com vinhas em Janas, freguesia de São Martinho. Com vinhas de Malvasia e Arinto plantadas em chão rijo, tem também Ramisco (meio hectare) e Malvasia (2ha) em terra de areia. Manuel Francisco Ramilo & filhos é um produtor familiar com vinhas no vale do rio Lizandro, incluindo a Quinta do Cameijo e a Quinta do Casal do Ramilo. Pedro e Nuno Ramilo foram desafiados pelo pai a retomar a tradição familiar de fazer vinhos e decidiram fazê-los à sua maneira, procurando inovar a tradição do chão de areia, fazendo rosés, espumantes (ambos não admitidos na DO Colares).

Haja Cortezia vinhos é explorado pelo casal Luís Duarte e Teresa Gamboa Soares. Luís é filho de António Maria Perpétuo Duarte, o proprietário das vinhas, que ficam em São João das Lampas. São 5ha, entre vinhas velhas e vinhas novas, situadas perto das praias da Samarra e São Julião. Cada parcela faz um único vinho. Os vinhos Infinitude de Osório & Gonçalves, têm João Lino na enologia, e exploram castas internacionais no chão rijo, enquanto mantêm os cânones DOC na areia. O seu Ramisco é o mesmo da ACR, com mais 6 meses de estágio. Esta tradição de vinificar em conjunto é usual na região, devido às pequeníssimas produções das parcelas.

Colares

(Artigo publicado na edição de Fevereiro de 2025)

GRANDE PROVA: TOURIGA NACIONAL

Prova touriga

O painel de prova que levámos a efeito contou com a resposta de 46 produtores. Com a expansão que a casta tem tido em todo o país, este painel poderia ter 100 ou mais vinhos presentes, um sinal evidente que as qualidades que esta variedade apresenta podem expressar-se em climas e solos diferentes, sem perda […]

O painel de prova que levámos a efeito contou com a resposta de 46 produtores. Com a expansão que a casta tem tido em todo o país, este painel poderia ter 100 ou mais vinhos presentes, um sinal evidente que as qualidades que esta variedade apresenta podem expressar-se em climas e solos diferentes, sem perda de qualidade. Essa é também a marca das grandes castas, as tais que mudam de país, mudam de ares, mas produzem sempre bem e originam grandes vinhos. Nem é preciso ir mais longe. Basta pensar em variedades internacionais como Cabernet Sauvignon, Merlot ou Chardonnay para exemplificar o que estamos a dizer.

Uma grande variedade

Recordemo-nos, sucintamente, que o percurso da casta não foi fácil. Era assumida como uma grande variedade, nomeadamente no Dão onde integrou as experiências do Centro de Estudos de Nelas. Alberto Vilhena, à frente daquele Centro, levou a cabo entre 1958 e 88 muitas microvinificações que mostraram as enormes qualidades da casta e as potencialidades para gerar vinhos de guarda. Muito estudada depois pelos cientistas da vinha, como Antero Martins e Nuno Magalhães nos anos 70 e 80, a casta foi depois objecto de plantio em campos de ensaio em várias quintas, sobretudo na Quinta da Leda (Douro Superior), onde foram ensaiados 179 clones e se procedeu então à selecção dos melhores, posteriormente disponibilizados para a produção. Foi com esse estudo que se conseguiram bons resultados nas primeiras experiências feitas na quinta dos Carvalhais (Dão) em 1992, e depois nos primeiros produtores do Douro que se aventuraram a fazer vinhos que, para a época, eram uma verdadeira novidade para os consumidores. Muito rapidamente os produtores perceberam que tinham, em mãos, uma casta de elevado potencial enológico e logo de seguida ela começou a ser mencionada nas garrafas. As más-línguas vieram logo dizer que a Touriga Nacional era “a casta mais plantada nos contra-rótulos”, tal a frequência com que aparecia essa informação. Terá sido assim, no início, ninguém hoje duvida, mas a verdade é que a área de vinha de Touriga ganhou uma dimensão que a trouxe para o patamar das grandes castas nacionais.

Vejamos alguns exemplos. No Douro poderá ter começado “nos contra-rótulos”, mas adaptou-se de tal forma às condições da região que hoje ocupa 10% da área de vinha duriense, ou seja, 4 400 ha. E para ajuizar da valia da casta bastará dizer que, se se fizer uma escolha de grandes vinhos do Douro, sobretudo dos mais conhecidos topos de gama, o que mais frequentemente encontramos é tintos que resultam de um lote de Touriga Francesa com Touriga Nacional. Também existem muitos varietais da casta. Mas a ligação das duas Tourigas parece ser fórmula garantida de sucesso. Não esqueçamos que as variações de terroirs que o Douro tem, as variantes de exposição e altitude, originam vinhos de perfis diferenciados. Mais uma das características das grandes castas, camaleónicas por natureza.
Se o Douro é a região com mais área de vinha de Touriga Nacional, o Dão vem logo de seguida. Ali, onde a casta deverá (ainda sem certezas) ter nascido, a área de Touriga Nacional é de cerca de 2750 ha, qualquer coisa como 21,3% da área total de vinha. Por enquanto a Jaen ainda é a casta mais plantada (com 22,8%). A Tinta Roriz queda-se no terceiro lugar com 17,6% da área de vinha. Pelo crescimento que tem tido, a Touriga poderá vir a ultrapassar a Jaen num futuro próximo.

No Alentejo, o crescimento da casta tem sido constante, ainda que num ritmo moderado. Se em 2019 ela ocupava 1 416 ha, essa área subiu, em 2023, para 1 543 ha. Para se ter uma noção comparativa, a Touriga Nacional é actualmente a 5ª casta mais plantada no Alentejo. Em primeiro lugar temos a Aragonez, com 4 155 ha, seguida (por ordem decrescente) de Alicante Bouschet, Trincadeira e Syrah. Num quadro comparativo das áreas de vinha da região entre 2019 e 2023, percebemos que as principais castas têm tido um crescimento, ainda que moderado, e nota-se alguma quebra nas Castelão e Moreto. Onde a Touriga Nacional tem crescido mais é em Borba e Reguengos. Anotem-se mais duas informações de duas regiões. Em Lisboa a casta ocupa cerca de 500 ha e, segundo informação da CVR Lisboa, esse quantitativo tem-se mantido estável. Já em Setúbal, com uma área muito grande, que se estende do Montijo até Sines, a Touriga Nacional, que ocupa 258,38 ha, tem tido um crescimento, moderado, mas constante, de 11 ha por ano.

 

Se o Douro é a região com mais área de vinha de Touriga Nacional, o Dão vem logo de seguida.

 

Uma leitura da prova

O perfil dos vinhos de Touriga Nacional tem acompanhado o gosto dos consumidores e tem sido desafiante para os enólogos a missão de ultrapassar alguns constrangimentos inerentes à própria variedade. No primeiro tema – o gosto dos consumidores – a Touriga de hoje afasta-se bastante do perfil que tinha no início do século. Enquanto durou a “era Parker”, com o gosto moldado pelo crítico americano Robert Parker, a Touriga Nacional foi macerada, extraída e abusada de madeira nova. Vemos agora que era difícil captar-lhe todas as subtilezas com esse perfil, como o seu lado mais floral, e que o excesso de madeira nova em nada contribuía para uma melhor apreciação do vinho. Ao mesmo tempo que este estilo vigorava, os enólogos foram percebendo que algo de particular se passava com a Touriga Nacional, uma vez que ela tinha a capacidade de, já depois de engarrafada, desenvolver fenóis voláteis, o famigerado suor de cavalo. A casta é também muito rica em ácido felúrico e cumárico, que existem naturalmente nas uvas e são necessários para o metabolismo da bactéria Brettanomyces formar os fenóis voláteis. Por isso, o controlo dos níveis de sulfuroso e as filtrações são fundamentais para diminuir os riscos. Hoje o problema está ultrapassado para os produtores que aceitam os avanços e conhecimentos que advêm da ciência.

Desta prova podemos tirar algumas conclusões: que continua a haver espaço para variados tipos de tintos de Touriga Nacional, uns mais estruturados, ricos e cheios, e outros mais elegantes e finos; que o que mais se ajusta à casta é um moderado estágio em madeira nova, sendo preferível um amadurecimento em barrica usada, que tudo possa envolver mas sem marcar muito o vinho; que a qualidade elevada não é exclusivo desta ou daquela região. Os vinhos provados revelaram uma qualidade muito alta, com uma evidente vocação gastronómica, característica que, sobretudo em Portugal, convém ter sempre presente.

A Touriga veio para ficar e hoje não há quintal, por mais pequeno que seja, que não tenha a casta plantada. Estranho fascínio, quase hipnotizante, poder-se-ia dizer. Acreditamos que outras variedades não se importariam de ter o mesmo desígnio.

(Artigo publicado na edição de Fevereiro de 2025)

 

 

Espumantes Rosé: Bolhas em tons rosa

Espumantes

Novidade, notícia, atenção: este é o primeiro texto com uma seleção exclusivamente dedicada a espumantes rosés portugueses na nossa revista! E os resultados são, no mínimo, excelentes! De tal forma se deram tão bem em prova, que cabe interrogar-nos porque razão não fizemos antes este tipo de seleção? Em primeiro lugar há que dizer que […]

Novidade, notícia, atenção: este é o primeiro texto com uma seleção exclusivamente dedicada a espumantes rosés portugueses na nossa revista! E os resultados são, no mínimo, excelentes! De tal forma se deram tão bem em prova, que cabe interrogar-nos porque razão não fizemos antes este tipo de seleção? Em primeiro lugar há que dizer que provamos muitos espumantes rosés ao longo do ano. Simplesmente não sintetizamos essa prova num único texto. O mesmo se poderá dizer, claro está, quanto a outro tipo muito específico de vinho, do Vinho de Talha ao Porto LBV, que podem merecer tantas vezes uma seleção à parte, mas, por regra, saem mais dispersamente ao longo de várias edições.

Depois, talvez seja melhor colocar já o dedo na ferida, e apesar dos excelentes exemplares nacionais, todos nós – consumidores, vendedores, críticos e produtores – não andamos a prestar a atenção devida à categoria dos rosés espumantes. Salve-nos, a esse respeito, não ser uma falha exclusivamente nossa, uma vez que em Champagne – pináculo da produção de vinhos espumantes – só muito tempo depois do monge Dom Pérignon aprender a controlar a segunda fermentação, é que se passou a valorizar a respetiva versão rosada. Hoje, ao invés, e dependendo das marcas, a versão rosé dos Champagnes (e em alguns Franciacorta italianos) pode ser mesmo mais exclusiva do que os brancos, em parte devido à sua muito menor produção, em parte por alguns exemplares serem absolutamente magníficos (com distribuição em Portugal recomendamos o mítico Cristal rosé, o gastronómico Gosset Grand Rosé e o sensual Billecart-Salmon rosé).

Uma questão de estilo

Como é evidente, um bom espumante rosé em nada fica atrás de um bom espumante branco (não nos referimos aqui aos tintos que deixamos para outra altura). É uma questão de estilo. Aliás, quando um dos melhores produtores de rosé em Portugal, a empresa bairradina Kompassus, quis iniciar-se em espumantes topos de gama, fê-lo em versão rosés, quer com Baga e Pinot Noir juntas, quer com cada uma das castas em estreme. E assim o é, desde logo, porque a partir de uma casta tinta se pode fazer espumante branco ou rosé. Com efeito, quanto à cor e perfil, e não querendo entrar em muitos detalhes, trata-se de uma opção de vinificação do produtor, sendo que uma uva tinta, dependendo da variedade, naturalmente, pode conduzir a um mosto mais claro do que uma uva branca. De resto, a carga fenólica de grande parte das uvas tintas com que se faz espumante é menor do que a das castas brancas (simplificando, esmagando uvas de Pinot Noir e de Chardonnay lado a lado, o mais provável é que o sumo desta última tenha mais cor do que o da primeira). Por isso, e como escrevíamos, a versão rosé depende da escolha na adega, nomeadamente no que respeita ao tempo de contacto do mosto com as películas da uva. Para os vinhos mais delicados utiliza-se apenas o mosto lágrima (tête de cuvée) utilizando-se o método de bica aberta sem contacto com as películas. Em Champagne pode-se utilizar este mesmo método para os rosés, com maior ou menor contacto com as películas, ou produzir espumantes brancos e tintos que são depois misturados. Não sendo este um método maioritário, contribui para alguns dos champanhes rosés com mais carácter.

Espumantes

Rosés de eleição

Mas voltemos à nossa premissa inicial. Não existe nenhum motivo para não eleger um espumante rosé quando nos apetece bolhas, seja a solo, de aperitivo, ou a acompanhar uma refeição. É verdade que a sua produção continua a ser residual face aos brancos, e é verdade que quem pretende um espumante centrado em notas de panificação, ou até com perfil mais cítrico ou floral, não pensa imediatamente numa bebida com tons rosados. E pode ser até que os espumantes rosés tenham herdado, por parte do público, algum do preconceito que existe em relação à generalidade dos vinhos rosés (preconceito que nos afigura estar a desvanecer). Em todo o caso, provando os vinhos, nas suas melhores versões (vários dos recomendados são topos de gama), é impossível ficar indiferente a uma sedução ligeiramente frutada que equilibra as notas fermentativas típicas de uma segunda fermentação e atenua os matizes mais barrocos provocados pela “reação de Maillard”.

Pois bem, quanto à nossa recomendação, não vale a pena guardar segredo e avancemos para a conclusão que já temos vindo a desvendar nos parágrafos anteriores: temos mais espumantes rosés de excelência em Portugal do que pensamos e, definitivamente, do que andamos a beber. Produto ainda valorizado para momentos festivos, acaba muitas vezes esquecido dentro do coffret (palavra francesa para a caixa decorativa em que os champagnes de edição limitada são comercializados) na dispensa. Todavia, e depois de provarmos muitos vinhos e de selecionarmos mais de uma dúzia, não temos dúvida em classificá-los como o melhor acompanhamento à mesa com uma piza (melhor ainda se for levemente picante), com almondegas ou outros pratos à base de carne picada, mas também, e noutro polo, com peixes secos e para maridagens com pratos exóticos (caril em especial). De preferência quando o espumante rosé é bruto natural como grande parte dos que aqui selecionámos, com uma mousse cremosa, cordão vivo e pressão média.

Há, pois, que valorizar os espumantes nacionais, incluindo os rosés, o que passa por compreender que produzir um espumante é muito mais difícil do que produzir um vinho tinto, por exemplo. Outra coisa que por vezes se esquece é que uma premissa base para um bom espumante é a qualidade das uvas que estão na sua génese. Devem ser uvas destinadas exclusivamente a espumante tendo em consideração o álcool provável, pH e acidez total. Uvas demasiado maduras contribuirão para espumantes com demasiado carácter varietal (o que não se pretende) pelo que se deve privilegiar regiões frias para a sua produção ou, nas menos frias, optar por uma vindima precoce. O vinho base para um espumante deve ter entre 10,5% e 11,5% de álcool, uma acidez total entre os 9 a 10 g/l e um pH preferencialmente abaixo dos três. Não espanta, assim, que a produção de espumante, espalhada por todo o território, se concentre em duas regiões onde não falta frescura: a atlântica Bairrada e a montanhosa Távora-Varosa. Na nossa seleção, os vinhos destas regiões puxaram dos pergaminhos (muito bem o  Baga-Bairrada da Aliança, que já produz 65.000 garrafas a um preço imbatível), seguidos por regiões de clima também temperado e húmido como Lisboa (sobretudo nos solos calcários) e os Vinhos Verdes. Mas terminamos como começámos, concluindo que em todo o nosso território se produzem grandes espumantes e também na versão rosé que em nada fica atrás da versão branca. Em alguns casos, bem pelo contrário!

 Nota: O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

(Artigo publicado na edição de Dezembro de 2024)

 

 

Grande Prova: Douro Superlativo

Douro

Já não imaginamos o Douro sem os vinhos “de mesa” (não como categoria, mas para os distinguir dos fortificados e espumantes). Longe vão os tempos quando os “vinhos de pasto” ou “vinhos de consumo” serviam apenas para o consumo caseiro ou para providenciar o pessoal de trabalho agrícola. Em 1982 foi reconhecida a Denominação de […]

Já não imaginamos o Douro sem os vinhos “de mesa” (não como categoria, mas para os distinguir dos fortificados e espumantes). Longe vão os tempos quando os “vinhos de pasto” ou “vinhos de consumo” serviam apenas para o consumo caseiro ou para providenciar o pessoal de trabalho agrícola. Em 1982 foi reconhecida a Denominação de Origem Controlada Douro, o que mudou o estatuto destes vinhos e abriu o caminho para a afirmação da região como também produtor de grandes vinhos tintos, primeiro, e brancos, mais tarde. Os primeiros Barca Velha, produzidos antes desta altura eram simplesmente “vinho tinto de mesa”. E havia outros exemplos, muitos dos quais continuam a sua existência, embora não sejam hoje tão conhecidos como na altura, pois milhares de marcas surgiram, entretanto.

As Caves Vale do Rodo (reunião de várias adegas cooperativas) em 1959 lançou um vinho tinto com marca Cabeça de Burro. A Quinta do Côtto nos anos 60 e 70 produzia alguns vinhos monovarietais, o que era verdadeiramente inovador na altura e nos anos 80, os vinhos desta quinta granjearam merecida fama, sobretudo o Quinta do Côtto Grande Escolha, estagiado em madeira nova, também pouco comum naquela época. Nesta prova essa referência mostrou-se em belíssima forma.
Mas tudo isto eram ainda casos esporádicos. O despertar do gigante começou a partir dos anos 90 e na viragem do milénio. Alguns grandes grupos internacionais reconheceram o potencial do Douro, investindo em propriedades durienses. O grupo Roederer adquiriu a Ramos Pinto em 1990 e nesta colheita também foi criado o Duas Quintas. A AXA Millésimes investiu na famosa Quinta do Noval em 1993 e o primeiro DOC Douro foi da colheita de 2004. O Grupo Vranken Pommery Monopole em 1997 comprou a Rozès.

Esta época coincide com uma nova geração de enólogos e produtores, bem formados, talentosos e ambiciosos, como Jorge Moreira, Francisco Olazabal, Jorge Borges, Sandra Tavares da Silva, Manuel Lobo, Francisco Ferreira e Tiago Alves de Sousa entre outros. Surgem projectos da Quinta do Vale Meão, Poeira, Quinta do Vallado, Wine&Soul. As empresas produtoras do Vinho do Porto começam a fazer as suas experiências nos vinhos de mesa, como a Symington Family Estates, fazendo uma parceria com Bruno Prats, formando a Prats&Symington que apresenta o Chryseia 2000, o vinho ambicioso com um polimento típico de escola de Bordeaux. E a partir de colheita de 2007, na Quinta do Vesúvio, adquirida pela Symington Family Estates em 1989, começam a nascer vinhos DOC Douro para além dos vinhos do Porto.

Ao longo dos 25-30 anos de existência dos DOC Douro, os produtores tiveram uma boa dose de aprendizagem, aperfeiçoando as formas de trabalhar a vinha, de vinificar as uvas, no uso de barrica (cada vez com mais parcimónia e em função de casta, da vinha e do ano). Foi uma afinação contínua e hoje os vinhos do Douro têm uma qualidade geral altíssima, os melhores deles impressionam pela sua finesse e carácter, mesmo variando em estilo. Deixando à parte as questões de carácter político e social e, focando, exclusivamente na prova de mais de 40 vinhos, podemos afirmar que são realmente grandes vinhos em qualquer parte do mundo.
Segundo o IVDP, a produção do vinho DOC Douro foi, em 2023, de 72.431.045 litros, quase igual de vinho do Porto, que foi de 72.436.084 litros.

Excelência nas três sub-regiões

Embora as condições edafo-climáticas variem à medida que nos afastamos do litoral e aproximamos da fronteira com Espanha, em todas as três sub-regiões se fazem grandes vinhos.
O Baixo Corgo é a sub-região mais ocidental e próxima do oceano Atlântico, embora não sofra influência directa devido à protecção da Serra do Marão, que bloqueia grande parte dos ventos frios e húmidos. O clima é mais ameno e com maior índice de precipitação em comparação com as outras sub-regiões do Douro. Os vinhos tendem a ter teor alcoólico moderado e maior acidez. Se antigamente ter vinhas nesta sub-região se considerava menos prestigiante, agora, com os efeitos do aquecimento global, é cada vez mais procurada pela sua maior frescura. Temos aqui belíssimos exemplos como o Vallado Vinha da Granja e Vinha da Coroa, Quinta do Côtto e Quinta da Gaivosa, de Alves de Sousa.

O Cima Corgo, situado no centro da região do Douro, ao redor de Pinhão, é mais seco e quente que o Baixo Corgo e com menor precipitação. O clima favorece vinhos complexos e intensos. Saem desta sub-região vinhos incríveis como o Quinta da Manoella VV, Poeira, Quinta do Crasto, Quinta do Noval, Quinta da Romaneira, Quinta de La Rosa e Quinta das Carvalhas da Real Companhia Velha, só para dar alguns exemplos.

O Douro Superior é a sub-região mais próxima da fronteira com a Espanha, sendo a mais distante do Atlântico. Tem o clima mais continental entre as três regiões, com verões muito quentes e secos e invernos rigorosos e secos também. Recebe pouca chuva, e a aridez é um factor distintivo. Produz vinhos muito concentrados, potentes e encorpados, de grande estrutura e às vezes teor alcoólico elevado. A sub-região é responsável por muitos nomes sonantes, como Quinta do Vale Meão, Quinta da Leda (Sogrape), Quinta do Vesúvio (Symington), Quinta da Ervamoira (Ramos Pinto) e Quinta Vale D. Maria (Aveleda).

Vinhas, castas e tendências

De acordo com os dados recentes do IVDP, a vinha na região do Douro ocupa mais de 43.000 ha, com a maior parte na sub-região de Cima Corgo, onde estão plantados mais de 20.000 ha. Cerca de 13.000 ha encontram-se no Baixo Corgo e cerca de 10.000 ha ficam no Douro Superior.
O lote “moderno” duriense baseia-se na tríade de Touriga Nacional, Touriga Francesa (designação mais rigorosa do que Touriga Franca, sendo cada vez mais utilizada pelos produtores) e Tinta Roriz.

Seria difícil de subestimar a importância da Touriga Francesa no Douro, onde é a espinha dorsal dos lotes quer nos vinhos do Porto quer nos vinhos Douro. É por isso que é a casta mais plantada na região, representando 28,1% da área da vinha. Está perfeitamente adaptada à região, tem uma película mais espessa, a folha é mais rugosa, o que permite aguentar melhor o stress hídrico e térmico. Aos vinhos confere dimensão, estrutura e aromas finos, embora menos exuberantes que os da Touriga Nacional. Esta representa 11,6% de área plantada e está em crescimento. Exige algum cuidado na vinha com a exposição solar para evitar que as folhas de base sequem e que fique com aromas sobremaduros. É muito flexível na adega e confere frescura, elegância e também alguma estrutura aos vinhos para além de contribuir com a complexidade aromática. Juntas, estas duas castas fazem uma base consistente de muitos vinhos durienses, incluindo os topos de gama.

A Tinta Roriz, embora esteja muito presente nas plantações, ocupando 15,5% da área, não é consensual e nos vinhos de topo de gama, salvo raras excepções, entra em proporções mais modestas. É muito dependente do terroir, tem taninos bastante agressivos, peca por falta de acidez, é muito produtiva e por isso nem sempre amadurece bem.
A Tinta Barroca, embora represente 6,6% das plantações, está em decréscimo. É utilizada mais para os vinhos do Porto, sobretudo para os Tawny, enquanto que para os vinhos Douro falta-lhe o equilíbrio. É uma casta precoce, rapidamente acumula açúcar e perde acidez e, então, para os vinhos de topo o seu uso é reduzido, a menos que esteja presente nas vinhas velhas, mas ali é outra história.

A Tinto Cão, embora não ultrapasse 1% de plantação, está a ganhar importância pelas suas qualidades enológicas. É o oposto da Tinta Barroca, sendo uma casta muito tardia, de ciclo longo. Preserva bem a acidez, tem tanino notável, produz vinhos com frescura e algum potencial de envelhecimento. Nos lotes contribui com acidez. A par da Tinto Cão, também muitas vezes entra a Sousão para temperar o lote com a frescura.
A Alicante Bouschet também presente nas vinhas velhas no Douro, não tem muita expressão, mas ultimamente tem ganho alguns adeptos. “É precoce no Douro Superior, amadurece bem, tem alguma rusticidade, mas menos do que o Sousão” – define a casta Francisco Ferreira, director de produção da Quinta do Vallado.

Douro

Vinhas Velhas, património e expressão do Douro

Verdadeiramente fascinante no Douro são as vinhas velhas. A Quinta do Crasto foi a primeira a introduzir o conceito Vinhas Velhas no rótulo, nos anos 90, e foi ainda mais longe, produzindo dois vinhos de vinhas centenárias, as famosas Vinha da Ponte e Vinha Maria Teresa (desde a colheita de 1998). Para esta nossa prova veio o Quinta do Crasto Vinha da Ponte, originado de apenas 1,96 hectares de vinha que supera os 100 anos.
Em 2020, o IVDP regulamentou a menção “Vinhas Velhas” no rótulo, considerando as vinhas com mais de 40 anos (idade média das videiras mais velhas da parcela), plantadas com densidade de pelo menos 5.000 cepas por hectare (com tolerância de 30% para falhas – videiras mortas – e excepção das parcelas com armação pré-filoxérica, com menor densidade). Para justificar a menção, o vinhedo tem de apresentar um mínimo de 4 castas, devendo 3 delas representar um mínimo de 25% do total. O rendimento por hectare não pode exceder 50% do máximo fixado anualmente para DOC Douro.

Mas não basta colocar no rótulo “Vinhas Velhas” para que o vinho passe a ter uma qualidade superior. As vinhas velhas não trazem benefício só por serem velhas ou por se tratar de uma mistura de castas. São boas quando estão no local certo, a composição é boa, quem as plantou fez bem o seu trabalho e as vinhas são bem mantidas ao longo do tempo. Por outras palavras, as vinhas velhas são boas se já o eram quando novas.
As vinhas velhas têm algumas características importantes. As raízes são bem desenvolvidas o que permite a planta chegar à água e aos nutrientes vitais para o seu metabolismo e aguentar o stress hídrico com relativo conforto. Os seus troncos grossos acumulam carboidratos, criando assim as reservas energéticas que a planta utiliza durante períodos de maior necessidade como fonte de energia. Outra característica das vinhas velhas é a produção baixa, por vezes apenas 300-500 g por planta, o que permite a videira amadurecer os cachos com muita concentração e equilíbrio (numa vinha nova isto consegue-se com uma monda em verde).

Entretanto as vinhas velhas dão muito trabalho aos produtores. Primeiro, são pouco rentáveis em termos de produção. Segundo, a sua manutenção ao longo do tempo exige decisões estratégicas a serem colocadas em prática. À medida que as vinhas velhas vão envelhecendo, algumas videiras morrem e aí o produtor opta, ou por substituição das videiras mortas (muitas vezes com a mesma casta), ou por deixar como está, assumindo que a produção vai diminuindo ainda mais, mas assim não é desvirtuada a composição e a idade da vinha. “Não quero fazer de uma vinha velha uma vinha nova” – explica Francisco Ferreira. E acrescenta que a retancha (a tal substituição das videiras mortas) também não é fácil nas vinhas velhas porque as raízes das videiras antigas são muito desenvolvidas, ocupam praticamente todo o espaço subterrâneo e o enraizamento de uma videira nova é difícil.

A preparação da vindima numa vinha velha é outra “dor de cabeça”. A heterogeneidade natural dificulta a definição da data de vindima. Muitos enólogos concordam que a avaliação analítica das amostras com 20-30 castas nem sempre reflecte a realidade e tem uma significativa margem de erro. Carlos Agrellos, enólogo da Quinta do Noval e da Quinta da Romaneira, conta que para definir a data de vindima nas vinhas velhas, se foca nas 4-5 castas que são mais populosas. “Tem de se olhar de cima para a vinha e ir provar os bagos nas zonas mais críticas”. Manuel Lobo, responsável pelos vinhos da Quinta do Crasto, concorda que “é preciso uma sensibilidade muito grande para não perder o equilíbrio”. A empresa tem na equipa uma pessoa responsável só para acompanhar as parcelas antigas. A selecção rigorosa no tapete de escolha também faz parte, para retirar as uvas sobremaduras. A vindima das vinhas velhas na Quinta do Crasto é praticamente uma operação cirúrgica em que os próprios directores de enologia e viticultura lideram um pequeno grupo de experientes trabalhadores para colher à mão apenas as uvas que atingiram o nível ideal de maturação.

Entretanto, não basta colher as uvas das vinhas velhas para conseguir fazer grandes vinhos, a sua abordagem enológica também exige uma sensibilidade quanto à extracção e ao uso de barrica. Muitas vezes as vinhas velhas não têm uma estrutura poderosa devido a castas mais delicadas na sua composição e uso de barricas novas, neste caso, pode desvirtuar a personalidade da vinha, marcando demasiado.
Carlos Agrellos conta que fermentam em inox, só com remontagens suaves e na prensagem separam a fracção de prensa e depois avaliam: caso o mosto de gota não tenha estrutura suficiente para ir para à barrica, acrescentam o mosto de prensa. Conhecer a composição das vinhas velhas é fundamental porque vai ter impacto na vinificação. Por exemplo, Francisco Ferreira relata que na Vinha da Coroa entre as 20 castas, a Tinta Roriz corresponde a 50%. Neste caso optam por uma extracção mais cuidada, enquanto no caso da Vinha da Granja, plantada em 1929, esta questão não se põe, porque entre as 32 castas, as maioritárias são Tinta Roriz 19%, Tinta Amarela 19%, Touriga Francesa 18%, Touriga Nacional 8% e Moreto 7%.

Os vinhos a partir das vinhas velhas, quando bem feitos, são absolutamente fascinantes, transmitem uma forte identidade que se reconhece em provas sucessivas colheita após colheita, uma complexidade mais entrelaçada, a lembrar uma pintura de pinceladas muito finas.

Por isto a preservação das grandes vinhas velhas do Douro é quase uma questão de honra. É um património insubstituível. Imaginem o mundo sem os vinhos Maria Teresa, Vinha da Ponte, Vinha da Granja, Vinha da Coroa, Pintas, Quinta da Manoella e outros. O panorama do Douro seria incompleto. E este património merece ser preservado e valorizado.

(Artigo publicado na edição de Novembro de 2024)