Madeira Wine Company: Novidades e velhidades Blandy’s

Madeira Wine Company

Detesto o velho clichê de “os estrangeiros gostaram muito”, mas sempre lembrarei que foi com vinho Madeira que se brindou na assinatura da Constituição dos Estados Unidos da América. Foi em 1776. Onde há uma igreja católica há vinho, portanto, desde o séc. XV que há vinha na Madeira. As condições naturais da ilha não […]

Detesto o velho clichê de “os estrangeiros gostaram muito”, mas sempre lembrarei que foi com vinho Madeira que se brindou na assinatura da Constituição dos Estados Unidos da América. Foi em 1776.
Onde há uma igreja católica há vinho, portanto, desde o séc. XV que há vinha na Madeira. As condições naturais da ilha não favorecem o amadurecimento das uvas. Os terrenos são muito férteis, as temperaturas moderadas, as altitudes elevadas. Por outro lado, a acidez é excepcional, e, ao amuar a fermentação com álcool vínico a 96%, nasce um vinho que, sendo envelhecido em velhos cascos de madeira e sujeito às condições climáticas dos velhos sótãos, se torna indestrutível. A Blandy’s é uma empresa familiar, com mais de 200 anos de história na ilha, hoje dentro do universo da Madeira Wine Company, mas sempre com gestão familiar, desde 2010 personificada em Chris Blandy, jovem de 40 e poucos anos.

Gerir uma empresa antiga de Vinho Madeira é gerir um tecido de incrível complexidade. Na apresentação dos novos lançamentos, no restaurante Kabuki, em Lisboa, Chris e o seu enólogo principal e master blender, Francisco Albuquerque, foram sempre citando números: “De Bual há 14ha na ilha, com 104 viticultores na Calheta. A MWC tem 1 ha”. “A Madeira tem 22ha de Sercial, são 125 produtores”. E continuando. Vocês percebem, é só fazer as contas, como dizia o António Guterres. É preciso gerir as nossas vinhas, decidir os tratamentos e datas de colheita, acompanhar as vinhas dos outros (muitas dezenas de) viticultores, colher e separar todas as parcelas, com as castas separadas, já que na Madeira cada casta é também um estilo de vinho.

Francisco Albuquerque, que começou a carreira na Blandy’s em 1990 (e aliás, começou imediatamente a mudar o sector) disse-nos que experimentou fazer algumas castas ao estilo de outras (ou seja, com o nível de doçura “errado”) e descobriu que o resultado era horrível. Diz ele: a doçura está bem assim: Sercial seco com um máximo de 60g de açúcar por litro, Verdelho meio-seco com 60 a 75g de açúcar, Bual meio-doce com 75 a 100g e Malvasia doce com mais de 125g.

Mais um problema: fazer chegar as uvas ao Funchal. Muitas vinhas são em sítios bastante isolados. Há imensa pressão demográfica na Madeira, com apenas 13,5% dos terrenos com declives inferiores a 16%, as vinhas têm de lutar pelo seu espaço contra os hotéis e as habitações. Felizmente, a viticultura tem evoluído e os porta-enxertos aguentam cada vez mais altitude. 80% da ilha da Madeira está acima dos 700m.

Mas a complexidade não termina aqui: feitos os vinhos há que envelhecê-los. E segundo Albuquerque, o sítio onde fica o armazém de envelhecimento também determina o estilo dos vinhos. A Blandy’s tem 16 armazéns de envelhecimento, e em cada localização, as diferentes castas desenvolvem de forma diferente os ácidos orgânicos que dão ao Madeira o seu carácter. Por exemplo, o Caniçal é mais húmido do que o Funchal e há castas que envelhecem lá melhor. É preciso diminuir os factores aleatórios para manter o estilo de cada vinho.

Depois de mais de 30 anos de trabalho, Francisco Albuquerque conseguiu pela primeira vez fazer 4 vinhos do mesmo ano, os 2010 hoje apresentados. Para além desses, viajámos um pouco no tempo para provar alguns vinhos históricos, e comparar estilos da Blandy’s com a sua marca-irmã, Cossart-Gordon. Ao jantar, mais desafios: o IG Madeirense (“de mesa”) Atlantis, Verdelho da Fajã da Ovelha, feito em parceria com Rui Reguinga, e a provocação de harmonizar vinho Madeira com os pratos da cozinha japonesa, uma proposta desenhada com a ajuda de Victor Jardim, escanção do Kabuki e também ele madeirense. Sashimi de atum com Sercial, toro com Sercial e Verdelho, wagyu com Bual. Aposta ganha, num dia em que honrámos as tradições da Madeira com os seus vinhos de enorme delicadeza, etérea profundidade e eterna longevidade.

 

(Artigo publicado na edição de Agosto de 2023)