Editorial: Turismo no Douro, ilhas na paisagem

Editorial LUÍS LOPES

Dizer que o potencial turístico do Douro é enorme, tornou-se lugar-comum. Mas eu continuo a pensar que esta região ainda não é destino de viagem tão perfeito quanto a fazemos crer. Faltam muitas peças no puzzle, entre elas, gastronomia, urbes bonitas e organizadas, oferta em rede, espaços verdes, arte e cultura, enfim, tudo aquilo que […]

Dizer que o potencial turístico do Douro é enorme, tornou-se lugar-comum. Mas eu continuo a pensar que esta região ainda não é destino de viagem tão perfeito quanto a fazemos crer. Faltam muitas peças no puzzle, entre elas, gastronomia, urbes bonitas e organizadas, oferta em rede, espaços verdes, arte e cultura, enfim, tudo aquilo que um destino turístico ambicioso deveria ter.

Editorial da edição nº 67 (Novembro 2022)

Não me interpretem mal, adoro o Douro. De tal forma que, apesar de visitar a região, em trabalho, várias vezes por mês, ainda lá regresso nas férias com a família para passar uns dias. Mas a questão é mesmo essa. Dificilmente “aguento” mais do que dois ou três dias a olhar a paisagem, com pouco mais para ver e fazer.

Deixem-me despachar a heresia de uma vez, para ficar o assunto arrumado. As quintas do Douro são hoje, no seu conjunto, a mais impactante oferta enoturística que temos em Portugal. A paisagem vinhateira, classificada Património da Humanidade desde 2001, o rio e seus afluentes são, só por si, motivo mais do que suficiente para que centenas de milhar de turistas ali acorram em cada ano e, cada vez mais, em todas as estações do ano. Muitos destes polos de enoturismo estão no patamar da excelência, pelo cuidado e profissionalismo colocado no espaço e na oferta (provas, visitas guiadas, passeios, etc.), num modelo que, em vários casos, se estende à gastronomia e hotelaria de qualidade. Estas quintas procuram, geralmente, ser autossuficientes em termos de “ementa turística”, para que o visitante não sinta a necessidade de dali sair. E, na verdade, a única justificação turística para sair de uma quinta é ir visitar outra quinta.

Atentemos na seguinte situação. Cheguei a uma propriedade esplendorosa, com uma oferta enoturística de primeira linha. Fiz as provas acompanhado por guias competentes, passeei pelas vinhas, visitei a adega, comprei na loja, já dormi a sesta no quarto do hotel. Ao fim da tarde, sento-me numa espreguiçadeira, frente ao rio, com um livro na mão e descanso os olhos no monte que se avista na outra margem enquanto aguardo pelo jantar. Lindo. No segundo dia, repito o programa, com algumas variantes: subo até ao ponto mais alto da vinha, onde ainda não tinha estado, faço uma outra prova, mas agora com Porto e, antes do jantar, sento-me novamente na espreguiçadeira com o livro, o rio e o monte em frente. Ao terceiro dia, para mim, chega. Quero ir petiscar fora, usufruir de uma bonita esplanada ou jardim, conversar com os locais, passear por ruas pitorescas, comprar pão e queijos, visitar um museu, um castelo, um atelier de artesanato, jantar num bom restaurante com comida local e regressar à quinta/hotel sem sobressaltos. O problema: tudo o que acabei de elencar, e que qualquer enoturista tem como garantido a cada passo na Toscana, no Loire, em Rioja… ou no Alentejo, é coisa muito, muito rara no Douro.

As quintas têm reforçado a oferta gastronómica e actividades “intramuros”, é o seu papel, mas ao mesmo tempo tornam-se cada vez mais “ilhas”, sem contacto com o exterior. Podiam (e deviam) desenvolver o trabalho em rede, para que o turista possa saltar de quinta em quinta, diversificando caras, comida, paisagem. Mas não podem inventar esplanadas, jardins, ruas pitorescas, museus, vida urbana.

Os números contrariam, evidentemente, esta visão pessimista. Nunca o Douro teve tanto turista a circular, por terra ou por água (os primeiros ainda deixam o dinheiro na região, os segundos nem isso, fica tudo nas ilhas flutuantes). Mas é preciso olhar além, a médio e longo prazo. A extraordinária paisagem vinhateira e a qualidade dos vinhos e das quintas não serão suficientes para garantir o futuro do turismo duriense se não houver autenticidade local a envolver tudo. Para que a galinha dos ovos de ouro não acabe por definhar um dia, seria bom que produtores e autarquias reconhecessem e identificassem as carências e trabalhassem em conjunto para as resolver.

 

Editorial: Alentejo, origens e estilos

Editorial LUÍS LOPES

Os vinhos do Alentejo são definidos por um vasto conjunto de factores, desde logo, a sua origem ou, mais correctamente, origens. Mas também pelo seu estilo, ou perfil particular. Num e noutro caso, em maior ou menor grau, a intervenção humana tem papel primordial. Editorial da edição nº 66 (Outubro 2022) Os vinhos do Alentejo, […]

Os vinhos do Alentejo são definidos por um vasto conjunto de factores, desde logo, a sua origem ou, mais correctamente, origens. Mas também pelo seu estilo, ou perfil particular. Num e noutro caso, em maior ou menor grau, a intervenção humana tem papel primordial.

Editorial da edição nº 66 (Outubro 2022)

Os vinhos do Alentejo, cujos tintos são tema de capa desta edição, constituem, muito provavelmente, o conjunto DOC (Denominação de Origem Controlada) mais diverso que existe em Portugal. Uma boa parte dessa diversidade tem a ver com a origem (origem, sim, terroir é algo muito mais raro e geograficamente preciso). Numa região enorme, que vai da costa atlântica ao interior fronteiriço e que pelo meio abarca colinas, planícies e serras, com vinhas plantadas numa vasta tipologia de solos, das areias aos granitos, do xisto aos mármores, das argilas aos calcários, tem, necessariamente, de existir um pouco de tudo. No que à origem respeita, o papel do produtor é naturalmente mais restrito. Mais ainda que não possa mudar o clima, pode intervir, de diversas formas, nas qualidades do solo, através de movimentação de terras, mobilização, arrelvamentos, adubação, entre muitas outras práticas. Ao nível da viticultura, o produtor intervém de forma ainda mais decisiva, desde o modelo adoptado (convencional, produção integrada, orgânico, etc.) – e aqui é justo referir o avanço que o Alentejo leva, face as outras regiões nacionais, em termos de práticas sustentáveis certificadas na vinha e na adega – até à cultura da videira propriamente dita, da poda à condução da planta, da dotação de água até à escolha dos porta-enxertos e castas.

No Alentejo, as castas selecionadas pelo produtor determinam boa parte da forma como ele e os seus vinhos se definem. Em regiões clássicas, como Douro, Dão ou Verdes, a categoria IG/Regional (Duriense, Terras do Dão, Minho) tem muito pouca expressão e é até sujeita a alguma desvalorização no mercado, o que “obriga” (e bem!) os produtores a focarem-se em meia dúzia de variedades “tradicionais”. Já no Alentejo, DOC Alentejo e Regional Alentejano equivalem-se em notoriedade e preço junto do apreciador. Sem esse constrangimento, o leque de castas legalmente colocado à disposição do produtor é imenso, entre variedades mais antigas ou mais recentes na região. O que, se de algum modo promove a diversidade e até, em certa medida, a qualidade (em teoria, pelo menos, uma casta “de fora” só se justifica se trouxer valor acrescentado…) de algum modo há que reconhecer que não favorece uma identidade regional mais assertiva.

A casta, a meu ver, é o elemento de transição entre a origem (que controlamos menos) e o estilo ou perfil do vinho (onde controlamos quase tudo). É aqui, com base nas decisões que toma na vinha e na adega, que o produtor determina como se vê e como quer que o vejam a si e aos seus vinhos. Na prova de mais de 50 tintos alentejanos que Valéria Zeferino fez para esta edição da revista, a autora identifica quatro grandes estilos, ou perfis: dois “clássicos” (um que alia concentração e elegância, outro focado na concentração e potência) e dois “modernos” (um centrado na intensidade de fruta, estrutura e suavidade, outro que acaba por ser quase neoclássico, recuperando práticas e conceitos de outrora para fazer vinhos mais “light” e diferentes). Acredito que o puzzle Vinho do Alentejo é bem mais complexo, mas tendo a concordar com a Valéria na visão geral. Importante é que cada produtor saiba definir muito bem que caminho (ou caminhos) quer seguir e que o assuma na sua identidade vínica; e que cada apreciador saiba navegar no mar imenso de marcas e perfis de vinho alentejano para que, quando compra uma garrafa, acerte no estilo (ou estilos) que, realmente, o satisfazem. A Grandes Escolhas estará sempre presente para dar uma ajuda.

 

Editorial: Água

Editorial LUÍS LOPES

Adaptar a produção industrial e a utilização individual à crescente escassez de água é uma necessidade premente, mas que a maior parte do mundo ainda não reconhece como tal. Enquanto país do sul europeu, Portugal será sempre dos mais afectados em cenários de seca como o que agora atravessamos. A indústria (e o consumidor) estão […]

Adaptar a produção industrial e a utilização individual à crescente escassez de água é uma necessidade premente, mas que a maior parte do mundo ainda não reconhece como tal. Enquanto país do sul europeu, Portugal será sempre dos mais afectados em cenários de seca como o que agora atravessamos. A indústria (e o consumidor) estão obrigados a agir. E o sector do vinho não é excepção.

Editorial da edição nº 65 (Setembro 2022)

De tempos a tempos, a seca e as suas consequências entram-nos pela sala dentro, nas imagens televisivas, nas páginas dos jornais. Este ano, mais do que nunca. No entanto, a esmagadora maioria dos portugueses olha para a seca como algo conjuntural, passageiro, não equacionando sequer o cenário de abrir a torneira e, durante dias (meses?), não sair água. Mas essa é uma possibilidade que pode não estar tão longe assim e que áreas do mundo dito “desenvolvido”, como a California, já experimentam. A este respeito, recomendo a leitura da novela “Seca”, de Jarrod e Neal Shusterman, uma ficção assustadora e perigosamente plausível.

Segundo a União Europeia, atravessamos um período de seca como não há memória e que, à data em que escrevo (finais de agosto), não tem fim à vista. Entretanto, arrancaram as vindimas em diversas regiões de Portugal. Em traços gerais, a coisa não está brilhante. Bagos pequenos, mirrados pela falta de água, maturações muito heterogéneas, devido ao “adormecimento” da videira pelo calor e stress hídrico, pH desequilibrado, acidez em baixa. Vinhas regadas e vinhas de sequeiro foram igualmente afectadas, variando o grau do impacto em função da localização, orientação solar, tipologia de solos, opções vitícolas. E se nada pode substituir (na vinha, na uva, no copo) a água que a Natureza entrega sob a forma de chuva, a verdade é que, a nível global, a indústria do vinho está absolutamente dependente da rega. A grande dúvida é se, num futuro próximo, vamos continuar a ter água para regar.

Porém, vejo ainda um número demasiado curto de produtores nacionais seriamente preocupados com isto. Talvez devido, precisamente, à sua dimensão, os maiores parecem estar bem mais despertos para o problema e, sobretudo, mais disponíveis para agir na busca e aplicação de soluções. Confesso que me custa muito ver, por exemplo, pequenos produtores, claramente comprometidos com o ambiente a outros níveis, de mangueiras abertas na adega como se a água fosse um recurso inesgotável. E convictos de que práticas como optimização científica da rega ou reutilização de água na adega, não são para si. Um pouco naquela de que “como produzo pouco vinho, gasto pouca água”. Só que isso não funciona assim. É o mesmo que dizer que uma casa com duas pessoas faz menos lixo do que uma com oito e que, portanto, pode fazer lixo à vontade. Na verdade, a questão não está no volume total de água gasto pelo produtor; está no que gasta por cada litro de vinho produzido.

Os cálculos relativos à pegada de água na produção de vinho estão, naturalmente, condicionados à enorme diversidade existente no sector. Ainda assim, estima-se que, a nível mundial e em média, são necessários 870 litros de água para produzir um litro de vinho (ver water footprint network). Muito menos, ainda assim, que o café (1056 l/l), sumo de maçã (1140 l/l), leite (1020 l/l), pão de trigo (1608 l/kg), arroz (2497 l/l), manteiga (5550 l/kg), carne de vaca (15500 l/kg) ou chocolate (17000 l/kg). Mas bem mais do que a cerveja (298 l/l)…

Sabe-se que, através processos de optimização na vinha e adega, é perfeitamente possível reduzir a pegada de água vitivinícola para um terço da actual. Só que é obrigatório que os produtores interiorizem essa necessidade e resolvam agir. A água é um bem limitado, e vai sê-lo cada vez mais no futuro. Utilizá-lo com a máxima eficácia, racionalidade e parcimónia na produção de vinho é um imperativo. Certamente mais impactante, em termos de cuidado ambiental e sustentabilidade, do que fazer uma vinha biológica.

Esta obrigação aplica-se a quem faz vinho mas também, é claro, a quem o bebe. Os produtores que façam a sua parte. Nós, consumidores, tratemos de ir fechando as torneiras.

Editorial: O feliz regresso do Loureiro

Editorial LUÍS LOPES

Levou tempo, é verdade. Mas temos hoje, na região dos Vinhos Verdes, um sólido conjunto de produtores a ver na casta Loureiro muito mais do que uma uva rentável. Com conhecimento técnico, talento e ambição, tiram desta casta o máximo partido, buscando a excelência. Os vinhos estão aí e têm grande qualidade, carácter e, para […]

Levou tempo, é verdade. Mas temos hoje, na região dos Vinhos Verdes, um sólido conjunto de produtores a ver na casta Loureiro muito mais do que uma uva rentável. Com conhecimento técnico, talento e ambição, tiram desta casta o máximo partido, buscando a excelência. Os vinhos estão aí e têm grande qualidade, carácter e, para espanto de muitos, longevidade.

Editorial da edição nº 64 (Agosto 2022)

“Eu vim de longe
De muito longe
O que eu andei pra aqui chegar”

A lírica da canção de José Mário Branco, nas suas múltiplas interpretações, aplica-se na perfeição à variedade Loureiro e aos vinhos que dela nascem, tema de capa desta edição da Grande Escolhas. Desde logo pela antiguidade da casta. Com origens na Galiza (Rias Baixas e Ribeiro) e no noroeste de Portugal, em 1790 era já classificada por Lacerda Lobo (chamava-lhe Loureira) como muito antiga e localizada em Melgaço e Vila Nova de Cerveira. Menos de um século depois (1875), o Visconde de Vila Maior situava-a já, sem margem para dúvidas, naquele que é hoje considerado o seu terroir de eleição, o vale do Lima. Para quem, como eu, sempre associou Loureiro ao Lima, não deixa de ser intrigante perceber que passou primeiro (e, ainda por cima, sem deixar rasto!) pelo vale do Minho. Mas, se pensarmos bem, faz sentido: sendo uma casta tradicional na Galiza, seria estranho que “saltasse” por cima do rio Minho para “aterrar” no rio Lima. As variedades de uva, como bem sabemos pelos exemplos Baga e Alicante Bouschet, entre outros, nem sempre atingem o seu máximo potencial nos locais onde nasceram.  Ainda por cima, ao contrário da sua conterrânea Alvarinho (que dá o seu melhor na terra mãe, Monção e Melgaço, mas mostra muita classe em diferentes solos e climas), a uva Loureiro, é mais picuinhas quanto ao local onde é plantada. E a parte mais atlântica da região dos Vinhos Verdes é, claramente, a sua praia.

O que o Loureiro andou para aqui chegar, parafraseando o Zé Mário, pode também ser visto no sentido figurado. Lembro-me bem do que eram os varietais de Loureiro nos anos 90. É óbvio, os Vinhos Verdes, no seu conjunto, cresceram enormemente desde então. Mas, com raras excepções, os vinhos de base Loureiro que existiam na década de 90 eram demasiado medíocres, sobretudo quando comparados com os Verdes de lote (Loureiro-Arinto-Trajadura-Azal) feitos pelos mesmos produtores. O denominador comum dos Loureiro da época era a extrema facilidade com que passavam de um vinho floral e citrino a um vinho amarelado, pesadão e oxidado de aromas e sabores. Entre um estado e outro, frequentemente, distavam apenas 6 ou 9 meses. E quando não era a oxidação era o cheio a pano molhado que, logo ao nascer, tapava qualquer veleidade de a fruta se mostrar. É fácil, mas errado, imputar culpas à ausência de condições de adega. Desde meados dos anos 80 que grande parte dos produtores dos Verdes, grandes e pequenos, tinha inox e sistemas de frio instalados. Os problemas estavam na vinha, na vindima, e no desconhecimento geral de como trabalhar uma uva delicada e elegante como a Loureiro. E, acima de tudo, na falta de ambição.

A Grande Prova que apresentamos este mês, com tantos Loureiro notáveis em qualidade, carácter e longevidade, mostra uma realidade tão distinta que mais parece estarmos a falar de outra casta. Mas a uva esteve sempre lá. E casas pequenas em área de vinha, como Ameal, médias, como Anselmo Mendes ou grandes, como Aveleda, só para dar três exemplos, sabem desde há muito como tirar partido do seu elevadíssimo potencial. Entusiasmante é também perceber que, na última meia dúzia de anos, novos produtores cheios de talento e dinamismo elegeram a Loureiro como porta-estandarte.

Deixo dois indicadores significativos: nos 9 Verdes Loureiro que classificámos acima de 17,5 pontos, não havia nenhum da mais recente vindima, distribuindo-se pelas colheitas de 2020, 2019, 2018, 2017, 2016 e 2015. Outro sinal de ambição: o preço médio de venda ao público destes 9 vinhos ronda os €20. A continuar assim, parece que o Alvarinho vai ter de partilhar o trono: o Loureiro está a chegar.

Editorial: Ser “vigneron”

Editorial LUÍS LOPES

Fazer vinho exclusivamente a partir das suas próprias uvas tem hoje, em Portugal, muito mais desvantagens do que benefícios. É que, aos enormes constrangimentos de produção que esse modelo obriga, não corresponde um acréscimo efectivo de notoriedade ou valor de marca junto do consumidor. Para este último, são todos produtores de vinho. Mas não é […]

Fazer vinho exclusivamente a partir das suas próprias uvas tem hoje, em Portugal, muito mais desvantagens do que benefícios. É que, aos enormes constrangimentos de produção que esse modelo obriga, não corresponde um acréscimo efectivo de notoriedade ou valor de marca junto do consumidor. Para este último, são todos produtores de vinho. Mas não é verdade.

Vem este tema a propósito de uma das peças desta edição de julho da Grandes Escolhas, a que aborda os extraordinários Garrafeiras brancos da Quinta das Bágeiras e do seu criador, Mário Sérgio Nuno. Alguém que, contra ventos e marés, criou uma marca de referência e que, teimosamente, continua a fazer os seus vinhos exclusivamente a partir das uvas que crescem nas suas vinhas. Mesmo que, para tal, abdique de vender, a bom preço, mais umas boas dezenas de milhar de garrafas por ano. A única compensação: poder, com orgulho e legitimidade, intitular-se “Vigneron” e manifestar isso mesmo nas T-shirt que usa nos eventos e provas de vinho. Mas, feitas as contas, vale a pena?

Tempos houve em que acreditei que sim. Quando comecei a escrever sobre vinhos, em 1989, a estrutura de produção, em Portugal, estava perfeitamente definida. Havia as adegas cooperativas, que vinificavam as uvas dos cooperantes; havia os armazenistas puros, que não vinificavam (e eram muitos, acreditem!), compravam vinho feito que engarrafavam com a sua marca; havia os armazenistas “híbridos”, que faziam o mesmo que os anteriores mas também vinificavam, compravam uvas e, por vezes, até tinham algumas vinhas; havia os viticultores, que vendiam uvas e, muitas vezes, também faziam vinho para vender a granel aos armazenistas; e havia os produtores-engarrafadores que, genericamente, correspondiam aos então chamados “vinhos de quinta” que começavam a ganhar notoriedade. Este conceito de fazer vinho a partir de uvas de uma só quinta mexeu bastante com o mercado dos anos 90: eram vinhos bem mais cotados e mais caros do que os de “armazenistas”. Significava que eram melhores? Nuns casos sim, noutros não. Mas os consumidores tinham por eles mais respeito e estavam dispostos a pagar mais.

Com o tempo, tudo isto se diluiu. Hoje, para o apreciador, mesmo o mais exigente, tudo entra no mesmo saco com a etiqueta “produtor de vinho”, incluindo os “marketeiros” que assinam rótulos de vinho que nunca produziram. No entanto, a legislação existe e é bem explícita. A inscrição obrigatória, no IVV, para o exercício de atividade no sector vitivinícola, determina em que categoria, ou categorias se está. Alguns exemplos, resumidos, da lei. “Armazenista: pratica o comércio de vinho a granel ou engarrafado”; “Negociante sem estabelecimento: compra e vende vinhos engarrafados sem dispor de instalações para a sua armazenagem” (aqui caberiam muitas das marcas de nicho hoje reverenciadas em restaurantes da moda…); “Produtor: produz vinho a partir de uvas obtidas na sua exploração ou compradas” (aqui se insere a esmagadora maioria das empresas nacionais); “Vitivinicultor-engarrafador: elabora vinho a partir de uvas produzidas exclusivamente na sua exploração vitícola” (é o que, em França, se chama “vigneron”). As empresas podem inscrever-se em mais do que uma categoria, mas a lei determina que a inscrição como vitivinicultor-engarrafador é incompatível com a inscrição como armazenista ou como produtor. Ou seja, é o que tem as mãos “atadas”, sem vantagens óbvias.

Ao contrário do que, até junho de 2019, era obrigatório colocar nas cápsulas de todos vinhos franceses (R de “recoltant” ou N de “negociant”) e que ainda hoje se mantém em diversas AOC, como Champagne (aqui até de forma bem mais rigorosa), em Portugal essa obrigatoriedade nunca existiu. Resultado: os poucos “vigneron” que ainda existem entre nós vão fazendo contas à vida e percebendo que não compensa insistir nesse ideal romântico, mas pouco rentável, de usar só as uvas que criam. São vinhos melhores do que os outros? Não necessariamente. Mas num mercado que, tantas vezes, paga irracionalmente a diferença, esta é uma diferença que merece ser paga.

Editorial da edição nº 63 (Julho 2022)

Editorial: A cor do vinho

Luís Lopes

Parecendo não lhe dar grande importância, a verdade é que o consumidor (e, por arrasto, o mercado) continua a olhar para a cor de um vinho (seja branco, rosé ou tinto) como um factor importante na avaliação da qualidade geral do produto. Mas será que é mesmo assim? Existem cores (ou intensidades de cor) certas […]

Parecendo não lhe dar grande importância, a verdade é que o consumidor (e, por arrasto, o mercado) continua a olhar para a cor de um vinho (seja branco, rosé ou tinto) como um factor importante na avaliação da qualidade geral do produto. Mas será que é mesmo assim? Existem cores (ou intensidades de cor) certas ou erradas?

Editorial da edição nº 62 (Junho 2022)

A cor, enquanto atributo qualitativo na avaliação de um vinho, não é uma coisa recente. Na cultura do vinho do Porto, por exemplo, a intensidade de cor foi, durante séculos, o primeiro indicador qualitativo na apreciação de um vinho, só depois vindo o aroma e sabor. Ainda hoje, muitos provadores ao olharem para um Porto Vintage condicionam desde logo a sua avaliação pela intensidade da cor. Tão importante era (ou é) este factor que se tornaram famosos os “concentrados” de baga de sabugueiro que alguns lavradores durienses tradicionalmente juntavam aos seus vinhos para lhes aumentar a cor e, consequentemente, o seu valor junto dos compradores de Gaia.

Mas a obsessão pela intensidade corante não se resumia ao negócio do Porto. Nos anos 60 e 70 do século XX, sobretudo, também os vinhos de mesa transacionados a granel por todo o país eram frequentemente “tintados” para aumentar o seu valor. Nem sempre foi assim, porém. No final do século XIX e durante a primeira metade do século seguinte, a forte influência da cultura francesa junto das elites nacionais, levou a que muitos agentes com responsabilidades no sector do vinho privilegiassem a delicadeza em detrimento da potência, colocando no lugar mais elevado do podium vinhos com pouca cor natural, como os tintos de Colares, do Dão ou de Lafões, os palhetes (mistura de uvas brancas e tintas) ou os sofisticados claretes, estes últimos o mais próximo que havia dos famosos tintos abertos que Bordéus sempre fez até ao advento da “parkerização” dos anos 80 e 90.

Demos um salto na história até aos dias de hoje. E o que encontramos? No que aos tintos respeita, podemos assumir que a importância conferida à cor varia em função do segmento de preço em que o vinho se insere. Os vinhos mais simples e baratos são oriundos de produções vitícolas com elevados rendimentos por hectare e, portanto, necessariamente menos concentrados e com menos cor. Mas o consumidor que paga €3 ou €4 por uma garrafa valoriza bastante a cor, que associa de imediato a vinhos mais ambiciosos. Portanto, um vinho de cor intensa nesse segmento de preço tem sucesso garantido, sobretudo se tiver também macieza e doçura, claro.

A cor continua a ser muito importante nos segmentos superiores, de €10, €20, €30 ou acima, mesmo que muitos consumidores não o admitam. Cor é concentração, concentração é qualidade, acredita-se. Porém, à medida que a escala de preço sobe, a importância da cor atenua-se. E começam a aparecer tendências vitícolas e enológicas que, embora orientadas para mercados de nicho ou super nicho, mostram desenvolvimento crescente e sustentado. Uma delas assenta na colheita mais precoce, fugindo assim das sobrematurações. Outra, actualmente com bastantes seguidores junto dos produtores de topo, aposta na menor e mais suave extracção das componentes corantes e fenólicas das uvas, fazendo, por exemplo, menos remontagens nas cubas (em alguns casos mais extremados, abandonando-as por completo) e macerações menos prolongadas.

Outra ainda, cada vez mais notória, passa pela reabilitação de castas antigas e abandonadas por, entre outros motivos, terem “falta de cor”. É o caso de variedades como, por exemplo, Bastardo, Rufete, Alvarelhão, Tinta Carvalha, Tinta Francisca, Moreto e até, em certa medida e dependendo da origem, Jaen e Castelão. Junte-se a isto a recuperação de métodos de vinificação ancestrais (como a talha de barro) e percebe-se que a intensidade de cor, nos vinhos tintos, não é hoje motivo de preocupação junto de enólogos/produtores, em particular nas gamas mais altas da pirâmide de marcas.

Já no que aos brancos respeita, a conversa é outra. Seja qual for o segmento de preço, os brancos com mais cor do que o “socialmente aceitável” estão votados ao ostracismo. Isso significa que o vinho branco de cor mais intensa, a rondar o limão maduro, é imediatamente percepcionado pelo consumidor como estando demasiado evoluído, cansado, oxidado, fora de prazo. É uma preocupação adicional para os enólogos, sobretudo os que trabalham em regiões mais quentes ou com castas brancas que, naturalmente, retiram mais cor da película na prensagem. Muitos são obrigados, apenas por causa da cor “incorrecta”, a utilizar produtos enológicos descorantes, aí sim, com efeitos colaterais negativos na estrutura do vinho.

Mas também nos vinhos brancos há, felizmente, lugar aos super-nichos. É o caso dos brancos de curtimenta, fermentados total ou parcialmente com as películas e que acabam por ficar com a tal cor de limão maduro. E estes vinhos podem mesmo ser objecto de uma abordagem mais extremada através de oxidação controlada para produzir os conhecidos “orange wines”, bem alaranjados. Portanto, enquanto o mundo dos tintos aceita, progressivamente, diferentes gradações de cor, o mundo dos brancos é altamente polarizado: a quase totalidade dos consumidores quer vinhos com muito pouca cor e uma minúscula aldeia de irredutíveis rebeldes paga o que for preciso por um vinho laranja.

Ainda mais estranho, inexplicável mesmo à luz de tudo o que é racional, é o que se passa com os rosés. Há 10 ou 15 anos, havia dois tipos de rosés: os rosés de bica aberta, com muito pouco contacto pelicular, e de cor mais aberta, em diferentes gradações de rosa; e os rosés obtidos a partir de sangria de cubas de tintos, com cores de cereja, quase a rondar o palhete.

A dada altura, a “onda Provence” foi subindo de sul para norte, a partir do Algarve, com a pressão dos turistas estrangeiros, primeiro, e dos consumidores nacionais, depois, a exigir a cor que caracteriza os vinhos rosados daquela região francesa. Primeiro, foram apenas os rosés de topo, mais caros e ambiciosos, a adoptar a cor Provence, bem mais exigente em termos de colheita e prensagem das uvas. Mas rapidamente quase todos os outros produtores, mesmo para os rosés mais simples e baratos, foram obrigados a seguir o modelo. Frequentemente, é preciso descorar o vinho para afinar a cor. E, por vezes, o zelo é tanto que o vinho se confunde com água. Também aqui, porém, existem excepções. A mais notável é, sem sombra de dúvida, a do icónico Mateus. O rosé mais famoso do mundo não vai em ondas e mantém a cor, hoje “fora de moda”, que sempre o caracterizou. E, ao que parece, o mercado não queixa, com as vendas a continuarem em alta. Também, aqui e ali, começam a aparecer produtores a fazer rosés caros e corados. Talvez tenham chegado à conclusão de que, se a cor Provence deixou de ser distintiva, uma vez que todos a seguem, então mais vale destacar-se pela diferença voltando às cores de antigamente.

A grande, incontornável verdade, é que cor nada tem a ver com qualidade. Está tão dependente da origem do vinho, das variedades de uva, dos métodos de produção, do perfil do enólogo ou produtor, que procurar uma relação entre a cor e a excelência de um vinho é tarefa fútil e insensata. A cor pode dar-nos sinais, isso sim, sugerir-nos maior ou menor concentração, maior ou menor evolução, climas mais quentes ou mais frios, castas mais ou menos coradas. Mas um tinto de Rufete não é inferior a um outro de Alicante Bouschet apenas por ter menos cor.

O vinho tem tantas cores quanto aromas e sabores. E desde que nos dê prazer a beber, não existem cores certas e cores erradas.

Editorial: Uma oportunidade para os rosés

Luís Lopes

LUÍS LOPES “Give peace a chance”, a famosa frase/canção de John Lennon é hoje, infelizmente, mais actual do que nunca. Mas permitam-me que a tome emprestada para evidenciar um tema muito menos sério: os vinhos rosados. Vinhos que, incensados em público, desvalorizados em privado, também precisam de uma oportunidade. Editorial da edição nº61 (Maio 2022) […]

LUÍS LOPES

“Give peace a chance”, a famosa frase/canção de John Lennon é hoje, infelizmente, mais actual do que nunca. Mas permitam-me que a tome emprestada para evidenciar um tema muito menos sério: os vinhos rosados. Vinhos que, incensados em público, desvalorizados em privado, também precisam de uma oportunidade.

Editorial da edição nº61 (Maio 2022)

O tema de capa desta edição da Grandes Escolhas é o vinho rosé. No caso, através de um trabalho de Nuno de Oliveira Garcia (NOG) que procura, com a apresentação e prova de 46 rosados, mostrar que esta categoria de vinhos pode, e deve, ser encarada pelo consumidor mais exigente com o mesmo respeito com que encara brancos e tintos. O que, convenhamos, não é tarefa fácil. Para tal, NOG propõe-se, através de bem fundamentada argumentação (ou não fosse o autor, na sua vida profissional, um dos mais ilustres advogados fiscalistas da nossa praça) desmontar os quatro “dogmas” ou, diria eu, preconceitos, que limitam a ascensão dos rosés ao mais elevado grau de respeitabilidade vínica: são feitos com menos cuidados; têm origem em uvas ou castas menos nobres; evoluem mal e mostram menor qualidade absoluta; são, sobretudo, vinhos baratos e bons para beber no Verão.

A argumentação e prova dão inteira razão ao NOG: produzimos neste momento em Portugal, numa grande diversidade de regiões, um conjunto de vinhos rosados capazes de ombrear com o que de melhor fazemos em brancos e tintos. Os rosés de superior ambição não existem em grande número, é certo, mas acredito que, ano após ano, serão cada vez mais.

A desvalorização do rosé não é, longe disso, um problema exclusivo do mercado português. Nunca mais me esqueço das palavras que ouvi, há quase duas décadas, de um famoso jornalista nórdico: “não há nada que um rosé faça que um branco ou um tinto não possam fazer melhor.” Confesso que, enquanto fervoroso consumidor de rosés, a frase me chocou de início. Mas depois, e ao longo de vários anos, dei-lhe razão. Dissecando o meu consumo de rosés, percebi que os encarava como um vinho de momentos. Bom para um aperitivo; bom para um salmão, uns enchidos, umas sardinhas; bom para relaxar numa tarde de Verão; bom para isto ou aquilo, bebido com frequência, mas nunca encarado como verdadeiramente “grande”. Que diabo, se os rosés fossem assim tão bons, porque é não representavam nem 2% da minha garrafeira?

O que é que mudou desde então, para hoje olhar para os rosés com outros olhos? Na verdade, quase tudo, a começar pelos vinhos em si. Primeiro, a qualidade média subiu muitíssimo, em todos os segmentos de preço. Depois, no patamar mais elevado do mercado, em preço e ambição, surgiram em Portugal rosés de grande categoria. Finalmente, diversos produtores começaram, eles próprios, a valorizar o que produziam, posicionando o seu rosé de topo, pelo menos, ao nível do seu branco de topo (os tintos continuam, regra geral, no cimo da pirâmide de marcas).

Na verdade, os rosés nacionais valem tudo isso. Por vezes, até valem mais do que isso. Sobretudo quando comparados com os sobrevalorizados Provence que, acreditem, na sua grande maioria, estão muito abaixo dos seus congéneres portugueses que custam menos de metade do preço.

O que falta, em resumo, para que o mercado, como um todo, valorize os rosés nas lojas, nos restaurantes, em nossas casas? Provavelmente, apenas tempo. Tempo para os rosés fazerem o seu percurso natural no comércio; tempo para os produtores testarem castas e clones na vinha e diferentes técnicas na adega; e, talvez mais importante do que tudo, tempo de estágio em casa dos apreciadores. Somente ultrapassando a prova do tempo, um vinho, branco, rosé ou tinto, pode denominar-se grande.

Vamos então dar uma oportunidade aos rosés? Não porque o Verão esteja a bater à porta. Apenas porque são muito bons.

Nicolau de Almeida: Do Douro até Gaia

Nicolau Almeida

Os últimos anos têm sido de grandes mudanças na casa Nicolau de Almeida e no projecto da Quinta do Monte Xisto. A história familiar no negócio do Vinho do Porto impulsionou uma espécie de regresso às origens, traduzida não apenas no lançamento dos seus primeiros fortificados como também na instalação de um armazém em Vila […]

Os últimos anos têm sido de grandes mudanças na casa Nicolau de Almeida e no projecto da Quinta do Monte Xisto. A história familiar no negócio do Vinho do Porto impulsionou uma espécie de regresso às origens, traduzida não apenas no lançamento dos seus primeiros fortificados como também na instalação de um armazém em Vila Nova de Gaia para o estágio dos vinhos. Pelo meio, a linha de tintos da Quinta do Monte Xisto cresceu…

 Texto: Luís Lopes

Fotos: DR

O casamento, em 1976, de João Rosas Nicolau de Almeida e Graça Eça de Queiroz Cabral, significou igualmente a união de duas famílias com uma rica história vitivinícola, ligada ao Douro e ao vinho do Porto. Em 1870, António Nicolau de Almeida Júnior, bisavô de João, tinha já a sua própria empresa de exportação de vinho do Porto, firma que no início dos anos 60 seria absorvida pela Real Companhia Velha. Fernando Nicolau de Almeida, seu pai, tornou-se famoso na Casa Ferreirinha enquanto enólogo e criador do icónico Barca Velha. Pelo lado materno, o seu tio-trisavô Adriano Ramos Pinto foi o fundador, em 1880, da casa com o seu nome e que ainda hoje perdura, englobada no grupo Roederer. A mesma Ramos Pinto onde João Nicolau de Almeida trabalhou várias décadas enquanto enólogo e administrador. As raízes de vinha e vinho de Graça Queiroz Cabral, não são menos impactantes. Seu bisavô paterno, Afonso Pereira Cabral, era proprietário da Quinta do Paço de Monsul e da Quinta do Cachão. Do lado materno, e através do seu tetravô José Maria Rebello Valente, a família foi durante quase 100 anos proprietária da Quinta do Noval. Dos três filhos de João e Graça, dois (Mateus e João), são enólogos; e Mafalda, ligada às artes e à cultura, é um dos motores e responsável pela comunicação da empresa familiar João Nicolau de Almeida & Filhos, criada para desenvolver o projecto da Quinta do Monte Xisto.

Nicolau AlmeidaUMA PROPRIEDADE SINGULAR

Apaixonado pelo Douro onde, inserido na casa Ramos Pinto, realizou notável trabalho de investigação e desenvolvimento vitícola e enológico, deixando legado técnico e científico que lhe valeu o unânime reconhecimento dos seus pares enólogos e produtores e também de apreciadores de todo o mundo, João Nicolau de Almeida começou no início dos anos 90 a sonhar com uma quinta e um vinho a que pudesse chamar seus. O local, um pequeno monte no concelho de Vila Nova de Foz Côa, no Douro Superior, foi identificado em 1993. Mas daí até que as diversas parcelas de terreno (num total de 55 hectares) com diferentes proprietários, chegassem às suas mãos, passou mais de uma década. O que cativou João de imediato foi a “anormalidade” geológica da zona, que proporciona ali características diferenciadoras às quintas de beira rio, sobretudo em termos de exposição solar das vinhas. Na quase totalidade do seu percurso, o rio Douro corre de este para oeste, portanto os terrenos ou estão expostos a sul ou a norte. Acontece que em Foz Côa existe uma falha tectónica, a Falha da Vilariça, que provocou um conjunto de curvas, fazendo com que o rio aqui corra de sul para norte. Como resultado, a propriedade do Monte Xisto, tem todo o tipo de exposição solar. A vinha, cuja plantação se iniciou em 2005, reflecte isso mesmo, com as castas ordenadas segundo a inclinação do terreno, a altitude e as horas de sol que cada parcela recebe.

Os vinhedos estão plantados “ao alto”, em solos de xisto, com parcelas separadas por casta e algumas com as variedades misturadas. São 10 hectares de vinha, que se estendem desde os 220 aos 320 metros de altitude, e incluem as tintas Touriga Nacional, Touriga Francesa, Tinto Cão, Tinta da Barca, Tinta Francisca, Sousão e Tinta Roriz; e as brancas Rabigato, Viosinho, Arinto e Códega.

O modelo de viticultura biológica (com alguns princípios biodinâmicos) está implementado de raiz na Quinta do Monte Xisto. Inicialmente céptico, o pai João acabou por ser convencido pelos filhos Mateus e João e hoje está imensamente satisfeito com os resultados. Tal como a família Nicolau de Almeida faz questão de salientar, este modelo de agricultura “vai muito além das restrições ou inibições de produtos químicos: trata-se, acima de tudo, de preservar e fomentar a biodiversidade trabalhando um mosaico cultural”. Nesse sentido, Monte Xisto junta à vinha uma extensa área de mata (zimbros, carrascos e cornalheiras, sobretudo), um olival de onde se faz azeite, amendoeiras, e um pequeno pomar de laranjeiras.

Certas práticas da biodinâmica são aqui aplicadas, nomeadamente as infusões de diversas plantas que são pulverizadas na vinha com o intuito de prevenir doenças e proteger as videiras contra o calor, ou ainda, ser incorporadas no solo, funcionando como adubo. A vontade de experimentar e investigar esteve sempre presente na família Nicolau de Almeida. O mais recente projecto, inserido num consórcio sob a liderança da Deifil Technology, e onde participam igualmente a Sogrape, o Instituto Politécnico de Bragança e a ADVID (Associação para o Desenvolvimento da Viticultura Duriense), visa desenvolver uma solução fungicida de origem natural para o combate de míldio, oídio e podridão cinzenta.

Nicolau Almeida
A quinta é trabalhada em modo orgânico com alguns princípios biodinâmicos.

O RETORNO A GAIA

O movimento de Vila Nova de Gaia para o Douro, por parte dos produtores tradicionais de vinho do Porto, estendendo a sua operação e investimentos para as quintas durienses, ocorre desde há muitas décadas. O que é absolutamente invulgar, ou até, de certo modo, inédito, é o movimento no sentido contrário. Ou seja, uma empresa que começa pela produção e comercialização a partir do Douro, estender-se para Gaia para aí centralizar o estágio, afinamento, engarrafamento e expedição dos seus vinhos. Mas foi precisamente isso que a João Nicolau de Almeida e Filhos fez, ao instalar-se na Rua Rei Ramiro, uma das mais clássicas e históricas artérias da “Gaia do Vinho do Porto”.

O propósito não foi apenas de ganhar maior eficácia logística com a proximidade dos circuitos de transporte e comercialização. Seguindo a lógica que sempre norteou as antigas casas de vinho do Porto, também a família Nicolau de Almeida confia no clima ameno da cidade, onde a influência atlântica proporciona aos vinhos perfeitas condições de temperatura e humidade para estágio prolongado, sem necessitar de climatização artificial. Assim, após a fermentação no Douro, os vinhos da Quinta do Monte Xisto vão de imediato o armazém de Gaia, onde estagiam em barricas de diversas capacidades, cubas de cimento e toneis de madeira. Parte dos 2018, todos os 2019 e colheitas seguintes já fizeram este percurso para Vila Nova de Gaia. “Em Gaia sempre se ‘fez’ vinho”, diz a propósito João Nicolau de Almeida, “é preciso recuperar e manter essa identidade, não podemos deixar que se transforme num enorme centro comercial”.

O primeiro Quinta do Monte Xisto nasceu na vindima de 2011 e ao longo de quase uma década manteve-se uma só referência, a perpetuar o nome da família com o símbolo da estrela que identificava a antiga casa Nicolau de Almeida no século XIX. Mas a linha de produtos tem estado a ser preparada para crescer e, da colheita de 2018, surgiu o primeiro Quinta do Monte Xisto Oriente. Agora, a gama ampliou-se significativamente, com o aparecimento de mais um tinto e, como não poderia deixar de ser, dado o histórico familiar, dois vinhos do Porto.

Nicolau AlmeidaMUITAS NOVIDADES

No mercado estão assim, neste momento três tintos, já da colheita de 2019. O primogénito, Quinta do Monte Xisto, é feito, como habitualmente, a partir das variedades Touriga Nacional e Touriga Francesa, com um toque de Sousão para “temperar”. Vinificado em lagar, com pisa a pé e leveduras indígenas, veio depois para Gaia estagiar em pipas de 600 litros e tonéis “foudres” de 2000 litros. Originou cerca de 7000 garrafas. A segunda edição do Quinta do Monte Xisto Oriente segue o conceito da inicial. Tem assim origem em duas pequenas parcelas viradas a leste (oriente, portanto), uma plantada com Tinto Cão e outra com Tinta Francisca. Fermenta em cuba de cimento e estagia depois em pipas de 600 litros, enchendo pouco mais de 1000 garrafas. Pelo perfil das castas e exposição solar da vinha, é sempre um tinto mais centrado na elegância e frescura do que na potência. Na vindima de 2019 estreou-se a nova referência em tintos, o Monte Xisto Órbita. Trata-se de um blend de várias castas, oriundas das parcelas que orbitam (daí o nome) em torno das videiras que dão origem ao vinho bandeira, o Quinta do Monte Xisto. Assim, tendo embora uma base muito importante (70%) de Touriga Nacional, inclui ainda 30% de uvas vindas de uma parcela, plantada em 2003, com várias castas misturadas. Propõe-se ser um vinho menos concentrado e com menos estágio em barrica do que o seu irmão mais velho. Fermenta em cuba de cimento e depois, já em Gaia, faz estágio em cimento e em pipas de 600 litros. A produção ronda as 6.000 garrafas.

Novidades são igualmente os dois Porto, comercializados sob a histórica marca Nicolau de Almeida. A abrir, um Porto branco leve seco. Baseado em Rabigato (70%), com Arinto, Viosinho e Códega, é pisado em cuba de cimento aberta, onde inicia a fermentação com a película ao longo de 3 dias. Depois de fortificado com aguardente, vai fazer o resto do estágio em cimento. O vinho agora colocado no mercado resulta de um lote de quatro colheitas, tem apenas 16,5% de álcool e 24 g/l de açúcar (leve e seco, não esquecer). Encheram-se 4000 garrafas de 500ml. Finalmente, e obviamente, um Vintage, também de 2019. São apenas 1200 garrafas de um vinho elaborado a partir de um blend semelhante ao Quinta do Monte Xisto original, ou seja, Touriga Nacional e Touriga Francesa com algum Sousão, de parcelas com exposição norte e sul. Pisado e fermentado em lagar tradicional e depois estagiado em cimento (algo pouco comum nesta categoria), reflecte inteiramente a matriz do Douro Superior bem como a pureza e frescura frutada dos vinhos da propriedade.

Em muito pouco tempo, portanto, a família Nicolau de Almeida operou uma quase revolução estratégica no seu modelo de negócio: por um lado, alargou consideravelmente o portefólio de referências; por outro, estendeu a produção até Vila Nova de Gaia, aproveitando assim por inteiro a dimensão histórica e geográfica da denominação de origem. Justifica-se assim que termine esta prosa repetindo o que escrevi em 2013, quando da estreia do Quinta do Monte Xisto e a propósito desta saga familiar: “É mais do que um vinho. É o destino.”

(Artigo publicado na edição de Fevereiro de 2022)

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Editorial: Tempestade perfeita (mesmo)

Luís Lopes

Sim, eu sei, é um clichê, uma expressão demasiado usada e abusada, em particular no “economês” e “politiquês”. Mas, sinceramente, não encontro nenhuma outra que traduza de forma tão expressiva a rara combinação de circunstâncias negativas com que se debatem as empresas do sector do vinho. Editorial da edição nº60 (Abril 2022) Após ter mostrado […]

Sim, eu sei, é um clichê, uma expressão demasiado usada e abusada, em particular no “economês” e “politiquês”. Mas, sinceramente, não encontro nenhuma outra que traduza de forma tão expressiva a rara combinação de circunstâncias negativas com que se debatem as empresas do sector do vinho.

Editorial da edição nº60 (Abril 2022)

Após ter mostrado notável resiliência à pandemia em 2020, e ainda mais extraordinária recuperação em 2021, o sector da vinha e do vinho em Portugal depara-se, hoje, com factores estruturais e conjunturais que, associados, constituem um enorme desafio às suas capacidades. Porque abordo este assunto numa revista orientada, sobretudo, para os consumidores? Pela simples razão de que, ao contrário das ameaças óbvias do covid-19 ao negócio do vinho (encerramento de pontos de venda, enoturismos, lojas e restaurantes), os efeitos que esta “coligação negativa” está a ter nos produtores passam despercebidos aos apreciadores. A “tempestade” resulta de um conjunto de circunstâncias, das quais destaco três: aumento astronómico dos custos de produção, escassez de mão-de-obra e, claro, Rússia.

No que a alguns custos diz respeito, o consumidor está avisado, pois também os sofre na pele. Sabe que gás, electricidade e combustíveis aumentaram e já percebeu que vai pagar mais caro a carne, o leite, os legumes. Mas desconhece, por exemplo, que os produtos para a vinha (de adubos a fungicidas) aumentaram mais de 200% num ano. Não imagina que caixas de papel e madeira, rótulos, cápsulas, garrafas, rolhas, aumentaram em média, no mesmo período, 30 a 45%. Ou que os fretes de exportação inflacionaram entre 300 a 400%. Além da energia, claro. Dizia-me outro dia o enólogo de uma empresa que produz a sua própria aguardente que, há um ano, por 24 horas de destilação pagava €1500 de gás; agora paga €2200. Tudo o que é necessário para que uma garrafa de vinho chegue ao consumidor não está apenas muito mais caro: também não está disponível. Há muitos produtores a atrasarem engarrafamentos por não haver garrafas; e diversos outros têm exportações firmadas, mas não sabem quando haverá contentores.

O que vai sentir quem compra uma garrafa no supermercado? A curto e médio prazo, provavelmente, nada. O vinho no supermercado está demasiado barato e assim irá continuar. Enquanto houver um produtor desesperado disposto a substituir outro, mesmo vendendo abaixo do preço de custo, continuará a haver vinho bom e barato nas prateleiras. Mas é importante que o consumidor saiba o que está por trás dos €2,19 que paga por uma garrafa. Quanto aos vinhos mais ambiciosos, será talvez menos difícil reflectir parte do aumento de custos no preço final. Mas estes vinhos representam uma pequena fatia do mercado.

Depois, a escassez de mão-de-obra. É um problema transversal a todos os sectores de actividade, como sabemos. Mas é ainda mais grave no sector agrícola, em geral, e no vitivinícola, em particular. Boa parte das vinhas portuguesas não são inteiramente mecanizáveis, desde a poda até à colheita. E, para alguns vinhos de topo, essa mecanização nem é desejável. Mas onde estão as pessoas disponíveis para trabalhar? Neste momento, os podadores são tão raros que se vão buscar equipas a centenas de quilómetros de distância. Se a colheita de 2022 for abundante ou a vindima longa e com interrupções, haverá uvas que ficam nas videiras por não haver quem as apanhe ou não compensar apanhá-las. Ou vão ser colhidas demasiado tarde, com reflexo na qualidade dos vinhos.

Finalmente, a insanidade da guerra. A exportação para a Rússia estava a crescer e, para muitos produtores, o país era o segundo ou terceiro mercado. Agora, acabou, e a escassez e custo dos fretes dificultam o desvio das atenções para novos mercados.

O sector do vinho já provou ser um “navio” com elevada resistência ao mar tempestuoso. Agora, de novo, vai ter de mostrar tudo o que vale.

Melhores do Ano: celebrar 2021

Luís Lopes

Luís Lopes Como habitualmente, esta edição de Março é dedicada aos Prémios Grandes Escolhas. Aqui distinguimos os vinhos, as pessoas, as empresas e organizações, os projectos que em 2021 mais se evidenciaram junto dos profissionais e dos apreciadores. E sobre o ano que passou existem muitos e bons motivos para celebrar. Editorial da edição nº59 […]

Luís Lopes

Como habitualmente, esta edição de Março é dedicada aos Prémios Grandes Escolhas. Aqui distinguimos os vinhos, as pessoas, as empresas e organizações, os projectos que em 2021 mais se evidenciaram junto dos profissionais e dos apreciadores. E sobre o ano que passou existem muitos e bons motivos para celebrar.

Editorial da edição nº59 (Março 2022)

Na Grandes Escolhas acompanhamos de muito perto o sector do vinho e os que indirectamente lhe estão ligados, como o comércio especializado ou a restauração, por exemplo. Experimentamos por isso quer as dificuldades, quer os momentos de superação de empresas e pessoas que, apaixonadamente, fazem deste mundo vínico o seu modo de vida. E seguimos e estudamos com afinco a dinâmica dos mercados e os padrões dos consumidores, pois produção, comércio e consumo fazem todos parte da mesma fileira, a fileira do vinho.

Nesse sentido, estamos convencidos de que 2021 foi, para todos em geral, um ano cheio de significado, pela positiva. Contrariando as incertezas e fantasmas alimentados pela pandemia, o sector do vinho mostrou extraordinária resiliência e dinamismo, superando as adversidades e voltando à senda de crescimento sustentado que caracterizou o primeiro trimestre de 2020, até o vírus nos cair em cima. O vírus aí continua, é certo, mas agora sabemos viver com ele e, sobretudo, sabemos viver apesar dele, não comprometendo a nossa forma de estar, a nossa felicidade, o nosso futuro.

Vamos, pois, celebrar 2021 através dos prémios Grandes Escolhas. Celebrar, desde logo, os vinhos. E de entre os muitos que premiámos, permitam-me que destaque aqui os grandes vencedores em cada categoria: o espumante Vértice Pinot Noir 2011, o branco Vinha dos Utras 2019, o tinto Quinta da Manoella VV 2018, o rosé Kopke Winemaker’s Collection Tinto Cão 2020, o fortificado Ramos Pinto RP30 Tawny 30 anos, todos eles merecedores dos maiores encómios.

Celebremos igualmente a estóica resistência à adversidade e a fantástica recuperação dos restaurantes em 2021. Com perfis e conceitos bem distintos, premiámos o trabalho de três casas de bem comer e bem servir: Come Prima, Cisco e Essencial. E, a propósito de serviço, talvez a mais valiosa função do sommelier, é de enaltecer a enorme categoria de Marc Pinto.

Há casas onde o vinho se sente em casa. Ou de onde o podemos levar para nossa casa. A Garrafeira Nacional, em constante adaptação e modernização, é uma referência incontornável, como também o é a loja gourmet Tradicional. O wine bar Capela Incomum marca pelo espaço e pelo que lá está dentro. E que dizer do acolhimento familiar num Alentejo genuíno que experienciamos no enoturismo da Herdade do Sobroso?

Ao nível do desempenho de empresas e produtores, apreciámos a transformação da “nova” Sovibor, a consistência da Adega de Penalva e o sólido crescimento da Costa Boal. Apostando numa filosofia muito própria, a Reynolds Wine Growers destacou-se pela singularidade associada à qualidade. A revolucionária Azores Wine Company mexeu com toda uma região, a Wine & Soul provou que, mesmo no conservador vinho do Porto, “small” pode ser “beautiful”. E a viticultura sustentável da Herdade de Coelheiros é um exemplo a seguir. Em tempo de celebração, celebremos também a solidariedade e a partilha, através da associação Bagos d’Ouro.

Finalmente, mas não por último, as pessoas que, pelo seu talento, conhecimento e obra, se destacaram. No que a enologia respeita, vibrámos com os vinhos feitos por Sandra Tavares da Silva, no Douro e Lisboa, e por Pedro Sá, em Carcavelos. O chef Diogo Rocha oficia de forma inigualável nos fogões mas também na divulgação da gastronomia portuguesa: o prémio que leva o nome do grande jornalista David Lopes Ramos, está muito bem entregue.

Termino com o galardão mais ambicionado. Poucas pessoas terão, como Jorge Dias, contribuído em tantas e tão distintas áreas para o desenvolvimento e reconhecimento do Douro e do Vinho do Porto. É, sem sobra de dúvida, um grande Senhor do Vinho.