Editorial Julho: Ouro dos Tolos

Editorial

Editorial da edição nrº 87 (Julho 2024)   Existe a ideia generalizada de que um produtor de grande dimensão não consegue atingir o patamar máximo da excelência. Casas como a Penfolds, na Austrália, ou a Sogrape, em Portugal, para mencionar apenas estes, contrariam esse dogma.   Desde os primórdios da humanidade que os bens mais […]

Editorial da edição nrº 87 (Julho 2024)

 

Existe a ideia generalizada de que um produtor de grande dimensão não consegue atingir o patamar máximo da excelência. Casas como a Penfolds, na Austrália, ou a Sogrape, em Portugal, para mencionar apenas estes, contrariam esse dogma.

 

Desde os primórdios da humanidade que os bens mais raros, difíceis de encontrar ou conseguir, são os mais valorizados. No fundo, faz parte da natureza humana tudo fazer para possuir o que os outros não têm. Veja-se o ouro, por exemplo, matéria-valor por excelência. Enquanto metal, tem muito pouca utilidade prática. E, no entanto, travaram-se guerras por ele (ainda hoje se travam guerras por petróleo, um bem, apesar de tudo, mais disponível e muito mais útil…)

O mesmo princípio se aplica a todos os bens de consumo, das roupas aos automóveis, passando pela comida e, claro, pelo vinho. No que respeita a este último, existe, até certo ponto, uma relação directa entre a qualidade e a quantidade disponibilizada. A razão é simples: nem todos os territórios (regiões) têm o mesmo potencial para alcançar excelência; mesmo nas melhores zonas das melhores regiões, nem todas as vinhas possuem a mesma aptidão qualitativa; e mesmo as melhores videiras, plantadas nos melhores locais, necessitam ter a sua produção limitada (natural ou artificialmente) para originar as melhores uvas. Os grandes vinhos não existem em grandes quantidades.

Ainda assim, podemos encontrar marcas de excelência mundial a produzir volumes apreciáveis em cada vindima. Alguns exemplos: Château Mouton Rotschild, 240 mil garrafas, sensivelmente a mesma quantidade do Lafite Rothschild; Château Latour, 200 mil; Château Margaux, 120 mil; Vega Sicilia Único, 100 mil; Sassicaia, 100 mil; Cheval Blanc, 72 mil. Tenha-se igualmente em conta que várias das melhores marcas do mundo podiam perfeitamente produzir mais garrafas com a mesma qualidade. Mas há um limite para o que o mercado pode absorver a um determinado preço num determinado momento. E é preciso gerir a escassez para que o preço não caia. O Porto Vintage é um bom exemplo: apesar de haver todas as condições qualitativas (vinha, adega e conhecimento) para se produzir bastante mais, a verdade é que a produção global é muito inferior à registada há 30 ou 40 anos.

Existe a ideia generalizada de que um produtor de grande dimensão, pela sua própria cultura empresarial, não consegue atingir o patamar máximo da excelência, ficando esse privilégio reservado aos pequenos produtores. Casas como a Penfolds, na Austrália, ou a Sogrape, em Portugal, para mencionar apenas estes, contrariam esse dogma. A Sogrape é mesmo um caso de estudo, já que produz, ao mesmo tempo, a referência mais vendida (Mateus) e a de maior notoriedade (Barca Velha).

Mas parece evidente que, em Portugal e no mundo, existe uma tendência para sobrevalorizar a raridade vínica. Os restaurantes mais exclusivos procuram oferecer aos seus clientes vinhos igualmente exclusivos, produzidos em pequeníssimas quantidades, por vezes algumas centenas de garrafas, associadas a uma boa estória que o sommelier transmite ao cliente.

Nada de errado nisto, um vinho vale aquilo que se está disposto a pagar por ele. Mas é importante que quem compra saiba, pelo menos, duas coisas. Primeiro, poucas garrafas produzidas não significam, necessariamente, qualidade acrescida. Segundo, pequeno produtor não implica maior atenção ao produto ou maior proximidade à origem – aliás, vários desses vinhos “exclusivos” foram comprados já feitos em grandes adegas e quem assina o rótulo nunca viu as vinhas onde nasceram.

Quando da corrida ao ouro em vários estados dos EUA, ao longo do século XIX, ficou famoso o “fool’s gold”, o ouro dos tolos. Basicamente, pirite de ferro que os garimpeiros menos experientes tomavam por ouro, acreditando ter ficado ricos. Muitos enlouqueciam quando descobriam a crua verdade: nem tudo o que luz é ouro.

 

Editorial Abril: Doce

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Editorial da edição nrº 84 (Abril 2024)  Dizem os especialistas do gosto que, dos distintos sabores primordiais, o doce é aquele que mais fácil e imediatamente cativa o ser humano. Há quem explique essa atracção (não propriamente fatal, se comedida) pelo facto de ser doce o primeiro sabor experimentado pelo recém-nascido ao beber o leite […]

Editorial da edição nrº 84 (Abril 2024)

 Dizem os especialistas do gosto que, dos distintos sabores primordiais, o doce é aquele que mais fácil e imediatamente cativa o ser humano. Há quem explique essa atracção (não propriamente fatal, se comedida) pelo facto de ser doce o primeiro sabor experimentado pelo recém-nascido ao beber o leite materno. Mesmo que a relação não esteja cientificamente comprovada é, pelo menos, uma boa desculpa para os mais gulosos.
Porém, no que aos vinhos doces respeita (o que em Portugal significa quase sempre licorosos), os ventos parecem não ir de feição. Em grande parte do mundo assiste-se a um certo afastamento dos consumidores relativamente aos vinhos doces, atingindo mesmo os não fortificados, Sauternes incluído. Até o vinho do Porto, que parecia imune à erosão de mercado sentida por muitos dos outros célebres congéneres (caso do Jerez, por exemplo), entrou numa lenta, mas inexorável, decadência de consumo, perdendo 20% em volume nas últimas duas décadas. Em 2023, de novo, caiu em quantidade e valor face ao ano anterior. No vinho Madeira essa tendência é menos evidente, mas existe: de 2022 para 2023, decresceu em quantidade, ainda que ganhando muito ligeiramente em valor. Paradoxalmente, é o mais doce (e, porventura, o mais subvalorizado) de todos os fortificados nacionais, o Moscatel de Setúbal, tema de capa desta edição da GE, que melhor se tem “aguentado”. Partindo embora de uma base muito mais pequena, nas últimas duas décadas quase duplicou o volume certificado. E as vendas mostram uma certa estabilidade, com crescimentos moderados. O que não deixa de espantar, se pensarmos que mais de 90% do negócio é feito em Portugal. E, mais interessante ainda, ao invés do que acontece com Porto e Madeira, o consumo em território nacional é feito sobretudo por portugueses, não por turistas estrangeiros. Já agora, comportamento muito semelhante tem o Moscatel do Douro, este com uma fatia um pouco maior de exportação. Significa isto que os portugueses são particularmente gulosos?
Dizia a minha avó (e aposto que muitas avós) que o que é doce nunca amargou. Eu nunca fui por aí. Prefiro os amargos, ácidos e salgados, um pastel de nata de quando em vez já é extravagância. Mas se o aforismo estiver certo, a verdade é que os grandes licorosos do mundo, de uma forma geral, não estão a ganhar muito com isso, antes pelo contrário. Resumindo, o que parece doce e é doce, está na mó de baixo. Mas, estranhamente, o que não parece doce e é doce, continua em alta e sem indícios de perder a boa onda. A esmagadora maioria dos vinhos tintos (portugueses, espanhóis, italianos, franceses, chilenos, argentinos, etc.) de preço moderado e médio, vendidos na Europa, Ásia e Américas, tem uma quantidade apreciável de MCR (mosto concentrado rectificado) adicionada. Ou seja, são, enfim, a modos que…docinhos.
Nada contra, é absolutamente legal e, quase diria, necessário, vai ao encontro do que o mundo pede, ou melhor, exige. E atenção, não são só os consumidores “de supermercado”, supostamente menos “conhecedores”, que os adoram. Muitíssimos destes vinhos são crónicos vencedores de concursos internacionais, onde são provados por sommeliers, enólogos, jornalistas, e ali batem concorrentes bem mais ambiciosos. Assim sendo, talvez o problema dos doces e licorosos não esteja, afinal, na doçura. A minha avó tinha outra na manga para estas ocasiões: “todo o burro come palha, é preciso saber dar-lha”.

Editorial Março: Os Melhores

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Editorial da edição nrº 83 (Março 2024) Quando se fala de vinhos, poucas coisas haverá mais discutíveis do que reduzir aromas e sabores a um número. Mais difícil ainda será partir de uma lista com idênticas classificações e escolher um vinho em detrimento de outro. Para sermos, tanto quanto possível nestas circunstâncias, justos, na Grandes […]

Editorial da edição nrº 83 (Março 2024)

Quando se fala de vinhos, poucas coisas haverá mais discutíveis do que reduzir aromas e sabores a um número. Mais difícil ainda será partir de uma lista com idênticas classificações e escolher um vinho em detrimento de outro. Para sermos, tanto quanto possível nestas circunstâncias, justos, na Grandes Escolhas procuramos que esta responsabilidade seja partilhada entre todos os provadores, através de uma eleição. Mas mesmo assim não é fácil. E no final, é mais do que certo, ninguém sai satisfeito. Nem os produtores que não viram os seus vinhos destacados como “os melhores” (seja lá o que isso for…); nem os provadores que não obtiveram “votos” suficientes nos vinhos que propuseram e defenderam.
Apenas duas coisas acalmam, de alguma forma, os naturais desapontamentos (pelo menos, os nossos). Primeiro, a noção de que fizemos tudo para sermos rigorosos, independentes, justos; segundo, a absoluta certeza de que, quer os 30 vinhos eleitos como “os melhores do ano”, quer os cinco apontados como vencedores em cada categoria, são indiscutivelmente grandíssimos vinhos. Adjectivo que se ajusta por inteiro aos nomes vencedores: o espumante Murganheira Assemblage Grande Reserva 2006, o branco Bacalhôa 1931 Vinhas Velhas Bical 2021, o rosé Quanta Terra Phenomena 2022, o tinto Quinta do Crasto Vinha Maria Teresa 2019 e o fortificado Dalva Tawny 50 anos.
Se destacar vinhos grandes entre os grandes tem sempre uma elevada subjectividade, esse grau multiplica-se quando se trata de avaliar pessoas, empresas, instituições.
A reunião anual da redacção para escolher “Os Melhores”, espaço onde cada um apresenta as suas propostas, depois submetidas a debate e votação, é sempre o momento mais tormentoso do ano. As discussões são épicas e duram horas. A coisa fica tão feia que, normalmente, organizamos o jantar de Natal da empresa nessa mesma noite, na esperança de que o espírito natalício e umas belas garrafas de vinho promovam as reconciliações. Normalmente, resulta.
O mais importante é que, quando na noite dos Melhores do Ano subimos ao palco para anunciar os nomes vencedores, cada um de nós assume essa escolha colectiva como sua e defende-a intransigentemente.
Mais uma vez, e como acontece com os vinhos, como seria possível de outra forma, face à qualidade dos premiados? Senão vejamos. No que à gastronomia respeita, este ano pontificam os restaurantes Pedro Lemos, Três Pipos e Soão, todos eles referência no seu estilo de cozinha, a loja gourmet Comida Independente, que com poucos anos de vida já deixou marca, e a historiadora e investigadora Isabel Drumond Braga, com importante obra feita na área. No retalho e serviço de vinhos, três nomes incontornáveis: o wine bar Mind The Glass, a garrafeira Imperial e o talentoso sommelier Filipe Wang. Wine in Moderation e Algarve Wine Tourism são outros conceitos/projectos em evidência. Quanto a produtores, destacamos as boas surpresas do Domínio do Açor e da Herdade da Cardeira, a singularidade de Baías e Enseadas, a consistência da Adega Cooperativa de Ponte de Lima, a ambição da Menin Wine Company, o pioneirismo da Barbeito e a excelência clássica da Fundação Eugénio de Almeida. Na vinha e na adega, há que “tirar o chapéu” a Álvaro Martinho Lopes, Manuel Henrique Silva e Francisco Antunes. E, por fim, grande aplauso para um autêntico Senhor do Vinho, António Soares Franco.
Foram as escolhas certas? Cada qual que decida. Foram as nossas escolhas e estamos muito satisfeitos com elas.

Editorial Janeiro: Fama

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Editorial da edição nrº 81 (Janeiro 2024) A chegada de amadores (no sentido daquele “que ama”) ao sector do vinho é relativamente recente, o fenómeno teve o seu “boom” já no século XXI. Gente financeiramente bem-sucedida noutras áreas de actividade, mas completamente desconhecida do grande público, viram nesta bebida uma forma de satisfazer um hobby […]

Editorial da edição nrº 81 (Janeiro 2024)

A chegada de amadores (no sentido daquele “que ama”) ao sector do vinho é relativamente recente, o fenómeno teve o seu “boom” já no século XXI. Gente financeiramente bem-sucedida noutras áreas de actividade, mas completamente desconhecida do grande público, viram nesta bebida uma forma de satisfazer um hobby e, ao mesmo tempo, alimentar o ego de forma saudável. Quem pode ser criticado por gostar de ver o seu nome (ou da sua empresa) no rótulo de uma garrafa? E, com sorte e trabalho, alcançar os ambicionados “15 minutos de fama”?
Mais difíceis de entender serão as razões que levam alguém que já tem dinheiro e espaço nos media a enveredar pelo mundo do vinho. Apesar de glamouroso, o vinho nunca poderá competir com a notoriedade que se alcança enquanto profissional do cinema, da música ou do desporto, por exemplo. Nunca ninguém rico e famoso vai ficar mais famoso por investir no vinho. E vai, quase de certeza, ficar menos rico.
Apesar disso, pessoas a quem pediríamos autógrafos na rua continuam a entrar neste universo vínico, bem mais pequeno e limitado do que aquele de onde vieram. Os exemplos são incontáveis e surgem, sobretudo, dos Estados Unidos da América (mas não só) com gente do cinema à cabeça. Francis Ford Coppola foi pioneiro com a sua marca, em 1979, (em Napa Valley, depois Sonoma, mais tarde Oregon) e o que mais longe chegou no ultrapassar dos naturais preconceitos dos “conhecedores”, tornando-se um produtor de vinho bastante respeitado enquanto tal. Muitos outros e outras o seguiram: George Lucas (Skywalker Vineyards – só podia… – em 1991) Drew Barrymore, Emilio Estevez, Sam Neil, Cameron Diaz, Brad Pitt, Angelina Jolie, Kurt Russell, Goldie Hawn, Antonio Banderas e, até o hoje tão discutido – pelas piores razões – Gérard Depardieu, são apenas alguns dos nomes da sétima arte que possuíram ou possuem adegas e vinhas, nos EUA, Espanha, França, Itália ou Nova Zelândia. Do mundo da música, Cliff Richards (que teve a Adega do Cantor no Algarve), será o exemplo mais próximo. Mas também Dave Matthews, Mary Blige, Brandi Carlile, Mick Fletwood, Kylie Minogue, Sting, Pink e Snoop Dogg fazem parte da lista. Lista essa que se estende ao desporto, com o basquetebolista Yao Ming, o piloto Mario Andretti, os golfistas Nick Faldo e Greg Norman e os futebolistas David Ginola, Ronaldo “Fenómeno” e Andrés Iniesta, entre vários.
Como já perceberam pela capa desta revista, abordo o tema por causa de Francisco Costa, o Costinha do futebol. Quando nos cruzámos pela primeira vez, há quase duas décadas, já Costinha era um apreciador de vinhos, gosto que ganhou no Mónaco, para onde foi jogar com 20 e poucos anos. Hoje, é um profundo conhecedor do que de melhor se faz em Portugal e no mundo. E também um pequeno produtor que participa activamente em todo o processo, na vinha e adega, e engarrafa um vinho de excelência.
Chegados a este ponto, talvez percebamos melhor o que é que o vinho tem, capaz de atrair ricos e famosos a este mundo tão particular. Não é certamente a razão que os move, antes o coração. A paixão, o prazer da descoberta, a exaltação dos sentidos, não coisas que se expliquem. O vinho tem tudo isso e Costinha sabe-o bem.

PS: A peça sobre o novo desafio de Costinha foi a última escrita nesta revista pela jornalista Mariana Lopes. Também ela troca de profissão, mas, felizmente, mantém-se ligada ao mundo vínico. O seu talento vai agora estar do “outro lado”, onde o vinho nasce. No seu lugar, a partir da edição de Fevereiro, coordenando a redacção da Grandes Escolhas, estará o experiente jornalista José Miguel Dentinho, com muitos anos de escrita nesta área. A ambos desejo muita sorte e sucesso.

Editorial Dezembro: Na caixa

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Editorial da edição nrº 80 (Dezembro 2023) Nunca gostei de ver pessoas ou conceitos arrumados por categorias. Tudo o que é complexo não pode, por natureza, ser confinado numa caixa hermética, imune a influências, nuances, estados de espírito. Poucas coisas são absolutamente brancas ou pretas, há uma infinidade de matizes que podem e devem ser […]

Editorial da edição nrº 80 (Dezembro 2023)

Nunca gostei de ver pessoas ou conceitos arrumados por categorias. Tudo o que é complexo não pode, por natureza, ser confinado numa caixa hermética, imune a influências, nuances, estados de espírito. Poucas coisas são absolutamente brancas ou pretas, há uma infinidade de matizes que podem e devem ser desvendados.
Vejamos o caso dos vinhos. Nos últimos anos, assiste-se a uma tendência, por parte de algumas franjas de mercado, para catalogar os vinhos consoante a forma como são elaborados ou até, no limite do disparate, consoante a “filosofia” que lhes está subjacente (como se uma forma de ser ou estar na vida tivessem um caderno de encargos, uma checklist a ser verificada ponto por ponto).
Cuba inox, lagar, cimento, barro, plástico, barrica nova, barrica usada, tonel, foudre, sulfuroso, flor de castanheiro, ácido tartárico, leveduras seleccionadas, clara de ovo, bentonite, etc. estão entre as muitas ferramentas que se encontram ao dispor do enólogo/produtor, algumas delas com milénios de utilização na transformação da matéria-prima (uva) em produto final (vinho). Maceração longa, maceração curta, maceração carbónica, fermentação com engaço, bica aberta, curtimenta, maloláctica, bâtonnage, remontagem, são algumas das muitas práticas utilizadas no intuito de realizar essa prodigiosa transformação. Do mesmo modo que produção integrada, orgânica, biodinâmica (quando devidamente certificados, atenção!) configuram distintos modelos de produção de uvas/vinhos, nenhum objectivamente melhor ou mais respeitável do que o outro.
Nada disto é absolutamente estanque, permitindo combinações infinitas. Posso ser orgânico, adicionar sulfuroso e usar uma rolha de microaglomerado de cortiça; posso ter vinha e adega em produção integrada e fermentar com engaço e leveduras indígenas; posso ser biodinâmico, fazer macerações muito longas e estagiar o vinho 36 meses em barrica 100% nova.
As únicas categorizações que, a meu ver, se justificam no vinho, são aquelas que implicam a conjugação de dois factores: primeiro, uma certificação absolutamente clara e inequívoca; segundo, um mercado onde essa certificação orienta uma intenção de compra. Por exemplo, seria absurdo chegar a uma loja e ver os vinhos divididos por “barrica nova” ou “barrica usada”. Mas faz todo o sentido haver uma prateleira (ou uma loja!) só para vinhos orgânicos. Do mesmo modo que haverá uma prateleira (ou uma loja) só para vinhos Alentejo. Já um espaço orientado e comunicado como exclusivo para “vinhos de baixa intervenção” seria apenas publicidade enganosa, uma vez que não há qualquer definição, fiscalização ou certificação do modelo/produto. É o mesmo que vender uma pulseira que transmite uma “boa onda”. Acredita quem quer e não vem daí mal ao mundo, somente à carteira dos incautos.
Aqueles que se intitulam “fora da caixa” (sem perceberem que assim se inserem, desde logo, numa caixa e num rótulo) são, frequentemente, os que mais se esforçam por colocar todos os outros vinhos e produtores em caixinhas muito bem fechadas, catalogadas e arrumadas num canto, de preferência escuro e longínquo. Como se o mundo do vinho se resumisse a “nós” e “outros”. Felizmente, para quem aprecia a extraordinária diversidade e complexidade que o Vinho encerra, este é bem mais, bem maior e bem melhor do que isso.

Editorial: Conta-me estórias

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Editorial da edição nrº 78 (Outubro 2023) Maria Pureza é biodinâmica. Cumpre os preceitos da Antroposofia de Rudolf Steiner, em harmonia com a Natureza e a biodiversidade. Os 6 hectares de vinha que possui são trabalhados manualmente, com preparados biodinâmicos à base de produtos naturais como algas, cobre, enxofre, tisanas de plantas diversas. Galinhas, patos, […]

Editorial da edição nrº 78 (Outubro 2023)

Maria Pureza é biodinâmica. Cumpre os preceitos da Antroposofia de Rudolf Steiner, em harmonia com a Natureza e a biodiversidade. Os 6 hectares de vinha que possui são trabalhados manualmente, com preparados biodinâmicos à base de produtos naturais como algas, cobre, enxofre, tisanas de plantas diversas. Galinhas, patos, ovelhas, ouriços, andam livremente pelo meio das cepas e são eles que ditam, comendo ou rejeitando as uvas, quando estas devem ser colhidas. Maria não possui certificação biodinâmica nem a procura: “O biodinamismo, a comunhão com o mundo natural, é algo que vem do nosso interior”, diz, “não se impõe do exterior”. O seu empenho no modelo tem-se revelado determinante no perfil e na comunicação dos vinhos que ostentam a sua marca, recolhendo o aplauso de críticos e consumidores de mais de 55 países, com 600 mil garrafas vendidas para todo o mundo.

António, um dos maiores produtores da sua região, faz vinhos num território muito especial, com um particular microclima, onde as influências atlânticas e continentais se misturam de forma equilibrada, em termos de amplitudes térmicas e humidade. São vinhos de vincado cariz regional, conjugando tradição e modernidade a partir de uvas cuidadosamente escolhidas das castas Syrah, Touriga Franca e Castelão. Naqueles solos arenosos e argilo calcários, as uvas amadurecem lentamente, ganhando açúcar sem perder indispensável acidez. Após a fermentação, o vinho tinto vai estagiar nas melhores barricas novas de carvalho francês, provenientes das mais reputadas tanoarias. Podemos encontrar o seu Monte da Floribela Reserva de Assinatura em supermercados seleccionados, ao preço médio de €3,10.

Jorge é um verdadeiro vigneron português, não produzindo mais do que 20 mil garrafas. Prefere não possuir vinha própria, trabalhando em estreita parceria com pequenos lavradores, ajudando-os a manter viva a sua actividade e as cepas de que tanto gostam. Grande parte destes vinhedos são bastante antigos e é a partir deles que, num espaço alugado em adega vizinha, Jorge elabora os seus vinhos. Entre eles destaca-se a linha Irreproduzível Vinhas Velhas, constituída por um tinto e um branco de field blend, o primeiro quase exclusivamente Touriga Nacional com um toque de Tinta Roriz, o segundo maioritariamente Encruzado, com Verdelho e Viognier. Das melhores barricas destes vinhos, com 95% de tinto e 5% de branco, à maneira de Cotes du Rhone, este vigneron elabora a sua marca de topo, o On Your Face Vinhas Muito Velhas, já presente nos melhores restaurantes portugueses de “fine dining”.

Na sua adega, Teresa faz 300 mil litros de vinho, entre brancos, rosés e tintos. Na vindima de 2019 resolveu elaborar um branco diferenciador, “vinho de sommelier”, como ela lhe chama, feito sem inoculação, unicamente a partir das leveduras autóctones. Para tal, no canto mais escuro da adega, Teresa conserva uma colónia de leveduras indígenas, uma espécie de “aldeia dos gauleses de Asterix cercada pelos romanos”, como ela a classifica com humor. Sendo a adega diariamente visitada por grupos de enoturistas, naquele local Teresa delimitou o pavimento com fitas fluorescentes, para ninguém pisar a sua “arca do tesouro”. Assim, em cada vindima, para fazer o vinho de leveduras indígenas, vai ao canto da adega com uma colher de chá e recolhe com cuidado o precioso fermento. A verdade é que estas leveduras imprimem ao seu Naturalix branco um carácter completamente distinto, com aromas e sabores de enorme pureza e sentido de terroir.

 

 

Editorial: A outra Bairrada

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Editorial da edição nrº 77 (Setembro 2023) Manuel F. Silva (Casa de Saima) 1981, Luis Pato Vinhas Velhas 1990, Quinta das Bágeiras Garrafeira 2001, Kompassus Reserva 2013. O que têm em comum estes quatro vinhos que, em conjunto, atravessam quatro décadas? Diversas coisas: são brancos, nasceram na Bairrada e mostram, à data de hoje, qualidade, […]

Editorial da edição nrº 77 (Setembro 2023)

Manuel F. Silva (Casa de Saima) 1981, Luis Pato Vinhas Velhas 1990, Quinta das Bágeiras Garrafeira 2001, Kompassus Reserva 2013. O que têm em comum estes quatro vinhos que, em conjunto, atravessam quatro décadas? Diversas coisas: são brancos, nasceram na Bairrada e mostram, à data de hoje, qualidade, complexidade, carácter e longevidade notáveis. Não menos significativo, pelo menos para mim, existem cá em casa algumas garrafas de cada um deles, abertas com parcimónia quando a ocasião e a companhia o justificam.
Aquele que pode, muito justamente, ser considerado o pai da Bairrada moderna, Luís Pato, sabe-a toda. Desde há muito que tem a opinião formada a este respeito e emite-a com frequência, originando reacções de surpresa ou escândalo, consoante as almas mais ou menos sensíveis: “A Bairrada é, acima de tudo, região de vinhos brancos. Tintos e espumantes apenas complementam a oferta”.

A prova de vinhos brancos da Bairrada publicada nesta edição da Grandes Escolhas parece dar-lhe razão. São 25 vinhos (e poderiam estar aqui mais alguns) oriundos de distintos produtores e terroirs da região, nenhum classificado abaixo de 17 e sete deles alcançando 18 ou mais pontos. Tenho muitas dúvidas que igual número de espumantes ou tintos Bairrada atingisse esta impressionante consistência qualitativa.

Razões para isso, existem várias. O clima, desde logo. Escrevo estas linhas em Sangalhos, às 10:30 de um dia de Agosto. O sol ainda não apareceu e estão 22ºC. Ontem estive no Baixo Alentejo. À mesma hora, debaixo de um sol radioso, estavam 39ºC. O Atlântico dita aqui a sua lei. Depois, os solos. Tradicionalmente, os melhores (e mais raros) terrenos da Bairrada, de argila com maior ou menor presença de calcário, eram reservados para casta Baga, pois só ali seria expectável alcançar grandes tintos. Com algumas excepções, as castas brancas eram assim “empurradas” para os solos arenosos, e destinadas, sobretudo, ao espumante. Na última década, porém, muita coisa mudou. Por um lado, a crescente valorização dos brancos tranquilos, levou vários produtores a plantar castas brancas em solos de maior potencial. Por outro, a ascensão do “blanc de noirs” Baga-Bairrada desviou a Baga menos boa do tinto para o espumante, libertando mais e melhores uvas para vinhos brancos.

A tudo isto, acrescentemos as castas brancas da Bairrada. Em que outro local de Portugal é possível encontrar mostos de Maria Gomes (Fernão Pires) com 13,5% de álcool e 8 gramas/litro de acidez total? Da primeira vez que me anunciaram estes resultados não acreditei e pedi para ver o boletim de análise. Agora, já estou acostumado. Se a Maria Gomes dá estrutura e intensidade, a Bical confere elegância e finura, a Cercial (não confundir com Cerceal-Branco do Dão nem com Sercial/Esgana Cão da Madeira/Bucelas) oferece frescura e tensão. E ainda há a ubíqua Arinto, que sempre considerei (na Bairrada, atenção!), inferior às outras três, mas que, progressivamente, me tem vindo a convencer.

A consistência demonstrada pelos 25 produtores cujos vinhos entraram nesta prova não deve ser confundida com uniformidade. E esse é o ás de trunfo da Bairrada: à diversidade de castas, solos e microclimas, junta-se uma profusão de conceitos e práticas de vinificação que fazem com que os vinhos sejam muito distintos entre si, sem nunca perderem os traços que os remetem para a sua origem – complexidade, carácter, frescura, longevidade – e os destacam entre os melhores brancos de Portugal.

Editorial: E no barro se fez vinho

Editorial

Nas peregrinações que, desde finais dos anos 80, faço regularmente pelas tabernas e casas de petiscos do grande Alentejo, encontro talhas de todos os tamanhos e formatos, bem como inúmeras nuances na pesga do barro ou nos processos de vinificação, variando a tradição de concelho para concelho, quase de aldeia para aldeia.   Editorial da […]

Nas peregrinações que, desde finais dos anos 80, faço regularmente pelas tabernas e casas de petiscos do grande Alentejo, encontro talhas de todos os tamanhos e formatos, bem como inúmeras nuances na pesga do barro ou nos processos de vinificação, variando a tradição de concelho para concelho, quase de aldeia para aldeia.

 

Editorial da edição nrº 75 (Julho 2023)

 

A publicação nesta edição de julho de um trabalho sobre o projecto XXVI Talhas, em Vila Alva, na sequência de um outro apresentado em junho sobre os vinhos Mamoré da Talha, em Borba, sugere uma reflexão sobre as diferentes formas de expressar esta milenar tradição vínica e cultural do Alentejo.

Os vinhos de talha estão na moda, é um facto. À boleia de um nicho de mercado que quer experimentar a diferença, aquilo que era um produto do Alentejo profundo, das tabernas e casas particulares, transferiu-se das populações rurais para os produtores profissionais, ganhando dimensão e buzz mediático. Agora que toda a gente sabe o que é Vinho de Talha Alentejo seria bom não esquecermos os amadores (no verdadeiro sentido da palavra, “aqueles que amam”) que, teimosamente, ao longo das últimas décadas, mantiveram vivos não apenas a tradição como o conhecimento, o saber fazer. Sem essas muitas centenas de anónimos, o renascer do vinho de talha não teria sido possível.

Dito isto, desenganem-se os que se assumem como guardiões da “verdadeira” tradição do vinho de talha do Alentejo. É que o Alentejo é enorme em todos os sentidos, e o tamanho corresponde à sua diversidade. Nas peregrinações que, desde finais dos anos 80, faço regularmente pelas tabernas e casas de petiscos do grande Alentejo, encontro talhas de todos os tamanhos e formatos, bem como inúmeras nuances na pesga do barro ou nos processos de vinificação, variando a tradição de concelho para concelho, quase de aldeia para aldeia. Para pesgar a talha, nuns sítios usavam resina de pinheiro e cera de abelha, noutros só a cera ou só a resina; alguns pesgavam de 5 em 5 anos, outros usavam as talhas pesgadas pelo pai há duas décadas; enquanto uns colocavam todo o engaço na talha, outros só uma parte, outros ainda somente as uvas esmagadas. Esmagamento que, consoante o hábito local, podia ser feito directamente para a talha ou pisadas as uvas no chão de barro da adega, correndo o mosto para o “ladrão” (talha enterrada) e daí baldeado para as ânforas. A dada altura, algumas dessas talhas começaram a ser revestidas a epoxy (“tinta anti-mosto”, assim lhe chamavam nas aldeias) por razões de facilidade e higiene, perdendo embora o carácter do pez. Destas muitas tradições resultavam e resultam vinhos tão distintos quão diversos são os matizes do cante alentejano ou os ingredientes e temperos do cozido de grão. Há tantos Alentejos…

Em 2010 decidiu a CVRA, e muito bem, regulamentar o Vinho de Talha Alentejo, como forma de preservar a sua origem e identidade, impedindo assim a sua apropriação por terceiros. No entanto, ao só permitir este designativo em vinhos produzidos dentro das 8 sub-regiões, deixou de fora zonas emblemáticas para o vinho de talha. Ao mesmo tempo, aceitou todas as castas autorizadas para DOC. Como resultado, posso fazer um Vinho de Talha Alentejo 100% Syrah ou Touriga Nacional, uma perversão cultural de que, felizmente, os produtores não se têm aproveitado. Mas não posso fazer Vinho de Talha Alentejo, ou sequer utilizar a palavra “talha” no rótulo, se estiver em Campo Maior (histórico centro oleiro de talhas) ou em Cabeção (onde ainda subsistem dezenas de produtores artesanais e centenas de talhas). Será que, com algum bom senso, se consegue resolver esta absurda contradição? O Alentejo, tão diverso quanto único e inimitável, agradece.