Trois: Um projecto de amigos, a sério e com risos à mistura
Os protagonistas desta história são três amigos de longa data: Filipe Cardoso, Luis Simões e José Caninhas, por ordem de idades, do mais velho para o mais novo. O mais novo, à parte menos uma década de idade, possui uma diferença fundamental para os outros dois sócios: José Caninhas não tem vinha nem tem grande […]
Os protagonistas desta história são três amigos de longa data: Filipe Cardoso, Luis Simões e José Caninhas, por ordem de idades, do mais velho para o mais novo. O mais novo, à parte menos uma década de idade, possui uma diferença fundamental para os outros dois sócios: José Caninhas não tem vinha nem tem grande histórico nessa área. Ao contrário, Filipe e Luis nasceram com as vinhas e cresceram a ouvir o jargão próprio da vitivinicultura. Os antepassados eram – e são – produtores de vinhos e sempre se mostraram interessados no tema. Sempre mostraram interesse em provar outros vinhos, outras realidades. Incluindo a nível internacional. “Os nossos pais viajaram muito a conhecer novas regiões e novos vinhos, incluindo para Bordéus. E nós íamos também, desde miúdos”, avança Luis Simões. De tal maneira que, quando estes jovens foram para a universidade, um para França e outro para Itália, estavam já familiarizados com muitas práticas. Caninhas, filho de professores, estudou em Santarém, na Escola Agrícola. Mas, como cresceu em Alcochete, sempre este ligado ao campo. E teve uma passagem pela gestão agrícola, onde conheceu muitos dos bons e grandes produtores de vinho nacionais, em todas as regiões. Temos por isso três escolas enológicas diferentes.
Hoje, Luis Simões faz, entre outros, os vinhos da empresa familiar Casa Agrícola Horácio Simões. Filipe Cardoso gere a Quinta do Piloto, também familiar. Caninhas trabalha com Filipe tanto na Quinta do Piloto como na Sivipa, uma empresa mais dedicada aos vinhos de grande consumo. Além da amizade profunda que os unem, os três têm outra coisa têm em comum: uma ideia própria de vinho que nem sempre se coaduna com aquilo que a região aparenta mostrar aos enófilos. “Também não queríamos traçar o mesmo caminho que a região”, garante Filipe, que acrescenta: “a nossa região é não muito rica em diferentes terroirs (serra e areias, por exemplo), como em castas típicas, casos do Castelão, Fernão Pires e Moscatel”. Ora, os “Trois” assistiam com pena à cada vez maior importação de castas estrangeiras para a Península de Setúbal. “Acho que se esteve a perder um pouco a identidade da região, embora reconheça que o caminho parece estar agora a mudar”, continua Filipe Cardoso. Na mente deles, alguma coisa teria de ser feita. E foi Luis Simões foi quem lançou o desafio aos amigos nesse famoso almoço.
No meio de um belo robalo com arroz de lingueirão, provavam um belíssimo Castelão de 2015 acabado de fermentar de um lote de vinhos das adegas respectivas. E os três puseram-se a imaginar o que fariam para tornar o vinho ainda melhor. Cada um tinha a sua opinião e, em vez de discutirem, decidiram avançar, repartindo o vinho entre os três. A seguir fariam um lote comum. “Cada um fez a sua interpretação do vinho e decidiu de acordo com isso”, diz-nos Luis Simões. O vinho tinha Castelão da Serra da Arrábida (do Horácio Simões) e outro das areias do Poceirão, das vinhas familiares da família Cardoso. “Um dá mais frescura e aroma mais elegante (o da serra), o outro mais concentração (o das areias)”, adianta Filipe. O da Quinta do Piloto foi vinificado em ânforas argelinas, sistema típico da casa, o de Luis Simões foi feito em lagares. Depois cada um dos três escolheu a barrica para onde iria o vinho e depois preparou-o para o lote final, em iguais percentagens. Nasceu assim o primeiro Trois, nome da marca, feito de apenas 3 barricas. Este vinho serviu também para marcar uma posição na região, dominada por produtores de grande envergadura. “Queríamos provar que também há lugar para os pequeninos, para vinhos de boutique, que puxem a região para cima”, afirma Filipe Cardoso. Ou seja, uma espécie de contra-corrente. E ao mesmo tempo ir buscar a essência da região, que em tempos tinha também um bom número de vinhos de guarda.
Considerando que ambas as casas agrícolas suportam, nem que seja logisticamente e na produção, o empreendimento Trois, não deixa de ser curiosa a forma como as respectivas famílias aceitaram esta aventura dos seus filhos. José Caninhas, que está de fora, diz que foi muito bem aceite, considerando-a “um complemento às respectivas casas e uma contribuição para algo maior”.
Nascem novos elementos
O primeiro Trois foi um sucesso incluindo a nível comercial. Logo a seguir nasceu o 2016, mas ainda não está no mercado. Na colheita de 2018 os três amigos decidem levar o projecto mais adiante, preparando um branco de Fernão Pires com curtimenta, aqui provado quase em exclusividade. A técnica de curtimenta era tradicional na região e a única coisa que os ‘Trois’ mudaram foi a vinificação com controlo de temperatura. “Não é consensual, mas não queremos que seja”, diz José Cainhas. Faltava a terceira componente típica da região, o Moscatel de Setúbal. E nasceu o Intemporal I, um fabuloso Moscatel Roxo, criado com vinhos das duas casas.
Ao mesmo tempo, Filipe, Luis e José decidem criar uma segunda marca. Nasceu assim a marca Flor de Trois, com vinhos menos ambiciosos e bem mais acessíveis de preço, mas sempre com castas nacionais e típicas da região.
Até agora, os Trois foram feitos com uvas das casas de Filipe e Luis. Mas isso não significa que assim tenha de ser sempre: “se identificarmos na região uma ou mais vinhas que valham muito a pena, pois poderemos trabalhar com essas uvas”, garante Filipe. E Luis acrescenta: “este é um projecto independente, não é um prolongamento da Casa Horácio Simões ou da Quinta do Piloto”. E José dá também uma achega: “aqui a liberdade é total, não temos conselhos de administração ou contas a prestar a ninguém, excepto a nós próprios”. Filipe acrescenta numa gargalhada: “e não há directores financeiros: aqui podemos torrar o dinheiro todo à vontade”. Isto não passa de galhofa, porque todos os três gerem projectos e já deram mostras que o sabem fazer. Estes vinhos são muito caprichados, é verdade, cheios de cuidados a nível de produção e na vestimenta. Os rótulos, por exemplo, são de pasta de papel com cor, ao contrário dos normais rótulos de papel, feitos industrialmente.
De resto, é apenas preciso que o projecto seja sustentável, para haver dinheiro para pagar as uvas, comprar barricas e quaisquer outros produtos ou serviços necessários. O José Caninhas, dizem os sócios, é quem tem os pés mais assentes na terra e quem puxa às vezes os dois sonhadores à realidade. “Nós gostamos é de fazer vinho, o que está para lá é mais complicado”, reconhecem Filipe e Luis a rir. De tal maneira que ambos não sabem sequer se o restaurante onde surgiu esta associação tem os vinhos Trois. Mas garantem que vão investigar.
O projecto Trois é isso mesmo: um projecto em construção. Os três amigos ficam contentes com isso, até porque vão ganhando experiências que, de outro modo, seriam difíceis de conseguir. E mantêm a identidade da região. O mote da empresa, inscrito nas garrafas, diz assim: “honrar a memória e o trabalho”. Neste aspecto, termina assim Filipe: “respeitamos demasiado os nossos antepassados para querermos ser agora os únicos donos da razão”.
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Edição nº 34, Fevereiro de 2020