Quinta Dona Matilde: A âncora da família Barros

Quem vai da Régua para o Pinhão pela estrada que acompanha o curso do rio, não pode mesmo deixar de ver a Quinta Dona Matilde, na margem direita, imponente na sua longa frente de rio, com casario de perfil antigo mas cuidadosamente restaurado. Está na posse da família Barros desde 1927. Apetece dizer (ou pensar) […]
Quem vai da Régua para o Pinhão pela estrada que acompanha o curso do rio, não pode mesmo deixar de ver a Quinta Dona Matilde, na margem direita, imponente na sua longa frente de rio, com casario de perfil antigo mas cuidadosamente restaurado. Está na posse da família Barros desde 1927. Apetece dizer (ou pensar) que é a quinta a visitar. A ideia vai agora ganhar forma com a existência de 5 quartos e com serviço de pequeno-almoço. A resposta ao “porquê só pequeno-almoço” é, infelizmente, fácil de dar: a região tem um gravíssimo problema de mão-de-obra, falta gente para a vinha, para a vindima e, como se imagina, com formação hoteleira ainda mais difícil é. Um passo de cada vez é o que procura.
A quinta esteve, durante muitas décadas, ligada à empresa Barros Almeida e apenas vocacionada para a produção de uvas para Vinho do Porto, situação generalizada a quase todas as quintas de região. A empresa foi vendida à Sogevinus mas Manuel Ângelo tomou a decisão de recomprar, regressando assim à posse da família. É por ser quinta inicialmente vocacionada para a produção de Porto que as vinhas mais velhas da quinta têm um plantio em field blend, ou seja, todas as castas misturadas na vinha. Só com o movimento dos DOC Douro, que começou nos anos 90 do século passado, é que se iniciou o plantio por casta. Essas vinhas velhas dão muito mais dores de cabeça do que uvas e por isso a decisão de as manter é sempre uma ousadia que não vale a pena prosseguir se o preço a que se vendem os vinhos feitos com uvas das vinhas velhas não compensar.

O motivo principal desta apresentação foi o lançamento do tinto Vinha do Pinto, precisamente feito com uvas da vinha centenária. O responsável da viticultura, José Carlos Oliveira, salienta o carácter especial que estas vinhas têm, com enorme capacidade de resistir às variações climáticas e os seus vinhos trazem o selo do local, apesar da baixíssima produção por cepa, que se situa nos 300 ou 400 gramas por videira, com trabalho de vinha feito a macho, vindima manual e uma poda que exige inspecção cepa a cepa para se perceber o que se deve manter e cortar.
Este Vinha do Pinto, de uvas com exposição nascente, foi vinificado em inox onde permaneceu por 18 meses no inox e sobre borras finas com alguma bâtonnage. Foi este tempo que lhe permitiu adquirir mais complexidade, tentando no inox aquilo que por norma se procura no estágio em madeira. João Pissarra, enólogo, reconheceu que esta opção é original na região, sobretudo tratando-se de vinhas velhas. Levanta-se assim o debate relacionado com o tema: pode fazer-se um topo de gama tinto sem madeira?
A resposta cabe a cada um dar após a prova do vinho. Esta é a segunda edição, da primeira (2019) existem raras garrafas mas uma foi dada à prova e pudemos confirmar que o vinho se encontra ainda em fase ascendente e apesar de ter nascido no ano mais generoso da década, as vinhas velhas, sempre contidas na produtividade, originaram um tinto que se mostra capaz de desafiar o tempo. Além deste existe outro vinho de parcela – Vinha dos Calços Largos – já objecto de prova em anteriores lançamentos.
(Artigo publicado na edição de Dezembro de 2023)
Herdade da Mingorra: Um tinto filho da Ira do Talhão 25

Em 2004, Henrique Uva cria o seu projecto de vinhos na Herdade da Mingorra, em Beja, com as vinhas que já explorava desde a década de 80. Nos anos seguintes, estreita a relação com os consumidores e fideliza uns tantos pelo caminho. Mais tarde, em 2015, a filha Maria entra em cena e, com respeito […]
Em 2004, Henrique Uva cria o seu projecto de vinhos na Herdade da Mingorra, em Beja, com as vinhas que já explorava desde a década de 80. Nos anos seguintes, estreita a relação com os consumidores e fideliza uns tantos pelo caminho. Mais tarde, em 2015, a filha Maria entra em cena e, com respeito pelo legado do pai, dinamiza a marca e renova a imagem, solidificando-a. O novo Vinhas da Ira 2018, topo de gama da casa, nasce já neste contexto, de uma Mingorra com identidade familiar — onde as três irmãs de Maria Uva estão conjuntamente envolvidas — que produz apenas com uvas próprias. “Primeiro somos agricultores e, depois, produtores de vinho” é a máxima de Henrique Uva, para quem está fora de questão fazer vinho com uvas que não sejam suas. Praticamente da família é também o enólogo Pedro Hipólito, que actualmente acumula a enologia com o cargo de director geral.
A propriedade tem um total de 1400 hectares com muita floresta e montado, onde se inserem 170 de vinha, 110 de olival e 270 de amendoal. O projecto iniciou com 120 hectares de vinha e recentemente foram plantados mais 50, perfazendo os actuais 170, onde se encontram as tintas Trincadeira, Aragonez, Alfrocheiro, Castelão, Alicante Bouschet, Merlot, Cabernet Sauvignon, Touriga Nacional, Syrah, Petite Sirah, Petit Verdot, Baga e Tinto Cão; e as brancas Antão Vaz, Arinto, Verdelho, Semillon, Alvarinho, Viognier e Sauvignon Blanc. Em 2020, a adega foi alargada com a finalidade de produzir mais, e, pela mesma razão, foram recentemente plantados os adicionais 50 hectares de vinhedo, sobretudo para reforçar a quantidade de uvas brancas, com enfoque em Verdelho, Alvarinho, Viognier, Loureiro, Encruzado e Sauvignon Blanc. A produção anual era, assim, de um milhão de garrafas, número que aumenta para mais 300 mil com o alargamento da adega e da vinha.
O Vinhas da Ira, tinto produzido apenas em anos que a equipa da Mingorra considera excepcionais, tem origem numa vinha de 1978, o Talhão 25. É, segundo Maria Uva (hoje a cara da Mingorra) e Pedro Hipólito, a vinha mais antiga da zona de Beja, plantada em “field blend” (mistura de castas na vinha) com 54% de Alicante Bouschet, 30% de Aragonez, 7% de Alfrocheiro e mais nove castas como Moreto, Tinta Grossa, Castelão, Trincadeira, e outras antigas da região. Já o vinho tem este nome porque a vinha causou discórdia na altura de se decidir se seria ou não arrancada. Henrique Uva lutou por ela e decidiu mantê-la, quando todos à sua volta o aconselhavam a arrancar, por ser uma vinha “feia”, pouco produtiva e pouco consistente, algo que ia contra o objectivo da “antiga” Mingorra, que era vender uva. Os tintos Vinhas da Ira comprovam que a decisão foi acertada e, em 2018, ano de colheita do vinho agora lançado, isso foi ainda mais flagrante: no início do mês de Agosto, uma onda de calor associada a vento provocou um forte escaldão na generalidade das vinhas, mas não no Talhão 25. Pedro Hipólito atesta que, nesse ano, a maturação decorreu equilibrada nesta vinha, com concentração e sem perder a frescura.
A fermentação do Vinhas da Ira tinto 2018 foi feita em lagares, seguindo-se maceração prolongada em depósitos de inox, antes de um estágio de 18 meses em barricas novas de carvalho francês, o que resultou num vinho complexo, muito elegante e cheio de carácter.
(Artigo publicado na edição de Dezembro de 2023)
Novas estrelas no universo Bacalhôa

A marca Bacalhôa é fortemente associada à Península de Setúbal, mas na realidade, a empresa Bacalhôa Vinhos de Portugal está presente em 7 regiões vitivinícolas de Portugal, tendo uma aposta forte na Bairrada através da Caves Aliança adquirida em 2007, um dos produtores mais prestigiados dos espumantes e aguardentes, agora conhecido como Aliança Vinhos de […]
A marca Bacalhôa é fortemente associada à Península de Setúbal, mas na realidade, a empresa Bacalhôa Vinhos de Portugal está presente em 7 regiões vitivinícolas de Portugal, tendo uma aposta forte na Bairrada através da Caves Aliança adquirida em 2007, um dos produtores mais prestigiados dos espumantes e aguardentes, agora conhecido como Aliança Vinhos de Portugal. Por isto não é surpreendente o lançamento do novo vinho branco Bacalhôa 1931 Bical 2021, feito na Bairrada, surpreendente é o vinho em si.
A Quinta da Rigodeira, que pertence à Aliança, é localizada em pleno coração da Bairrada, entre Fogueira e Ancas e dentro do seu património vitícola possui uma parcela plantada em 1931, exclusivamente com castas brancas – Bical, Maria Gomes, Sercialinho, Cercial, Arinto, Rabo de Ovelha, Alicante e Chardonnay. De todas as castas o Bical pareceu mais interessante para fazer uma vinificação em separado, até porque já havia o histórico na quinta de a produzir como monovarietal.
Com produtividade muito reduzida, era pouquíssima a quantidade de uva que chegava à adega por dia. Tiveram que guardar no frio o mosto depois da cada prensagem para acumular a quantidade que desse para vinificar. Fizeram-se quatro vinhos: um totalmente em inox, duas barricas novas, duas barricas de segunda utilização e mais duas de terceira utilização para construir um lote final o mais complexo possível. O estágio durou um ano e depois de engarrafado em Setembro de 2022, o vinho ficou mais um ano em garrafa. A câmara de provadores da região atribuiu-lhe a designação Bairrada Clássico e fizeram-se apenas 2891 garrafas.
Os Moscateis da Bacalhôa são um caso à parte, com uma abordagem algo diferente da prática habitual na região. Para além da extensa maceração pelicular, que visa extrair mais aromas e até estrutura das películas das uvas, o vinho é submetido à variação térmica em estufa própria, com o objectivo de enriquecer mais a vertente aromática e concentrar açúcares e ácidos, resultando num produto final mais intenso e rico em todos os aspectos.
Mas antes de chegarmos a esta técnica, é importante mencionar que o Moscatel de Setúbal é um produto de terroir a 100%. A principal variedade é Moscatel de Alexandria, localmente conhecida como Moscatel de Setúbal. É uma casta de maturação tardia, plantada no solo argiloso e argilo-calcário das encostas da Serra da Arrábida virada a norte, por uma razão muito simples – todas as encostas viradas a sul, são escarpas – explica o coordenador da enologia da Bacalhôa Vasco Penha Garcia. Nestas condições, a uva normalmente é apanhada em Outubro, mas com 11-12% de álcool provável e ácidos bem presentes, o que acaba por garantir a frescura e contrabalançar o elevado teor de açúcar nestes vinhos generosos.
A casta Moscatel Roxo (uma mutação do Moscatel Galego) é uma uva rosada que amadurece cedo e é vindimada no início de Setembro. Produz vinhos generosos riquíssimos, mas há 20 anos estava em vias de extinção. A Bacalhôa Vinhos de Portugal, já tendo videiras dispersas desta casta em vinhas de Moscatel de Setúbal, promoveu o plantio das duas maiores vinhas de Moscatel Roxo da região.
MOSCATÉIS DE SONHO
O processo de vinificação é igual para ambos os vinhos e começa com uma breve maceração pelicular. A fermentação é interrompida com aguardente vínica de 77% (por opção da empresa, pois o regulamento dá liberdade de escolha de entre 52% e 86%). A maceração continua por vários meses, normalmente até à primavera. Durante este processo, a aguardente força a extracção, por isso não é raro sentir o tanino e um certo amargo que sensorialmente equilibra a doçura. Quando este processo finaliza com a prensagem e trasfega, começa uma nova fase em “estufa”, onde o vinho é submetido a uma amplitude térmica significativa. Na realidade, é uma variante do método de canteiro, utlizado na produção do Vinho da Madeira. A “estufa” da Bacalhôa é um armazém cuja construção com a cobertura baixa, permite grandes amplitudes de temperatura e humidade ao longo do ano. Assim, a temperatura varia de 56,7˚C em Julho até 5,6˚C em Janeiro e a humidade vai dos 100% na altura mais chuvosa até 10,9% no pico do verão. Neste armazém, os vinhos permanecem em pequenos barris de carvalho de 180 e 225 litros, muitos deles previamente usados para estagiar o vinho de Jerez e whisky de malte. Nunca sendo atestados, os vinhos demonstram uma grande concentração por evaporação.
É assim que são feitos o Moscatel de Setúbal 20 anos e Moscatel Roxo de Setúbal 20 anos. A designação Superior é atribuída quando um vinho, com mais de 5 anos de estágio, apresenta uma qualidade destacada. Existe mais uma particularidade que tem a ver com a visão da empresa – estes vinhos com indicação de idade, não representam um lote de vários anos. Na Bacalhôa, os Moscateis são sempre provenientes de um único ano, sendo este indicado no rótulo. Assim, o Moscatel de Setúbal 20 anos é de 2000 e o Moscatel Roxo de Setúbal 20 anos é de 2002. O produtor acredita que desta forma “conseguem proporcionar a pureza de um ano só”.
Este ano, em estreia absoluta foi apresentado o Bacalhôa Moscatel de Setúbal 40 anos de 1983, um licoroso de qualidade excepcional. Permaneceu os primeiros 20 anos da sua vida na Estufa nº 1 com grandes emplitudes térmicas e de humidade; em 2004 foi transferido para o Armazém das Selecções, com pé-direito mais alto, suavizando as variações da temperatura e promovendo, a partir deste ponto, um envelhecimento mais lento. Criou-se um vinho extraordinário, onde a riqueza e a concentração estão interligadas de tal ordem que o teor de açúcar de 324 g/l está em harmonia com a acidez de 8,1g/l e o pH 3,14 e o prazer sensorial que oferece está por cima de qualquer parâmetro técnico existente. Nesta edição ultra limitada foram para o mundo apenas 300 garrafas de 0,5L.
Quando será o próximo engarrafamento desta magnifica colheita de 1983, só o tempo dirá.
(Artigo publicado na edição de Dezembro de 2023)
Teixinha: o toque de Midas da Malhadinha

Albernoa, de todo, não era uma região ligada a vinho, mas a família Soares conseguiu, através do seu labor e exemplo e em estreita ligação com outros produtores entretanto chegados ao local, conferir a esta zona do Baixo Alentejo uma rápida mas notória visibilidade no panorama dos vinhos alentejanos. Desde 2020 os mais de 80 […]
Albernoa, de todo, não era uma região ligada a vinho, mas a família Soares conseguiu, através do seu labor e exemplo e em estreita ligação com outros produtores entretanto chegados ao local, conferir a esta zona do Baixo Alentejo uma rápida mas notória visibilidade no panorama dos vinhos alentejanos. Desde 2020 os mais de 80 hectares de vinha têm certificação biológica, e a Herdade da Malhadinha Nova é auto-suficiente em uvas para as suas diversas marcas.
Este é um projecto com forte carácter familiar. Os irmãos João e Paulo, com as respectivas cônjuges Rita e Margarete, dão a cara e o corpo ao manifesto, e envolveram até os seus filhos logo desde o princípio, com os desenhos infantis a ganharem vida nos rótulos dos vinhos, como hoje veremos os seus textos a ilustrarem os novos vinhos, de que vos falarei já a seguir. E não falo já, porque, entretanto, devo explicar a referência a Midas. É que a CEO Rita liderou o projecto da Malhadinha para encarar com enorme e reconhecido sucesso um outro desafio: tornar a herdade um apetecível destino de turismo de luxo. Vejamos, os Soares vieram do Algarve, onde não faltam atracções. Na Albernoa quais são as atracções? Simples, mas arriscado e complexo: a atracção é a própria Malhadinha, e a sua capacidade de atrair e entreter com grande qualidade os seus hóspedes. A grande gastronomia sempre foi um eixo, o enoturismo outro, e o resto é uma panóplia de actividades que inclui passeios de balão ou de moto4, a vivência dos animais da quinta, desde cavalos a abelhas, os workshops de pastelaria ou panificação, nem consigo listar tudo, vejam o site deles na internet. Autenticamente, os Soares colocaram Albernoa no mapa, com vinho, turismo, hotelaria. Fazem sustentabilidade, oferecem aos seus funcionários mais do que um salário, com recuperação de casas para eles viverem, ou oferecer suporte familiar. Praticar o bem, e receber em troca o sucesso de um negócio autenticamente criado do nada, apenas com origem na ambição e convicção de fazer bem. Todos os louvores para eles.
E agora vieram para Norte. Não muito para Norte, vieram do Baixo Alentejo para o Alto Alentejo. Em 2021 visitaram a Quinta da Teixinha, propriedade com 105ha no Parque Natural da Serra de São Mamede, a 700m de altitude. Encantaram-se com o sítio, onde ainda por cima havia já 4ha de vinha, e passadas três semanas estavam a fechar negócio. Segundo Rita Soares, “as características únicas de frescura e elegância dos vinhos da região de Portalegre são um grande complemento ao portefólio da Herdade da Malhadinha Nova.” A Quinta tem 2ha de vinha velha com Aragonez, Alicante Bouschet, Bical, Fernão Pires, Salsa e Tamarez, mais um hectare de Aragonez e outro de Roupeiro, ambos plantados em 2017. Vão ser plantados ainda mais 8ha de vinha, para juntar aos 80ha de floresta de cerejeiras, sobreiros e castanheiros centenários. Também aqui há várias casas, umas mais velhas do que outras, e um ambiente campestre que fascinou os Soares e os vai levar a investir também no turismo.
Os novos vinhos da Quinta da Teixinha tiveram apresentação em Lisboa, no elegante Círculo Eça de Queiroz, um jantar elaborado pela equipa de chefes da Malhadinha (Joachim Koerper, Cintia Koerper e João Sousa) e iluminado pelas belas canções de Ana Paula Russo e o pianista Pedro Vieira de Almeida (lá está, sempre a querer fazer bem). Por agora são dois brancos e dois tintos, 1500 garrafas do Roupeiro e 3000 do branco “field blend”, e 3000 garrafas do tinto e 1000 de outro tinto a que chamam “Tava”, uma pequena ânfora de terracota usada na vinificação. Os rótulos são ilustrados por evocações escritas pelas crianças da família, o que os torna mais ternurentos. Mas a sua leitura não é fácil, pelo que vou usar as suas cores para identificar inequivocamente os vinhos na nota de prova. Os vinhos têm enologia de Nuno Gonzalez e Luís Duarte, e em 2021 foram ainda vinificados e estagiados na Malhadinha Nova, com as uvas a serem transportadas em camiões frigoríficos. A qualidade, como era de esperar, é excelente. Não quero terminar com encómios, por isso menciono apenas um pormenor: todo o jantar foi acompanhado por água que veio da própria Quinta da Teixinha, 700m de altitude e pureza, que soube tão bem como os vinhos. Um mimo carinhoso para os convivas.
(Artigo publicado na edição de Dezembro de 2023)
Dar de beber ao molho

O que é um molho? É um adorno do palato, a alma de um prato ou a essência do sabor de uma criação culinária? As definições sucedem-se e raramente convergem para uma resposta única e consensual. E haverá sempre um vector não contemplado que podemos adicionar ao leque de respostas possíveis. Reformulei por duas vezes […]
O que é um molho? É um adorno do palato, a alma de um prato ou a essência do sabor de uma criação culinária? As definições sucedem-se e raramente convergem para uma resposta única e consensual. E haverá sempre um vector não contemplado que podemos adicionar ao leque de respostas possíveis. Reformulei por duas vezes este artigo, o assunto merece e todo o espaço editorial é exíguo para um tema pouco frequente e tão estruturante. Não sou cozinheiro e nunca me substituirei aos muitos profissionais de grande gabarito que povoam a cena restaurativa nacional, mas é inevitável uma breve incursão aos fundamentos e à história do molho culinário e seu papel na cozinha e na mesa. Escolho como luzeiro a definição do Larousse Gastronomique que diz que “de forma geral, chama-se molho a todo o acompanhamento líquido dos alimentos”. E assim liberto-me do preconceito clássico e demasiado redutor, para me juntar ao colégio dos “normais”, que tanto chama molho a um velouté como a um vinagrete.
Podemos fixar o início épico da aventura do molho em 1651, com a publicação do calhamaço intitulado “o cozinheiro francês” pelo gigante clássico François-Pierre de La Varenne. Muito do que se pratica em alta cozinha e conhece bebe ainda desse instante luminoso primordial. Devemos-lhe pelo menos a invenção dos “roux”, preparados culinários com farinha em vez de pão que depois vão estar na base de muitos fundos de cozinha e caldos, por sua vez integrados em declinações culinárias diversas. Mais tarde, já no séc. XIX, com Marie-Antoine Carême foram fixados quatro molhos fundamentais, que Auguste Escoffier já no séc. XX (1903) viria a categorizar em cinco grandes grupos: béchamel, velouté, espanhol, tomate e holandês, no totem em torno do qual o mundo continua a girar e que dá pelo nome de “Le Guide Culinaire”. O enorme salto técnico deu-se quando por efeito directo da Revolução Francesa a cozinha de palácio deixou de existir porque os seus obreiros foram dispensados. Ainda bem, dizemos nós porque foi isso que fundou a venerável actividade da restauração. A nobreza e a alta burguesia passaram a frequentá-la, em vez de ter cozinhas nas suas casas. O conhecimento democratizou-se e os códices foram trazidos para a luz do dia. Felizmente a arte culinária não se perdeu, antes permitiu que se desenvolvesse e ramificasse.
A estrutura de um molho tem basicamente três componentes e determina entre outras a vocação vínica de que vamos munir determinado prato. São elas a líquida, a aromática, e a espessante. A base é sempre líquida; um molho é essencialmente líquido, todos concordamos. Chamamos-lhes caldos ou fundos quando há cozedura conjunta de proteína, pedaços de carne ou peixe e verduras classificamos como claro quando a extracção – leia-se cozedura – é curta e escuro quando é prolongada. Os veloutés e os molhos de tomate enquadram-se nos fundos claros, enquanto o espanhol parte de um fundo escuro. O leite é muitas vezes a base líquida de molhos diversos, especialmente o bechamel, pela riqueza de sabor e pela reacção positiva ao calor. Também fundamental como componente líquida é a manteiga clarificada, que resulta da separação pelo calor da água e do soro do leite, concentrando a densidade e sabor. É ingrediente fundamental do molho holandês e a base culinária por exemplo dos ovos Bénedict.
Os aromáticos dividem-se em mirepoix – tipicamente cenouras, cebolas e salsa – e o chamado bouquet garni, pequenos aglomerados de talos de salsa, tomilho, louro e alho francês. Finalmente, os espessantes são instrumentais na afinação da textura de um molho. O principal ingrediente é, neste aspecto, o que conhecemos como roux – lê-se “ru” – e consiste de mistura em partes iguais de farinha e uma gordura, tipicamente manteiga. No tacho damos-lhe a cozedura de 2-3 minutos para ter roux branco, que utilizamos para chegar ao molho branco e ao bechamel. Qualquer deles nasceu para gratinar ou emulsionar e prefere vinho branco sem madeira a todos os outros. Muito bom com filetes de linguado no forno. Mais dois minutos de calor e passa a roux dourado, o segredo de um bom velouté e de tantos molhos básicos. Com 15 minutos chegamos ao roux castanho e acima disso entramos no roux exótico. Qualquer um pode ser feito com antecedência e guardado em quantidade no frio. Sangue, gema de ovo e amido de milho – Maizena – são espessantes eficazes. Descritos os fundamentos, avançamos para os cinco molhos mais importantes, agora descritos segundo o binómio ingredientes e harmonizações felizes.
O que fazer com este molho?
Molho Béchamel: Composto por leite, roux branco, ervas aromáticas e especiarias. Liga bem com ovos, legumes, peixe, frango, carnes vermelhas e massas. Gosta de Arinto sem madeira. de acidez pronunciada e de Fernão Pires com mais de três anos.
São diversos os pratos felizes com a assessoria deste molho, com a blanquete de vitela no topo da lista, seguida de muito perto por filetes de pescada, peixinhos da horta e bacalhau no forno. A pimenta rosa é um bom intensificador de sabor e consegue explorar com eficácia a maioria dos pormenores sem interferir demasiado no prato.
Molho de tomate: Composto por tomate, banha de porco, ervas aromáticas, roux branco, especiarias e mirepoix. Utiliza-se em diversas situações e é talvez o mais flexível de todos e geralmente pede mais vinho tinto que branco mas há que atentar à proteína dominante e ao “peso” tânico do vinho. A intuição e o processamento culinário contudo ditam o caminho a seguir. Entre as utilizações mais frequentes estão massas, pizas, todos os tipos de carne, pratos de tacho de peixe e cozinhas vegetarianas.
Molho holandês: Composto por gema de ovo, especiarias, manteiga clarificada e sumo de limão. Aproxima-se pacificamente de carnes vermelhas, ovos, peixe, frango e vegetais. Está no coração de clássicos como os ovos Bénedict e presta-se a muitas declinações. É, por exemplo o dip perfeito com peixinhos da horta, o mesmo é dizer tempuras na cozinha japonesa. Rega bem a parafernália marisqueira e é brilhante com leguminosas. Aceita vinhos encorpados brancos e tintos.
Molho velouté (aveludado): Composto por caldo de frango, roux dourado, ervas aromáticas e especiarias. Está na base de dezenas de molhos e é particularmente feliz em sopas. A tonalidade amarelada coloca-o na charneira entre carne e peixe e leva ao extremo os acompanhamentos com picles e picantes. Em matéria vínica, trabalha na perfeição com rosés com alguma idade e brancos fermentados em madeira. Presta-se além disso a montagens eficazes de cocktails e buffets. Pela acidez e mineralidade os brancos do Pico funcionarão bem.
Molho espanhol (espagnole): A cor retinta e carregada inspira desde logo a vocação para démi-glace. Composto por caldo de vitela, roux castanho, puré de tomate, mirepoix, ervas aromáticas e especiarias. Encontra parceiros fortes em carnes vermelhas, porco e borrego. Um carré assado fica automaticamente completa no palato em termos de nutrição. O rosbife à inglesa é outra vocação forte, assim como o bife grelhado ou o tornedó. Na cozinha de sala vinga bem todos os apetites carnívoros. Pede tintos vigorosos com acidez moderada.

E há mais, muito mais
Pegamos em óleo de sésamo ou azeite, juntamos vinagre ou limão, temperamos a gosto e temos o tempero de salada a que damos o nome de… molho vinagrete! Estamos fora do registo formal anteriormente descrito e ainda bem, que há vida para além da cozinha francesa! O molho de manteiga simples acrescentado ou não de mostarda está na base do molho cervejeiro mais frequente, que aceitamos como molho. Depois há todo um desfile de molhos que hotéis, cafés e tascas servem com orgulho e garbo a passantes e clientes habituais e com esses infelizmente bebe-se quase sempre cerveja. O tinto mais cervejeiro que conheço e por isso aconselho é o da casta Rufete produzido na Beira Interior.
Contribuem para essa extrema aptidão a pouca extracção na vinificação e a elevada acidez que a região prefigura. Certa vez em Londres provei um prato num restaurante de duas estrelas Michelin que constava de lavagante servido com molho diable – diabo em português – quando, sendo um molho castanho e denso, é normalmente servido com pratos profundamente carnívoros. Foi-me explicado que a estratégia passava pela textura, não tanto pelo sabor. A partir do momento em que absorvemos a teoria, temos mais capacidade de abordar novas situações e desafios.
A abordagem à cozinha vegetariana, por exemplo, representa para o chef de formação clássica um desafio grande que é desenvolver pratos sem proteína animal. Com isso, é bastante mais difícil estabelecer estratégias para chegar ao molho ideal. Os clientes gostam de ter molho no prato, quando não o encontram sentem-se perdidos, aprende-se na escola na formação superior que vai formar os chefs de amanhã. As cozinhas de inspiração oriental vulgarizaram o molho de soja na mesa e hoje não há peça de sushi ou sashimi que não se passe pela tacinha, resultando numa ingestão exagerada de sal e na consequente deturpação do sabor. As cozinhas de vanguarda aplicam muitos extractos e legumes fermentados que impossibilitam a ornamentação clássica com um molho. Os fundos de cozinha utilizados nas cozinhas de produção são não raras vez de fabrico em série e isso está a normalizar os palatos e a interromper a cadeia do gosto, impondo mais uma standardização. As ameaças estão por toda a parte e somos chamados a resistir e a ensinar os nossos filhos a discernir e escolher o caminho da autonomia.
Que nunca nos falte o molho nem o critério!
(Artigo publicado na edição de Dezembro de 2023)
Três séculos de Alorna

Para celebrar 300 anos de vida, o produtor de vinhos da região do Tejo preparou especialmente 712 garrafas do vinho “Quinta da Alorna 1723 Grande Reserva tinto”, que será disponibilizado em edição limitada num belíssimo conjunto comemorativo, juntamente com o livro “Da Índia ao Tejo, do Tejo para o Mundo: 300 anos da Quinta da […]
Para celebrar 300 anos de vida, o produtor de vinhos da região do Tejo preparou especialmente 712 garrafas do vinho “Quinta da Alorna 1723 Grande Reserva tinto”, que será disponibilizado em edição limitada num belíssimo conjunto comemorativo, juntamente com o livro “Da Índia ao Tejo, do Tejo para o Mundo: 300 anos da Quinta da Alorna”, da autoria da jornalista Maria João de Almeida, com prefácio do Professor António Barreto.
A Quinta da Alorna foi fundada em 1723 por D. Pedro Miguel de Almeida e Portugal que, após ter conquistado a Praça Forte de Alorna, na Índia, regressou a Portugal e recebeu do Rei D. José I o título de Marquês de Alorna, concedendo à propriedade o nome que ainda hoje mantém. Poucos anos depois, em 1725, mandou construir o imponente Palácio, que sobrevive até aos nossos dias e cuja imagem está representada no logótipo da Quinta.
A Quinta da Alorna permanece na família Lopo de Carvalho desde há cinco gerações, após ter sido adquirida pelo Dr. Manuel Caroça em 1918 aos herdeiros do Visconde da Junqueira que, por sua vez, a havia adquirido, em finais do Século XIX, às filhas da 4.ª Marquesa da Alorna, D. Leonor de Almeida Portugal de Lorena e Lencastre. Foi uma das mulheres mais cultas da sua época e a primeira escritora pré-romântica em Portugal. Mulher de letras, muito ligada à cultura e à política, e com influência junto das Cortes portuguesa e europeias, deve-se à sua persistência junto da Rainha D. Maria I, a abertura da primeira escola feminina em Portugal. Empresta o seu título aos vinhos premium da Casa.

A tradição vinícola da Quinta da Alorna remonta praticamente à data da sua fundação, tendo sido nessa altura que foram plantadas as primeiras vinhas, juntamente com pomares, jardins de amoreiras, florestas e oliveiras, adicionando pontes levadiças, lagos e buxos, copiando o modelo francês, tão em voga entre as elites europeias da altura.
No entanto, foi apenas no início do Século XX que a produção de vinho foi encarada de maneira mais profissional, embora sempre como fazendo parte do todo universal em que consiste a “Alorna”.
A “Alorna” é hoje 2600 hectares ao longo de 16 quilómetros de comprimento, dos quais 1900 hectares são de floresta, inclusive com árvores centenárias que datam da época de D. João, filho do primeiro Marquês de Alorna, 500 hectares de área agrícola onde são produzidos azeite, cereais e horto-frutícolas, e 180 hectares de vinha. A casa também se orgulha bastante do seu Centro Equestre, com cavalos puro sangue lusitano, e é, inquestionavelmente, uma parte integrante da história da região, das antigas casas aristocráticas do Ribatejo, com as explorações agrícolas ligadas à terra, às gentes, aos cavalos e à tradição.

Quando em finais do Século XVIII os Marqueses de Alorna se deslocavam até Almeirim faziam-no de barco, Tejo acima, demorando uma noite inteira desde Lisboa, onde à chegada uma carruagem da casa prontamente aguardava para os levar alameda acima até ao Palácio. No passado dia 26 de Outubro chegamos à Quinta da Alorna pela Estrada Nacional, mais rápido é certo, mas com menos glamour todavia, passamos o imponente portão e atravessamos a mesma alameda que nos conduziu ao Palácio, onde nos esperavam Pedro Lufinha e Martta Reis Simões, director geral e enóloga, respectivamente, da Quinta da Alorna.
Oferta muito consistente
A festa que assinalou o 300.º aniversário da Quinta da Alorna decorreu nos jardins do Palácio e juntou mais de 150 convidados, contando com a presença de figuras ilustres do sector que se reuniram para brindar ao legado, impacto e história da Quinta da Alorna. A maior parte das vinhas da Quinta da Alorna encontra-se em área de charneca, na margem esquerda (Sul) do Tejo, em zonas de planície e planalto, onde se percebem claramente os solos de calhau rolado e areia, nada homogéneos, passando a areia pobre em apenas poucos metros. As vinhas mais antigas encontram-se precisamente nestas zonas. No entanto, Martta Reis Simões, enóloga na Quinta da Alorna desde 2003 e directora de enologia desde 2010, decidiu também apostar recentemente nos solos de transição, localizados junto ao palácio.
Nos vinhedos da Alorna existem 19 castas, portuguesas e internacionais, sendo as mais emblemáticas e representativas a Castelão, a Touriga Nacional, a Cabernet Sauvignon, a Alicante Bouschet, Fernão Pires, Arinto, Chardonnay e Sauvignon Blanc. A produção anual da Quinta da Alorna é de dois milhões de garrafas das quais se exportam 50%, divididas por 23 países.
Os vinhos da Quinta da Alorna são muito consistentes e bem representativos do carácter da região, como bem tivemos oportunidade de comprovar durante o cocktail que precedeu a apresentação do tão aguardado “1723”. Foram servidos os Reserva Alorna Alvarinho/Viognier 2021 e Alorna Arinto/Chardonnay 2022 para uns tacos de peixe no forno, almendrados de brie e cremoso de pêra, brigadeiros de alheira com espinafres e sementes de sésamo, mini cones de queijo da serra, mel e figo, entre outras iguarias, e o Reserva Alorna Touriga Nacional/Cabernet Sauvignon 2019, em garrafas magnum, para uns croquetes de rabo de boi com maionaise trufada, tiborna de perdiz em escabeche, maçã e agrião e espetadinhas de cordeiro com molho tandoori.
Um vinho de celebração
E o momento mais importante da noite chegou com o Quinta da Alorna 1723 Grande Reserva tinto 2019. Este tinto comemorativo surge da chamada “Vinha do Planalto”, onde as castas Tinta Miúda, Castelão e Alicante Bouschet exibem a sua verdadeira essência, patente num vinho que sobressai pela sua elegância e carácter do princípio ao fim.
Foi feita vindima manual em caixas de 18 kg, seguindo-se selecção em mesa de escolha para tanques horizontais abertos de 500 Kg a simular lagares. A fermentação iniciou-se com cacho inteiro como se de uma maceração carbónica se tratasse, iniciando-se assim uma fermentação intracelular para promover a fruta. As uvas foram desengaçadas a 2/3 da fermentação, pisa a pé até final, seguindo para prensa vertical. Individualmente, o vinho de cada casta estagiou durante 10 meses em barricas de carvalho francês usadas anteriormente para o Marquesa de Alorna tinto 2016. O vinho foi engarrafado a 18 de Novembro de 2020.
Seguiu-se o jantar volante, onde começou por ser servido um creme de couve flor caramelizado com cogumelos e crocante de presunto, devidamente acompanhado pelo Quinta da Alorna Reserva das Pedras Branco 2018, um 100% Fernão Pires em solo de calhau rolado, que se apresentou delicado no nariz, com aromas de flores brancas, notas de limão e fruta de caroço, bom volume de boca, revelou desde logo o seu carácter gastronómico, com boa textura e bem suportada pela acidez, final de boca longo e marcadamente mineral.
Não poderia faltar os Marquesa de Alorna Grande Reserva, branco e tinto, servidos em garrafas magnum, o branco de 2021 acompanhando salmão selvagem com arroz negro, espinafres e molho de alcaparras, revelando enorme finesse, equilíbrio e frescura, enquanto que, a sua versão tinta, de 2019, acompanhou uma bochecha de vitela estufada com esmagada de batata, bacon, acelgas salteadas e cebola pérola, demonstrando um perfil sofisticado, exuberante e convidativo, mas sempre com grande requinte. Finalizou-se com um Colheita Tardia Tinto 2015 e um Abafado 5 anos, para acompanhar doçaria a condizer.
E assim, terminada a noite de celebração do tricentenário da Quinta da Alorna, voltámos a atravessar a alameda que nos havia conduzido ao Palácio, mas desta vez em sentido inverso, que nos conduziu de volta à Estrada Nacional… e de regresso a Lisboa.
(Artigo publicado na edição de Dezembro de 2023)
Herdade do Peso: O encanto da terra dobrada

“O grande desafio que os produtores da região têm agora, é sincronizarem-se para trabalhar a vinha em mais detalhe e profundidade, sobretudo o sentido de lugar”. É uma das primeiras coisas que nos diz Luís Cabral de Almeida junto a uma das lareiras da Herdade do Peso, e que introduz muito daquilo que tem sido […]
“O grande desafio que os produtores da região têm agora, é sincronizarem-se para trabalhar a vinha em mais detalhe e profundidade, sobretudo o sentido de lugar”. É uma das primeiras coisas que nos diz Luís Cabral de Almeida junto a uma das lareiras da Herdade do Peso, e que introduz muito daquilo que tem sido o foco, dos últimos tempos, na propriedade. “Sempre defendi a existência do microclima da Vidigueira, com a influência da Serra do Mendro e das outras até ao mar, e as amplitudes térmicas enormes em Agosto, com noites de 14 graus centígrados, que nos permitem ter excelentes maturações”, desenvolve. Enólogo do Peso desde 2012, Luís Cabral de Almeida está hoje mais em contacto com a natureza do que com as “ribaltas” da vida, e isso reflecte-se na aura de tranquilidade e serenidade que emana.
Quando nos aponta como as vinhas e as outras plantações pautam o terreno da herdade, é a “terra dobrada” que vemos, expressão dos locais para orografia ondulada. E aí também nós ficamos tranquilos e serenos, numa época do ano em que tudo começa a descansar: as cepas, as árvores, o vinho.
A Sogrape chegou ao Alentejo em 1991 e, no ano seguinte, fez um contrato para a compra das uvas da Herdade do Peso, em Pedrógão, na Vidigueira. A opção pela Vidigueira foi óbvia na altura, não só pelo potencial vitivinícola da região, mas também pela ligação familiar ao proprietário da Herdade do Peso, cunhado de Fernando Guedes, ex-líder da Sogrape e filho do seu fundador, o que abria uma possibilidade de privilegiada cooperação. Não se perdeu tempo antes do lançamento de um produto para o mercado, e o Vinha do Monte tinto 1991 foi o vinho de estreia do grupo no Alentejo, uma marca actualmente independente do resto do portefólio.
Mais tarde, em 1996, a Herdade do Peso é adquirida pela Sogrape. Na verdade, a equipa técnica já conhecia os cantos à casa, pois, até ao ano da aquisição, tinha vindo a assessorar o processo de plantação de novas vinhas. Estas plantações tiveram, naturalmente, um incremento após a compra da propriedade, e sucedeu-se a construção de um centro de vinificação no local, com capacidade para processar, à época, 750 mil quilos de uvas. A adega foi alvo, entretanto, de mais duas remodelações, uma em 2013 e outra terminada em 2022, tendo hoje capacidade para 2,500,000 quilos de uva. Mas 2013 foi também o ano do primeiro Trinca Bolotas, uma das marcas mais importantes para a operação da Herdade do Peso, cujo tinto representa hoje 1 milhão e 100 mil garrafas anuais.
Luís Cabral de Almeida iniciou a sua carreira na Sogrape em 1991. No Dão, e desde 2012 chefia a enologia da Herdade do Peso
Vinha, onde faz sentido
A Herdade do Peso ocupa uma área total de 465 hectares em solos argilo-calcários, onde 160 são de vinha, 140 dos quais de uvas tintas, como Aragonez, Syrah, Alicante Bouschet, Cabernet Sauvignon, Touriga Nacional, Petit Verdot, Grand Noir, Touriga Franca, Tinta Miúda e Tinto Cão. Os 20 hectares de uvas brancas incluem Antão Vaz, Arinto, Moscatel Graúdo, Chardonnay, Viognier e Verdelho. “A nossa base aqui é Alicante Bouchet e Touriga Nacional nas tintas, e Antão Vaz e Arinto nas brancas, não descurando Chardonnay, Verdelho e Viognier, por exemplo. Estamos progressivamente a cortar no Aragonez e a plantar mais Alicante no lugar dele, não reduzindo tudo. No entanto, penso que uma das próximas revoluções na região, ao nível das castas, será a Tinta Miúda”, declara-nos Luís Cabral de Almeida.
Entre 2020 e 2022, foram plantados mais nove hectares de videiras, com várias castas e uma particularidade: “Recorremos ao sistema de condução antigo em vaso, ou taça [gobelet]. A poda é mais difícil, mas as uvas ficam mais à sombra”, explica o enólogo.
Depois de um estudo profundo sobre os solos da propriedade, foram identificados 12 tipos de solo diferentes, todos derivados do argilo-calcário. Com esta informação, os técnicos da Herdade do Peso passaram a plantar vinha “apenas nos solos mais indicados para potenciar a qualidade das vinhas”, desvendou Luís Cabral de Almeida. Isso já é totalmente visível quando se passeia pela herdade, pois há muitas zonas que já não têm vinha contínua, tendo sido criados corredores de biodiversidade entre as parcelas. Para estes corredores, e não só, foi feito mais um estudo no sentido de apurar as espécies verdes naturalmente presentes: foram apontadas 157 espécies de plantas, oito das quais em grande risco de extinção. Assim, 37 destas espécies estão a ser plantadas nos sítios menos indicados para vinha. Luís Cabral de Almeida diz que o objectivo é “recuperar a flora tradicional da propriedade”.
Quanto a olival, este também representa uma parte importante da área plantada, com 50 hectares de tradicional e 50 de intensivo. Estes últimos serão, segundo o enólogo, para arrancar quando acabar o contrato vigente. Mas dentro deste tema há algo ainda mais impressionante: a alegada oliveira mais antiga de Portugal, que Luís Cabral de Almeida diz rondar uns impressionantes 3700 anos de idade. Estar na sua presença é quase desconcertante, tal a imponência e a beleza da sua velhice. “Temos um desafio, que é fazer um azeite com as azeitonas das oliveiras que têm mais de mil anos. Vamos ver se conseguimos…”, adianta. Para suportar tudo isto a nível hídrico, a Herdade do Peso conta com uma preciosa barragem, que ocupa uma área de vinte hectares. Toda a vinha da propriedade é regada, mas apenas com recurso à barragem e em sistema de gota-a-gota.
Uma adega completa
O projecto nunca parou de crescer e, em 2022, ficou concluída a mais recente ampliação da adega da Herdade do Peso, para acompanhar esse crescimento. A simples mas bonita edificação, com tecto ondulado inspirado na “terra dobrada”, contempla uma área de vinificação com 18 cubas de brancos, 13 cubas para brancos premium (5 delas em betão), 28 cubas de tintos e 12 cubas para tintos premium (2 em betão), bem como três prensas pneumáticas e uma prensa vertical de pratos. Quanto ao estágio e armazenagem, a adega dispõe de 56 cubas de inox, entre 2 mil a 35 mil litros, e dez talhas de barro, cada uma com capacidade para 1500 litros. Entre todo estes recursos, Luís Cabral de Almeida apontou-nos aqueles que estão dedicados aos “fine wines” do peso: as túlipas de betão, as cubas tronco-cónicas de inox e as talhas. Estão ainda a apostar nos grandes formatos, com tonéis de três mil litros para estágio. “Esta é uma adega com preocupação ambiental e pragmatismo em simultâneo, com grande isolamento térmico. Fazemos também re-aproveitamento da água da ETAR para lavagens e rega dos jardins”, explica o enólogo.
Os vinhos
Recentemente, a Herdade do Peso reorganizou e actualizou a sua gama de “estate wines”, que hoje inclui as sub-marcas Sossego e Trinca Bolotas, e as referências Herdade do Peso Revelado, Herdade do Peso Reserva, Herdade do Peso Parcelas e o topo de gama Herdade do Peso Ícone. Estes e outros vinhos perfazem uma produção anual de um milhão e oitocentas mil garrafas, mas é nos últimos quatro tintos que agora nos focamos.
Herdade do Peso Revelado nasceu com o propósito de ter toda a herdade engarrafada. É um blend de todos os solos e das castas mais representativas (Alicante Bouschet, Syrah e Cabernet Sauvignon), levando, desta forma, “a Vidigueira e o Alentejo de volta ao mundo”, dizem os próprios. A uvas do Revelado são desengaçadas, fermentam em inox e o vinho estagia um ano em barricas de carvalho francês. Já com Reserva, pretende-se combinar a tradição vitícola com a inovação na adega. É escolhida uma parte das uvas das “melhores” parcelas e são utilizados “materiais nobres e deixa-se o tempo actuar, fazer a sua magia”, adianta a equipa. Neste caso, as uvas provêm do talhão 28 de Alicante Bouschet, do talhão 94 de Touriga Nacional e da melhor parcela de Syrah. A fermentação dá-se em cubas tronco-cónicas de inox e, após fermentação maloláctica, o vinho estagia, separado por casta, em barricas e nos tonéis de 3 mil litros de carvalho francês durante 12 meses. Para o blend final, são escolhidos os vinhos das melhores madeiras.
O Parcelas, por sua vez, é feito com uvas das parcelas que mais se destacaram pela qualidade em cada vindima. Neste 2019 entraram o talhão 21, de Alicante Bouschet, e o talhão 101, de Petit Verdot (a edição anterior foi um 100% Alicante Bouschet, por exemplo). A fermentação ocorre em cubas tronco-cónicas e o estágio nos tonéis, durante um ano, escolhendo-se depois os melhores para o lote final. Por último, o topo de gama Herdade do Peso Ícone é o vinho que surge apenas nos anos que a equipa considera como excepcionais: o histórico deste tinto inclui 2007, 2014 e agora o 2018. Depois da selecção dos melhores bagos da Herdade do Peso, é preciso vinificar primeiro para se decidir se é engarrafado como Ícone ou não. Neste 2018 entraram as melhores uvas de Alicante Bouschet, Touriga Nacional e Petit Verdot. As uvas foram desengaçadas, mas, na fermentação em tronco-cónicas de inox, adicionou-se 30% de engaço ao Alicante Bouschet, “para dar mais complexidade e estrutura”. Após fermentação maloláctica, o vinho estagiou nos tonéis por 12 meses e, mais uma vez, foram depois escolhidos os melhores.
(Artigo publicado na edição de Dezembro de 2023)
João Portugal Ramos: Estremus e Petrichor, consagração e desafio

Já escrevemos anteriormente que a empresa João Portugal Ramos, a operar em quatro regiões portuguesas, está em plena velocidade de cruzeiro, e nem a renovação geracional a faz abrandar. Pelo contrário! A cada vez maior preponderância do papel de João Maria Portugal Ramos, filho do fundador e enólogo do grupo, isso o demonstra claramente (a […]
Já escrevemos anteriormente que a empresa João Portugal Ramos, a operar em quatro regiões portuguesas, está em plena velocidade de cruzeiro, e nem a renovação geracional a faz abrandar. Pelo contrário! A cada vez maior preponderância do papel de João Maria Portugal Ramos, filho do fundador e enólogo do grupo, isso o demonstra claramente (a experiente enóloga Donzília Copeto mantém-se como directora de produção e João Perry Vidal, incontornável cúmplice do fundador João Ramos, como director vitivinícola da Quinta de Foz de Arouce e da Duorum). Tal é bem visível também no facto de João Maria já ter tido um papel muito importante no desenho de vinhos como Pouca Roupa e Marquês de Borba Vinhas Velhas, duas gamas que, sendo relativamente recentes, já levam alguns anos de história e de sucesso. Também relativamente recente foi a criação do vinho Estremus, cuja primeira edição ocorreu em 2015, com nova edição dois anos depois em 2017.
Pois bem, é agora lançada a de 2019 deste verdadeiro topo de gama, lugar anteriormente ocupado pelo clássico Marquês de Borba Reserva tinto. Quanto ao Estremus mantém, nesta edição de 2019, o seu desenho e perfil de pendor vegetal, com base em Alicante Bouschet e Trincadeira, provenientes de uma vinha com 20 anos muito próxima das muralhas da cidade de Estremoz, num solo calcário com pedra mármore visível à superfície, e a uma altitude de quase 400 metros. Como não poderia deixar de ser num topo de gama desta qualidade, as uvas foram vindimadas manualmente para pequenas caixas sendo que, em termos de vinificação, as duas castas fermentaram em conjunto por quatro dias em lagares de mármore com pisa a pé (mas delicada para não provocar concentração excessiva). Ora, a co-fermentação é algo que pode ajudar muito um vinho na integração do lote, mas nem sempre é possível por existirem castas que amadurecem na vinha em períodos diferentes e, assim, não podem ser fermentadas em simultâneo. Porém, na vinha onde estão em ‘field blend’, o Alicante Bouschet e Trincadeira utilizados neste vinho tiveram um amadurecimento quase sincrónico, pelo que a opção da casa foi mesmo para a co-fermentação, e os consumidores agradecem o excelente resultado. Seguiu-se, depois, a trasfega para cuba de inox onde acaba a fermentação alcoólica, e mais 12 dias de maceração pós fermentativa. O estágio e afinamento é feito em meias pipas de carvalho francês durante um período de 18 meses. Encheram-se quase 4000 garrafas, praticamente o dobro da edição anterior, sendo que nesta colheita de 2019 o vinho – fabuloso! – está simultaneamente mais fresco e sofisticado.

Mas igualmente a provar a pujança e criatividade da empresa, aproveitou-se a ocasião do lançamento do Estremus 2019 para ser revelado um novo vinho branco da casa, totalmente diferenciado do resto da gama. Falamos do Petrichor! Como nos disse João Maria, foi sem qualquer medo de arriscar que quiseram fazer um branco diferente, no caso com maceração pelicular (contacto do mosto com as películas) mas procurando evitar uma oxidação desmedida. O vinho teve uma origem claramente conceptual, tanto mais que se elegeu o Arinto pela sua frescura e acidez e o Verdelho pela capacidade de resistir a oxidações (até na cor). As uvas, colhidas manualmente de manhã cedo, provêm de vinhas plantadas em 2003 em solos xistosos a 320 metros de altitude, e são arrefecidas numa câmara frigorífica antes de serem vinificadas. São depois desengaçadas, suavemente esmagadas e transferidas para cubas de cimento ovais de 3000 litros, onde a fermentação alcoólica ocorre com temperatura controlada, seguindo-se a maceração pós-fermentativa durante sete meses.
É um branco de perfil austero e seco, mas mantendo alguma fruta citrina, sobretudo com notas de laranja e sua casca. São 2000 garrafas de um branco muito gastronómico, levemente terroso (petrichor é o nome que se atribui à fragância da chuva ao cair em solo seco). Com grau alcoólico ajuizado, que, estamos certos, será um parceiro imbatível à mesa, junto a um presunto ou até com combinações geralmente complicadas como escabeches. A não perder!
(Artigo publicado na edição de Novembro de 2023)