Vinhos Borges, 140 anos depois

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Gil Frias, 50 anos, presidente da Comissão Executiva do grupo José Maria Vieira e administrador responsável pela Borges, entrou no Grupo José Maria Vieira (JMV) em 1998, no ano da compra da Sociedade dos Vinhos Borges. “Na altura era um distribuidor puro e duro, que tinha também produção e distribuição de café com a marca […]

Gil Frias, 50 anos, presidente da Comissão Executiva do grupo José Maria Vieira e administrador responsável pela Borges, entrou no Grupo José Maria Vieira (JMV) em 1998, no ano da compra da Sociedade dos Vinhos Borges. “Na altura era um distribuidor puro e duro, que tinha também produção e distribuição de café com a marca Torrié”, conta o responsável.
Entretanto o grupo cresceu e é hoje constituído por sete empresas ligadas à produção de café e vinho e distribuição. Para além da fábrica Torrié, em Portugal, e de outra em Espanha, que produz café com a marca Torrelsa, a JMV produz também vinho desde que adquiriu a Sociedade dos Vinhos Borges ao grupo BPI. Integra, ainda, quatro empresas de distribuição directa em Portugal, Espanha, Canadá e Estados Unidos. “Quando entrei na JMV o grupo facturava cerca de 25 milhões de euros e, hoje em dia, quase 75 milhões de euros”, conta Gil Frias.

A Sociedade dos Vinhos Borges foi criada em 1884 pelos irmãos António e Francisco Borges, fundadores do Banco Borges & Irmão, inicialmente para a comercialização de vinho Verde e do Porto em Portugal e para exportação. Mais tarde, no início do século XX, após a entrada de Artur Lello no capital da empresa e na sua gestão, foi impulsionado também o seu negócio produção de vinhos. A partir daí começou um período em que a empresa foi gerida, durante quase todo o século XX, primeiro por Artur Lello e depois por Carlos Lello, o seu filho. Segundo Gil Frias, os anos mais prósperos decorreram desde o final da Segunda Guerra Mundial até ao período da revolução do 25 de Abril de 1974, quando a empresa passou para as mãos do Estado português, em conjunto com o banco Borges & Irmão, quando toda a banca foi nacionalizada. Só voltou para as mãos de privados em 1988, quando este sector voltou a ser privatizado em Portugal, passando a integrar o Grupo BPI.

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Uma oportunidade de negócio

“Nós, José Maria Vieira, eramos distribuidores da Borges desde Coimbra até ao norte do país, isto a partir dos anos 70”, conta Gil Frias, acrescentando que a parceria se manteve até que, nos anos 90 do século passado o Grupo BPI decidiu alienar todos os seus activos não financeiros, incluindo a Sociedade dos Vinhos Borges. “A JMV viu aí uma oportunidade de entrar na produção de vinho, não só para verticalizar o negócio, da vinha quase ao copo do consumidor, mas também para estender o negócio de distribuição a todo o Portugal continental e ilhas, e incorporar a carteira de clientes de exportação que a Borges já tinha na altura, um passo na internacionalização do grupo”, explica o gestor. A seguir, foi feito um “trabalho de reconstrução da empresa da base ao telhado”, que está quase a ser terminado.

Desde logo, foi aumentada a área de vinha, para os 330 hectares actuais em produção, detida ou explorada pela empresa em exclusividade. Na Região dos Vinhos Verdes, para além das Quintas do Ôro, de Simaens e de Vilancete, a empresa tem mais 100 fornecedores de uva. Na Região do Dão o património da Borges inclui a Quinta de São Simão da Aguieira, perto de Nelas, com 74 hectares e 62 de vinha, onde fica a adega, mais a Quinta da Roda, que tem seis hectares e “está vocacionada para a produção de vinhos de topo”. Explora ainda 85 hectares de vinha na Quinta do Loureiro, com base num contrato de longa duração.

A primeira propriedade

A Quinta da Soalheira, no Douro, foi a primeira a ser comprada pela empresa, em 1904. Com 340 hectares, dos quais 127 de vinha, estende-se, em altitude, da cota 150 à 650 m. Mais recentemente “foi feito o seu remapeamento, para colocar as melhores castas nas melhores parcelas” e construída uma nova adega na região duriense, em Sabrosa, “melhor equipada tecnologicamente, a nível logístico, na recepção de uva, na forma de trabalhar e na capacidade em inox, mais adequada aos tipos de vinho que queremos fazer, o que nos permitiu ter um salto qualitativo muito grande em termos de vinhos do Douro”, salienta Gil Frias. Até à inauguração da nova unidade, era no Centro de Vinificação da Lixa, da empresa, que eram vinificados e engarrafados todos os vinhos Verdes e do Douro, com excepção dos Porto.

Um dos pilares que sustenta o negócio é, como não poderia deixar de ser, a produção, a viticultura, que está assente numa capacidade produtiva de cerca de 330 hectares e num sector de transformação, estágio e engarrafamento, assente em “adegas equipadas com a melhor tecnologia para produzirmos os nossos vinhos como queremos”, salienta Gil Frias. Outro pilar são os recursos humanos, “pessoas com muita experiência em todas as áreas”. Aqui foi feita uma reestruturação da empresa a partir de Janeiro de 2024, quando Gil Frias passou a administrador, com um director-geral, Miguel Carvalheira, e vários departamentos, incluindo o de enologia e viticultura, liderado pelo enólogo Fábio Maravilha, que trabalha na empresa há quatro anos e inclui, em cada uma das regiões vitivinícolas onde a empresa produz, responsáveis das adegas e de viticultura que o apoiam.

Segundo o enólogo Fábio Maravilha, a forma como se faz viticultura na Borges é definida com base nos vinhos que a empresa quer produzir. “Nós pensamos os vinhos e fazemos a viticultura nesse sentido e com esse objectivo”, explica. É o que acontece, por exemplo, no Douro, onde “cada uma das parcelas é adaptada consoante os vinhos que queremos dentro da empresa”. É um trabalho que não é igual todos os anos, porque depende também da forma como as condições climáticas evoluem, e implica estudo e capacidade de previsão, como aconteceu em 2023, ano em que a equipa da Borges conseguiu antecipar a chegada das primeiras chuvas e “fazer uma boa colheita de uvas” com bons teores alcoólicos nas cotas mais baixas, vindimando as mais altas depois da precipitação. “O ano correu bem, mas é óbvio que nem sempre é possível adaptar a vinha para produzir aquilo que consideramos vinhos óptimos, porque cada ano é um ano e temos de nos adaptar”, conta o enólogo. Uma boa organização, o planeamento adequado e uma equipa profissional, responsável e focada em cada uma das regiões onde a empresa produz faz o resto.

As pequenas jóias

São as melhores condições para produzir os vinhos de um portefólio construído em pirâmide. “Na base estão as gamas de entrada. Lello, na Região do Douro, Gatão, nos Vinhos Verdes, Meia Encosta, no Dão, Fita Azul, nos espumantes e uma gama de entrada nos Porto”, explica Fábio Maravilha. “Com excepção do Gatão rosé, que é vinho de mesa, são todos DOC e estão posicionados entre os quatro e os cinco euros em termos de preço de prateleira, porque o nosso objectivo é que tenham uma relação qualidade/preço imbatível”, conta Gil Frias, acrescentando que, assim, a sua empresa consegue concorrer com os vinhos australianos, chilenos, espanhóis em qualquer mercado e ter um volume de vendas que lhes permite “ter o desafogo para produzirmos coisas diferentes”.

Depois, e a caminho do topo, existe a gama intermédia, com marca e produção 100% de quintas da empresa, como São Simaens, Ôro, Soalheira e São Simão da Aguieira, nas versões de brancos, tintos e rosés, para além de monovarietais. “É uma gama para garrafeiras e restauração, que pretende mostrar o terroir das nossas quintas”, explica o gestor.
Os topos de gama estão todos identificados com a marca Borges e são oriundos das melhores parcelas das quintas, sendo apenas lançados em anos especiais. “Esta gama é constituída por vinhos de lote, com excepção de alguns monovarietais, como o Touriga Nacional do Dão, mas também o Loureiro da Quinta do Ôro, novidade que está a ser lançada agora”, explica Gil Frias.

Para além destes, foram também lançados alguns vinhos de nicho que o gestor considera “ultrapremium”, incluindo um branco do Douro da casta Gouveio, produzido à cota 300, seis mil garrafas por ano com potencial de guarda. “Para além da sua concentração e vigor, estrutura e final de boca, tem uma acidez elevada, que até é estranha nesta quinta”. É claramente um vinho que cresce com o tempo, digo eu depois de ter provado as colheitas de 2024 e 2023, com a primeira ainda a estar bem fechada e, a segunda, a mostrar aromas e sabores que demonstram a sua grande capacidade de dar prazer.
No ano passado foi lançada uma edição comemorativa dos 140 anos da Sociedade dos Vinhos Borges, o TN TN CLX, em garrafa Magnum. “Quisemos fazer um Touriga Nacional, porque é uma casta muito conhecida e das mais acarinhadas pelos portugueses e estrangeiros, e representa um pouco o país.” Foi produzido com base nos melhores vinhos de Touriga Nacional dos últimos cinco anos nas propriedades da Borges no Dão e Douro, para dar origem a um vinho de lote de guarda e de coleccionador. Este ano também vai ser lançado um branco de Touriga Nacional da Quinta da Soalheira neste segmento.

É importante, em qualquer empresa, incluir, no seu portefólio, “pequenas jóias” que a diferenciem da concorrência e perdurem no tempo, na memória das pessoas. Gil Frias defende que a sua empresa está hoje alicerçada para fazer isso. “Queremos mostrar ao mercado que somos uma empresa que produz volume e também referências para os consumidores mais exigentes, porque temos acesso às melhores uvas, às melhores condições tecnológicas para as produzir e às pessoas adequadas para levar o projecto para a frente”, afirma.
No último ano, a empresa vendeu 7,6 milhões de garrafas e facturou 16,7 milhões de euros. “Temos tido uma evolução muito positiva nas vendas, um crescimento superior a 60% nos últimos 10 anos, assente em Portugal, mas também no mercado de exportação”, diz Gil Frias. Para esse resultado tem contribuído a integração da Sociedade dos Vinhos Borges num grupo distribuidor que vende vinhos em 74 mercados, incluindo Portugal. “Eu próprio, como fui director comercial durante 12 anos, gosto de estar próximo dos mercados e conhecer os clientes”, conta Gil Frias. “Conhecer quem compra os nossos vinhos é fundamental”.

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(Artigo publicado na edição de Junho de 2025)

 

Cabrito, borrego e outras primícias

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A Natureza continua a marcar o ritmo de forma inexorável. O que é muito bom para todos nós, que continuamos a ser tão susceptíveis e permeáveis a tudo o que é novo só por si. Mas desde o abrolhamento nas vinhas à cobertura de flores pelos campos fora, tudo é sinal de renascimento. É o […]

A Natureza continua a marcar o ritmo de forma inexorável. O que é muito bom para todos nós, que continuamos a ser tão susceptíveis e permeáveis a tudo o que é novo só por si. Mas desde o abrolhamento nas vinhas à cobertura de flores pelos campos fora, tudo é sinal de renascimento. É o momento da afirmação anual da vida e da vontade de viver, e o inevitável toque a reunir das famílias. E de abrir boas garrafas de vinho para a festa da partilha.

Começo pelo mais importante, a nota de pesar relativa ao desaparecimento prematuro de Ana Soeiro, figura marcante e importante no desenrolar da afirmação da produção nacional em toda a sua abrangência. Acompanhei de perto o trabalho fundador que fez com a sua brilhante equipa de colaboradores no Ministério da Agricultura, de levantamento de produtos certificados e em vias de certificação por todo o país. Retenho, com honra e garbo, os magníficos ficheiros a que Ana Soeiro me deu acesso, dando conta dos avanços vagarosos e despretensiosos do colectivo que coordenava. A abrangência do seu labor é colossal, e vai desde a criação de gado à mais particular e subsidiária receita de um prato regional executado a preceito e de forma sistemática. Quando saiu de funções no ministério, fundou a Qualifica, que desde logo se prontificou a tornar visível muito desse trabalho, ao mesmo tempo que estabeleceu ponte inédita com a certificação no espaço europeu. Se hoje vemos as siglas IGP – Indicação Geográfica Protegida – e DOP – Denominação de Origem Protegida – disseminadas entre nós, parte significativa desse trabalho é-lhe devido. Há que ter em conta a capacidade de fazer face à morosidade e complexidade envolvidas normalmente nesses processos. O tempo há de encarregar-se de lhe fazer justiça. Para já, fica a nota necessária e fundamental, em jeito de tributo.

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Tenho bem presentes aspectos históricos e patrimoniais que imortalizam o borrego como proteína preferencial. O seu ensopado tem importância fundadora e que perdura até aos dias de hoje.

 

O cabrito só é feliz a saltarilhar

Dá-nos muitas alegrias à mesa o cabrito que, juntamente com o borrego, tem expressão fundamental e protocolar nos animais sacrificiais que, por esta altura, têm honras de mesa. Para Júlio Lameiras, acérrimo e sábio defensor das raízes beirãs da alimentação, “o cabrito para ser feliz tem de saltarilhar na pedra da serra”. A alimentação à base de ervas espontâneas e frutos de arbusto é suficiente para dar origem a belas e vigorosas crias, mesmo em fase de aleitação materna. Resulta, por isso, na matéria-prima tão do gosto do consumidor português, com a particularidade adicional da consensualidade. Não há quem não goste de um bom cabrito assado. De norte a sul do país, faz-lhe bem as honras o vasto receituário ditado pela cozinha de pastor. É grande o contributo das verduras de vagem que começam a grassar ao mesmo tempo. Ervilhas, favas, leguminosas diversas compõem muito o ramalhete das opções disponíveis. A carne ganha muito com uma marinada de água e limão um dia antes do momento formal do processamento culinário. Tem geralmente pouca gordura e assa muito bem, desde que a temperatura não seja demasiado alta. Uma segunda marinada em vinha de alhos é benéfica e vai assegurar excelência no período de forno ou grelha. Um tinto novo de Trás-os-Montes faz-lhe bem as loas.

Cabrito, borrego, leitão e vitela desempenham na história da nossa alimentação um papel festivo insubstituível. Para marcar momentos importantes, desde sempre utilizamos a prática de abater uma cria e levá-la à mesa inteira. O grau de requinte com que isso era feito depende obviamente da vontade, posses e disposições. Ainda hoje é assim, como nos tempos de outrora. Podemos contudo afirmar que, na perspectiva estrita da criação, abater uma peça primicial implica abdicar de um valor futuro maior, que nunca é despiciendo. Sempre se fez com os olhos postos nos valores futuros e universais, tai como a união de uma família, e criação efectiva e intemporal de riqueza, ou o regresso a casa de um membro da família que estava longe. Todas estas situações configuram a necessidade absoluta de festejar. Independentemente da proteína em jogo, a idade é o dado mais relevante no tocante à harmonização vínica. Tendencialmente, são apostas mais felizes os vinhos com pouca ou nenhuma madeira, a menos de algum pormenor de processamento culinário que faça toda a diferença. Sabemos contudo que não é assim. Desempenha papel importante neste cenário um vinho jovem estreme da casta Castelão sem madeira.

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Não há quem não goste de um bom cabrito assado. De norte a sul do país, faz-lhe bem as honras o vasto receituário ditado pela cozinha de pastor.

 

O borrego e seus muitos encantos

A vida ensinou-me bastante sobre criação de borregos, seu abate e ligações ideais da sua carne com vinho. Se no caso do cabrito a leitura tinha forçosamente de ser nacional, no tocante ao borrego, à excepção do prodigioso cordeiro de Miranda do Douro, a capital é estável e fica no Alentejo. São diversos os factores que apontam para esta evidência. As transumâncias longas e aturadas do gado ovino. A indústria distribuída do queijo. O aproveitamento da lã. E a resistência à intempérie. Isto além de outros factores que apontem claramente o ovino como a proteína mais capaz e vencedora. Tenho bem presentes aspectos históricos e patrimoniais que imortalizam o borrego como proteína preferencial. O seu ensopado tem importância fundadora e que perdura até aos dias de hoje. O desaparecido Manuel Fialho, com quem tive o imenso privilégio de conviver ao longo de vários anos, desenvolveu trabalho teórico de sistematização que jamais esquecerei. Aliás, trata-se mais de inquietações do que de sistematizações propriamente ditas. Quando estamos nos granitos frios do norte alentejano, é frequente encontrarmos património micológico muito relevante na composição do ensopado de borrego. A utilização de batata é intermitente nessas latitudes, sendo bastante frequente a castanha, que ainda hoje se encontra, a par da já mencionada utilização de cogumelos nativos. Descemos na geografia para Évora e damos com um ensopado de borrego que contém normalmente batata e ervilhas e disponibiliza caldo abundante, pelo que é frequentemente consumido com uma colher de sopa. As partes de carne e respectivos ossículos são explorados à mão. Quando chegamos a Serpa, capital da maior transumância ovina nacional, constatamos que não há batata nem ervilhas na composição do ensopado. Estamos perante um caldo rico orlado de bom pão alentejano, selecção rigorosa das peças cortadas para o ensopado e utilização de poejo e hortelã da ribeira como temperos fundamentais. Do ponto de vista da harmonização com vinho, há bondade na aproximação a tintos de Alicante Bouschet encorpados com estágio longo em madeira. O ensopado que situei em Évora constitui, contudo, excepção. Nesse caso, a batata e as ervilhas levam facilmente a que a harmonização ideal seja com um vinho branco jovem de Arinto e Fernão Pires, com algum estágio em madeira.

Há muitas verdades no assunto da ligação de vinho com comida, como todos sabemos e facilmente aceitamos. Trago aqui agora uma curiosidade culinária que para mim se tornou sacramental. Trata-se da perna de borrego assada com dois dentes de cravinho apenas, que aprendi a fazer com o gigante Gabriel Fialho. Vale a pena reconstituir a cena. Estou sentado na sala de entrada do restaurante Fialho, em Évora, onde Gabriel Fialho oficiava à frente da cozinha. A sua personalidade natural era de grande empatia com toda a gente. Quem o conheceu sabe como era assim. De repente, eis que entra na sala onde eu estava, com uma colher de sopa e uma mão por debaixo, em concha. Vem direito a mim e diz-me para abrir a boca. Era um molho, que logo me descreveu como sendo resultante de assar uma perna de borrego apenas com dois dentes de cravinho. Sentou-se à minha frente, sem conseguir esconder a excitação quase infantil que o animava naquele momento. O cravinho era espetado em dois pontos específicos que ele me indicou. Memorizei tudo o que me disse. Estão quase a cumprir-se doze anos desde que deixou a esfera do chão, há-de estar a deleitar os seus pares com as suas muitas perplexidades. A verdade é que nunca mais voltei a assar borrego que não fosse com aquele toque minimalista. Sete horas a 70 graus, a peça totalmente envolta em papel de alumínio. A melhor harmonização a que cheguei foi com Jaen de Oliveira do Conde, da região do Dão, sem qualquer contacto com madeira.

 

cabritoSurpresa é tudo

O universo culinário do cabrito, sendo bastante mais linear do que o do borrego, foi contudo o que mais me surpreendeu. Aconteceu numa das muitas deslocações ao Douro, no pino do Verão, a propósito de um evento ibérico. Houve uma prova num hotel perto, a que se seguiu um jantar na Quinta do Panascal. Fomos de barco até lá, e a noite estava igual ao dia que nos tinha calhado. O xisto ardente não deixava a temperatura descer. O meu carro tinha marcado 51ºC nessa tarde. Dois colegas espanhóis foram de urgência para o hospital.
Subimos até à balaustrada superior, que foi onde foi servido o jantar. Soprava uma ligeira aragem. Foi servido um vinho branco e tudo começou a assentar. Eis senão quando é servido o jantar, que era cabrito assado em forno a lenha. Desenhou-se ali mesmo uma espécie de antologia pantagruélica que nada nem ninguém podia ter imaginado. O cabrito e o Douro têm uma longa história conjunta, recheada de curiosidades e perplexidades. Aquele foi o melhor cabrito da minha vida, brilhantemente harmonizado com um estreme de Tinta Amarela do Baixo Corgo. O momento foi de esmagadora sublimidade. Ao mesmo tempo perdura na memória. Tudo o resto se desvaneceu volvidos estão mais de vinte anos. Foi a primeira vez que me dei conta da importância de voltar várias vezes a um mesmo prato para melhor o entender e melhorar. Inclui, naturalmente, o vinho. Foi também essa a primeira vez que verdadeiramente me apercebi da grandeza do cabrito à mesa. Tinha a vitela assada como emblema duriense, passei a dar a posição cimeira ao cabrito.

A importância da criatividade

Numa outra instância calhou-me a função de convidador no encontro anual de amigos na Quinta de Carvalhais, no coração do Dão. Organizado por Manuel Vieira, ainda nos seus tempos de enólogo da Sogrape, desafiava à vez. Depois, o indigitado tratava de reunir o grupo que nesse ano iria protagonizar os “Desafios de Carvalhais”. Convidei o chef Nuno Santos, do restaurante Puttanesca, em Leiria, para tratar do almoço. Com o seu temperamento border line, dado à extravagância culinária mas sempre genial, era difícil fazer uma ideia do que se iria passar. Decidiu fazer o seu cabrito, porventura a mais minimalista forma de cozinhar o dito que até hoje me foi dado provar. Levou também miudezas de cabrito, que transformou com mestria em petiscos deliciosos. O segredo principal daquele almoço esteve na não intervenção, permitindo que sabores originais fossem até ao fim da linha para nosso grande deleite. Memorável foi também a harmonização com Alfrocheiro do Dão com estágio em barrica. Esse almoço ainda hoje é recordado com carinho. Eventos como esse são raros hoje em dia e fazem muita falta pelo poder congregador que representam.

Das muitas graças que a carne de caprino tem, há um prato que venero. É a chanfana, que abunda na Beira Baixa e se faz por todo o país. Sempre que visito um restaurante e há chanfana, é a ela que dedico a maioria da minha atenção. A carne que lhe está na base é de cabra velha, e é cozida em caçoilas de barro. As melhores são as que são feitas com todo o tempo do mundo e “esquecidas” no forno a lenha, ficando de um dia para o outro nas brasas mortiças. Há que selecionar bem as peças que se introduzem no recipiente de cozedura e a banha que se utiliza é crucial. Um tinto de Portalegre com bastante madeira é quase sempre a minha escolha para a assessoria vínica, mas as hipóteses são ilimitadas. Gosto muito de frequentar as criações do chef Ricardo Costa, do Yeatman, no Porto. Fiel às suas raízes, inclui a chanfana em diversas preparações nos seus menus de degustação. Depura-a ao ponto de se tratar de uma criação de alta cozinha, o que significa olhar para aspectos como a digestibilidade e expressão de terroir. A cozinha tradicional portuguesa é sobretudo um matizado de cozinhas regionais e por isso a chanfana está presente em todos os pequenos recantos de Portugal. Espera-se dos chefs de primeira linha que inovem nas preparações de sempre e na cozinha dos seus avós.

(Artigo publicado na edição de Maio de 2025)

BARCOS WINES: Um Loureiro muito especial

Barcos Wines

Presentes no nosso País desde o século XIX, as acácias foram trazidas para Portugal como espécies ornamentais pela beleza da sua floração, destacando-se pelas suas flores amarelas de tom vivo, assim como pelo valor da madeira e dos taninos da casca, tradicionalmente usados no curtimento de peles. A sua madeira é muito resistente, durável e […]

Presentes no nosso País desde o século XIX, as acácias foram trazidas para Portugal como espécies ornamentais pela beleza da sua floração, destacando-se pelas suas flores amarelas de tom vivo, assim como pelo valor da madeira e dos taninos da casca, tradicionalmente usados no curtimento de peles. A sua madeira é muito resistente, durável e possui elevada quantidade de resina, tendo sido usada por diferentes culturas para produzir vários produto e sendo hoje amplamente utilizada para variadíssimos tipos de propósitos, incluindo mobiliário, utensílios de cozinha, construção de canoas e outros barcos, instrumentos musicais e, claro está, barricas para vinho.

No terroir único da sub-região do Lima, no Alto Minho, região dos Vinhos Verdes, o vale do Rio Lima é o território de excelência para a produção de vinhos brancos da casta Loureiro, situando-se entre os concelhos de Arcos de Valdevez e Ponte da Barca. É uma zona com enorme influência dos ventos marítimos do Atlântico, devido à sua proximidade do mar (cerca de 40 km), com elevados níveis de precipitação durante o período de crescimento e solos graníticos e férteis. As temperaturas elevadas e índices significativos de humidade favorecem a maturação da uva, proporcionando vinhos frutados, de moderada graduação alcoólica, aroma delicado, mineralidade e frescura.

Desde 1963 que a Adega Cooperativa de Ponte da Barca e Arcos de Valdevez cuida de um património único em todo o mundo, localizado no coração da região dos Vinhos Verdes, um território com mais de 2000 anos de história de viticultura. Da junção de dois dos seus nomes resultou “Barcos Wines”, empresa que continua a produzir os seus vinhos num modelo de cooperativa, com forte compromisso com a comunidade e mantendo vivas as raízes e tradições das terras a que pertence. Num território dominado pelo minifúndio, a Adega possui cerca de 800 associados, que representam 900 hectares de vinha em produção de uva, sendo que a média por agricultor não ultrapassa o hectare e meio.

José Antas Oliveira é o enólogo e director geral da Barcos Wines que, nos dias de hoje, representa 6,5 milhões de unidades vendidas, entre vinho engarrafado e Vinho Verde certificado em lata, agora que a região dos Vinhos Verdes entendeu a importância destes novos formatos e criou uma regulamentação específica para os acomodar, numa demonstração de pioneirismo e visão.

 

No terroir único da sub-região do Lima, no Alto Minho, região dos Vinhos Verdes, o vale do Rio Lima é o território de excelência para a produção de vinhos brancos da casta Loureiro

 

O Loureiro e a acácia

A Loureiro é uma das castas portuguesas com maior carácter floral. Elegante e aromática, produz vinhos de cor citrina e lembra, muitas vezes, flor de laranjeira, rosas e frésias, fruta citrina, limão principalmente, sempre com excelente acidez. E porquê a madeira de acácia? Neste caso a proveniente de florestas do Norte de França realça a fruta nos vinhos brancos, conferindo-lhes maior cremosidade e redondez, sem os taninos mais marcantes ou as nuances fumadas do carvalho, referiram Bruno Almeida e Patrícia Pereira, director de Marketing e directora de Qualidade da Barcos Wines. Um Loureiro que estagia em carvalho adopta “um perfil elegante, mineral e repleto de sabor, onde as leves notas de carvalho abraçam os aromas cítricos e florais da casta”, e, neste vinho, aporta “delicados aromas de especiarias e eleva a pureza dos aromas florais e cítricos da casta Loureiro, respeitando a sua essência e enriquecendo-a com maior complexidade e elegância”, acentuam. E foi assim que, em Lisboa, no espaço multicultural, charmosamente decadente, da antiga Fábrica de Pólvora do Braço de Prata, nos foi apresentado o vinho Acácia, da Barcos Wines.

Mas as coisas começam-se pelo princípio, ou pelo menos assim deve ser, e, nesse dia, começaram com o espumante Loureiro, feito pelo método Charmat (a segunda fermentação é feita em grandes tanques de aço inox em vez de ser em garrafa, como no método tradicional), um espumante jovial e frutado, de perfil cítrico, bolha fina e mousse suave, com acidez viva, seco e bem saboroso. É de salientar que a categoria espumante representa entre 20 a 30 mil garrafas de venda anual. Um número bastante considerável, portanto.

De seguida percorremos os varietais de Loureiro do universo Barcos Wines, desde o Loureiro Premium 2023, um vinho fresco, tenso e seco, onde a doçura não tem lugar, o Reserva dos Sócios 2018, vívido e envolvente, com elegantes notas da barrica de carvalho, o “vinho do Zé” (Zé Inconformado 25 anos, de 2021), sempre um destaque, um vinho bem estruturado com aromas de fruta de caroço, mel e baunilha, boa mineralidade e acidez, e o Inusitado 2021, um branco de curtimenta fermentado com as películas, seguido de um estágio em madeira de castanho, pleno de identidade, rico, sério e suculento. E eis-nos chegados à nova coqueluche da Adega, o Acácia Loureiro 2022, aquele que “(…) pode muito bem ser o nosso melhor Loureiro de sempre…”!, nas entusiásticas palavras dos seus responsáveis.

Barcos Wines

Estágio sobre “lias”

O estágio antes do engarrafamento, ou a ausência dele, é sobremaneira decisivo para moldar o perfil final de um vinho. Mais até do que a sua duração, é o material escolhido – madeira, cimento ou inox –, e o formato do recipiente – barrica, ânfora, ovo ou cuba –, assim como o seu tamanho, que, aliados ao terroir de origem, mais impactam e conferem ao vinho a sua identidade única.

Acresce que se o vinho estagiar sobre borras finas, ou, à francesa, sur lies, aumenta a sua   complexidade aromática e, sobretudo, a sua estrutura e untuosidade em boca.

As borras finas, para o leitor menos familiarizado com estas terminologias, são agentes naturais do vinho, leveduras que se depositam no fundo da barrica durante o estágio, mas que são regularmente trazidas à suspensão através de diferentes técnicas como revolver o vinho com um bastão, por exemplo, para que as ditas borras finas aumentem o seu contacto com o vinho e, assim, lhe confiram maior complexidade, produzindo um importante melhoramento sensorial através de um aumento de gordura, suavidade e volume.

Já cantava a saudosa Amália Rodrigues para nos deixarmos de francesismos em “Lisboa, não sejas francesa…”, e, desta feita, com a língua de Camões a não ajudar lá muito com a expressão “borras” (finas), optou-se pela inscrição no rótulo do Acácia “Sobre Lias”, afinal a Galiza é logo ali, e é praticamente uma extensão natural de Portugal, e da região do Minho em especial.

E ficou muito bem assim, diga-se.

No Acácia Loureiro, as uvas sofreram maceração pelicular e o vinho acabou de fermentar e depois estagiou 12 meses sobre lias, em barricas novas de madeira de acácia (uma barrica de 225 l de acácia e um barrica de 400 l de carvalho francês com tampos de acácia). Foram engarrafadas 795 garrafas numeradas, que repousaram durante 18 meses antes de serem lançadas para o mercado. Belos tempos, dinâmicos e ousados vive a casta Loureiro lá para as bandas do Minho nestes dias. Brindemos, pois!

(Artigo publicado na edição de Maio de 2025)

Enoturismo: AdegaMãe

AdegaMãe

Ao longo das encostas suaves que descem em direção ao Atlântico, a região vitivinícola de Lisboa desenha-se como um corpo vivo que respira tradição, resistência e renovação. Aqui, onde o vento salgado do mar encontra as vinhas que se estendem como veias pela terra, o vinho não é apenas “bebida” – é memória líquida, um […]

Ao longo das encostas suaves que descem em direção ao Atlântico, a região vitivinícola de Lisboa desenha-se como um corpo vivo que respira tradição, resistência e renovação. Aqui, onde o vento salgado do mar encontra as vinhas que se estendem como veias pela terra, o vinho não é apenas “bebida” – é memória líquida, um gesto ancestral que persiste contra o tempo.
A região de Lisboa é uma joia que se revela em silêncios e detalhes. São nove as denominações de origem que compõem o mosaico vitivinícola — de Colares, com as suas vinhas rasteiras fincadas na areia e protegidas dos ventos marítimos por caniçais, a Bucelas, berço dos brancos vibrantes de Arinto, que já encantavam a corte inglesa nos tempos de Shakespeare.

Cada sub-região traz consigo um relato próprio, como se o vinho fosse um conto narrado pela boca da terra. Em Óbidos e Alenquer, o clima ameno e a diversidade de solos dão origem a tintos robustos e aromáticos. Já em Torres Vedras e Lourinhã, o legado se expande para além do vinho, com a produção de aguardente vínica certificada — uma raridade europeia que acrescenta camadas à identidade líquida da região.
Mas talvez o mais fascinante desta região esteja na sua capacidade de se manter fiel à essência, mesmo em tempos de globalização enológica. Há aqui uma filosofia implícita de resistência – preservar castas autóctones como a Ramisco ou a Vital é, ao mesmo tempo, um ato político e poético. Significa acreditar que o terroir — essa aliança mística entre solo, clima e mão humana — carrega uma verdade que não pode ser reproduzida em laboratório.

Ao percorrer as vinhas de Lisboa, o visitante atento não encontrará apenas belas paisagens ou vinhos bem pontuados. Encontrará, antes, um diálogo entre passado e futuro, entre natureza e cultura. Porque fazer vinho, aqui, é escutar o rumor da história que se infiltra no presente. É cultivar o tempo, como escreveu o filósofo Gaston Bachelard, e engarrafá-lo com a paciência de quem sabe que a pressa é inimiga da profundidade.
A região vitivinícola de Lisboa é, portanto, mais do que um território de produção: é um lugar de reflexão. Um espelho onde se pode ver o que somos — um povo que transforma adversidade em arte, que sabe colher beleza do chão árido, e que, entre goles e silêncios, ainda reconhece no vinho uma forma de dizer o indizível.

AdegaMãe

As nove faces de um terroir…

A Região Vitivinícola de Lisboa ergue-se como um corredor de memórias e ventos atlânticos, onde a vinha floresce entre brumas e colinas. Não é apenas um conjunto de nomes geográficos, mas uma constelação de identidades, cada qual com o seu caráter, a sua história, a sua filosofia líquida.
Alenquer, por exemplo, respira um classicismo aristocrático. As vinhas abraçadas pelas encostas da Serra de Montejunto criam tintos encorpados, de taninos firmes e alma quente, quase como se a terra ali tivesse memória de sangue e batalhas. Aqui, o vinho é um discurso sério, uma carta escrita à mão, com tinta escura e caligrafia firme.
Arruda dos Vinhos, mais discreta, é como um poema sussurrado. A sua localização mais interior afasta-a da influência direta do Atlântico, permitindo uma maturação mais calma das uvas. Os vinhos que nascem ali são equilibrados, de estrutura média, como quem sabe contar histórias sem levantar a voz — há uma elegância contida, uma sobriedade que conforta.
Já Bucelas, a norte de Lisboa, é um caso à parte. Conhecida desde os tempos romanos, foi exaltada por Shakespeare e Napoleão. É a terra do Arinto, casta que aqui atinge um fulgor quase metafísico. Os vinhos de Bucelas são como aforismos de Nietzsche: acidez cortante, frescura estonteante, longevidade quase eterna. É o vinho que pensa, que filosofa, que guarda silêncio com densidade.

Carcavelos, uma DOC quase desaparecida, é um suspiro do passado que resiste ao esquecimento. Entre o urbano e o litoral, entre o betão e a brisa, os vinhos fortificados de Carcavelos são feitos com a paciência do tempo. Doce, complexo, enigmático — como um manuscrito antigo resgatado das cinzas da modernidade.
Colares é, talvez, a mais heroica das denominações. As vinhas sobrevivem enterradas na areia, próximas do mar bravo, plantadas em pé franco, como quem desafia a lógica e a filoxera. Os tintos, feitos com Ramisco, são vinhos de tempo e temperamento, austeros e salinos, como um fado gravado em vinil gasto. Os brancos, por sua vez, têm a luz do Atlântico e a alma da resistência. Colares é um manifesto existencial.

AdegaMãe

Encostas d’Aire, partilhada com a região do Centro, é a transição, o limiar. Os vinhos que aqui nascem espelham essa condição: há diversidade, há contrastes, há a beleza dos lugares que não se deixam definir por uma só palavra. São vinhos que nos lembram que a identidade pode ser múltipla sem perder a essência.
Lourinhã, curiosamente, é uma DOC dedicada apenas à aguardente vínica. É uma exceção no país e uma ode à destilação como alquimia. A aguardente de Lourinhã é o espírito depurado da vinha — literal e metaforicamente. É o vapor transformado em ouro, é a filosofia líquida levada ao extremo: essência sem corpo, fogo sem labareda.
Óbidos revela outra face deste mosaico. Com influências atlânticas e uma tradição agrícola viva, os vinhos de Óbidos têm frescura, vivacidade, um certo encanto campestre. Os brancos, em particular, são notas de piano em manhãs de nevoeiro, e os tintos, embora mais contidos, mantêm uma tensão elegante — como quem dança sem querer ser visto.

E por fim Torres Vedras é a força produtiva. Antigamente associada a vinhos de volume, hoje renasce com uma nova consciência. Aqui, o trabalho do homem é visível na reinvenção. A diversidade de castas e solos permite estilos distintos, desde os mais simples até os mais ambiciosos. É o lugar onde a tradição se encontra com o futuro, onde o vinho começa a filosofar sobre si mesmo.

Sabores sentidos … nos livros de História

Na região vitivinícola de Lisboa, a gastronomia tradicional revela-se como um eco do tempo. Entre vinhas que respiram brisas atlânticas e colinas e se entrelaçam com a história, a mesa é sempre um lugar sagrado. Em Alenquer, o cabrito assado dança com tintos robustos; em Bucelas, o Arinto encontra sua harmonia nas caldeiradas delicadas; em Colares, onde o chão de areia resiste ao esquecimento, o peixe fresco e o vinho envelhecido em casco invocam o espírito da resistência. Cada prato é um território e cada copo, um testemunho de culturas que não se apagam, de um saber que é mais do que técnica: é pertença. Num tempo que valoriza a velocidade, estes sabores pedem pausa e contemplação, como quem entende que comer é, também, lembrar-se de onde se vem.

Mas Torres Vedras, onde se localiza a AdegaMãe, não é apenas um nome marcado nos livros de História por batalhas e linhas defensivas — é também território onde a memória se senta à mesa. No ventre da região Oeste, entre colinas suaves e vinhas generosas, a gastronomia tradicional Torreense resiste ao tempo como um prato que nunca esfria. Comer aqui não é apenas nutrir o corpo, é um ato de pertença, uma conversa silenciosa com o passado.
A cozinha de Torres Vedras é feita de gestos herdados. Cada receita, por mais singela, carrega um fragmento de mundo antigo. As feijoadas ricas, os ensopados fumegantes, as sopas espessas e os doces conventuais falam em voz baixa sobre um tempo onde tudo era aproveitado. O bacalhau — presença quase litúrgica na mesa portuguesa — ganha aqui interpretações comedidas, onde a cebola se confunde com azeite até se tornar quase doçura.

Mas é nos sabores da terra que a alma se revela com mais nitidez. O pão ainda nasce dos fornos a lenha, com a crosta marcada pelo fumo e a miolo guardando o calor como um segredo. As couves, batatas e feijões vindos das hortas de quintais humildes não são apenas ingredientes, são testemunhos vivos de uma ligação entre homem e chão que não se deixou quebrar.
E depois há os doces, esse capítulo à parte. Os “pastelinhos de feijão”, herdeiros de tradições conventuais, são exemplo de como o açúcar pode ser uma forma de eternidade. Pequenos bolos de aparência modesta, mas com interior denso, perfumado, quase místico. Em cada dentada, uma monja anónima parece sorrir através dos séculos.
Num mundo onde a cozinha se rende à pressa e ao plástico, a gastronomia tradicional de Torres Vedras é um exercício de resistência filosófica. Ela recusa o efémero e celebra o duradouro. Alimentar-se, aqui, é uma forma de respeitar o tempo. E talvez seja isso que a filosofia da mesa torreense nos sussurra: que o verdadeiro luxo é o que permanece, o que se transmite, o que se partilha com vagar.

Entre o aroma do pão quente e o brilho do vinho local, a tradição gastronómica de Torres Vedras não é apenas algo que se saboreia, é algo que nos saboreia de volta, porque ao degustarmos os seus pratos, somos também degustados pela história. E, de alguma maneira, voltamos a ser inteiros.
Neste quadro quase que idílico passei ao lado da Capital Portuguesa numa “pressa” desenfreada para chegar à AdegaMãe, em Ventosa, Torres Vedras, para ver um edifício que não se impõe, mas que observa e convida a observar.

O Bacalhau foi o mote, o vinho a paixão

No coração da região Vitivinícola de Lisboa, entre os ventos atlânticos e os solos férteis de Torres Vedras, ergue-se a AdegaMãe, não apenas como um edifício de linhas modernas entre colinas ondulantes, mas como uma ideia encarnada: a de que o vinho pode ser um ponto de partida, um ventre simbólico onde tradição e inovação se encontram num mesmo gesto criador.
Fundada em 2011 pela família Alves — também fundadora do grupo Riberalves (o Bacalhau) —, a AdegaMãe nasceu de um sonho antigo de erguer uma adega que celebrasse a herança histórica da região, fortemente marcada pela cultura da vinha e do vinho.

Erguida pela família Alves, fundadora do Grupo Riberalves, a AdegaMãe nasce, também, como homenagem à matriarca, Manuela Alves. E é, ao mesmo tempo, a inspiração para um espaço de nascimento, de criação, no qual se pretende potenciar as melhores uvas e fazer nascer os melhores vinhos.
O nome não é acaso: “Mãe” evoca origem, cuidado, nutrição. Fazer vinho, aqui, é um ato quase maternal, que exige paciência, escuta e entrega. Não se trata apenas de transformar uva em líquido, mas de acompanhar um processo de maturação onde cada decisão — da vinha à cave — carrega o peso do tempo e o eco do futuro.
Desenhada pelo arquiteto Pedro Mateus, ela insere-se na paisagem sem a dominar, como se procurasse dialogar com a natureza ao invés de impor. A AdegaMãe nasce do solo com a mesma humildade que caracteriza as vinhas que a rodeiam. Com linhas retas e volumes depurados, a construção parece prolongar-se no espaço como uma contemplação silenciosa da paisagem. O betão, o vidro e o aço coexistem num equilíbrio discreto, quase monástico, como se a própria arquitetura respirasse ao ritmo das vinhas.

Mais do que um edifício funcional, trata-se de um espaço onde a técnica e a estética dialogam. A adega está orientada segundo os princípios da gravidade, respeitando o percurso natural do vinho, desde a receção da uva até ao estágio em barrica. Mas é no modo como o edifício se abre ao exterior que reside a sua poesia maior. As amplas superfícies envidraçadas revelam o vinhedo em todas as direções, como se a paisagem fosse parte integrante da experiência do visitante, do enólogo, do vinho.
Lá dentro, o silêncio impõe-se com a solenidade de um templo. A cave de barricas, mergulhada numa penumbra quase litúrgica, convida à introspeção. A fermentação, esse milagre da natureza guiado pela mão humana, é aqui tratada com a dignidade de um ritual. Há uma espécie de espiritualidade moderna no modo como a arquitetura da AdegaMãe acolhe os elementos — a luz, o tempo, o vinho.
No topo, a sala de provas abre-se ao infinito. Não há janelas, há molduras. O olhar percorre o vale, toca as serras ao longe, escuta o vento que chega do Atlântico que se perde por entre os corredores de vinha. Aqui, provar um vinho é mais do que um ato sensorial: é uma experiência existencial. Cada copo contém um território, cada aroma evoca uma estação, cada trago é memória e promessa.

A AdegaMãe é, portanto, mais do que um espaço de produção — é um lugar de encontro entre o homem e a terra, entre a técnica e o espírito. A arquitetura não serve apenas o vinho, serve a ideia de que a beleza também pode, e deve, estar presente no gesto produtivo. Que o vinho, sendo cultura, merece um lar que o celebre com a mesma nobreza com que nasce.
No plano técnico, a AdegaMãe representa uma nova geração de vinhos portugueses comprometida com a qualidade e a autenticidade, mas sem medo de experimentar. Aqui combinam-se castas autóctones, como a Touriga Nacional ou a Vital, com variedades internacionais como Chardonnay, Syrah e Pinot Noir, resultando em vinhos que respiram mundo sem perder o sotaque da terra. A influência atlântica, marcada por dias amenos, noites frescas e solos diversos, imprime aos vinhos uma frescura e elegância que os tornam distintos, quase meditativos, sob a orientação do enólogo Diogo Lopes. A arte da enologia atinge uma expressão rara de precisão e sensibilidade. O seu trabalho excecional traduz-se em vinhos que respeitam o território, revelando com elegância a frescura atlântica e a complexidade do terroir desta região. É dele a visão que conduz a AdegaMãe por um caminho de inovação sem desviar da autenticidade — uma alquimia de saber e paixão que se prova em cada copo.

Mas talvez o traço mais filosófico da AdegaMãe esteja na sua postura em relação ao tempo. Num mundo acelerado, ela cultiva a lentidão. Os seus vinhos pedem escuta, não pressa. Pedem presença. Cada garrafa é um convite à contemplação, à pausa, ao retorno a uma forma mais sensível de estar no mundo. Como escreveu Heidegger, “a origem é aquilo que nunca deixa de nascer” — e a cada vindima, a AdegaMãe recomeça esse parto simbólico, lembrando-nos que o essencial se cultiva devagar.
Mais do que um produtor de vinhos, a AdegaMãe é um espaço, um território de pensamento. Um lugar onde a técnica serve ao sentido, e o comércio se curva à cultura. É, sobretudo, um lembrete de que o vinho, quando feito com verdade, é uma forma de dizer aquilo que a linguagem não alcança: o sabor do tempo, o mistério da terra, e o gesto amoroso de quem transforma o fruto em permanência.

O enoturismo… sensorial e contemplativo

Um nome que mais parece sussurro de ancestralidade do que marca comercial. A sua proposta de enoturismo transcende o simples ato de degustar vinho. É uma viagem sensorial e meditativa pelos caminhos do tempo, da terra e da memória.
O enoturismo na AdegaMãe é pensado como uma travessia que conjuga o rigor técnico com uma rara sensibilidade estética. A paisagem que a acolhe é o preâmbulo perfeito para o que se vai viver ali dentro. Ao chegar, o visitante é recebido por uma arquitetura que se funde com o território — linhas modernas em diálogo com a rusticidade das vinhas antigas. Há uma serenidade quase monástica nos percursos propostos, como se cada passo fosse uma oferenda à paciência das videiras, que crescem ao ritmo da natureza e do silêncio.

A visita começa com a paisagem. Diante das vinhas, o olhar perde-se entre linhas de videiras que seguem o ritmo ondulante do solo, marcado pela influência marítima que imprime aos vinhos da região uma frescura identitária. O guia não se limita a descrever castas e técnicas — partilha o espírito do lugar, como se cada cepa fosse uma personagem numa narrativa coletiva, feita de geologia, clima e mãos humanas, metáfora viva da espera, do cuidado e da finitude.

O percurso segue para o interior da adega, onde se acede às áreas de vinificação. O espaço é funcional, mas carregado de simbolismo. Cubas de inox alinham-se como sentinelas silenciosas, onde o vinho começa a tomar forma — não apenas como bebida, mas como expressão sensorial de uma paisagem. Cada fase da produção é apresentada como um rito de passagem: da fermentação ao estágio, da espera ao engarrafamento. Aqui, o tempo não é inimigo, mas cúmplice. É neste espaço que se escuta o murmúrio do vinho a fermentar — um som discreto, mas carregado de promessas. Aqui não se trata o vinho como um produto, mas como um ser em metamorfose – vivo, mutável, sujeito ao capricho das estações e ao gesto do enólogo.

 

AdegaMãe
Bernardo Alves, filho dos fundadores da empresa e Ceo da AdegaMãe

 

Luz contida e aromas lenhosos

Segue-se a sala de barricas, onde a luz é contida e o ar denso de aromas lenhosos. É um lugar que convida ao silêncio e à introspeção. O vinho, encerrado em madeira, parece meditar — ou sonhar. Quem percorre este espaço compreende que fazer vinho é, antes de tudo, um exercício de escuta. Escutar a uva, o ano, a madeira, o silêncio. Escutar, até que o vinho se revele.
A experiência culmina na sala de provas, realizada num espaço que se abre sobre o horizonte, onde a “linha do mar” se insinua entre vales. Cada copo oferece mais do que sabor: oferece um instante de contemplação. Os vinhos da AdegaMãe — brancos minerais, tintos elegantes, rosés subtis — são expressão de um terroir moldado pelo Atlântico, e de uma filosofia que alia ciência e alma. Provar é, aqui, uma forma de pensar. De estar presente.

Por fim, há ainda a loja e o espaço cultural, onde se contemplam garrafas com rótulos poéticos e se promovem eventos que cruzam arte, vinho e filosofia. Visitar este lugar é compreender que o enoturismo pode ser um ato de introspeção — e que beber um vinho, em silêncio, pode ser tão revelador quanto ler um poema ou contemplar a natureza. Provar é, aqui, uma forma de pensar. De estar presente.
Também, é possível almoçar ou jantar no restaurante “Sal na Adega” que combina a tradição culinária com a sofisticação dos vinhos atlânticos, criando uma experiência única para os amantes da boa mesa.

O restaurante destaca-se pela sua localização privilegiada, com uma vista deslumbrante sobre as vinhas que definem a paisagem da região. No menu, o bacalhau, ícone da cozinha portuguesa, assume um papel de destaque, acompanhado por outros produtos sazonais e locais, que refletem a riqueza da terra e do mar. A harmonização com os vinhos da AdegaMãe, conhecidos pela sua frescura e mineralidade, eleva cada prato a um novo patamar de sabor.
Além da experiência gastronómica, o “Sal na Adega” oferece um ambiente requintado e acolhedor, ideal para momentos especiais. O espaço inclui ainda um wine bar, onde os visitantes podem explorar os vinhos produzidos numa adega que não é um destino. É um intervalo no tempo onde o vinho serve de ponte entre o que somos e o que poderíamos ser. Onde o tempo desacelera, e onde o vinho — tal como a Mãe — nutre, guarda e devolve ao mundo algo mais inteiro.

O autor deste texto escreve segundo o novo acordo ortográfico

Caderno de visita

COMODIDADES

– Línguas faladas: português, inglês e espanhol

– Loja de vinhos: Sim

– Restaurante com lugar para 56 pessoas

– Bar com 16 lugares

– Sala de eventos para 120 pessoas

– Duas salas de reuniões

– Diferentes atividades e refeições (sob consulta)

– Parque para automóveis ligeiros: 50 Lugares

– Parque para autocarros

– Posto de carregamento de carros elétricos: Não tem

– Provas comentadas (ver programas)

Wifi gratuito disponível

– Visita às vinhas

– Visita à Adega

 

EVENTOS

Eventos corporativos (sob consulta)

Atividades team building: ações como provas de vinho e atividades como Winemaker for a day, a 80 €.

 

 PROGRAMAS

Horários das visitas (sujeitos a confirmação de disponibilidade): 10h30, 12h00, 14h30, 16h00 e 18h30 (Esta é apenas realizada em dias de jantar).

 Visita sem prova – 10€/pessoa

Duração: 30 a 40 minutos

 Provas

Duração: 30 minutos

 AdegaMãe Bronze – 18€/pessoa

Três vinhos: Dory Branco, Dory Tinto, AdegaMãe Reserva Tinto

AdegaMãe Silver – 25€/pessoa

Seis vinhos: Dory Branco, Dory Tinto, um Monocasta Branco, um Monocasta Tinto, AdegaMãe Reserva Branco, AdegaMãe Reserva Tinto

AdegaMãe Gold – 45€/pessoa

12 vinhos: Dois Dory colheita, um Bio ou Palhete, quatro Monocastas, dois  AdegaMãe Reserva, um Espumante AdegaMãe 221, um Vinho de Parcela

AdegaMãe Special Editions – 65€/pessoa

Seis vinhos: Um Espumante Rosé, três Vinhos de Parcela, dois AdegaMãe Terroir

 

PROVAS GASTRONÓMICAS

(Visita guiada incluída/Mínimo duas pessoas)

 Harmonização petiscos – 60€/pessoa

Seis vinhos e quatro petiscos. Duração: 90 minutos.

 Harmonização Sal na Adega – 85€/pessoa

Seis vinhos e quatro momentos.

 Brunch – 50€/pessoa

Várias iguarias e quatro vinhos. Duração: 90 minutos.

 

CONTACTOS

AdegaMãe

Estrada Municipal 554, Fernandinho

2565-841 Ventosa

Site: www.adegamae.pt

Email: geral@adegamae.pt

Tel.: +351 261 950 100

Restaurante e Enoturismo

Email: enoturismo@adegamae.pt

Tel.: +351 261 950 105

(Artigo publicado na edição de Maio de 2025)

 

Altas Quintas: Azeites, borregos e um vinho com mel

Altas Quintas

O evento teve como objectivo apresentar, a um público diversificado (incluindo lojistas especializados, produtores agro-alimentares, jornalistas, Horeca), os novos lançamentos de algumas das empresas da família Leitão Machado, em particular da vinícola Altas Quintas e da Herdade de Vale Feitoso. Em destaque, dois azeites, a carne de borrego da raça Churra do Campo e um […]

O evento teve como objectivo apresentar, a um público diversificado (incluindo lojistas especializados, produtores agro-alimentares, jornalistas, Horeca), os novos lançamentos de algumas das empresas da família Leitão Machado, em particular da vinícola Altas Quintas e da Herdade de Vale Feitoso. Em destaque, dois azeites, a carne de borrego da raça Churra do Campo e um inédito vinho aromatizado com mel.

José Manuel Fernandes, ministro da Agricultura, convidado para abrir a sessão, referiu, em tom de lamento, aquilo que muitos não dizem, em nome do “politicamente correcto”: “às vezes, parece que temos de justificar a importância da dieta mediterrânica e referir que é património imaterial da humanidade. Às vezes, parece que temos vergonha de dizer que agricultores e caçadores não são inimigos do ambiente, antes pelo contrário, são seus cuidadores…”

Estava dado o mote para a interessantíssima palestra do Cónego José Manuel dos Santos Ferreira, apoiada pelas questões do jornalista Edgardo Pacheco (“mais acostumado a falar sobre assuntos terrenos”, como salientou), em torno do simbolismo do vinho, da oliveira, do azeite, do mel e do cordeiro, elementos centrais na cultura mediterrânica.

O valioso conjunto de telas alusivas à vida de São Jerónimo, que decoram a sacristia, serviram de tema de abertura ao Cónego, abordando a vida deste disseminador da fé cristã nos primeiros tempos do catolicismo, sem escamotear a sua personalidade “difícil, polémica e implacável”, como salientou. Passámos depois ao azeite e à oliveira, árvore austera, de vida longa, que simboliza a salvação e a prosperidade, inúmeras vezes usada como metáfora no Antigo Testamento, símbolo de paz desde há tempos imemoriais. Também o mel tem muitas referências bíblicas, apontado como fonte de energia e com propriedades curativas, ligado à suavidade e à sabedoria.

A palestra do Cónego José Manuel dos Santos Ferreira, apoiada pelas questões do jornalista Edgardo Pacheco, decorreu em torno do simbolismo do vinho, da oliveira, do azeite, do mel e do cordeiro, elementos centrais na cultura mediterrânica

 

Do vinho, ficámos a saber que já na tradicional refeição da Páscoa judaica, o Seder de Pessach, se consumiam quatro taças de vinho, simbolizando as quatro promessas de Deus aos israelitas. Na liturgia cristã, e na Última Ceia, Jesus deu-lhe nova essência, o cálice da bênção deixa de ser vinho e passa a ser o sangue do sacrifício, fundamental na eucaristia. Como acentuou o Cónego José Manuel dos Santos Ferreira, “não há missa sem vinho”.

Finalmente, o cordeiro. Antes do cristianismo, era símbolo da simplicidade e fragilidade da vida. Na cultura judaica, fez parte do rito sacrificial. E enquanto cordeiro pascal, tem profunda simbologia cristã. O rito do sacrifício desapareceu, mas o simbolismo não, continuando a ser consumido em muitas casas no domingo de Páscoa.

E podemos agora passar aos assuntos terrenos, nos quais, tal como Edgardo Pacheco, me sinto bem mais confortável, sobretudo para escrever sobre.

Altas Quintas e Vale Feitoso

A Herdade do Vale Feitoso, situada em Monfortinho, é uma das maiores propriedades privadas de Portugal, com 7.500 hectares de paisagens preservadas. A herdade tornou-se um extraordinário refúgio de biodiversidade, albergando uma imensidão de fauna e flora ibérica. Comprometida com a recuperação de diversas espécies animais em vias de extinção (o bisonte europeu é uma delas), tem vindo a apostar na produção de azeites, na caça sustentável (Sabor Selvagem é a marca de carne de caça da herdade) e na recuperação da ovelha Churra do Campo, raça de ovinos originária da fronteira entre a Beira Baixa e Espanha e de tal modo ameaçada, que a sua população em Portugal é inferior a mil exemplares, número, como foi salientado, inferior ao do lobo…

Vale Feitoso, em colaboração com um produtor e preparador de carne de ovelha alentejana, tem vindo a recuperar a raça e a comercializar esta carne (apenas se abatem machos, para garantir a reprodução consistente dos efectivos), cuja excelência pudemos comprovar no evento pela mão afinada do chef Vítor Sobral. A carne de borrego da raça Churra do Campo pode desde já ser adquirida nas lojas do El Corte Inglês.

Antes da refeição, no entanto, houve lugar a uma prova dos dois azeites agora lançados, orientada por Edgardo Pacheco. A Herdade de Vale Feitoso tem mais de 200 hectares de oliveiras centenárias, um património que Edgardo, profundo conhecedor da matéria, considera único: “Quando fui pela primeira vez a Vale Feitoso nem queria acreditar na dimensão do olival velho e na profusão de variedades de azeitona, dezenas delas, muitas completamente desconhecidas”, disse. Hoje, está a ser feito, com o Instituto Politécnico de Bragança, um trabalho de investigação e identificação destas variedades. Quanto aos azeites agora lançados, elaborados em lagar próprio, são provenientes de zonas distintas deste olival centenário e de azeitonas colhidas em momentos diferentes. Ambos da safra de 2024, o azeite Altas Quintas é mais suave e frutado, enquanto o Vale Feitoso, oriundo de azeitonas mais verdes e de uma parcela chamada Lavajo, é mais herbáceo, amargo e picante. Já à venda nas lojas especializadas, o primeiro custa €18 (500ml) e o segundo €20.

 

Também o mel tem muitas referências bíblicas, apontado como fonte de energia e com propriedades curativas, ligado à suavidade e à sabedoria.

Finalmente, o Melitvs. O rótulo lê-se Melitus e o conteúdo da garrafa inspira-se nos vinhos aromatizados com mel que eram comuns na antiga civilização romana. Trata-se do novo produto Altas Quintas, marca consagrada entre os vinhos do Alentejo, nascida na vindima de 2004. Propriedade da família Leitão Machado desde 2023, a Altas Quintas tem a sua vinha e adega nas encostas da serra de São Mamede, Portalegre, onde tira partido de um terroir influenciado pela altitude para produzir vinhos que conjugam qualidade e carácter. Atributos que não faltam ao Melitvs, que combina a frescura habitual dos brancos Altas Quintas com o mel biológico de Vale Feitoso, e que saiu das mãos dos enólogos António Ventura, Tiago Correia e Diogo Vieira.  Da colheita de 2024, foi feito com as castas Fernão Pires e Verdelho e estagiou depois numa ânfora de barro. O resultado é surpreendente, revelando um vinho delicado e intenso ao mesmo tempo, com o mel a dar leve doçura compensada por excelente acidez. Prazer, originalidade e história numa garrafa que custa uns módicos €14 (500ml).

Azeite, mel, borrego, vinho. Mais mediterrânico do que isto, é difícil. Como disse, no final do evento, Ricardo Leitão Machado, “somos o que comemos”. Assim seja.

(Artigo publicado na edição de Maio de 2025)

A Baga nas suas oito quintas…

baga

Com o Rio Mondego a Sul, o Rio Vouga a Norte, o Oceano Atlântico a Este, e as Serras do Caramulo e do Buçaco a Oeste, a Bairrada, região vitivinícola demarcada em 1979, tem hoje características únicas. Com uma predominância de solos argilosos, um clima temperado pelo Oceano Atlântico e o cultivo de castas autóctones […]

Com o Rio Mondego a Sul, o Rio Vouga a Norte, o Oceano Atlântico a Este, e as Serras do Caramulo e do Buçaco a Oeste, a Bairrada, região vitivinícola demarcada em 1979, tem hoje características únicas. Com uma predominância de solos argilosos, um clima temperado pelo Oceano Atlântico e o cultivo de castas autóctones como a Baga, o rio Cértima é a veia da região, que vai da ponta Sul até à maior lagoa natural da Península Ibérica, a Pateira de Fermentelos.

A Baga é a casta tinta, autóctone e predominante, que marca a identidade da região da Bairrada. Plantada em solos argilosos, com uma excelente exposição solar, produz em grande quantidade, cachos pequenos e com uma maturação tardia.
Destaca-se por produzir vinhos ricos em taninos, de elevada acidez, intensos na cor e com uma concentração elevada de aromas, que suportam bem o envelhecimento. É uma casta que dá destaque à região, com a produção de uma diversidade de vinhos, desde base de espumante, a vinhos rosé e, naturalmente, vinhos tintos.

A partilha do sentimento de admiração e paixão pela casta Baga e região da Bairrada, assim como as preocupações quanto ao seu futuro, levaram a que, em 2012, um grupo de produtores unisse forças e criasse os “Baga Friends”. O grupo, hoje constituído pelos oito produtores acima mencionados, mantém-se unido com o propósito de promover e reforçar a visibilidade da casta Baga para o mercado nacional e internacional e de contribuir para o prestígio dos vinhos produzidos na região. É um grupo heterogéneo que se complementa, onde cada um dos produtores cria vinhos diversificados, seguindo diferentes caminhos enológicos, procurando novas versões – mais clássicas ou modernas – mas mantendo sempre a ligação à autenticidade da região, à casta e à expressão da qualidade e seu potencial.
O Dia Internacional da Baga foi criado pelos Baga Friends aquando da celebração dos seus dez anos de existência, em 2022, e celebra-se, todos os anos, no primeiro sábado de Maio.

A Baga é a casta tinta, autóctone e predominante, que marca a identidade da região da Bairrada.

Variações sobre uma casta

Começámos os “trabalhos” cedo, pelo meio da manhã. O Patrão do Vadio, Luís de seu nome, tinha trazido uma novidade: o Finuum, que era nada mais, nada menos, que o vinho branco base do seu belíssimo Espumante Perpetuum, feito a partir de uma Solera iniciada em 2007. Este Finnum é produzido, pois, com algum vinho da colheita de 2021 e envelhecimento parcial biológico com véu-de-flor e estágio em solera. A semelhança com os Finos de Jerez é notória, mas menos intensa, e com os aromas e sabores transmitidos pelo véu de flor menos marcados, mais elegante e mais equilibrado. Será sempre óptima companhia para um saboroso prato de “Jamón de bellota”!

Trouxe mais dois vinhos, o Grande Vadio tinto 2017, que invoca a expressão máxima da Baga na Bairrada, definida pela elegância, frescura e capacidade de envelhecimento. Provém de vinhas de encosta, onde a exposição potencia melhores maturações e a Baga melhor se revela. Cada parcela é vinificada em pequenos depósitos, com remontagens manuais. Após a prensagem, os vinhos novos são transferidos de imediato para barricas usadas de 500 l onde ocorre a fermentação malolática e o estágio mínimo de 12 meses. O engarrafamento é mais precoce que o Vadio, a fim de manter uma maior definição de fruta e textura no tanino. No aroma revelou grande definição na fruta, onde se destacaram os frutos silvestres e notas balsâmicas típicas da Baga. O palato evidenciou grande harmonia e elegância, dominado por taninos delicados e acidez equilibrada. Já o Vadio tinto 2005, por sua vez, respeitando o estilo mais clássico da região da Bairrada, foi fermentado em pequenos lagares e envelheceu durante 18 meses em carvalho usado, e mais 18 meses em garrafa. Anualmente, 10% da produção do Vadio é guardada para um relançamento de uma edição 10 anos, com o objectivo de, segundo Luís Patrão, “poder demonstrar o potencial de envelhecimento dos vinhos produzidos a partir da casta Baga”, coisa que, passados 20 anos sobre este 2005, foi ampla e distintamente demonstrada.

“A Baga é intérprete de um terroir, tal como são o Nebbiolo em Barolo, ou o Pinot Noir na Borgonha. É também vector de promoção, afirmando um património cultural na defesa do bem comum”, diz François Chasans, da Quinta da Vacariça. François é caviste em Paris e, em 1998, provou um vinho da Bairrada que o levou a querer fazer vinho na região, no país de onde é proveniente a sua esposa. A Quinta da Vacariça tem cerca de 3 ha, com alguma zona de vinha velha e outras de plantação recente: 2 ha de vinha em Tamengos 100% Baga, 0,3 ha de vinha de 90 anos com variedade de castas autóctones brancas e tintas e 0,8 ha em Ventosa do Bairro. Francês da região da Normandia, François explora o seu terroir como se houvesse ouro dentro… “Para mim, é claro que o vinho se faz na vinha. Na adega, não uso nenhum produto, mesmo se autorizado em biodinâmica, com excepção de uma dose mínima de sulfitos. A vindima é manual em caixas perfuradas de 18kgs, o enchimento dos lagares e dos tonéis é feito por gravidade, as pigéages e remontagens são curtas e fraccionadas, e os estágios são de dois anos em foudre de carvalho. O engarrafamento é feito sem filtração, e o vinho estagia em garrafa durante 10 anos antes de ser comercializado. Também uso ovos de betão e ânforas de argila. Neste momento, estou a fazer ensaios para um vinho branco sem sulfitos e para um vinho laranja.” O produtor trouxe dois tintos, o Tonel 23 de 2011, e o 2015, que sairá para o mercado nunca antes de 2034 (!!!). Vinhos fantásticos. E “é disto que o meu povo gosta!”, já dizia o saudoso Jorge Perestrelo, nunca pensando, no entanto, que esta sua emblemática expressão pudesse ser aplicada a um vinho. Mas pode. Mesmo.

 

O Dia Internacional da Baga foi criado pelos Baga Friends aquando da celebração dos seus dez anos de existência, em 2022, e celebra-se, todos os anos, no primeiro sábado de Maio

 

Paulo Sousa, neto de Sidónio Sousa, que se iniciou na produção de vinho por volta de 1930, dedica-se a 100% à marca de vinhos que todos conhecemos, criada pelo seu pai em 1990, também Sidónio de seu nome. Hoje, são 12 hectares de vinhas próprias, em expansão, plantadas em solo argilo-calcário, em Ancas, na Bairrada. Provámos o espumante Special Cuvée 2022, feito de Baga, que se apresentou jovem e fresco, numa cor levemente rosada, frutado e com notas frutos secos, na prova teve uma bolha muito fina que se desfez graciosamente, dando muito prazer a beber. Dois tintos, ambos 100% Baga, o Reserva 2017 que apresentou boa acidez, típica da região, grande estrutura, taninos de qualidade, encorpado mas macio, e o Garrafeira 2017, um vinho superlativo em toda a sua extensão, dominado por notas de frutos silvestres e de floresta, extremamente elegantes, com taninos firmes e assertivos mas sem nenhuma aresta, um verdadeiro luxo e muita classe. Vinhas centenárias, repletas de castas autóctones, onde predominam a Baga e a Maria Gomes, plantadas em solos pedregosos e pobres, a matéria-prima é escassa, mas extremamente preciosa. Os solos de natureza calcária, que permitem a elaboração de vinhos únicos e inconfundíveis, ajudam à retenção da acidez natural e, transmitindo frescura e mineralidade, contribuem para a autenticidade, singularidade e complexidade do produto final.

Novos e antigos

E isto pode muito bem ser a definição dos vinhos Giz, de Luís Gomes, o mais recente membro dos Baga Friends. Um projeto empreendedor, que tem como foco principal a recuperação de vinhas antigas e tradicionais (salvando-as do desenraizamento) e a produção de vinhos autênticos em solos de natureza calcária, lembrando giz. Trouxe uma novidade, o seu mais recente espumante, belíssimo por sinal, o Giz Cuvée de Noirs 2018 Late Release, feito de Baga, com 60 meses de estágio, e dois tintos já nossos conhecidos, o Giz Vinhas Velhas 2021 e o Giz Vinha das Cavaleiras 2020, ambos de Baga, ambos de cheios de carácter e sentido de terroir.

O famoso “Mário Sérgio das Bágeiras” não veio desta vez. Veio o seu filho Frederico, e muito bem, diga-se de passagem, pela garantia de continuidade do projecto e do conceito deste produtor, orgulhoso vigneron, que nos vinhos não utiliza outras uvas que não as das suas vinhas, cuidadas com esmero ao longo do ano. Trouxe três vinhos: o já clássico espumante rosé de Baga, engarrafado no ano seguinte à vindima, que neste caso foi 2022, e sendo um Bruto Natural não teve qualquer adição de açúcar no licor de expedição; uma novidade, o Pai Abel rosé 2022, sempre de louvar quando os vinhos rosés são pensados, e feitos, como um “vinho à séria”, perfeitos para acompanhar uma refeição do princípio ao fim, como, por exemplo, uma Alheira do Fiolhoso com grelos salteados; e o já icónico Bágeiras Garrafeira tinto, na sua edição de 2020.

Filipa Pato também trouxe três vinhos, o Roleta Russa rosé 2023, a sua primeira experiência em vinho tranquilo rosé com a casta Baga, ligeira maceração pelicular, envelhecido seis meses em cascos de 500 e 600 litros, apresentou uma cor rosa com laivos alaranjados, aromas cítricos e alguma fruta vermelha, estrutura fina, taninos suaves, e uma alma profundamente mineral dos solos de calcário da era Jurássica. Complexo e refrescante, outro excelente rosé, outro “vinho à séria”, para acompanhar uma refeição de cozinha asiática ou umas tradicionais sardinhas grelhadas. Sem medos. Também veio um tinto, o Post Quercus Baga Bio 2023, sem madeira, feito em ânforas de barro. Um tinto com taninos muito macios, que expressa a pureza da fruta da casta Baga. E um vinho muito singular, o Espírito de Baga, um vinho fortificado, à moda dos vinhos do Porto Vintage, intenso e estruturado, mas sedoso, fresco e muito vivo, graças à acidez natural da casta e da região, e que deu imenso prazer a beber. “Na Bairrada, a Baga é a casta que melhor respeita o local e o Homem que a molda”, diz Filipa Pato

Já Luís Pato, por sua vez, trouxe alguma artilharia pesada, porque, como diz um nosso amigo comum brasileiro, “Festa é coisa séria!”. Vinha Pan e Vinha Barrosa, ambos de 2015, Vinha Pan 2020, e o espumante Vinha Pan 2015. “Não uso herbicidas e pesticidas nas vinhas, e reduzi o uso de produtos à base de cobre, substituindo-o pelo ozono. Alguns vinhos são produzidos sem o uso de sulfitos, sem colagem ou filtragem, e são elaborados exclusivamente com leveduras indígenas, tanto tintos, como brancos, e agora também na produção de espumantes. Os vinhos tintos da casta Baga não ultrapassam um total de sulfitos de 40mg/l …Bem abaixo dos 80mg/L dos vinhos biológicos”, acentua o decano dos Baga Friends. Os tintos apresentaram-se em grande forma, ricos, complexos, joviais até, mas muito sérios e de grande classe, tal como o espumante, feito de Baga, sem sulfuroso nem adição de açúcar, complexo, profundo, com leve oxidativo, grande estrutura e finesse.

Por último, a Quinta de Baixo, do universo Niepoort, brindou-nos com três edições do seu magnífico Poeirinho Garrafeira: 2012, 2015 e 2018. “Fala se muito no terroir: a Bairrada é muito especial, com qualidades únicas. Mas ainda mais especial é a brilhante combinação da Bairrada com a excêntrica e genial casta chamada Baga”, disse um dia Dirk Niepoort, e não podíamos estar mais de acordo.

E não podia faltar a Cuvée Baga Friends como é óbvio, na sua edição 2015, sempre em formato magnum, e onde cada um destes produtores contribui com uma barrica de um vinho seu para compor o lote final. Querem o coração e a alma da Bairrada num copo? Pois aqui está!
E assim demos por finalizados os “trabalhos matinais” e, finalmente, pudemos dedicar-nos aquilo que as gentes do vinho gostam verdadeiramente: sentar à mesa, boas e longas conversas, com boa comida e boas garrafas de vinho! Voilá!

Não seria justo se não escrevesse umas palavras para o local onde decorreu esta prova e almoço: o Parra Wine Bistro, na Rua da Esperança, em Lisboa. As paredes são um misto de tijoleira romana à vista e blocos de mármore rosa de um antigo talho que ali funcionou em tempos, tudo preservado. Frigoríficos repletos de (boas) garrafas de vinho, assegurando as diversas temperaturas de serviço, copos de qualidade, hall of fame das garrafas vazias ali bebidas em redor das paredes, tudo a contribuir para um grande ambiente vínico. E a comida, claro, criações do Chef residente num misto de produtos tradicionais portugueses com influências do mundo, num claro reflexo do ambiente cosmopolita da cidade de Lisboa hoje em dia. Arrisco mesmo dizer, sem nenhum receio, que o Tártaro de vaca com gema de ovo curada e filete de anchova, em pão croissant, um dos ex-libris do Parra Wine Bistro, será presentemente uma das melhores iguarias que se pode comer na cidade. E que bem que combinou com Baga! Brindemos, Pois!

baga

(Artigo publicado na edição de Maio de 2025)

20 anos de Quinta Nova Vinha Centenária

quinta nova

Recordo-me bem, corria o início de verão de 2007, de chegar pela primeira vez à Quinta Nova de Nossa Senhora do Carmo. A propriedade, que até dois anos antes fazia parte do portefólio da J.W. Burmester, era uma típica quinta do Douro produtora de Vinho do Porto. Totalmente típica não…, pois a sua dimensão numa […]

Recordo-me bem, corria o início de verão de 2007, de chegar pela primeira vez à Quinta Nova de Nossa Senhora do Carmo. A propriedade, que até dois anos antes fazia parte do portefólio da J.W. Burmester, era uma típica quinta do Douro produtora de Vinho do Porto. Totalmente típica não…, pois a sua dimensão numa das melhores zonas no Cima Corgo – 120 hectares ao longo de 1,5 km de rio – era bem superior ao habitual na região. À frente da quinta estreava-se Luísa Amorim e, já nesse tempo, bastavam pouco minutos de conversa para concluir que muita coisa iria mudar na propriedade. E mudou!

A propriedade combina agora uma imaculada adega topo de gama e uma unidade de turismo de luxo com 11 quartos

Referenciada desde a primeira demarcação pombalina, em 1756, a Quinta Nova de Nossa Senhora do Carmo foi propriedade da Casa Real Portuguesa até 1725, e tornou-se uma “quinta nova” pela junção de duas quintas (o que explica a sua dimensão). Durante os séculos XVIII e XIX, viveram na quinta várias famílias portuguesas que mantiveram vivas a produção de uva e vinho, fruta e azeite. Mais recentemente, já no século XX, produzia exclusivamente uvas para Vinho do Porto. Quase vinte anos volvidos da primeira vez que lá fomos, basta olhar de cima, na estrada que serpenteia e circunda a propriedade, para notar que muito mudou na Quinta Nova. Desde logo, no que respeita ao edificado, principescamente restaurado, e albergando um dos melhores hotéis da região do Douro, inserido na prestigiada insígnia Relais & Châteaux. A propriedade, que era exclusivamente agrícola e vitícola até chegar às mãos de Luísa, combina agora uma imaculada adega topo de gama e uma unidade de turismo de luxo com 11 quartos (para a qual há um projeto de expansão, mas que, por enquanto, está no segredo dos Deuses) e um restaurante. Antes de chegarmos à casa senhorial que alberga o hotel, encontramos um conjunto de edifícios tradicionais com largas portas de madeira por onde, no passado, passavam as pipas de Vinho do Porto para os carros de bois. Hoje, esse espaço acolhe um wine bar lindíssimo, com os melhores copos disponíveis no mercado. Foi aí que tivemos a oportunidade de percorrer a prova vertical dos dois topos de gama batizados de Vinha Centenária.

Mas voltemos alguns anos atrás, regressando a 2007. Foi nesse início de verão que provei vários lotes dos primeiros vinhos DOC desta quinta, na altura quase todos da colheita de 2005. Provei-os numa adega bem diferente e mais modesta que a atual. Logo no início, após a separação da quinta da marca Burmester, quem começou na enologia foi Rui Cunha, apesar do pouco tempo disponível que as suas consultadorias lhe permitiam. Nesse ano de 2007, foi já Francisco Montenegro, enólogo da quinta até 2010, quem nos deu a provar o Grande Reserva 2005, um tinto magnífico com Touriga Nacional e alguma vinha velha, um vinho que, provado agora em vertical, continua em grande forma. Entretanto a área de vinha aumentou e, atualmente, já após replantações, a quinta tem uma mancha única de 85 hectares de vinha, toda ela tinta. Hoje, a produção ascende a 650 mil garrafas, grande parte centrada na gama premium, num posicionamento propositalmente alto e ambicioso, diz-nos Luísa Amorim.

Mudança e evolução são uma constante nos projetos chefiados por Luísa Amorim. Mas uma coisa mantém-se, ainda que se ajustando à passagem do tempo: os icónicos Vinha Centenária

 

As vinhas antigas

Aos comandos da enologia desde a colheita de 2011 e até março de 2025, tem estado Jorge Alves, que tem contado com a preciosa ajuda de Duarte Costa e Sónia Pereira. Como acima dissemos, muito, muito mesmo, mudou nesta magnifica propriedade da margem direita do Douro. Dir-se-ia até que mudança e evolução são uma constante nos projetos chefiados por Luísa Amorim. Mas uma coisa mantém-se, ainda que se ajustando à passagem do tempo: os icónicos Vinha Centenária.

Com efeito, se algo não mudou foram as vinhas mais antigas da propriedade que, sendo um património invulgar, foi preservado pelos cuidados da viticóloga Ana Mota, que conhece a propriedade e as vinhas como ninguém. Algumas dessas vinhas remontam da primeira plantação monovarietal na região do Douro, que resultou de um estudo realizado entre 1979 e 1981, em conjunto com o Ministério da Agricultura. À época, foram selecionadas três parcelas em patamares com as melhores exposições solares para a plantação de três grandes castas tradicionais, Touriga Nacional, Touriga Franca e Tinta Roriz. É, pois, desta iniciativa pioneira que nascem as duas referências ícones, primeiro denominadas de Grande Reserva e, desde a colheita de 2018, de Vinha Centenária. A primeira colheita foi em 2005 a partir de Touriga Nacional. A versão com base em Tinta Roriz surgiu em 2008. Existem outros topos de gama da propriedade – caso do Aeternus (homenagem familiar ao empresário Américo Amorim) e do Mirabilis – mas são os Vinha Centenária que continuam a ser o retrato do terroir que os viu nascer e acomodam, em si, a história da modernização do Douro e todo o passado da Quinta Nova.

Sucintamente, o Vinha Centenária Ref P29/P21 provém, como o nome indica, da Parcela 29 plantada com Touriga Nacional entre os 170 e os 205 metros de altitude, e da centenária Parcela 21. Já o Vinha Centenária Ref P28/P21 resulta da Parcela 28 plantada com Tinta Roriz entre os 205 e os 210 metros, e novamente a vinha centenária Parcela 21. As parcelas 29 e 28 são muito pequenas – 1,65 e 1,96 hectares, respetivamente – e a vinha velha, em co-plantação com Donzelinho Tinto, não ultrapassa os 3,5 hectares. Com produções médias entre 2500 e 2700kg por hectares não admira que no mercado não sejam lançadas mais do que 5000 garrafas de cada vinho. As uvas sempre foram 100% desengaçadas para ambos os vinhos, estagiando numa média de 12 meses em barricas novas de carvalho francês. Nota final para a enorme qualidade de ambos os vinhos na edição de 2021, comprovando a qualidade do ano (mais fresco que o habitual) e uma enologia cada vez mais de precisão e contenção.

Nota: O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

Vertical: Quinta Nova Grande Reserva/Vinha Centenária Ref.ª P29/P21

18,5 A

Quinta Nova Grande Reserva tinto 2005

Muito fruto negro e encarnado, sente-se o ano quente com notas de compota, profundo, floral maduro e tabaco doce. Cremoso em boca, alcaçuz, tanino vivo, firme, madeira harmoniosa. Dá grande prova, mas tem ainda alguns anos pela frente. (14%)

19 B

Quinta Nova Grande Reserva tinto 2007

Aroma jovem e intenso, com muito brilho na cor. Revela no nariz muito fruto, negro e azul, barrica de qualidade, tudo ainda a evoluir bem. Muito intenso em boca, fruta em camadas, leve chocolate sedutor, termina capitoso e muito jovem. (15%)

18,5 A

Quinta Nova Grande Reserva tinto 2008

Aroma plenamente silvestre com notas a floresta e chão de bosque, fruto azul, turfa. Sente-se a frescura do não em boca, floral aberto, fruto encarnado, mas já bastante redondo e sedutor, talvez no seu ponto ótimo para ser bebido. (14,5%)

19 A

Quinta Nova Grande Reserva tinto 2012

Muito bem no aroma, latente, sério, ameixa fresca, urze, grande integração e equilíbrio. A prova de boca segue o mesmo perfil, saboroso e redondo, muito especiado e complexo. Ótima fase de consumo, está agora no seu melhor! (14%)

18,5 B

Quinta Nova Grande Reserva tinto 2013

A cor e o aroma denotam juventude. Fechado e misterioso no nariz, levemente químico, abre para notas balsâmico e alcaçuz. Muito tanino em boca, intenso e espigado, cheio de garra, meio-corpo em boca, mas com alguma frescura e muitos anos pela frente. (14%)

18,5 A

Quinta Nova Grande Reserva tinto 2015

Aroma jovem, com a barrica a sentir-se na frente, secundada por fruto maduro em camadas, floral aberto, grafite, e chocolate preto. Muito bem em boca, largo e lácteo, com muito sabor, longo. Vai continuar a evoluir, mas a dar já grande prova. (14%)

18,5 B

Quinta Nova Grande Reserva tinto 2017

Aroma fantástico, com muita fruta encarnada, barrica impecável, especiados vários, e perceção de frescura. Muito intenso em boca, tanino maduro robusto, granulado e longo, é um vinho de porte aristocrático com futuro pela frente. (14%)

18,5 B

Quinta Nova Vinha Centenária Ref.ª P29/P21 tinto 2018

Aroma muito bonito, com fruto azul (mirtilo e amora), perceção frescura, profundo e balsâmico. Muito sabor em boca, revela-se jovem e com garra, ligeiramente menos concentrado, com a Touriga Nacional a marcar o conjunto magnífico. (14,5%)

19 B

Quinta Nova Vinha Centenária Ref.ª P29/P21 tinto 2019

Muito bem no aroma, todo jovem e profundo, químico (tinta-da-china), fruto negro, leve grafite. Prova de boca com muito sabor e potência, intenso com notas de alcaçuz e alcatrão, termina já longo, apesar de ter muito para crescer. (14,5%)

18,5 B

Quinta Nova Vinha Centenária Ref.ª P29/P21 tinto 2020

Fechado aromaticamente nesta fase, abre para notas latentes de fruta e barrica, algumas notas de chá e bergamota. Prova de boca em linha, diálogo entre a fruta e a barrica, tudo num perfil jovem e enérgico. (14,5%)

(Artigo publicado na edição de Maio de 2025)

Os três vinhos galardoados com o melhor vinho foram Vala da Barca 2022 de Maçanita Vinhos entre os vinhos brancos, Costureiro Garrafeira 2019 nos tintos e o Porto Vale da Tábua 50 Anos entre os vinhos fortificados.

De um total de 92 vinhos em prova, o Júri de 10 elementos, composto por jornalistas especializados e representantes do comércio de retalho, sommeliers e restaurantes, apreciou brancos, tintos e vinhos fortificados, dividindo-se estes entre Moscatel do Douro e Portos.

Sendo este concurso parte integrante da feira Vinhos & Sabores dos Altos, organizada pelo Município de Alijó e com produção da Grandes Escolhas, em rigor da verdade nem todos os vinhos concorrentes traduzem com rigor a sua origem “nos altos”, referindo-se esta expressão aos que são produzidos no planalto de Alijó, uma vez que os limites do concelho vão muito para além do referido planalto e chegam às margens do Douro e Tua. De igual modo também foram admitidos na feira e no concurso outros “altos”, provenientes dos municípios vizinhos de Carrazeda de Ansíães, Murça e Vila Flor.

Apurados os resultados, foram atribuídos um total 26 medalhas entre ouro e prata, para além da eleição do melhor vinho em cada categoria.

Segue a lista de todos os vinhos premiados.

Categoria Vinho BRANCO
Melhor Vinho Vale da Barca 2022 Maçanita Vinhos
Medalha de Ouro Casttêdo Valley Oaked Reserva 2022 Casttêdo Valley – Maria Luísa Seixas Pinto Marantes
Pormenor Reserva 2023 Pormenor Vinhos
Quinta de Martim 2019 Casa Agrícola Águia de Moura
Quinta do Noval Reserva 2023 Quinta do Noval
Soulmate Alvarinho Grande Reserva 2021 Cortes do Tua Wines
Medalha de Prata Amarrotado 2023 Amarrotado Wines
Costa Boal Chardonnay 2022 Costa Boal Family Estates
Família Silva Branco 2023 Branco Wines Family
Lugar da Corredoura 2021 Casa do Piàska
Má Vida 2022 Carlos Rua
Categoria Vinho TINTO
Melhor Vinho Costureiro Garrafeira 2019 Foz do Tua
Medalha de Ouro Bardino 2021 João M. Soares Pires
Costa Boal Homenagem Grande Reserva 2015 Costa Boal Family Estates
Pedigree 2019 Branco Wines Family
Pintas Character 2022 Wine and Soul
Submerso 2023 Submerso Vinhos
Medalha de Prata Fonte da Perdiz Grande Reserva 2020 Adega Cooperativa de Alijó
Lugar da Corredoura Touriga Nacional Reserva 2022 Casa do Piàska
Pandemic Wine 2020 Carlos Rua
Quinta de Santa Eugénia Grande Reserva 2020 Soc. Agr. Quinta de Santa Eugénia
Tactus 2020 Vinhos de Favaios
Categoria Vinhos Fortificados
Melhor Vinho Vale do Tábua Porto 50 anos Vale do Tábua
Medalha de Ouro Adega de Favaios Moscatel Colheita 2000 Adega de Favaios
Fragulho Tawny 10 anos Casa dos Lagares
Alijó Moscatel Reserva Adega Cooperativa de Alijó