Saudar o detalhe, saber parar

Vou andando para baixo e, quando passo a ponte para a margem sul, começa a autoestrada que liga a capital ao Algarve sem qualquer interrupção. Ir daqui para ali num ápice é o desejo íntimo e inconfesso de quem agora viaja.   O lado positivo é óbvio, estamos mais depres­sa no nosso destino, gozamos e […]

Vou andando para baixo e, quando passo a ponte para a margem sul, começa a autoestrada que liga a capital ao Algarve sem qualquer interrupção. Ir daqui para ali num ápice é o desejo íntimo e inconfesso de quem agora viaja.

 

O lado positivo é óbvio, estamos mais depres­sa no nosso destino, gozamos e usufruímos mais e gerimos melhor o tempo. Mas falta o imenso lado negativo, que é o dos lugares, restaurantes, amigos e lojas por que deixamos de passar. Perdemos o contacto e a noção do que mudou desde a última visita. Encurtámos tanto o tempo das viagens que já não temos tempo para nada. Eu sou um felizardo, con­tinuo a ser obrigado a sair e ir por aí para principalmente parar nos sítios, conversar, ir meter o nariz nos vizinhos aproveitar e arregimentar amigos de há muito. Cumprir o desígnio expresso na interrogação célebre de Claudel: “De que adianta percorrer um caminho se no fim não está uma catedral?”

É raro isso não acontecer, o país fervilha aqui e ali de even­tos e iniciativas que obrigariam a estender programas de um dia para sete, sem intervalos. O Algarve das inúme­ras oportunidades e escolhas, feito catedral de todos os caminhos, é irresistível mesmo para o gastrónomo mais conservador. É lá que tudo está a acontecer, na crista da onda, nas estrelas Michelin, na reinvenção do receituário marítimo, e na tradição da cozinha de pescador. É lá que fica o Barrocal, língua prodigiosa de terra definida ao lon­go do mar e que permeia este e a serra; onde acontece em muitas declinações a cozinha de mar e terra; e tantos outros recantos do grande templo gastronómico algarvio.

A nossa obsessão por tudo medir e comparar é um clás­sico cem por cento humano e não consegue felizmente sequer beliscar a determinação com que o apaixonado pelo tema da gastronomia viaja milhares de quilómetros para fazer uma refeição especial. Incluo neste grupo os próprios chefs, de quem sempre nos esquecemos, como se fossem mecanos sempre disponíveis e preparados para trabalhar a todo o gás e sozinhos como comandos no mato. E, para eles, os mapas são do mundo inteiro, o globo é o espaço natural, eles os órgãos vitais de um gigante orgânico ou, se quisermos, da grande família dos cozinheiros.

Neste cenário, os portugueses são já indispensáveis e, mais importante ainda, estão a par da linha da frente, se não mesmo na vanguarda. Eu continuo a militar no movi­mento aberto omnivore, francês mas do mundo, advoga­do da jeune cuisine e dos princípios sagrados das raízes, proximidade e simplicidade.

Foi com muita emoção que estive no jantar das novas estrelas austríacas de cozinha do evento Fine Wines and Food Fair do hotel Vila Vita Parc, em Alporchinhos, Algar­ve. Kurt Gillig, director, e Hans Neuner, chef executivo do biestrelado restaurante Ocean, foram os anfitriões de um evento magistral a muitos títulos, organização impecável, qualidade excelsa nos mais pequenos detalhes. O festi­val culminou na Kitchen Party, o colosso de experiência e comunhão gastronómicas que teve há dois anos a pri­meira grande realização. Demonstração do pensamento cristalino Gillig, um dos raros directores de hotel de cinco estrelas no mundo inteiro que começou como cozinheiro e chegou a uma posição de topo com esclarecimento invulgar acerca do caminho a seguir.

Um dos jantares do grande evento, o das estrelas aus­tríacas em ascensão, atraiu-me particularmente e inscre­vi-me. Achei cósmico e bom ter o privilégio de provar e atestar um dos vectores da jeune cuisine e do que pode ser a criatividade aliada à técnica. Foi um desfile notável de notáveis jovens cozinheiros, quase todos, entretanto já aclamados na Áustria como grandes criadores culiná­rios. Apadrinhados e apoiados pelos mais antigos, estão de forma consciente e lúcida a seguir os seus passos.

Dos doze pratos do menu, quatro mereceram a minha pontuação máxima – 5 estrelas – na notação que costu­mo utilizar para minha utilização. O “Portuguese Taco” de Neuner foi um deles e foi servido à laia de entrada na pérgola junto ao Ocean, com champanhe Dom Pé­rignon Vintage 2006. O petisco era uma montagem de farinheira em massa folhada e marcou a contribuição de Neuner enquanto anfitrião. Ele, também, uma estre­la austríaca em ascensão, acarinhado pelos seus pares, o que é um aspecto importante. O mapa tem pontos distantes entre si, mas interligados.

O segundo grande momento que destaco foi o de Thomas Dorfer: serviu, quando já estávamos sentados, “Truta dos alpes curada, espargos brancos com vina­grete, creme rapsol e gema de ovo”, acompanhada pelo notável Gruner Veltliner 2015 do produtor austría­co Bernard Ott. O francamente jovem Dorfer é uma das grandes esperanças do seu país, e se atentarmos no que decidiu servir no jantar, está a tratar o produto mais tradicional do seu país – raízes – e a reinventar proximidades, de forma notável. Como, felizmente, al­guns dos nossos.

Terceiro momento 5 estrelas, por Andreas Dollerer, “Alpine Jakobsmuschel – espécie de vieira de rio dos Alpes –, couve, creme de ovos fermentados, alho fer­mentado”, espantosamente bem ligado com um Sau­vignon Blanc 2015 de Neumeister. Quarto grande mo­mento, uma sobremesa, raro acontecer chegar tão alto nas avaliações que faço, “Maibock, folhas de groselha preta, beterraba, zimbro”, espectacular.

Nelson Marreiros e sua equipa de escanções a brilhar, impecável na explicação das harmonizações e até de detalhes de pratos, grande prestação como sempre. No alforge trouxe mais uma confirmação de que é no reticulado dos caminhos, sejam eles quais forem, que está o sumo e a riqueza. E que qualquer paragem na tasca mais recôndita pode representar um país inteiro, a escala é a do mundo, não é mais a região. E sobre a velocidade com que insistimos em ir daqui para ali, cuidado. É só quando verdadeiramente paramos que a viagem começa.

Já foram os japoneses, agora somos nós

Há quem veja bondade em tudo o que acontece naturalmente, mas a horda que hoje ataca de máquina e telemóvel em riste e fulmina tudo o que é posto, servido ou mostrado, tornou quase insuportável uma refeição serena, focada na comida e no vinho. REGISTAR momentos felizes, para mais tarde recordar, é o clássico da […]

Há quem veja bondade em tudo o que acontece naturalmente, mas a horda que hoje ataca de máquina e telemóvel em riste e fulmina tudo o que é posto, servido ou mostrado, tornou quase insuportável uma refeição serena, focada na comida e no vinho.

REGISTAR momentos felizes, para mais tarde recordar, é o clássico da fotografia familiar, hoje muito facilitada pela memória gigante de que se consegue dotar os equipamentos. Os velhos rolos de 36 fotografias não dariam actualmente nem para começar uma sessão. Talvez por isso mesmo, antigamente não se fotografava certas coisas – quase nada – do quotidiano. Além da exiguidade da película, havia o custo directo da mesma, a que acrescia o peso da revelação e provas em papel. Tirava-se a fotografia do momento exacto – quase sempre falhado – de um filho a soprar as velas na festa do aniversário, fazia-se uns conjuntos de familiares nos dias importantes e basicamente desenferrujava-se as máquinas de sofisticação variável nas férias e viagens pontuais.

Hoje vamos sozinhos, em casal ou em grupo a um restaurante, podemos comer mal e ser mal tratados, mas voltamos com um levantamento de imagens que faz corar a investigação de cenários de crime. A sala. As mesas. As dobras e vincos de toalhas e guardanapos. As marcas e os logotipos, incluindo os inscritos nas lâminas das facas. Os copos. Ainda a comida não veio já lá vão mais de cem disparos. Três rolos de 36!

Ainda não consegui entender o que realmente faz as pessoas fotografar tudo o que encontram, e o efeito é proporcional à sofisticação e requinte do lugar. Quando mais sabemos que vamos pagar, mas fotos tiramos, como se fosse um direito adquirido. E de certa forma é. Nos anos 60 e 70, víamos nos restaurantes, lojas e ruas da Europa japoneses de Pentax ao pescoço a fotografar tudo o que encontravam. Corria então que era uma espécie de espionagem consentida, registar o inteiramente novo, e que supostamente no Japão ampliavam, e viam com todo o detalhe o que haviam visto no velho continente, para copiar. Claro que não era só isso, mas era isso também que se pretendia. Registo frio e sistemático, à boa maneira da espionagem de guerra, de que a tecnologia era garante vitorioso. Penso que o aspecto artístico do relacionamento fotógrafo-objecto nem sequer se colocava.

E penso o mesmo da forma como agora renunciamos a toda e qualquer relação com a comida quando bombardeamos o que nos vão pondo na mesa com dezenas de fotos, com e sem flash. Os japoneses já se foram, agora os espiões somos nós. E para quem fotografamos? Para mostrar a alguém, para publicar nas redes sociais, e para demonstrar que estamos ali, naquele momento, a fazer a experiência a que os comuns mortais não têm acesso. Das legendas é que ninguém trata e, quando o faz, presta um serviço de péssima qualidade ao mundo. Nem jornalismo factual são capazes de fazer.
O que os gurus e os moguls dos media norte-americanos previram (que o jornalismo iria ser feito pelos cidadãos comuns), falhou totalmente. Além de se escrever mal, raramente se sabe do assunto sobre que se escreve. Assim não vale a pena. Ainda há pouco tempo, na minha mesa alguém fotografava de vários ângulos diferentes uma fatia de quiche de cogumelos, que todos comentavam que era de massa folhada. Estupidamente, tentei corrigir explicando que se tratava de massa quebrada e não folhada, ouvi pelo menos três pessoas a dizer com palavras diferentes que folhada e quebrada era a mesma coisa e eu que não chateasse muito. E de repente bum! já estava a dita fatia eternizada no Facebook e Instagram com mais de cem likes e a legenda da massa folhada.

Senti medo. Todos naquela mesa tínhamos obrigação de saber do que falávamos mas ninguém fez nada pela qualidade do que se publicou. Senti pela primeira vez ali que a esmagadora maioria da informação que circula é totalmente inútil. O contrapeso desta situação, contudo, ainda existe. Anne Perkins escreveu há um par de anos um artigo contundente no “The Guardian”, cheio de humor britânico do bom, no qual afirmava que a comida é para ser apreciada e não publicada. Apreciem, sintam aromas e texturas, falem com os companheiros de mesa, comentem, contem histórias e anedotas, mas dediquem tempo e afecto ao que vos está a ser servido.

Quase entro no capítulo da educação e boas maneiras, o que obviamente não farei. Pai, mãe e filha única chegam ao restaurante e sentam-se numa mesa ao lado da minha ainda noutro dia. Metralham a miúda para que se sente direita e calada à mesa, põe o guardanapo, não é assim que se pega no pão, etc. e ainda a comida não tinha chegado. Logo que vem para a mesa, o pai e a mãe tiram fotos ao despique e depois competem entre si para ver quem tem mais likes. Ganha a mãe, com uma foto em que apanhou a filha a comer de boca aberta, veio um comentário de uma tia a dizer que linda que ela está. A miúda reclama, vocês estão todos divertidos, a tirar fotografias à comida e a pôr no Facebook e eu não posso fazer nada. A mãe mete a mão na carteira e tira um ipad mini, que logo provoca um sorriso de orelha a orelha na filha, quando saí ainda ficaram naquele negócio de caras e coisas e eu francamente confuso.

Não me lembro bem do jornal britânico em que vi um cartoon de uma sala grande de restaurante com toda a gente a fotografar a comida em vez de comer. Em primeiro plano estava um casal de meia idade de mão na mão sem telefone nem máquina fotográfica por perto. E está o empregado a perguntar-lhes: “Os senhores não estão a fotografar a comida, não estão a gostar?” Pois é. O mundo está mesmo diferente.