A importância de ser trufa
Vivemos imersos num contínuo de recordes e campeonatos e no que toca a alimentos raros e caros nós, humanos, somos exímios. Itália, Sérvia e Croácia produzem “tuber magnatum pico” de excelsa categoria que podem custar 7 mil euros por quilo no tamanho é o normal ou muito mais quando são grandes. A famosa trufa branca […]
Vivemos imersos num contínuo de recordes e campeonatos e no que toca a alimentos raros e caros nós, humanos, somos exímios. Itália, Sérvia e Croácia produzem “tuber magnatum pico” de excelsa categoria que podem custar 7 mil euros por quilo no tamanho é o normal ou muito mais quando são grandes. A famosa trufa branca é mesmo um regalo e a preta não lhe fica atrás.
TEXTO Fernando Melo
Uma trufa não é um fungo, mas o fruto de um fungo. Melhor ainda, é uma excrescência da raíz de algumas árvores. Encolhem os ombros os que acham que se trata de um preciosismo de linguagem e escandalizam-se quando se lhes pergunta se uma maçã é uma árvore. Claro que não. Temos o caviar e o foie gras em boa conta e pagamos valores chorudos por ambos mas também pouco sabemos sobre eles, menos ainda o que queremos saber. O luxo tem essa ambivalência em quase todas as frentes, deseja-se mas abandona-se depois da estaca da conquista. A fina e delicada rede de microfilamentos que vive no mundo subterrâneo das raízes alimenta vagarosamente e de forma sustentada alguns fungos e a esmagadora maioria frutifica à superfície, na forma de cogumelos. Alguns – muito poucos – frutificam debaixo de terra e é aí que temos as trufas. Pretas – tuber melanosporum – ou brancas – tuber magnatum pico -, os antigos reconheciam-lhes poderes sobrenaturais e inebriantes, para os romanos eram um afrodisíaco, depois da introdução da batata na alimentação chegaram a ser conhecidas como batatas malcheirosas e de há um século para cá são alimento muito desejado e apreciado pela élite gourmet. O conhecido cheiro a gás enlouquece os animais, outrora as porcas hoje os cães treinados dão com elas só pelo aroma. Onde apontam, escava-se um pouco e lá estão os pequenos ou grandes frutos, em jeito de recompensa. Em Alba, no Piemonte, Itália, há no final de Outubro um festival que o país elevou a símbolo universal da trufa branca, com honras de estado e leilão global. Isso não quer, contudo, dizer que só naquele pedaço de território há trufas brancas, na verdade existem em todo o mundo. Os aborígenes australianos, por exemplo, consumiam-nas avidamente e eram extraídas das raízes dos eucaliptos. Sérvia e Croácia são palco tanto ou mais importante da trufa branca do que Itália, de resto muitas trufas que entram no mercado pela porta grande provêm dali, o receituário desses países nos capítulos da caça e fundos de cozinha não deixa margem para dúvidas; há séculos que a trufa existe e é apreciada. As razões de mercado naturalmente asfixiam outras denominações que não Alba, mas nalgum ponto o assunto há-de passar a público. Para já a DO Alba permite a certificação de trufas brancas oriundas da Croácia e não são melhores nem piores, são apenas diferentes.
Para nós a trufa preta já faz maravilhas e devemos-lhe glórias diversas, a que só não acrescentamos porque o torpor intelectual não permite. E se temos boa trufa preta! Sei que estou sempre a marrar na mesma tábua, mas a trufa preta laminada introduzida entre a pele e a carne de um capão põe-nos em estado de graça e faz do galaró mudo um rei. A preparação da polémica perdiz à convento de Alcântara assenta na trufa preta e no foie gras logo desde o início da marinada de dois dias em vinho do Porto. Ovos mexidos com trufa preta são mais saborosos do que o clássico ovo escalfado com trufa branca, que de qualquer forma adoro. E um consomé de aves e trufa preta é o melhor amigo de um Madeira sercial. O assunto da trufa branca é eminentemente aromático, é inútil utilizá-la para cozeduras longas. É por isso que compramos azeites ou óleos vegetais trufados, directa ou indirectamente, já que um risoto anunciado por um restaurante com trufas não tem mais do que umas gotas desses concentrados de aromas, mas isso é outra conversa. A luta pela autenticidade não tem tréguas, mas nem sempre temos a arma da informação para a combater. Vamo-nos regalando com o que vai acontecendo pela mão de alguns chefs e vamos fazendo as nossas próprias descobertas. Troou recentemente a notícia da trufa branca de mais de um quilo comprada pelo chef e empresário Tanka Sapkota, no Come Prima, em Lisboa. Fui vê-la e prová-la, nos pratos standard do ovo estrelado e linguini, laminada na hora. Dimensão impressionante, tinha de se segurar com as duas mãos. Uma boa trufa branca pesa algumas dezenas de gramas apenas e custa entre 4 e 7 mil euros o quilo. Daquele fruto gigante não chegou a ser revelado o preço, mas barato não foi. A minha primeira refeição formal de trufas brancas em Portugal aconteceu pela mão do chef Franco Luise no Cipriani, restaurante do Lapa Palace em Lisboa, em meados dos anos 90. A primeira experiência em termos absolutos foi em Florença, no triestrelado Enoteca Pinchiorri, não deixou grande memória, ao passo que a experiência com Franco Luise foi a melhor de todas até hoje. Ficou-nos a 25 contos – 25 mil escudos, lembram-se? – a cada um, um valor elevado, especialmente naquela altura, mas que nunca lamentei. Achei na altura (o que se veio a confirmar) uma experiência irrepetível. No JNcQUOI, em Lisboa, o chef António Bóia subiu a fasquia no jantar de trufas brancas da sua lavra, talante culinário de enorme nível. Senti particular conforto por um homem do produto português que sabemos que ele é dar trono por uns dias a um clássico mundial e universal da alimentação. Trufa é trufa!
Um futuro para alimentar
Oque achávamos que estava para chegar já se instalou e não nos resta se não tentar entender e ler os sinais a que por teimosia não demos a devida atenção. Temos de comer de forma inteligente e ter presente tudo o que se passa à nossa volta. É a proposta “from origin to original” que […]
Oque achávamos que estava para chegar já se instalou e não nos resta se não tentar entender e ler os sinais a que por teimosia não demos a devida atenção. Temos de comer de forma inteligente e ter presente tudo o que se passa à nossa volta. É a proposta “from origin to original” que o Vila Joya de Joy está a fazer.
TEM a certeza de que não é vegetariano? Eu gostava de responder energicamente “não sou”, mas depois da passagem do chef austríaco Paul Ivic pela Rota das Estrelas deste ano no Vila Joya, penso doutra forma. Ele próprio não é vegetariano, gosta de marisco, peixe e carne, mas aconteceu-lhe um dia voltar-se para os sabores e produtos da sua infância, deu-se bem com as experiências que fez com legumes, frutos e sementes e decidiu abrir o Tian, em Viena.
O guia Michelin disse sim, ganhou a sua primeira estrela e o caminho ascensional na difícil galáxia está traçado, não vai ficar por aqui. Nada que Alain Passard, três estrelas no parisiense Arpège, não tenha conseguido, mas sem a proteína animal no centro torna-se tudo muito mais difícil. Paul Ivic não só resolveu a complexa equação como conseguiu mais sabor nos seus pratos. E sabor representa prazer à mesa. Joy Jung, proprietária do Vila Joya, indigitou-o para integrar a lista de chefs que já estão a trabalhar o que vamos comer no futuro. Quando soube pareceu-me demasiado radical, um overkill mesmo, mas à mesa devemos estar em festa e tive a felicidade de fazer a experiência totalmente livre de preconceitos.
Três pratos dos oito servidos ficaram incrustados para sempre, considero-os verdadeiramente fundadores de uma nova proposta de sabor. O Jardim Zen, composto de aipo, caldo miso e yuzu, pelo incrível trabalho de extracção operado e pela contenção de cozeduras, casado, a propósito, com um chardonnay do Loire de grande talante. De referir, a propósito, que a pedido do sommelier do Vila Joya, Arnaud Vallet, os vinhos do jantar vieram todos da garrafeira do Tian, tal o acerto e complexidade das harmonizações. Um prato carinhosamente chamado Milho do Campo de Gailtaler, uma variedade que evoca a juventude do chef, com queijo dos alpes e lírio a complementar. Serviu-se um chardonnay austríaco da região de Burgenland. Finalmente, um prato dramaticamente baptizado como Sangue de Touro, conquistou-me o pouco que restava por conquistar, genial combinação de beterraba, melancia e levedura que dividiu muito as opiniões, especialmente na ponte com um não menos genial vinho austríaco, da zona do lago Neusiedler, um lote com Pinot Noir e outras castas, equilíbrio notável com o prato.
O dia seguinte foi marcado pelo jantar dos duas estrelas Michelin portugueses: Dieter Koschina pelo Vila Joya, Hans Neuner pelo Ocean, Benoit Sinthon pelo Il Gallo d’Oro, Ricardo Costa pelo Yeatman e José Avillez pelo Belcanto. O desfile de pratos e novas experiências impressionou-me pela solidez e pelo nível elevado a que se chegou em Portugal. A primeira perplexidade que me ocorre está relacionada com a elevada plataforma de qualidade a que se chegou. A outra é que provavelmente todas as estrelas que nos têm calhado devem-se ao labor do Vila Joya. O Peixe-galo com Cozido à Portuguesa e o Pombo Mineral, do chef Ricardo Costa, o Corneto de Presunto e a sobremesa de Chocolate e Tinta de Choco, do chef José Avillez, brilharam, mas há mais por detrás. Todos no geral brilharam e todos fazem brilhar todos.
Embora traga uma série de desafios no campo, é reverenciada logo que entra na adega. Na década de 70, a Touriga Nacional representava apenas 0,1% das plantações durienses
No momento em que escrevo esta crónica, estamos a duas semanas apenas de conhecer o guia Michelin de 2018 e as expectativas são naturalmente elevadas. É importante, contudo, constatar que não são as estrelas que movem cozinheiros e empresários, é antes a instalação da excelência e um certo colectivo uno que já tem vida própria e quer crescer de forma orgânica. O movimento iniciado por Joy Jung dá pelo nome de crEATivity, tem no meio o verbo “eat”, que quer dizer comer. Para nós, portugueses, “comer” tem uma dupla génese. Resulta por um lado do termo latino “comer”, etimologicamente na base por exemplo de palavras como comércio e que significa especificamente “fazer alguma coisa com alguém”; por outro, vem de “cum edere” – alimentar-se – edere – com alguém. O acto de comer é para nós também um acto de partilha, por isso temos a mesa como base de tantos actos. Por isso nos sentamos à mesa em família, trabalho, política e debate. Nutrimos a alma e o corpo e por isso é profunda a proposta de Joy.
O festival Tribute to Claudia, em memória de sua mãe, fundadora do Vila Joya, teve agora a décima e última edição. Foi uma viagem grande, possível apenas por quem alimenta a utopia de um mundo genuinamente melhor. Se forem como eu, que odeio despedidas, ponho os olhos no caminho criado. Conto muito com os talentos que povoam hoje as nossas cozinhas e acredito que a proposta regressiva os vai fazer encontrar os sabores autênticos, a que nem os antigos chegaram. A humanidade irá sempre alimentar-se e precisará sempre de se nutrir. Há que saber manter e melhorar os recursos disponíveis e está mais que visto que a boa cozinha é caminho. Só por acordar para isso, já valeu tudo a pena. Obrigado, Vila Joya.
Do silêncio e do tempo e da falta de ambos
Há lugares que nos adoptam sem condições e que numa certa altura da vida parecem moldar-se de tal forma a nós que nos dão a impressão de existirem para nosso exclusivo usufruto. O mundo mágico dos cafés e do prazer de estar. PASTELARIA Mimo, na Avenida Duque de Ávila, ao pé do Instituto Superior […]
Há lugares que nos adoptam sem condições e que numa certa altura da vida parecem moldar-se de tal forma a nós que nos dão a impressão de existirem para nosso exclusivo usufruto. O mundo mágico dos cafés e do prazer de estar.
PASTELARIA Mimo, na Avenida Duque de Ávila, ao pé do Instituto Superior Técnico, onde passei grande parte do meu tempo no segundo ano a estudar, quando não estava no Núcleo de Arte Fotográfica quando não estava a fazer trabalhos de revelação para fora. Apanhei uma vez dois alunos a conversar um com o outro sobre teoria da relatividade por mais de uma hora, até perceber que nenhum dos dois sabia do que falava, eram apenas dois tolos na mesma jangada, a usar a asneira como força motriz.
O livro a que me entregava naquele instante era de física, as “Aulas de Física de Feynman”, um trabalho colossal de divulgação e generosidade por parte do Nobel americano da Física que inventou a cromodinâmica quântica. Tinha conhecido o professor Mariano Gago, naquela altura tinha criado uma turma especial de física de partículas e, apesar de o meu assunto favorito ser acústica, vim a mudar para engenharia física no terceiro ano, logo que o curso foi criado. Foi um conselho sábio, o de viver intensamente a academia, e que segui à risca. De cada cadeira que começava, lia o livro como se fosse um romance, de fio a pavio, só depois o utilizava como manual. E aproximei-me sempre dos melhores, para os ouvir de viva voz e frequentava as aulas deles como se estivesse num retiro espiritual. Dava-me muito trabalho e tirava-me muito tempo, mas nunca consegui fazer doutra forma.
Nos três anos de física tecnológica o Técnico transformou-se para mim num prazer indizível de encontro diário e convívio científico vivo. Os cafés eram a grande plataforma de sustentação da aventura que era um novo assunto, uma nova cadeira, um novo trabalho. Não sei como a pastelaria Capri, na Avenida de Roma, me deixou usar tantas horas seguidas uma mesa, não tenho forma de agradecer a simpatia com que os funcionários da biblioteca da Gulbenkian sempre me ajudavam a encontrar um lugar onde o ar condicionado não fosse demasiado forte para a brutal sinusite de que então sofria. Assim como não consegui nunca perceber por que nunca consegui sequer ler uma página de um livro na biblioteca do Técnico nem por que nunca entrei na Biblioteca Nacional.
Mas é tudo o mesmo e um só fenómeno, o silêncio. Não o de emudecer tudo e todos, mas o de estar em sintonia com o meio e o meio comigo. Em tudo o que faço no vinho e na comida tenho chegado à conclusão de que continuo a aplicar o método. As conversas de café são tanto ou mais importantes do que então eram. Os empregados que neles o ciam é que já não são daqueles que gostavam de nos ver ali todos os dias. Entrar com um livro para ler pode hoje ser decepcionante e não tenho como explicar que preciso absolutamente de o fazer, como preparação para um trabalho ou nova área que esteja a abordar.
Faz-me falta o caos e frenesim dos cafés onde se entra e sai sem ser notado, há um silêncio interior que de certa forma me embala. E sempre um ou dois acontecimentos inesperados desencadeiam novas descobertas, assim como sempre um ou dois encontros inesperados ajudam a criar o desejado caos e que acaba por ter o inefável efeito de ajudar à concentração. O conhecimento não vive mais em torres de marfim, e encerrados em quatro paredes dificilmente crescemos, quando esse é o maior, se não único, imperativo de consciência. As listas, as pontuações, os guias, as provas, as visitas, todas terão sido em vão se não tiverem tido na base o sentido do novo e da descoberta.
Partilhar a mesa com personalidades do mundo do vinho e gastronomia deu-me ao longo dos anos as maiores alegrias. Não tenho ainda a idade su ciente para ter direito a escrever sobre elas, chegará o tempo em breve e logo poderei reviver esses momentos memoráveis. Ainda estou imerso no exercício da actividade e sei que não chegarei onde queria chegar, implicaria sair muitas vezes, ir longe e voltar de terras distantes, experimentar os sabores, tocar nas texturas e sentar-me a mesas de muitas lógicas diferentes para que eventualmente me desse por satisfeito.
A lucidez e as mesas de café ajudam-me a perceber o muito que está ainda por fazer. Tenho os meus episódios felizes com os mais sábios dentre os sábios, mas não é coisa que se coleccione nem acumule, é importante a transformação que se dá em nós. Numa visita recente a uma escola de hotelaria, surgiu a pergunta inevitável sobre o que é preciso estudar para ser crítico de vinhos e comida. Acontece a todos com certeza não ter palavras por vezes para responder cabalmente ao que se pergunta, mas a verdade é que não tenho a resposta. A experiência da academia não está mais confinada hoje a um espaço físico apenas e a informação ui por toda a parte, cobrindo temas e mil assuntos derivados. Disse àquele aluno o que passarei sempre a dizer. Uma crítica é uma peça literária, ela própria sujeita ao crivo da crítica. O domínio da língua é, não tenho dúvida, o grande activo de quem escreve, pensa e fala. Logo a seguir, procurar provar e experimentar tudo o que a proximidade nos permite e estudar os assuntos que a nossa curiosidade nos mostra. O café ainda existe e tem muitas mesas. É preciso prosseguir e permanecer. Que o método é infalível.
A importância de sustentar a sustentabilidade
O caso é simples, a receita evidente, o sucesso garantido. Dar sem procurar receber. A solidariedade é exclusiva dos povos inteligentes e das sociedades maduras e no universo enogastronómico há razões para acreditar num futuro melhor. DESIGNAÇÕES dramáticas e extremas são-me tudo menos simpáticas. Vivemos inundados de autoetiquetas sucessivas de “melhor do mundo”, de […]
O caso é simples, a receita evidente, o sucesso garantido. Dar sem
procurar receber. A solidariedade é exclusiva dos povos inteligentes
e das sociedades maduras e no universo enogastronómico há razões
para acreditar num futuro melhor.
DESIGNAÇÕES dramáticas e extremas são-me tudo menos simpáticas. Vivemos inundados de autoetiquetas sucessivas de “melhor do mundo”, de tal forma que no mundo dos vinhos e comida já nem reparamos no tema em si. É mais um exagero e deixamos passar. Notícias mal construídas de que determinado vinho foi considerado o melhor do mundo em determinado concurso, quando não existe tal concurso. O mesmo para o azeite e tantos outros produtos, em que voluntariamente nos deixamos ofuscar, sem sequer pensar duas vezes. Qual é o primeiro efeito desta torrente de melhores absolutos? Deixamos de ligar, perdemos a sensibilidade para o sentido da superação que é tão importante em todas as ramificações de vinhos e comida.
Existe, contudo, muito em que acreditar, não no campo dos prémios e medalhas, mas no de uma plataforma horizontal integradora de saberes que dá pelo nome de sustentabilidade. Estabelece um único objectivo de forma subsidiária, para cada um de nós, que é entregar à próxima geração um mundo pelo menos tão bom quanto o que nos foi confiado a nós. O desenvolvimento sustentável, entendido nos braços económico, social e ambiental, é o caminho pragmático para lá chegar.
O que tem isto a ver com o vinho e a comida? Tudo. Chego ao assunto desta crónica, a propósito de um evento que começou discreto e vai acontecer pela terceira vez: o jantar do ano. Quatro chefs, cada um com seu prato e patrocinador, vão fazer um jantar no dia 11 de Novembro, no Convento do Beato, em Lisboa. Até aqui, estamos no ‘mainstream’, dentro das iniciativas do género que se vão fazendo pelo país ao longo do ano. Duas pessoas fazem toda a diferença, contudo: Rita Nabeiro, da Adega Mayor, e Francisco Mello e Castro, da Let’s Help.
O universo Delta, encabeçado pelo carismático Manuel Nabeiro, é uma das grandes forças do desenvolvimento sustentável de Portugal, de resto com assento no World Business Council for Sustainable Development, uma das mais fortes estruturas mundiais que, mais do que simplesmente advogar boas práticas, mobiliiza as nações, empresas e indivíduos para o apoio efectivo e real e garantir que o mundo fica mesmo melhor. A Let’s Help representa o mesmo esforço, próximo da heroicidade, por tratar de resolver problemas específicos que vão sendo identificados. Francisco Mello e Castro mantém diversos projectos em simultâneo, reunindo as pessoas certas para atingir os fins a que se propôs. A forma determinada e profissional que utiliza tem mobilizado capital humano e financeiro de forma consistente, a ponto de criar postos de trabalho, marcas e mercados novos.
Estive na prova oficial de apresentação do Jantar do Ano 2017, no picadeiro do antigo Museu dos Coches. Henrique Sá Pessoa (Alma) inaugurou a refeição, com uma entrada de salmão da Noruega curado com caldo de castanhas, patrocínio Leroy. Intervenção simples, casamento pleno de sabores e texturas. Justa Nobre (Nobre), em tandem com a Milaneza, apresentou a sopa rica de robalo à Justa, com a sua assinatura inconfundível. Vítor Sobral (Peixaria da Esquina) deu a provar a tomatada de bacalhau da Noruega, batata-doce e hortelã que, com o patrocínio da Terra do Bacalhau, vai servir no jantar. João Magalhães Rodrigues (Feitoria Altis Belém), serviu, em parceria com a Carnes Jacinto, as bochechas de vitela, cogumelos e puré trufado de batata. Os vinhos estão a cargo da Adega Mayor.
Clara de Sousa e Rodrigo Guedes de Carvalho são os embaixadores do Jantar do Ano desde a primeira edição e estiveram a animar este jantar de afinação com uma descontracção e sentido familiar que ajudou a aproximar todos de todos. Falta dizer que são patrocinadores oficiais o azeite Oliveira de Serra, cerveja Sagres Bohemia, PT Empresas e gelados Magnum, da Olá. O lugar simples para uma pessoa vai custar 45 euros e o pack premium, mesa de 10 pessoas custará 600 euros, em locais diferentes da sala. Serão mais de mil os convidados a assegurar presença, pelo que o êxito da operação está praticamente assegurado. No final, Rita Nabeiro referiu-se a este jantar do ano com a discrição que lhe é característica, como “o evento em que todos os portugueses querem estar”. O lucro reverterá integralmente para a Let’s Help, para investimento em negócios sociais sólidos e sustentáveis.
A terminar, é imperativo reiterar o postulado inicial, de que não existe o melhor do mundo em praticamente nada. Agora, há que acrescentar que melhor do que o Jantar do Ano é difícil conseguir. E que mais vale entrar na onda sustentável por mão segura do que de forma desarticulada, sem fins explicitamente assumidos. Todos ao Convento do Beato, então, no dia 11 de Novembro.
Cozinha e género, parar para pensar
A franca visibilidade dos chamados chefs Michelin não exprime a realidade nem da história nem da prática da cozinha. É verdade que no imaginário popular uma mulher na cozinha é afecto e um homem organização, mas pelos chavões não vamos a parte alguma. NO passado, Mère Brazier, Marie Bourgeois, Marguerite Bise e, neste momento, […]
A franca visibilidade dos chamados chefs Michelin não exprime a
realidade nem da história nem da prática da cozinha. É verdade que
no imaginário popular uma mulher na cozinha é afecto e um homem
organização, mas pelos chavões não vamos a parte alguma.
NO passado, Mère Brazier, Marie Bourgeois, Marguerite Bise e, neste momento, Anne-Sophie Pic apenas, são as únicas mulheres cozinheiras que atingiram em França o escalão supremo da complexa escala Michelin no guia vermelho. As únicas mulheres que tiveram em França três estrelas Michelin. O espaço para a especulação e suspeita de misoginia por parte dos inspectores e directores do guia francês é mais que muito, de resto é o que tem acontecido.
São mais exigentes com as francesas do que com as outras. Em Itália, Nadia Santini e Annie Feolde têm três estrelas. Em Espanha, Carme Ruscalleda e de certa forma Elena Arzak conseguiram igual proeza. Por outro lado, não há grande cozinheiro – Michelin ou não – que não confesse a sua ligação aos sabores da infância, campo essencial e profundamente maternal. Os livros clássicos de receitas que o mundo inteiro lavrou são na maioria de pena feminina, as homólogas de Maria de Lourdes Modesto, Felipa Vacondeus, Berta Rosa-Limpo desbravaram as mesas populares, entraram nas casas pobres com o mesmo fulgor que nas mais nobres e acondicionaram o inefável receituário de que hoje dispomos. Nem o bolo de prata foi esquecido nem a caça maior, que já quase não se oferece em restaurante, ficou de lado.
Faz-me pensar se não há afinal mais de feminino que masculino nos projectos a longo prazo, em que é forçoso que inclua os muitos legados do vinho e seus territórios. Maria Odete Cortes Valente, Graça Castelo Lopes, Maria Emília Cancella de Abreu e tantas outras mulheres povoam o imaginário de quem está há muito tempo no ofício de cozinheiro em Portugal. A esses, note-se, nunca ninguém lhes ouviu um comentário negativo sobre cozinha no feminino.
Talvez a ideia de esforço físico, de arcar com panelas de mais de 15 quilos de caldo e meias carcaças de novilho, tenha sido a certa altura argumento. Mas a irascibilidade de um chef intempestivo é bem mais avassaladora do que a hipotética quebra de resistência de uma chef perante os desafios físicos que hoje estão reduzidos ao mínimo. E os homens são os primeiros a dizer que nas suas brigadas a função suplanta o género e que hoje não há qualquer diferença. As cozinhas já foram espaços de muitas batalhas e confrontos físicos, hoje são espaços de trabalho como outros quaisquer.
Os tempos que vivemos nada têm a ver com os tempos em que uma mulher ser eficaz e distinguir-se lhe dava má reputação. Oficiou no Hotel Cavendish, em Londres, uma das mais prodigiosas cozinheiras do seu tempo, Rosa Lewis (1867-1952). Num livro delicioso e de leitura obrigatória para quem quer perceber o que relaciona ou não cozinha e género, Mary Lawton relata algumas das vicissitudes da que era para ela “a rainha dos cozinheiros e de alguns reis”. Criou, absorveu e adaptou milhares de grandes receitas, mas foi sempre perseguida pelo rumor de que era amante de Eduardo VII, e o próprio hotel onde trabalhava tornou-se num ponto de encontro amoroso da alta aristocracia londrina. Enorme injustiça, daquela de que os homens de hoje infelizmente ainda são capazes. De qualquer forma, foi escola importante para muitos e sistematizou conhecimento que estava disperso pelas muitas cozinhas inglesas.
No outro lado do oceano a liberdade de movimentos não era muito maior mas as mulheres iam conseguindo notabilizar-se através de iniciativas de grande fôlego. Fannie Farmer (1857-1915) revolucionou o ensino da cozinha, detendo ao mesmo tempo várias “primeiras” no palmarés. Foi, por exemplo, a primeira a especificar medidas rigorosas de ingredientes nas suas receitas, o que deu brado. Claro que hoje ainda temos expressões como “q.b.” nas receitas com que trabalhamos e transmitimos, mas ninguém aceitaria voltar a guiar-se por medidas qualitativas como um “sopro” ou um “bom gole” de determinando ingrediente.
Paris acabou por ser onde, por acidente, nasceu uma das mais bem sucedidas iniciativas de sempre no mundo da cozinha e alta cozinha. No final do séc. XIX, Marthe Distel, jornalista parisiense, lança uma revista chamada “La cusinière Cordon Bleu”, que queria dizer mais ou menos a cozinheira perfeita. Publicava receitas e proporcionava experiências ao vivo com os chefs mais famosos. A popularidade foi tanta que fundou a escola Cordon Bleu, hoje uma referência mundial do ensino culinário, em todas as frentes. Popularidade esmagadora, foi talvez a primeira a expor o labor dos chefs na comunicação social, atingindo assim o grande público amador.
Havia um lado humanitário grande em tudo o que Distel concebia, tanto que à sua morte todo o legado reverte a favor de uma associação de orfanatos sua protegida. A guerra força o interlúdio e quis o destino que a escola Cordon Bleu fosse parar às mãos de um homem, grande cozinheiro por sinal, co-fundador da cadeia Ritz de hotéis, de seu nome Auguste Escoffier. Trabalho bem continuado, há que dizer. Resta saber quanta da inspiração do grand chef e empresário não vem afinal da gigante Marthe Distel. Mas isso, como muitas outras coisas, nunca saberemos.
A viragem do século e a guerra mexeram, sabemos, em tudo e em todos. E aprendemos que ser redutores não nos leva a nada, antes queremos que as cozinhas sejam palcos de cultura e realização pessoal. E que o género seja… o da cozinha. Espero que não seja pedir muito.
Revoadas de gafanhotos
Dedicamos geralmente pouco tempo a certos assuntos. Não é por falta de vontade, até porque saber mais é um imperativo de consciência e ser sério e grave é obrigatório, se queremos ter uma opinião fundamentada. Mas é tão atraente a ideia de ter o google à mão e ser especialista instantâneo! FOI no Verão […]
Dedicamos geralmente pouco tempo a certos assuntos. Não é por falta de vontade, até porque saber mais é um imperativo de consciência e ser sério e grave é obrigatório, se queremos ter uma opinião fundamentada. Mas é tão atraente a ideia de ter o google à mão e ser especialista instantâneo!
FOI no Verão de há muitos anos, no carro dos tios que me ensinaram a viajar e incutiram em mim o gosto e o gozo de ir daqui para ali. Estávamos a chegar a Toulouse, seriam talvez sete da tarde, o céu limpo, as ruas tranquilas, as indicações do nosso hotel a aparecer, paramos num sinal vermelho. Só nós, o sinal vermelho e a rua larga à nossa espera. Chuva grossa, como granizo forte no tejadilho, depois no pára-brisas mas não era chuva, afinal. Ainda a tentar perceber o que era, de repente foi-se a luz e o barulho era ensurdecedor. Gafanhotos, disse o meu tio. Estava a passar por nós uma praga bíblica de gafanhotos, em pleno centro de Toulouse.
Há quarenta anos não havia internet nem forma alguma de comunicar para perceber o que se estava a passar, mais tarde no hotel fomos esclarecidos. Era normal, para a altura do ano, e tinham prevenido na televisão que aquilo ia acontecer. Explicados tanto os gafanhotos como sermos os únicos na rua quando a coisa se deu. Foram dois minutos intermináveis e como chegou partiu, sem mais. Na TV, imagens da devastação que os saltitões alados provocaram até dispersarem. Comentava-se que só os caracóis eram mais terríveis do que os gafanhotos. Devo ter entrado em choque, tinha doze anos e para mim os caracóis eram os bicharocos simpáticos que ia apanhar ao campo nas férias em Óbidos.
Aquela revoada em Toulouse deixou marca e desde esse dia passou a metáfora de tudo o que de novo aparece para logo a seguir se ir embora. Ajudou-me muitas vezes a perceber as gritarias momentâneas e as pessoas pouco razoáveis, além de uma sensação de efémero em muito do que surge do nada. O vinho natural, a comida sem glúten, os menus de degustação e os incêndios florestais têm sido campos recorrentes de aplicação.
Começo por este último para dar o melhor exemplo do que são os especialistas instantâneos. De manhãzinha atacam e resolvem um assunto grave – com base na informação que vai saindo de forma mais ou menos sensacionalista – e de tarde estão prontos e feitos para a política. No fundo, nenhum assunto é para eles grave. Odeiam eucaliptos mas não sabem o que são, nem que idade têm nem porque são importantes no nosso país. E vão ver a lei, a mesma que todos vemos, lemos e googlamos, para nos explicar que as distâncias das estradas não são respeitadas e que foi por isso que morreram as pessoas. Lamentável de redutora e desrespeitadora, esta forma de explorar a ignorância alheia e a ignorância que revela. Lembro-me de 2003, estava ligado a actividades e especialistas dos verdadeiros quando Portugal literalmente pegou fogo. Todos ouvimos sempre pessoas cheias de certezas absolutas, mas mais não é do que uma revoada daquelas de Toulouse.
Nos vinhos estou a assistir ao fenómeno curioso que pressenti quando vi o “Mondovino” e entrevistei Jonathan Nossiter, o autor, que me pôs triste quando me disse que gostava de vinhos oxidados. Interrompi a gravação para lhe dizer o que aprendi, que havia que fazer a distinção entre evoluído e oxidado, porque para mim – e para quem mexe na área – um vinho oxidado é um vinho estragado.
Acho glorioso o que está a acontecer, estamos a desenterrar património importante revisitando os velhos valores, mas só podemos ficar contentes se os vinhos estiverem bons e vivos.
A enologia é uma profissão de base científica que se ocupa de fazer vinhos aptos para o consumo humano, de acordo com princípios e objectivos estabelecidos pelo produtor. Na toada – e tantas revoadas – dos vinhos naturais em que estamos imersos, há os que sabem o que estão a fazer e os que não têm a mínima ideia. Vamos ver onde nos leva e quanto dura. O glúten tem batido com força no meu pára-brisas e em vez de a praga se afastar insiste em voltar, fica tudo escuro de novo. O que é o glúten, afinal, e o que é comida sem glúten? Se uma pessoa com sensibilidade ao glúten comer um pão com glúten cai para o chão com asfixia e morre? Sabem o que significa para um restaurante ser forçado a ter pão sem glúten só porque sim? As explicações supostamente científicas a que tenho tido acesso são cuidadosos encadeamentos de disparates que não esclarecem ninguém. E se o assunto é grave e há riscos severos para a saúde, por que não há um cartão que identifique a pessoa, para mostrar no restaurante ou loja que não pode mesmo ingerir glúten?
Finalmente, duas pessoas notáveis que felizmente se juntaram para fazer um livro que mantenho à mão e que ainda há pouco folheei, ao arrumar os meus livros. Minnie Freudenthal e o chef Aimé Barroyer. Este último oficiava ainda na cozinha do Pestana Palace quando tive acesso às fichas técnicas dos seus pratos e à importância que dava à digeribilidade, tanto de cada prato como das sequências de vários pratos; os menus de degustação. O seu rigor e o arsenal técnico de que dispõe fez aproximar a médica e juntos produziram “Uma paixão feita de sabores lusitanos”, livro que deve estar presente na biblioteca de quem se interessa pelo assunto da gastronomia.
Tive o enorme privilégio de privar com o chef Barroyer nesses tempos, bem como de me sentar várias vezes à sua mesa. Constatei que mesmo o menu mais longo nunca pesava a ninguém, em vez disso mantinha-se uma boa disposição em toda a gente, à medida que se ia desenrolando a refeição. No final, era um regalo perceber que bem tínhamos todos sido tratados. Regra geral, e com o maior respeito por todos os cozinheiros, sinto que há mais preocupação em mostrar pratos, proteínas e temperos do que tratar uma degustação como uma refeição. A revoada aqui pode significar uma noite em claro e isso podia ser evitado, ouvindo quem sabe; aprendendo com os verdadeiros mestres.
Sabemos no caso dos gafanhotos que o segredo pode estar em não parar, seguir sempre em frente. Mas também sabemos todos quanto isso é impossível.
Saudar o detalhe, saber parar
Vou andando para baixo e, quando passo a ponte para a margem sul, começa a autoestrada que liga a capital ao Algarve sem qualquer interrupção. Ir daqui para ali num ápice é o desejo íntimo e inconfesso de quem agora viaja. O lado positivo é óbvio, estamos mais depressa no nosso destino, gozamos e […]
Vou andando para baixo e, quando passo a ponte para a margem sul, começa a autoestrada que liga a capital ao Algarve sem qualquer interrupção. Ir daqui para ali num ápice é o desejo íntimo e inconfesso de quem agora viaja.
O lado positivo é óbvio, estamos mais depressa no nosso destino, gozamos e usufruímos mais e gerimos melhor o tempo. Mas falta o imenso lado negativo, que é o dos lugares, restaurantes, amigos e lojas por que deixamos de passar. Perdemos o contacto e a noção do que mudou desde a última visita. Encurtámos tanto o tempo das viagens que já não temos tempo para nada. Eu sou um felizardo, continuo a ser obrigado a sair e ir por aí para principalmente parar nos sítios, conversar, ir meter o nariz nos vizinhos aproveitar e arregimentar amigos de há muito. Cumprir o desígnio expresso na interrogação célebre de Claudel: “De que adianta percorrer um caminho se no fim não está uma catedral?”
É raro isso não acontecer, o país fervilha aqui e ali de eventos e iniciativas que obrigariam a estender programas de um dia para sete, sem intervalos. O Algarve das inúmeras oportunidades e escolhas, feito catedral de todos os caminhos, é irresistível mesmo para o gastrónomo mais conservador. É lá que tudo está a acontecer, na crista da onda, nas estrelas Michelin, na reinvenção do receituário marítimo, e na tradição da cozinha de pescador. É lá que fica o Barrocal, língua prodigiosa de terra definida ao longo do mar e que permeia este e a serra; onde acontece em muitas declinações a cozinha de mar e terra; e tantos outros recantos do grande templo gastronómico algarvio.
A nossa obsessão por tudo medir e comparar é um clássico cem por cento humano e não consegue felizmente sequer beliscar a determinação com que o apaixonado pelo tema da gastronomia viaja milhares de quilómetros para fazer uma refeição especial. Incluo neste grupo os próprios chefs, de quem sempre nos esquecemos, como se fossem mecanos sempre disponíveis e preparados para trabalhar a todo o gás e sozinhos como comandos no mato. E, para eles, os mapas são do mundo inteiro, o globo é o espaço natural, eles os órgãos vitais de um gigante orgânico ou, se quisermos, da grande família dos cozinheiros.
Neste cenário, os portugueses são já indispensáveis e, mais importante ainda, estão a par da linha da frente, se não mesmo na vanguarda. Eu continuo a militar no movimento aberto omnivore, francês mas do mundo, advogado da jeune cuisine e dos princípios sagrados das raízes, proximidade e simplicidade.
Foi com muita emoção que estive no jantar das novas estrelas austríacas de cozinha do evento Fine Wines and Food Fair do hotel Vila Vita Parc, em Alporchinhos, Algarve. Kurt Gillig, director, e Hans Neuner, chef executivo do biestrelado restaurante Ocean, foram os anfitriões de um evento magistral a muitos títulos, organização impecável, qualidade excelsa nos mais pequenos detalhes. O festival culminou na Kitchen Party, o colosso de experiência e comunhão gastronómicas que teve há dois anos a primeira grande realização. Demonstração do pensamento cristalino Gillig, um dos raros directores de hotel de cinco estrelas no mundo inteiro que começou como cozinheiro e chegou a uma posição de topo com esclarecimento invulgar acerca do caminho a seguir.
Um dos jantares do grande evento, o das estrelas austríacas em ascensão, atraiu-me particularmente e inscrevi-me. Achei cósmico e bom ter o privilégio de provar e atestar um dos vectores da jeune cuisine e do que pode ser a criatividade aliada à técnica. Foi um desfile notável de notáveis jovens cozinheiros, quase todos, entretanto já aclamados na Áustria como grandes criadores culinários. Apadrinhados e apoiados pelos mais antigos, estão de forma consciente e lúcida a seguir os seus passos.
Dos doze pratos do menu, quatro mereceram a minha pontuação máxima – 5 estrelas – na notação que costumo utilizar para minha utilização. O “Portuguese Taco” de Neuner foi um deles e foi servido à laia de entrada na pérgola junto ao Ocean, com champanhe Dom Pérignon Vintage 2006. O petisco era uma montagem de farinheira em massa folhada e marcou a contribuição de Neuner enquanto anfitrião. Ele, também, uma estrela austríaca em ascensão, acarinhado pelos seus pares, o que é um aspecto importante. O mapa tem pontos distantes entre si, mas interligados.
O segundo grande momento que destaco foi o de Thomas Dorfer: serviu, quando já estávamos sentados, “Truta dos alpes curada, espargos brancos com vinagrete, creme rapsol e gema de ovo”, acompanhada pelo notável Gruner Veltliner 2015 do produtor austríaco Bernard Ott. O francamente jovem Dorfer é uma das grandes esperanças do seu país, e se atentarmos no que decidiu servir no jantar, está a tratar o produto mais tradicional do seu país – raízes – e a reinventar proximidades, de forma notável. Como, felizmente, alguns dos nossos.
Terceiro momento 5 estrelas, por Andreas Dollerer, “Alpine Jakobsmuschel – espécie de vieira de rio dos Alpes –, couve, creme de ovos fermentados, alho fermentado”, espantosamente bem ligado com um Sauvignon Blanc 2015 de Neumeister. Quarto grande momento, uma sobremesa, raro acontecer chegar tão alto nas avaliações que faço, “Maibock, folhas de groselha preta, beterraba, zimbro”, espectacular.
Nelson Marreiros e sua equipa de escanções a brilhar, impecável na explicação das harmonizações e até de detalhes de pratos, grande prestação como sempre. No alforge trouxe mais uma confirmação de que é no reticulado dos caminhos, sejam eles quais forem, que está o sumo e a riqueza. E que qualquer paragem na tasca mais recôndita pode representar um país inteiro, a escala é a do mundo, não é mais a região. E sobre a velocidade com que insistimos em ir daqui para ali, cuidado. É só quando verdadeiramente paramos que a viagem começa.
Já foram os japoneses, agora somos nós
Há quem veja bondade em tudo o que acontece naturalmente, mas a horda que hoje ataca de máquina e telemóvel em riste e fulmina tudo o que é posto, servido ou mostrado, tornou quase insuportável uma refeição serena, focada na comida e no vinho. REGISTAR momentos felizes, para mais tarde recordar, é o clássico da […]
Há quem veja bondade em tudo o que acontece naturalmente, mas a horda que hoje ataca de máquina e telemóvel em riste e fulmina tudo o que é posto, servido ou mostrado, tornou quase insuportável uma refeição serena, focada na comida e no vinho.
REGISTAR momentos felizes, para mais tarde recordar, é o clássico da fotografia familiar, hoje muito facilitada pela memória gigante de que se consegue dotar os equipamentos. Os velhos rolos de 36 fotografias não dariam actualmente nem para começar uma sessão. Talvez por isso mesmo, antigamente não se fotografava certas coisas – quase nada – do quotidiano. Além da exiguidade da película, havia o custo directo da mesma, a que acrescia o peso da revelação e provas em papel. Tirava-se a fotografia do momento exacto – quase sempre falhado – de um filho a soprar as velas na festa do aniversário, fazia-se uns conjuntos de familiares nos dias importantes e basicamente desenferrujava-se as máquinas de sofisticação variável nas férias e viagens pontuais.
Hoje vamos sozinhos, em casal ou em grupo a um restaurante, podemos comer mal e ser mal tratados, mas voltamos com um levantamento de imagens que faz corar a investigação de cenários de crime. A sala. As mesas. As dobras e vincos de toalhas e guardanapos. As marcas e os logotipos, incluindo os inscritos nas lâminas das facas. Os copos. Ainda a comida não veio já lá vão mais de cem disparos. Três rolos de 36!
Ainda não consegui entender o que realmente faz as pessoas fotografar tudo o que encontram, e o efeito é proporcional à sofisticação e requinte do lugar. Quando mais sabemos que vamos pagar, mas fotos tiramos, como se fosse um direito adquirido. E de certa forma é. Nos anos 60 e 70, víamos nos restaurantes, lojas e ruas da Europa japoneses de Pentax ao pescoço a fotografar tudo o que encontravam. Corria então que era uma espécie de espionagem consentida, registar o inteiramente novo, e que supostamente no Japão ampliavam, e viam com todo o detalhe o que haviam visto no velho continente, para copiar. Claro que não era só isso, mas era isso também que se pretendia. Registo frio e sistemático, à boa maneira da espionagem de guerra, de que a tecnologia era garante vitorioso. Penso que o aspecto artístico do relacionamento fotógrafo-objecto nem sequer se colocava.
E penso o mesmo da forma como agora renunciamos a toda e qualquer relação com a comida quando bombardeamos o que nos vão pondo na mesa com dezenas de fotos, com e sem flash. Os japoneses já se foram, agora os espiões somos nós. E para quem fotografamos? Para mostrar a alguém, para publicar nas redes sociais, e para demonstrar que estamos ali, naquele momento, a fazer a experiência a que os comuns mortais não têm acesso. Das legendas é que ninguém trata e, quando o faz, presta um serviço de péssima qualidade ao mundo. Nem jornalismo factual são capazes de fazer.
O que os gurus e os moguls dos media norte-americanos previram (que o jornalismo iria ser feito pelos cidadãos comuns), falhou totalmente. Além de se escrever mal, raramente se sabe do assunto sobre que se escreve. Assim não vale a pena. Ainda há pouco tempo, na minha mesa alguém fotografava de vários ângulos diferentes uma fatia de quiche de cogumelos, que todos comentavam que era de massa folhada. Estupidamente, tentei corrigir explicando que se tratava de massa quebrada e não folhada, ouvi pelo menos três pessoas a dizer com palavras diferentes que folhada e quebrada era a mesma coisa e eu que não chateasse muito. E de repente bum! já estava a dita fatia eternizada no Facebook e Instagram com mais de cem likes e a legenda da massa folhada.
Senti medo. Todos naquela mesa tínhamos obrigação de saber do que falávamos mas ninguém fez nada pela qualidade do que se publicou. Senti pela primeira vez ali que a esmagadora maioria da informação que circula é totalmente inútil. O contrapeso desta situação, contudo, ainda existe. Anne Perkins escreveu há um par de anos um artigo contundente no “The Guardian”, cheio de humor britânico do bom, no qual afirmava que a comida é para ser apreciada e não publicada. Apreciem, sintam aromas e texturas, falem com os companheiros de mesa, comentem, contem histórias e anedotas, mas dediquem tempo e afecto ao que vos está a ser servido.
Quase entro no capítulo da educação e boas maneiras, o que obviamente não farei. Pai, mãe e filha única chegam ao restaurante e sentam-se numa mesa ao lado da minha ainda noutro dia. Metralham a miúda para que se sente direita e calada à mesa, põe o guardanapo, não é assim que se pega no pão, etc. e ainda a comida não tinha chegado. Logo que vem para a mesa, o pai e a mãe tiram fotos ao despique e depois competem entre si para ver quem tem mais likes. Ganha a mãe, com uma foto em que apanhou a filha a comer de boca aberta, veio um comentário de uma tia a dizer que linda que ela está. A miúda reclama, vocês estão todos divertidos, a tirar fotografias à comida e a pôr no Facebook e eu não posso fazer nada. A mãe mete a mão na carteira e tira um ipad mini, que logo provoca um sorriso de orelha a orelha na filha, quando saí ainda ficaram naquele negócio de caras e coisas e eu francamente confuso.
Não me lembro bem do jornal britânico em que vi um cartoon de uma sala grande de restaurante com toda a gente a fotografar a comida em vez de comer. Em primeiro plano estava um casal de meia idade de mão na mão sem telefone nem máquina fotográfica por perto. E está o empregado a perguntar-lhes: “Os senhores não estão a fotografar a comida, não estão a gostar?” Pois é. O mundo está mesmo diferente.