Do silêncio e do tempo e da falta de ambos

Há lugares que nos adoptam sem condições e que numa certa altura da vida parecem moldar-se de tal forma a nós que nos dão a impressão de existirem para nosso exclusivo usufruto. O mundo mágico dos cafés e do prazer de estar.

 

PASTELARIA Mimo, na Avenida Duque de Ávila, ao pé do Instituto Superior Técnico, onde passei grande parte do meu tempo no segundo ano a estudar, quando não estava no Núcleo de Arte Fotográfica quando não estava a fazer trabalhos de revelação para fora. Apanhei uma vez dois alunos a conversar um com o outro sobre teoria da relatividade por mais de uma hora, até perceber que nenhum dos dois sabia do que falava, eram apenas dois tolos na mesma jangada, a usar a asneira como força motriz.

O livro a que me entregava naquele instante era de física, as “Aulas de Física de Feynman”, um trabalho colossal de divulgação e generosidade por parte do Nobel americano da Física que inventou a cromodinâmica quântica. Tinha conhecido o professor Mariano Gago, naquela altura tinha criado uma turma especial de física de partículas e, apesar de o meu assunto favorito ser acústica, vim a mudar para engenharia física no terceiro ano, logo que o curso foi criado. Foi um conselho sábio, o de viver intensamente a academia, e que segui à risca. De cada cadeira que começava, lia o livro como se fosse um romance, de fio a pavio, só depois o utilizava como manual. E aproximei-me sempre dos melhores, para os ouvir de viva voz e frequentava as aulas deles como se estivesse num retiro espiritual. Dava-me muito trabalho e tirava-me muito tempo, mas nunca consegui fazer doutra forma.

Nos três anos de física tecnológica o Técnico transformou-se para mim num prazer indizível de encontro diário e convívio científico vivo. Os cafés eram a grande plataforma de sustentação da aventura que era um novo assunto, uma nova cadeira, um novo trabalho. Não sei como a pastelaria Capri, na Avenida de Roma, me deixou usar tantas horas seguidas uma mesa, não tenho forma de agradecer a simpatia com que os funcionários da biblioteca da Gulbenkian sempre me ajudavam a encontrar um lugar onde o ar condicionado não fosse demasiado forte para a brutal sinusite de que então sofria. Assim como não consegui nunca perceber por que nunca consegui sequer ler uma página de um livro na biblioteca do Técnico nem por que nunca entrei na Biblioteca Nacional.

Mas é tudo o mesmo e um só fenómeno, o silêncio. Não o de emudecer tudo e todos, mas o de estar em sintonia com o meio e o meio comigo. Em tudo o que faço no vinho e na comida tenho chegado à conclusão de que continuo a aplicar o método. As conversas de café são tanto ou mais importantes do que então eram. Os empregados que neles o ciam é que já não são daqueles que gostavam de nos ver ali todos os dias. Entrar com um livro para ler pode hoje ser decepcionante e não tenho como explicar que preciso absolutamente de o fazer, como preparação para um trabalho ou nova área que esteja a abordar.

Faz-me falta o caos e frenesim dos cafés onde se entra e sai sem ser notado, há um silêncio interior que de certa forma me embala. E sempre um ou dois acontecimentos inesperados desencadeiam novas descobertas, assim como sempre um ou dois encontros inesperados ajudam a criar o desejado caos e que acaba por ter o inefável efeito de ajudar à concentração. O conhecimento não vive mais em torres de marfim, e encerrados em quatro paredes dificilmente crescemos, quando esse é o maior, se não único, imperativo de consciência. As listas, as pontuações, os guias, as provas, as visitas, todas terão sido em vão se não tiverem tido na base o sentido do novo e da descoberta.

Partilhar a mesa com personalidades do mundo do vinho e gastronomia deu-me ao longo dos anos as maiores alegrias. Não tenho ainda a idade su ciente para ter direito a escrever sobre elas, chegará o tempo em breve e logo poderei reviver esses momentos memoráveis. Ainda estou imerso no exercício da actividade e sei que não chegarei onde queria chegar, implicaria sair muitas vezes, ir longe e voltar de terras distantes, experimentar os sabores, tocar nas texturas e sentar-me a mesas de muitas lógicas diferentes para que eventualmente me desse por satisfeito.

A lucidez e as mesas de café ajudam-me a perceber o muito que está ainda por fazer. Tenho os meus episódios felizes com os mais sábios dentre os sábios, mas não é coisa que se coleccione nem acumule, é importante a transformação que se dá em nós. Numa visita recente a uma escola de hotelaria, surgiu a pergunta inevitável sobre o que é preciso estudar para ser crítico de vinhos e comida. Acontece a todos com certeza não ter palavras por vezes para responder cabalmente ao que se pergunta, mas a verdade é que não tenho a resposta. A experiência da academia não está mais confinada hoje a um espaço físico apenas e a informação ui por toda a parte, cobrindo temas e mil assuntos derivados. Disse àquele aluno o que passarei sempre a dizer. Uma crítica é uma peça literária, ela própria sujeita ao crivo da crítica. O domínio da língua é, não tenho dúvida, o grande activo de quem escreve, pensa e fala. Logo a seguir, procurar provar e experimentar tudo o que a proximidade nos permite e estudar os assuntos que a nossa curiosidade nos mostra. O café ainda existe e tem muitas mesas. É preciso prosseguir e permanecer. Que o método é infalível.

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