Vieira de Sousa: Dois “novos” Portos Colheita com 20 e 30 anos

Vieira de Sousa

O evento decorreu na OCCA – Oficina do Olival Contemporary Arts, em Lisboa, o local escolhido por Luísa e Maria Vieira de Sousa, co-proprietárias e rostos do projeto Vieira de Sousa, para o lançamento de duas novas referências no mercado de vinho do Porto Colheita, o Vieira de Sousa Porto Colheita 1994 e o Vieira […]

O evento decorreu na OCCA – Oficina do Olival Contemporary Arts, em Lisboa, o local escolhido por Luísa e Maria Vieira de Sousa, co-proprietárias e rostos do projeto Vieira de Sousa, para o lançamento de duas novas referências no mercado de vinho do Porto Colheita, o Vieira de Sousa Porto Colheita 1994 e o Vieira de Sousa Porto Colheita 2004.
A Vieira de Sousa é uma empresa produtora de vinhos do Douro e do Porto, proprietária de cerca de 70 hectares de vinhas espalhadas por quatro quintas, localizadas na sub-região do Cima Corgo. A Quinta da Água Alta, que reúne as quintas do Bom Dia e do Espinhal fica no Ferrão, em Gouvinhas. A Quinta da Fonte, em Celeirós do Douro. A Quinta do Fojo Velho, em Vale de Mendiz e a Quinta do Roncão Pequeno, em Vilarinho de Cotas.
As uvas usadas para a produção dos vinhos do Porto Colheita agora lançados têm origem em dois terroirs distintos, que se complementam entre si. O primeiro, o da Quinta da Água Alta, tem sobretudo exposição a sul, e vinhas com altitudes que vão dos 120 aos 412 metros de altitude. O segundo fica na Quinta do Fojo Velho, e está encaixado no vale do rio Pinhão. Tem exposição a poente, numa zona protegida do calor escaldante tradicional da região duriense durante o verão.
O encepamento é semelhante nas duas propriedades e é dominado casta Tinta Roriz, “que é determinante no envelhecimento fresco dos nossos tawnies”, contou Luisa Vieira de Sousa durante a apresentação dos Portos. A ela juntam-se, entre outras, a Touriga Francesa e a Tinta Amarela. Após a vindima, as uvas são pisadas pé e fermentam em lagares antigos de granito, nas adegas de cada uma das duas quintas até à paragem da fermentação, o que aconteceu para os dois vinhos lançados.

As uvas usadas para a produção dos vinhos do Porto Colheita agora lançados têm origem em dois terroirs distintos

Condições ideais
O da colheita de 1994 teve origem num ano que foi declarado para vintage clássico. O ciclo no campo iniciou-se com muita chuva e humidade, que originou rendimentos baixos na vinha. Mas, no período restante, as temperaturas nunca excederam os 38ºC e o clima manteve-se predominantemente seco, apenas entremeado com algumas chuvas oportunas. As vindimas decorreram em condições ideais, com as uvas no melhor estado sanitário e de maturação possível. Após a vinificação, foram escolhidos os lotes para o engarrafamento de Porto Vintage e, além destes, António Vieira de Sousa Borges, pai de Luísa e Maria, fez um outro que destinou para o envelhecimento a longo prazo em pipas, que foram sempre atestadas com vinhos de 1994. O lote do Porto Colheita deste ano teve origem nelas.
As uvas que originaram o Porto Colheita de 2004 também foram produzidas num ano particularmente favorável. No verão, as vinhas estavam em boas condições, mas já perto do stress hídrico. Mas decorreu alguma precipitação, num período de temperaturas relativamente baixas que originou uma maturação lenta. A vindima foi realizada sem chuva, nas melhores condições possíveis para o final do ciclo e do ano de trabalho na vinha. Após um inverno de estabilização e afinamento, António Vieira de Sousa Borges seleccionou também um lote para ser envelhecido em tonel, para guarda de longo prazo, que deu origem ao Porto Colheita 2004 agora lançado.

(Artigo publicado na edição de Junho de 2024)

Grande Prova: Douro de Ouro …por menos de €15

Prova Douro

Se calhar sou eu que sou velho e os tempos mudaram a mil-à-hora, mas lembro-me de anos (1980s, 1990s) em que a inflação era alta a sério e os vinhos não aumentavam assim tão depressa. Então, aconteceram outras coisas, e não têm a ver com a inflação apenas. Em vez disso, penso que o que […]

Se calhar sou eu que sou velho e os tempos mudaram a mil-à-hora, mas lembro-me de anos (1980s, 1990s) em que a inflação era alta a sério e os vinhos não aumentavam assim tão depressa. Então, aconteceram outras coisas, e não têm a ver com a inflação apenas. Em vez disso, penso que o que aconteceu foi uma mudança nos padrões de consumo. Já se sabe que os apreciadores que procuram vinhos com interesse acrescido fogem das categorias de entrada de gama, que ocupam bem mais de 90% do consumo de vinho em Portugal. É para esses que escrevo, mas não é fácil obter as estatísticas (sou matemático) que reforcem estas opiniões. As médias escondem as verdades. Então vamos pela via do diálogo.

Frescura natural
Fiquei muito impressionado pelo estilo do Crasto, e falei com o enólogo Manuel Lobo de Vasconcellos sobre o vinho. Lembro, como se fosse preciso, que este senhor confeccionou o melhor tinto do país em 2023, vindo da Vinha Maria Teresa. Falamos de “a different beast”, mas nem por isso menos impressionante. É que este Crasto tem apenas 15% de madeira, e mesmo assim tem uma dinâmica em boca impressionante, com suavidade e profundidade. Então, o Manuel disse-me que este vinho é pensado não só como um cartão de visita da Quinta do Crasto, mas também como um cartão de visita dos tintos do Douro. Tendo bem presente a prova de 30 tintos que tinha acabado de fazer, não posso deixar de concordar. O Douro afirma uma identidade e uma qualidade ímpares, mesmo nesta gama, que se já não é de entrada, é a gama de entrada para os consumidores mais interessados, como confirmei mais tarde com Patrícia Santos. Já lá vamos. Segundo Manuel, esta suavidade e profundidade não aparecem por acaso. Cada vez há um trabalho mais cuidado com as madeiras, as vinhas entretanto envelheceram e estão a fornecer uvas com mais qualidade todos os anos, a enologia evoluiu para perceber melhor o seu terroir e ir cada vez mais ao encontro dos desejos dos seus clientes. Esses desejos são cada vez mais vinhos frescos, macios e bebíveis, já se sabe que poucos vinhos serão guardados para um consumo mais tardio. Em especial nesta gama.

E a gama acaba por ser a de entrada. Segundo Manuel Lobo, do Crasto já se fazem 500 a 600 mil garrafas por ano. O vinho na gama abaixo, Flor de Crasto, nem é vendido em Portugal. Uma outra observação que Manuel me fez é que o vinho já não se chama “Quinta do Crasto,” mas apenas “Crasto.” O que significa isto: é óbvio, nem todas as uvas provêm da quinta, algumas vêm da quinta da família no Douro Superior, a Cabreira, onde a altitude assegura uma frescura natural suave e integrada. Mão de mestre na arte dos lotes, e temos cada vez mais vinhos que vão ao encontro dos nossos anseios à mesa. Isto mesmo fui validar falando com quem encara diariamente o consumidor. Patrícia Santos (“filha do Boss” — mítico Arlindo Santos — da Garrafeira de Campo de Ourique) confirmou que esta é uma categoria muito forte nos dias de hoje. São os novos vinhos baratos. Por vezes, se for uma grande quantidade, por exemplo para um casamento, podem lá procurar vinhos abaixo de €10. Já se for um vinho para oferta, os clientes procuram preços mais altos, de €20 ou €30 para cima. Mesmo que para o dia-a-dia os clientes procurem vinhos mais baratos, fazem-no nos supermercados, não procuram o comércio especializado. Neste ponto de preços, o Douro é a região mais forte. O Dão compete com vinhos de grande qualidade por volta de €10, enquanto Lisboa mantém este nível de preços mas oferece um outro estilo, mais leve, para pessoas que procuram diferença. Já no Alentejo, os vinhos de qualidade estão mais caros, e o cliente facilmente gasta mais de €20.

 

O Douro afirma uma identidade e uma qualidade ímpares, mesmo nesta, que é a gama de entrada para os consumidores mais interessados.

Cultura de vinho
Quem visita o Douro compreende porque é que esta região se tornou, em poucas décadas, tão forte comercialmente em Portugal e com um impacto impressionante na imagem dos vinhos portugueses no mundo. Começou logo por beber da fama dos vinhos do Porto, um dos nossos vinhos tradicionalmente mais conhecidos e uma das nossas marcas mais fortes. A seguir vem o facto de a região, sendo pequena, ter uma impressionante área de mais de 40 mil hectares de vinha. Praticamente é uma mono-cultura, e isso transvasa para as pessoas que habitam no Douro. Há ali verdadeira cultura de vinha e de vinho, onde cada duriense é um guardião do seu terroir, que acaba por ser o seu tesouro.
Acertando as agulhas com a enologia, com a fortíssima aposta em formação universitária que as últimas décadas viram, com os holofotes do país e do mundo para ali voltados, com produtores-estrelas a atrair as atenções de todos, com as casas mais fortes do sector do vinho do Porto cada vez mais apostadas em comprar propriedades para controlar a produção das uvas desde a origem, a qualidade acabou por ser o padrão e a exigência de toda uma região. Temos muita sorte, como consumidores, em ter um tal farol a liderar o sector. Mas esta é uma liderança partilhada, porque temos outras regiões que também fizeram o mesmo, galgando passos nos casos em que a cultura de vinho não era tão tradicional, ou porfiando em recuperar o tempo nos casos em que as estratégias eram orientadas para outros critérios.

Hoje vemos, em muitas regiões, fortíssimas apostas em qualidade, e produtores independentes a procurar caminhos alternativos para recuperar estilos antigos ou experimentar caminhos novos. Isso também se vê no Douro, e um dos vencedores deste painel afirma claramente essa diferença. Vou ser claro, este foi um painel muito fácil, porque todos os vinhos tinham belíssima qualidade. Mas também foi muito difícil, porque o estilo era quase sempre muito parecido. Binómio Touriga Nacional e Touriga Franca, com acompanhamento e/ou tempero das outras castas usuais, maturação e extracção elevadas, embora mantendo boa frescura ácida e taninos civilizados, trabalho ajuizado com a madeira, para amaciar e temperar o vinho sem o marcar com doçuras ou especiarias demasiado óbvias. Descrevi 95% do painel. As diferenças de classificação prendem-se com detalhes, seja a integração, seja a maciez, seja o apelo guloso, seja, raras vezes, uma questão de estilo e preferência pessoal. Pormenores. Convido o leitor a experimentar todos estes vinhos, faça o seu próprio painel com qualquer subconjunto deles. Vai deleitar-se, em particular, se no fim da prova da cozinha sair um assado fumegante e acabar à mesa em festa.

(Artigo publicado na edição de Junho de 2024)

Menin Douro Estates inaugura adega

Desenhada por um coletivo de arquitetos portugueses e brasileiros, é um edifício de estilo industrial, construído de forma a integrar-se totalmente na paisagem do Douro vinhateiro.

A Menin Douro Estates, empresa produtora de vinhos do Douro e do Porto, inaugurou recentemente a sua adega, que é também sala de visitas para quem quer conhecer melhor os vinhos da empresa. Desenhada por um colectivo de arquitectos portugueses e brasileiros, é um edifício de estilo industrial, construído de forma a integrar-se totalmente na […]

A Menin Douro Estates, empresa produtora de vinhos do Douro e do Porto, inaugurou recentemente a sua adega, que é também sala de visitas para quem quer conhecer melhor os vinhos da empresa.

Desenhada por um colectivo de arquitectos portugueses e brasileiros, é um edifício de estilo industrial, construído de forma a integrar-se totalmente na paisagem do Douro vinhateiro. A preocupação com o ambiente não se revela apenas na integração na paisagem, mas também no método de reciclagem de água, no uso de painéis fotovoltaicos, que suprem quase todas as necessidades energéticas da adega e o recurso a um tecto verde.

Entre os materiais usados, destacam-se as paredes em xisto, o betão, pintado, no interior, num tom que remete para a cor do vinho, e o inox. Todos os quatro andares estão ligados por uma escada em elipse, um dos elementos arquitectónicos em destaque em todo o espaço.

A sala de visitas da Menin Douro Estates inclui, além de uma sala de provas com vista para a de barricas, uma loja. Este espaço funciona como ponto de partida e chegada dos vários programas de enoturismo disponíveis na propriedade. São quatro packs, que se distinguem entre si pela duração do percurso e pela selecção de vinhos à prova.

Além de um passeio pelas vinhas e pela adega, com explicação do processo de produção, é possível visitar a casa do século XVIII, entretanto totalmente restaurada, e a capela. Fundamental também é a passagem pelo Jardim das Castas, uma espécie de laboratório vivo onde todas as 54 variedades de vinhas velhas encontradas na propriedade foram plantadas e estão a ser estudadas.

Real Companhia Velha: São 268 anos, but who’s counting?

Real Companhia Velha

1960: a família Silva Reis assume o controlo da Real Companhia Velha (RCV), com 60% do seu capital. Outros 35% pertencem à Casa do Douro e o resto está disperso. Já há vários anos que a direcção está a cargo de Pedro Silva Reis. Os seus filhos foram entrando pouco a pouco no negócio. Pedro […]

1960: a família Silva Reis assume o controlo da Real Companhia Velha (RCV), com 60% do seu capital. Outros 35% pertencem à Casa do Douro e o resto está disperso. Já há vários anos que a direcção está a cargo de Pedro Silva Reis. Os seus filhos foram entrando pouco a pouco no negócio. Pedro é enólogo e tem responsabilidades nos vinhos de mesa, Tiago é enólogo e blender de vinhos do Porto. Há muitos anos que o enólogo principal da casa é Jorge Moreira, e a viticultura está na mão de Álvaro Martinho Lopes. Hoje banalizou-se chamar paixão a tudo, mas é impossível ouvir Álvaro falar do Douro e não sentir que é essa a única palavra para o descrever.

A vida do Douro

Em evento recente no Hotel Bairro Alto em Lisboa, Álvaro Martinho Lopes explicou apaixonadamente (lá está) a vida do Douro. A vida das plantas, neste caso, e como elas influenciam e são influenciadas pelo homem. Álvaro é um homem da terra, do Douro, e faz compreender tudo muito bem. Quem já foi ao Douro sabe do que ele está a falar. Embevecido, relembra as suas memórias dessa incrível região de vinho. Quem não foi, fica imediatamente com vontade de ir. Vejamos algumas headlines: “uma vinha com 40 anos é jovem”, “o Douro tem um clima óptimo, mas as plantas têm de lutar, o solo é selectivo”, “O Douro é uma equação grande, com muitas variáveis: altitude, castas, exposição, vinhas velhas, vinhas novas. As Carvalhas são uma quinta igual às outras, o que difere são as pessoas.” Jorge Moreira interveio depois e confirmou isto tudo, enfatizando que, com as variações dentro da própria vinha, e tendo como objectivos os estilos de vinho pretendidos para cada parcela ou cada combinação de parcelas, o factor mais importante, quando chega a hora, é a data de vindima.
Quando Jorge Moreira chegou à RCV, em 2010, as Carvalhas estavam dedicadas ao vinho do Porto. Com 500ha, 150ha são de vinha, dos quais 50 são vinhas tradicionais, e nas outras há várias exposições solares, várias altitudes, várias pendências, inclusive algumas parcelas com caraterísticas que obrigam a trabalho com tracção animal. Jorge Moreira afirmou: “Com esta localização única, a quinta tem de tudo e tudo em grande escala, uma conjugação de factores que permite e obriga a fazer vários tipos de vinho. Há várias gerações que faz vinhos incríveis, e esta diversidade inclui pessoas, gente com sabedoria, com cultura de vinho, entre os quais proprietários apaixonados pelo Douro. E tem o Álvaro. Hoje vamos provar cinco vinhos que demonstram variedade. Mas poderíamos mostrar 10 ou 12.”
Uma outra questão interessante que Jorge Moreira abordou foi o terroir dos vinhos. Parece haver a convicção de que há zonas separadas para tawny, para vintage, para branco. Jorge não acredita muito nisso, e provou-o fazendo um branco da Serra de Galgas, a 450m de altitude e com menos 3ºC de média de temperatura e 1h20m diários de luz, ou melhor, tem luz mas não exposição directa ao Sol. Com exposição Norte, esta parcela de Gouveio tem uma fotossíntese gradual e é sempre a última a ser vindimada. O vinho completa-se com Viosinho da parcela Cruz, por cima da estrada interior da quinta, com altitude mais baixa.

“Há várias gerações que a Real Companhia Velha faz vinhos incríveis, e esta diversidade inclui pessoas, gente com sabedoria, com cultura de vinho, entre os quais proprietários apaixonados pelo Douro” – Jorge Moreira

 

56 castas vinificadas em separado…

A Quinta das Carvalhas presta-se a experimentação com castas, e tem grande sucesso nos seus varietais de castas raras. Talvez tanto sucesso que algumas deixem de ser raras. A Tinta Francisca resiste muito bem ao calor sem água. É uma casta nativa do Douro, logo melhor preparada para fazer o seu percurso fisiológico o mais eficientemente possível. Ou seja, amadurecer as sementes. Eficiente é fazer tudo com pouco. Sem desperdício. Segundo nos contou Álvaro Martinho Lopes, estas experiências nem sempre têm sucesso, e o pior é que demoram anos a ter resultados e representam investimentos significativos. A má experiência com o Donzelinho tinto foi uma boa lição, mas saiu cara. Segundo Pedro Silva Reis (filho), em 2023 fizeram na Real 287 vinificações, incluindo 56 castas separadas.
O Vinha do Eirol é a menina dos olhos de Pedro. Vem de uma parcela de vinhas velhas com a habitual mistura de castas, com exposição Poente, a 380m de altitude. A vinificação pouco interventiva assegurou pouca extracção e um perfil elegante, ligeiro e guloso. Um vinho à moda antiga, mas uma moda que regressa para alegria dos apreciadores de “vins de soif”.
Esta masterclass teve muita adesão da imprensa, influencers (?) e escanções. Uma sala cheia que provou depois uma nova referência, o Quinta das Carvalhas Reserva tinto. Este vinho pretende ocupar um lugar vago na gama das Carvalhas, com um perfil clássico, de Douro tradicional, assegurado por um lote de vinhos provenientes de parcelas com exposição Norte e outras de exposição Sul, e incluindo vinhas velhas, as Tourigas e o Sousão.
Em seguida, a apoteose com o Vinhas Velhas de 2020, um ano muito quente, mas de onde vem este vinho contido, mestria da viticultura e enologia da RCV, e seu conhecimento da quinta. Três parcelas específicas, cada vez mais as mesmas para este vinho, uma das quais teve direito a duas vindimas, uma precoce e outra tardia. Raposeira entra parcialmente para dar volume e maturação, Costa da Barca e Cartola garantem acidez e taninos vigorosos. Parece simples, mas representa muita sabedoria e o resultado é espantoso. Para confirmar que isto não é um acaso da Natureza, provámos um VV 2011, cuja elegância e juventude me impressionaram vivamente. Já com a Tinta Francisca tinha vindo uma testemunha de 2012, que fresco e vibrante mostrou uma suavidade que acrescenta garantias de prazeres futuros a todos estes vinhos.

Estilo leve e vibrante

Começa a faltar-me o espaço, mas não o fôlego. Gostei muito deste evento, onde ouvi falar com conhecimento e paixão dos lugares, terroirs, pessoas, vinhos, provei as novidades e suas testemunhas antigas. Em seguida houve um almoço ligeiro de finger food, onde pude ver o desempenho destes vinhos com comida, não esqueçamos que é esse o seu destino. O Hotel Bairro Alto teve recentemente Nuno Mendes como director criativo, que deixou os traços da sua genialidade na oferta gastronómica. Depois do almoço relaxado, numa sala ao lado podiam-se provar as múltiplas referências da empresa, com o bónus de ter a excelente equipa da Real a explicar cada vinho. Valem muito a pena os velhos vinhos do Porto, que a Real cultiva com um estilo leve e vibrante. Também aprecio muito o seu trabalho com castas minoritárias. É das poucas empresas onde se podem provar vinhos de Rufete ou Cornifesto. Tenho a certeza de que esta aposta vai dar frutos, e que mais vinhas serão plantadas com estas castas, para as salvar e preservar o estilo de vinhos que elas oferecem. A Real Companhia Velha é uma das empresas mais influentes do Douro, e eu agradeço-lhes a teimosia.

(Artigo publicado na edição de Abril de 2024)

Roquette & Cazes: Xisto, Douro de traço bordalês

Roquette & Cazes

O evento teve lugar no Porto e destinou-se a mostrar a nova edição do tinto Xisto, um vinho com origem na quinta do Meco (Douro Superior), uma propriedade que pertence à família Cazes e que se situa ao lado da quinta da Cabreira, que pertence à Quinta do Crasto. A ideia desta colaboração é muito […]

O evento teve lugar no Porto e destinou-se a mostrar a nova edição do tinto Xisto, um vinho com origem na quinta do Meco (Douro Superior), uma propriedade que pertence à família Cazes e que se situa ao lado da quinta da Cabreira, que pertence à Quinta do Crasto. A ideia desta colaboração é muito antiga. A família Cazes tem uma relação familiar com Portugal, uma vez que o patriarca Jean-Michel, recentemente falecido, casou com uma portuguesa de Moçambique. Embora sempre a viver em Bordéus, a verdade é que, em casa dos Cazes, a conversa entre os filhos e os visitantes se desenrola em português.

A ideia do projecto nasceu em 2002, mas o primeiro tinto Xisto a entrar no mercado foi da colheita de 2003, quando se entendeu que o vinho tinha o perfil e qualidade desejada. Uma segunda marca – Roquette & Cazes – surgiu em 2006. Mais do que ser um rótulo que surge em anos que não há Xisto, esta marca, com um PVP bem convidativo, poderá ter sempre edição, beneficiando da boa produção da quinta do Douro Superior. Neste momento atinge as 85 000 garrafas, mas Tomás Roquette, que conduziu esta apresentação, não deixou de salientar que em breve poderá chegar às 100 000 garrafas. A empresa, para além da quinta, não tem, como lembrou Tomás, “nada de nada. Nem adega nem equipa própria, nem armazém de barricas, nem estrutura comercial: tudo é alugado ou sub-contratado à quinta do Crasto”. No final, metade do stock é comercializado cá e o resto pela família Cazes.

Selecção exigente

A frequência de saída do tinto Xisto não acompanha a outra marca. “Ainda não conseguimos fazer todos os anos” e desde 2003 não teve edição em 2006, 06, 08, 10, 14, 16 e 17. A seguir a este, agora apresentado (2019), é certo que vai haver um hiato. Temos então dois tintos feitos com castas portuguesas, de vinhas do Douro mas com a expertise da enologia de Bordéus. Daniel Llose, consultor de enologia da família Cazes, e que está neste projecto desde o início, não deixou margem para dúvidas: “é preciso ser capaz de dizer não, quando não estamos 100% seguros da excelência. Por isso, creio que a seguir a este 2019, o que se vislumbra como próxima edição, poderá ser o 2023”. Seguro mesmo é que, nos anos em que não há Xisto, é o Roquette & Cazes que vê a sua quantidade aumentar. Mas Daniel ainda não tem todas as certezas, quando lembra que “após 48 vindimas, a única coisa que sei é que não sei tudo e há que continuar a estar atento. Não se pode fazer copy paste de Bordéus para o Douro”. Também não deixou de ser curiosa a sua tese de que, nos anos abundantes, a vinha está mais equilibrada e, por isso, não é dado adquirido que pouca produção seja sinónimo de qualidade.

Manuel Lobo, enólogo da quinta do Crasto e da Roquette & Cazes, salientou que as vinificações se fazem por casta (nos lotes entram Touriga Nacional, Franca e Tinta Roriz) e por parcela, o que permite uma maior atenção a todos os detalhes, acrescentando que não pára de se “surpreender com a qualidade que se obtém naquela vinha, bem diferente da Cabreira que fica mesmo ao lado.” Coisas do terroir, diríamos nós… O estágio do Xisto em barrica requer um acompanhamento permanente, porque quer a casta quer a barrica podem ter comportamentos imprevisíveis e as provas periódicas destinam-se a despistar desvios.
O momento foi também aproveitado para provar o Xisto 2012, que revelou estar em muito boa forma. Os vinhos são agora distribuídos pela Heritage Wines. Desta edição de Xisto fizeram-se 7412 garrafas e 203 magnuns. O tinto Roquette & Cazes está agora a entrar no mercado.

(Artigo publicado na edição de Abril de 2024)

Sogevinus: As novas pepitas da Boavista

sogevinus

A Quinta da Boavista, com uma área de 80 ha, dos quais 36 ha de vinha, está localizada estrategicamente na margem direita do Douro, entre a Régua e o Pinhão. Orgulha-se do seu passado e tem presenteado os enófilos com vinhos DOC Douro de enorme classe. A existência de vinhas velhas na quinta, em particular […]

A Quinta da Boavista, com uma área de 80 ha, dos quais 36 ha de vinha, está localizada estrategicamente na margem direita do Douro, entre a Régua e o Pinhão. Orgulha-se do seu passado e tem presenteado os enófilos com vinhos DOC Douro de enorme classe.
A existência de vinhas velhas na quinta, em particular nas vinhas do Oratório e do Ujo e a intenção de as preservar, levou a Sogevinus a optar pela geolocalização das suas videiras, trabalho que tem tanto de tecnologia avançada (localização por satélite) como de saber empírico acumulado, que hoje só alguns classificadores, já de idade avançada e com trabalho feito na Casa do Douro, são capazes de levar a cabo. Ao que nos disseram, os classificadores não tiveram dúvida alguma na identificação das castas das duas vinhas emblemáticas. Essa tarefa está concluída. Todas as cepas foram identificadas e o resultado é espantoso: 56 castas diferentes na vinha do Oratório e 28 na vinha do Ujo. Este trabalho de minúcia só é possível numa época especial do ano porque, para a identificação das castas, é preciso que as videiras tenham folhas e cachos, os dois elementos que formam o cartão de identidade da casta. A conservação deste património e respectiva variabilidade genética estão assim asseguradas.

 

A Quinta da Boavista irá editar sempre alguns varietais, dependendo do comportamento das castas da propriedade, susceptíveis de serem vinificadas e comercializadas separadamente.

 

Anos quentes e secos

Os vinhos apresentados foram das colheitas de 2020 e 2021, dois anos diferentes, mas com um denominador comum: anos secos e quentes. No caso de 2020, o tempo seco manteve-se durante todo o ciclo e também durante a vindima, com uma (repentina e inexplicável, ao que nos dizem…) desidratação da Touriga Franca, o que ocorreu em Setembro. Já o ano de 2021, ainda que seco, teve chuva na Primavera e permitiu uma maturação lenta. O Verão foi ameno, algo sempre de grande valia, sobretudo para os vinhos brancos. Como resultado das mais recentes alterações climáticas e o gosto do consumidor por brancos com mais frescura e acidez, tudo isso justifica a precocidade das vindimas dos brancos que, aqui, aconteceram ainda em Agosto. Os temores do futuro próximo são óbvios: a precocidade da época da vindima “choca” com hábitos e tradições das pessoas da terra, interfere com as festas das aldeias e pode mesmo levar a que falte mão de obra para tarefas tão indispensáveis como pulverizações de “socorro” a pragas como a cicadela, algo que se verificou na passada vindima.

Para além dos vinhos que já fazem o corpo principal das propostas anuais, a Boavista irá editar sempre alguns varietais, dependendo do comportamento das castas da quinta, susceptíveis de serem vinificadas e comercializadas separadamente. Este ano foi a casta Donzelinho tinto, mas outras estarão na calha.
O branco da Vinha do Levante conheceu agora a segunda edição. As uvas foram vindimadas a meio de Agosto, de vinhas situadas nas cotas altas e viradas a nascente, localização favorável para vinhos brancos. Primeiro a Viosinho, que corresponde a 30% do lote, casta com uma janela de vindima muito apertada e, mais tarde, a Arinto. A fermentação da Viosinho decorreu em barrica nova e usada, a Arinto fez maceração pelicular e fermentou em inox.

Castas antigas

A Donzelinho, que teve a primeira edição em 2017, foi feita exclusivamente em inox, o que acontece com outras castas antigas. É depois da fermentação e estágio que se decide se vai sair como varietal ou se irá integrar lotes com outras castas. O enólogo Ricardo Macedo refere que a casta “tem tudo menos cor”, característica que hoje é aplaudida, mas há 20 anos era altamente penalizadora. A casta fermentou durante duas semanas com as películas mas, mesmo assim, não se consegue outro resultado. “Ela deu tudo o que tinha para dar”. Mas tem a vantagem de ser resistente ao calor, conservando aromas e acidez, factores muito positivos.

No caso do Reserva tinto, a fermentação decorreu em inox e parte em barrica de 500 litros. O estágio em madeira (40% nova) prolongou-se por 18 meses. Ficou dois anos na garrafa antes da comercialização.

Falando dos ícones da empresa, a vindima na Vinha do Oratório foi feita terraço a terraço. Apesar de ter 56 castas diferentes, é de notar que tem sempre cerca de 30% de Touriga Francesa. Fermentado em lagar, teve 18 meses de barrica, 40% nova. A vinha do Ujo tem uma exposição norte e nascente e estende-se por altitude variada, com a vindima a começar de cima para baixo. Fermenta em barrica de 500 litros e estagia na madeira durante dois anos e outros dois em garrafa. Jean-Claude Berrouet, ex-enólogo do Château Pétrus, continua a ser o consultor da Boavista e está sempre presente nas principais decisões enológicas.

(Artigo publicado na edição de Abril de 2024)

 

2015 é ano de Barca-Velha

Barca - Velha

A mais recente edição de Barca-Velha, um dos vinhos mais icónicos de Portugal, irá chegar ao mercado em Junho próximo. Desde 1952, até hoje, apenas foram lançadas 21 referências, de um tinto que é o expoente máximo da Casa Ferreirinha. “Graciosidade, carácter e persistência” são alguns dos adjetivos que o enólogo Luís de Sottomayor utiliza […]

A mais recente edição de Barca-Velha, um dos vinhos mais icónicos de Portugal, irá chegar ao mercado em Junho próximo. Desde 1952, até hoje, apenas foram lançadas 21 referências, de um tinto que é o expoente máximo da Casa Ferreirinha.

“Graciosidade, carácter e persistência” são alguns dos adjetivos que o enólogo Luís de Sottomayor utiliza para descrever um vinho que destaca pela sua “impressionante capacidade de guarda”. Foi isso que ditou a decisão final de lançamento do Barca-Velha 2015.

Declarado apenas em anos verdadeiramente excecionais, o Barca-Velha é, desde a sua criação, produzido a partir de uvas selecionadas em diferentes altitudes no Douro Superior. A Quinta da Leda, com 170 hectares de vinha, dá atualmente origem à maior parte do lote, que é composto por castas tradicionais da região.

“O anúncio de um novo Barca-Velha é sempre um momento muito especial e de enorme alegria”, salienta Fernando da Cunha Guedes, presidente da Sogrape, acrescentando que “por um lado, há o orgulho de ver nascer um dos mais emblemáticos e reconhecidos vinhos nacionais e, por outro, a consciência do cuidado imprescindível para escrever um novo capítulo, nesta história sem igual no setor vitivinícola”.

Crasto: Na vinha, onde tudo começa

Quinta do Crasto

Na Quinta do Crasto, nem todos os anos são anos de “Maria Teresa” ou “Ponte”. Do mesmo modo, os varietais de Touriga Nacional, Touriga Franca e Tinta Roriz não surgem em todas as vindimas, dependendo do comportamento de cada casta na vinha, mais regulares as duas primeiras, mais temperamental a última, exigindo também ao vinho […]

Na Quinta do Crasto, nem todos os anos são anos de “Maria Teresa” ou “Ponte”. Do mesmo modo, os varietais de Touriga Nacional, Touriga Franca e Tinta Roriz não surgem em todas as vindimas, dependendo do comportamento de cada casta na vinha, mais regulares as duas primeiras, mais temperamental a última, exigindo também ao vinho mais tempo de garrafa até chegar ao mercado. Precisamente, ao mercado chegaram agora os tintos de topo da Quinta do Crasto da colheita de 2019, desde logo o Vinha Maria Teresa (essa vindima não “deu” Vinha da Ponte), o Touriga Franca e o Touriga Nacional.
Para o enólogo Manuel Lobo “2019 foi um ano excepcional, caracterizado por uma produtividade acima da média (mais do que em 2017 e18). No entanto, a Primavera e Inverno foram bastante secos, levando níveis de reservas de água no solo demasiado baixos para as necessidades das videiras”. Porém, o deficit hídrico acabou por não afectar as videiras, uma vez que nos meses de Verão (Junho, Julho, Agosto) as temperaturas foram amenas (“menos 5ºC do que a média dos últimos 5 anos na Quinta do Crasto”, refere o enólogo). “As videiras mostravam áreas foliares equilibradas e de aparência saudável”, diz, e a vindima, iniciada com as uvas brancas no dia 26 de Agosto (as tintas começaram a 31 de Agosto), decorreu com noites frias e dias quentes. “Essencial mesmo foi a chuva que chegou nos dias 21 e 22 de Setembro, que ajudou a apurar a maturação das castas mais tardias”, adianta Manuel Lobo. No Crasto, a colheita encerrou no dia 11 de Outubro, com as uvas das vinhas situadas a maior altitude. “Um ano perfeito, de maturações lentas, como eu gosto”, confessa o enólogo.
Aqui, como em muitas outras propriedades no Douro, as diversas parcelas têm comportamentos muito distintos consoante a sua idade, castas plantadas, composição do solo, altitude ou exposição solar. Este último factor, por exemplo, é determinante nas vinhas (e consequentemente nos vinhos) Vinha Maria Teresa e Vinha da Ponte. Enquanto a primeira aprecia os anos quentes (“protegida do sol, às 4 da tarde já está à sombra”, diz Manuel Lobo), a segunda, mais soalheira, prefere os anos mais frios.
De qualquer modo, por melhores que sejam as uvas, para os vinhos de topo é feita muita selecção à entrada da adega. E depois da vinificação (na super-equipada “adega das vinhas velhas”, como lhe chamam na casa) e do estágio em madeira, só mesmo as melhores barricas chegam ao lote final de Maria Teresa ou Vinha da Ponte. As restantes vão parar ao Crasto Vinhas Velhas Reserva, que assim beneficia da qualidade e carácter que estas emblemáticas vinhas transmitem aos vinhos.

Quinta do Crasto
Miguel Roquette está envolvido na gestão da propriedade familiar, aqui acompanhado pelo enólogo Manuel Lobo.

MARIA TERESA, PLANTA A PLANTA

Na Quinta do Crasto, rodeados por aquela paisagem magnífica, espraiando os olhos pelo rio Douro, qualquer conversa começa e acaba com as vinhas. E quando abordamos os três tintos de 2019 agora apresentados, isso torna-se ainda mais inevitável, já que todos têm uma origem bem precisa. E Tiago Nogueira, o responsável de viticultura da empresa, conhece-a melhor do que ninguém.
Maria Teresa, cujo nome deriva da neta de Constantino de Almeida, fundador da Quinta do Crasto, é uma vinha mais do que centenária, e é também uma das maiores (se não a maior) vinha velha do Douro, com os seus impressionantes 4,7 hectares em socalcos tradicionais virados a nascente. São 54 castas as que ali se encontram identificadas. Representa uma autêntica arca do tesouro que a família Roquette, proprietária da quinta, tem procurado preservar e multiplicar, já que, como é natural em vinhas desta idade, muitas videiras vão morrendo ao longo do tempo (na Maria Teresa há 30% de falhas).
O primeiro grande passo no sentido dessa preservação foi o projecto PatGen Vineyards, implementado em 2013, já lá vão mais de 10 anos, portanto. “Precisávamos de salvaguardar e, consequentemente, perpetuar o património genético das vinhas velhas, dada a antiguidade destas plantações e a multiplicidade de variedades, incluindo as minoritárias ou mesmo inexistentes noutros locais”, explica Tiago Nogueira.
Assim, numa primeira abordagem, foi então realizada a piquetagem da vinha (com geo-referenciação diferencial com precisão à videira) resultando no mapeamento das 58 parcelas que compõem a vinha Maria Teresa e a sua integração num Sistema Integrado de Gestão de Propriedades (SIGP). No final, foram contabilizados 31.825 pontos de plantação com coordenadas GPS (que representam o somatório do número de videiras, falhas e bacelos), das quais 21.922 são videiras. Com recurso a drone e imagens de satélite, que possibilitam imagens de alta resolução, é igualmente possível antecipar a perda de material genético e a contagem de plantas em risco. Toda esta informação fica disponível de forma digital, funcionando como uma espécie de “vigia”, que permite perceber o estado de saúde de cada uma das plantas que existem na vinha, cuidando-as de forma mais optimizada às suas necessidades.
“Com a informação fornecida, as equipas de viticultura e enologia podem intervir, por exemplo, na fertilização manual de videiras que estejam mais vulneráveis ou em falência, e até decidir a data de vindima. Esta tecnologia permite igualmente identificar os pontos débeis e actuar com rapidez, fazendo as correcções necessárias na planta ou salvaguardar esse material genético”, refere Tiago Nogueira.
No âmbito deste trabalho, foi igualmente feita uma classificação ampelográfica das videiras, por parte de ex-colaboradores do IVDP, culminando na identificação visual das tais 54 variedades, maioritariamente tintas (tais como Alvarelhão, Casculho, Pilongo, São Saul), contabilizando-se também uma variedade tinta desconhecida e 4 brancas (Alvaraça, Malvasia Fina, Malvasia Rei e Gouveio). Como base em todo este manancial de informação, foi criado um campo de multiplicação de genótipos na propriedade, ou seja, uma espécie de “viveiro reserva” onde todas estas castas estão representadas, o que permite proceder à reposição das videiras que morrem por variedades geneticamente idênticas, perpetuando, desta forma, o encepamento integral da vinha Maria Teresa. Numa terceira abordagem, em parceria com a UTAD, está-se a proceder à caracterização genética, agronómica e química/enológica das castas desta histórica vinha.
“Queremos ter um conhecimento mais profundo da tipicidade e diversidade de variedades do Douro, um dos factores diferenciadores mais importantes da região. Quanto maior for esse conhecimento, maiores serão também as hipóteses de fazer face a pragas, doenças e alterações climáticas”, diz o viticólogo. Num futuro próximo, a Quinta do Crasto espera extrapolar este trabalho para as restantes vinhas velhas da propriedade, nomeadamente a igualmente histórica Vinha da Ponte.

VINHA NOVA, À MODA ANTIGA

No entanto, apesar de todos os cuidados, a vinha Maria Teresa não vai durar eternamente. Do mesmo modo, como acontece em todas as vinhas velhas, nem todas as castas que lá se encontram são excelentes do ponto de vista enológico. Assim, de forma faseada, em 2019, 2021 e 2023, a Quinta do Crasto resolveu plantar dois hectares de vinha em socalcos tradicionais suportados por muros de pedra de xisto. O material genético para as enxertias veio, naturalmente, da vinha Maria Teresa, mas das 54 variedades ali identificadas foram seleccionadas “apenas” 40, aquelas que se enquadram no perfil enológico pretendido por Manuel Lobo, descartando-se as castas que por norma são rejeitadas no campo e na mesa de escolha durante vindima. Das castas seleccionadas, foram pré-definidos “blends de variedades” para em função dos conhecimentos existentes sobre cada casta, se poderem aplicar especificamente a diferentes zonas da parcela, tentando obter o melhor enquadramento entre a casta e as características microclimáticas e de solo. Ou seja, sendo um field blend, a localização/enxertia de cada casta não foi feita forma aleatória. Tiago Nogueira exemplifica: “Numa zona mais fértil e húmida da parcela, fez parte do blend de variedades pré-definido, por exemplo a Tinta Barroca e o Sousão, e evitamos nestas micro-zonas, a presença, por exemplo, de Tinta Roriz ou Tinta Amarela, que naturalmente ocuparam zonas de solo mais pobre e seco.” Ou seja, respeitando os princípios tradicionais, estes foram aplicados de forma científica e com base nos conhecimentos de hoje. Das três plantações de porta-enxertos, a de 2019 já se encontra enxertada e em produção, a de 2021 foi enxertada no ano que passou, e a de 2023 será enxertada em 2025. A plantação, em alta densidade (6500 videiras por hectare) está a ser conduzida no tradicional Guyot e apoiada por rega gota-a-gota para garantir o sucesso da implantação.
“Este modelo tem muitas vantagens”, defende Tiago Nogueira. “Desde logo, a maior densidade de plantação implica menor vigor e menos produção por cepa, o que irá aumentar a qualidade da uva e dos mostos sem baixar a produtividade por hectare. Por outro lado, acreditamos que não vamos precisar de esperar tantos anos quanto num modelo convencional para obter vinhos de primeira linha. E conseguimos obter o blend pretendido directamente do campo para a adega, tentando mimetizar as vinhas velhas mais importantes da Quinta do Crasto. Há também uma componente estética: a beleza da vinha tradicional enquadra-se no património paisagístico da propriedade.”
Nem tudo são vantagens, porém. O declive dos socalcos e o compasso de plantação não permitem a mecanização da maioria das tarefas, sendo muito dependente de mão de obra, um bem cada vez mais escasso no Douro. “É uma questão de proporção”, diz Tiago Nogueira. “Por enquanto, a capacidade operativa da estrutura de viticultura da empresa consegue lidar bem com a área de vinha tradicional existente”.

TOURIGAS, NACIONAL E FRANCA

A verdade é que nem só de field blend e castas raras com nomes estranhos vivem os vinhos de topo da Quinta do Crasto. As igualmente clássicas, ainda que menos “exóticas”, Touriga Nacional e Touriga Franca são muito importantes para a construção do vasto portefólio da empresa. E, desde logo, para os seus mais famosos vinhos varietais. No entanto, tal como acontece com os tintos Maria Teresa e Vinha da Ponte, também aqui a vinha faz diferença, e muito. E estas parcelas de Nacional e Franca (e Roriz, já agora) têm também uma estória para contar.
Antes de mais, é preciso ver o contexto: nos anos 80, a Quinta do Crasto produzia unicamente vinho do Porto. Antecipando, quem sabe, a possibilidade de desenvolver um projecto de vinhos Douro (o que viria a acontecer na vindima de 1994), o casal Leonor e Jorge Roquette decidiu plantar cerca de 10 hectares de vinha nas encostas da Quinta do Crasto. Para tal, solicitaram o apoio do conceituado viticólogo Professor Nuno Magalhães que os aconselhou a plantar as três castas mais estruturantes da região: Tinta Roriz, Touriga Nacional e Touriga Franca. Escolheram-se as parcelas de meia encosta, entre os 250 e os 350 metros de altitude, situadas acima das emblemáticas vinhas velhas da Quinta que, contra o pensamento dominante na época, entenderam preservar. Assim, em 1984, 1985 e 1986, numa encosta com um declive de 30 a 40% de inclinação, exposta maioritariamente a Sul, construíram-se os patamares de 2 linhas de plantação que começavam a surgir no Douro como forma de permitir a mecanização das vinhas, até à data pouco frequente. A plantação foi feita com porta-enxertos, depois enxertados com varas de selecção massal recomendadas por Nuno Magalhães. Estas novas parcelas, plantadas em sequeiro (sem rega), totalizaram 5 ha de Tinta Roriz, 3,5 de Touriga Nacional (a Touriga “antiga”, não a de selecção clonal) e 1,5 ha de Touriga Franca.
A enxertia foi feita em ‘rupestres du lot’ e (“afortunadamente”, como diz Tiago Nogueira), foram utilizados clones pouco produtivos. “No caso da Tinta Roriz é por demais evidente, quando comparamos a produção desta parcela com as parcelas de Roriz plantadas mais recentemente, estas produzem 3 a 4 vezes mais”, refere o técnico. Somando a isto o facto de as parcelas em causa estarem bem expostas, em solos de baixa fertilidade, e serem constituídas por videiras com quase 40 anos é relativamente fácil perceber que a fruta ali originada “merece ser vinificada de forma isolada e aparecer no mercado em vinhos varietais”, remata o enólogo Manuel Lobo.

DE VOLTA AO VINHO

Ainda que não envolvidas nos vinhos agora apresentados, importa referir que a Quinta do Crasto tem também uvas brancas, de parcelas plantadas entre 2015 e 2017 nas zonas mais altas da propriedade. São cerca de 10 hectares de vinha ao alto, a mais de 500 metros de altitude, plantada com as castas Viosinho, Gouveio, Verdelho, Folgasão e Arinto. Nos últimos anos tem sido ali feito um trabalho muito intenso de melhoria da fertilidade do solo e em 2023 foi instalado um sistema de rega-gota-a-gota para complementar a disponibilidade hídrica das plantas e promover o seu equilíbrio. O destino destas uvas é o Crasto branco.
Para terminar esta volta por algumas das mais emblemáticas vinhas do Crasto, nada como regressar ao ponto de partida, o tinto Quinta do Crasto Vinha Maria Teresa. Ao lado do 2019 agora apresentado, tive oportunidade de provar os 2017 e 2018. E, mais uma vez, como tantas outras ao longos destes 30 e muitos anos de escrita de vinhos, fiquei convencido de que só percebemos inteiramente a grandeza de um vinho quando o colocamos ao lado de outros potencialmente tão grandes quanto ele. Se o 2018 se mostra fechado de aroma, mais em elegância do que potência, muito redondo, polido, profundo, rico, cheio de classe, o 2017 é ainda uma criança, enorme, tenso, pleno de raça, com fruta madura de enorme qualidade, textura de seda, especiaria, muita frescura e imenso brilho, com anos e anos pela frente. Só que, comparado com estes, o 2019 vai ainda mais longe, atingindo uma dimensão até agora, porventura, inalcançada. A nota de prova reflecte aquilo que o Maria Teresa 2019 mostra ser: absoluta perfeição numa garrafa.

(Artigo publicado na edição de Janeiro de 2024)