Estive Lá: Deambulando pela Serra da Estrela e petiscando
Se há coisa que gosto de ver e ouvir é água límpida de montanha a correr entre pedras. Como há muito tempo não íamos à Serra da Estrela, aproveitei um fim de semana de verão para lá dar um pulo, para rever Louriga e calcorrear um pouco nas suas ruas, mas sobretudo para descobrir as […]
Se há coisa que gosto de ver e ouvir é água límpida de montanha a correr entre pedras. Como há muito tempo não íamos à Serra da Estrela, aproveitei um fim de semana de verão para lá dar um pulo, para rever Louriga e calcorrear um pouco nas suas ruas, mas sobretudo para descobrir as suas piscinas fluviais de montanha, de águas bem límpidas e enquadramento estético em pleno vale glaciar. Em volta, várias matizes de verde da paisagem, das grandes pedras de granito e montanhas quase a tocar no céu de um azul português, parcialmente encoberto de nuvens muito brancas naquele dia.
Soube mesmo bem estar ali um pouco, naquela paz, a escutar o som das águas antes de partirmos montanha acima até à Torre, para mais uma subida, nesse dia muito mais sossegada do que as de dias em que a neve e o frio levam milhares de pessoas à serra. Depois, uma descida até ao Covão da Ametade para relembrar passeios que não fazia há mais de 20 anos. Feito tudo isto, e sempre de forma muito calma e serena, fizemo-nos à estrada, primeiro em direcção a Seia, e depois para Nelas, o nosso destino de jantar nesse sábado, a Taberna da Adega da Lusovini, onde uma boa amiga nos esperava para um repasto, calmo e sereno, de boa conversa animada por petiscos que gosto de comer nesta casa.
Pelo caminho, e com muita sorte porque só acontece uma vez por ano, apanhámos o dia de transumância na estrada em direcção a Seia, ou seja, a mudança de alguns milhares de ovelhas e cabras das zonas baixas da Serra da Estrela para as altas, conduzidas pelos seus pastores, trazendo, a reboque, algumas dezenas de curiosos, muitos deles carregados com as suas máquinas fotográficas para captar um momento realmente único e muito interessante.
Depois foi hora de continuarmos o caminho para o repasto que nos esperava em Nelas. Começámos com os inevitáveis, pelo menos para mim, Folhados de Queijo da Serra, Mel e Nozes, Cogumelos Shitake em Azeite e Alecrim e Croquetes de Alheira com molho de mostarda, na companhia de um Pedra Cancela Vinha da Fidalga Uva Cão 2022. Também escolhi Truta de escabeche com cebola rocha, pela curiosidade e porque gosto de escabeches, que não estava nada má. Por fim, porque sou adepto incondicional de carnes grelhadas, saboreámos, bem devagar, uma Posta à Taberna. Este tipo de carne grelhada sabe sempre melhor assim, fatiada e comida com tempo, à medida que a conversa flui e se vai saboreando, sobretudo porque o prazer que tive foi acrescentado pela a boa companhia do tinto da casta Monvedro da colheita de 2022. Para terminar, enquanto os outros iam saboreando coisas doces, fui apreciando queijo da serra com um Porto Andresen White 20 Anos.
(Artigo publicado na edição de Outubro de 2024)
Minha rica caldeirada
O povo português leva ao peito todo o peixe e marisco que a natureza lhe entrega, para depois processar de mil maneiras, declinando os mais gloriosos pratos segundo receituário simples e de matriz popular. De raiz profunda na cozinha de pescador, é desde sempre que retalhamos e aparamos peixes, levando-os a lume brando sobre legumes […]
O povo português leva ao peito todo o peixe e marisco que a natureza lhe entrega, para depois processar de mil maneiras, declinando os mais gloriosos pratos segundo receituário simples e de matriz popular. De raiz profunda na cozinha de pescador, é desde sempre que retalhamos e aparamos peixes, levando-os a lume brando sobre legumes diversos para produzir caldeirada. Não há quem não tenha a sua favorita e está no coração de todos.
A diversidade de espécies, a qualidade notável que, desde sempre, o imenso mar Atlântico garante, fez com que nos tenhamos apoiado, como fonte segura, no manancial de pescado que alimenta a nossa mesa. Em Portugal saboreamos com desarmante simplicidade um peixe grelhado nas brasas sem véus nem disfarces. O mesmo é dizer sem tempero que não seja sal, azeite e vinagre. Quanto mais nos aproximamos das extremidades, vísceras e espinhas maior é a intensidade de sabor que sentimos e nos vicia desde que nascemos. Estamos nos domínios da cozinha de pescador, em que o umami é fonte inesgotável de felicidade, além de espaço de mantença rica e valor pobre. Águas muito frias, correntes fortes e constância nos fluxos são alguns dos aspectos diferenciadores do produto marítimo nacional, a que há ainda a juntar a quantidade. Seja como for, certo é que os que andam na faina pelo nosso mar, chegado o momento sacramental da venda em lota ou da pesca artesanal de anzol, retêm para si os pináculos de sabor enjeitados pelos distraídos e deprimidos urbanos e fazem a festa entre si com muito mais proveito. Está apresentada a principal origem da caldeirada.
Somos, por definição e teimosia, adeptos fanáticos da lógica do produto inteiro; da fixação em aproveitar tudo num mesmo peixe, a tudo dando destino culinário. Na minha fantasia romântica – e urbana – a caldeirada nasceu a bordo de barcos e fragatas pesqueiras, seguindo o esteio da simplicidade extrema. O corte das cabeças e o aproveitamento das vísceras produz só por si, apenas com o suado de cebolas e outros hortícolas de guarda, fundos caldosos de sabores ricos e concentrados. Depois era juntar peças ou aparas para obter copiosas refeições a bordo, sem qualquer prejuízo da qualidade. Aventura igual acontecia em terra firme, depois de vendidos os mais nobres exemplares, no aconchego e recato da praia no lusco-fusco e na configuração de potes de ferro e lume de chão. Quem nunca fez a experiência não imagina o que perde. Quem já fez nunca mais dispensa.
De norte a sul, de lés a lés
Viajamos em modo de voo rasante para sondar e absorver o principal do tema da caldeirada e damo-nos conta da extraordinária variabilidade. Nos cocurutos minhotos do território damos com uma preparação canónica, baseada em congro – o peixe exemplar que vive tão bem em águas salgadas como em água doce – e nos belos exemplares que quase podemos dizer que existem para proporcionar a caldeirada perfeita. São eles, entre outros o ruivo, a raia e o tamboril. Consome muita cebola, timidamente ponteada com alho e bastante louro. Batata às rodelas grossas, montadas com a cebola a fazer cama, colorau. Segue-se o cortejo de peixes, cobre-se de água, rega-se com vinho verde branco e azeite e está pronto o tacho para o sacrifício sápido que sabemos de cor. Sempre em lume muito brando, que a transformação é lenta. Deve beber-se o mesmo Vinho Verde branco que se utilizou na confecção da caldeirada.
Descemos um pouco na geografia ribeirinha, até Aveiro, a sacrossanta capital da caldeirada monoproteína. Estamos na altura das enguias e é justamente nessa que nos concentramos. Falamos do peixe que vem de latitudes baixas, cerca do Golfo do México ainda bebé e que por orientação misteriosa sobe até às águas tumultuosas da Ria, regressando por intuição geomagnética ao lugar onde foi concebido. As enguias são despojadas das cabeças e cortadas em segmentos e a ordem de montagem é cebolas, batatas – ambas às rodelas – e os pedaços de enguia. Monta-se em camadas alternadas, e encima-se com unto. Sim, banha! Leva ainda gengibre, bastante vinagre e muita ciência culinária e, quando resulta, torna-nos por osmose um pouco divinos. Neste caso, a harmonização ideal pode passar por um tinto ligeiro, com pouca extracção, ou alternativamente um bom Viognier alentejano.
Parceira de vinho tinto ainda melhor é a maravilhosa caldeirada de petingas, também de Aveiro, de sabores bem vincados e com bastante tomate na composição. À mesa é como num passe de mágica, vinho e comida desmaiam nos braços um do outro. Em Aveiro também é rainha a caldeirada multiproteína, com amêijoas, tamboril, safio, congro e lulas, bastante tomate e muita cebola. Dependendo da frescura do peixe, é prato para nos colocar às portas do céu. E o que bebemos? Um bom Cercial da Bairrada.
Continuamos para sul e damos com a incrível e apetitosa caldeirada à fragateira, em que pontificam os peixes ribeirinhos, de mar e rio, consoante as povoações. Eram outrora cozinhadas a bordo das fragatas. A fataça (tainha), e as enguias constituem o núcleo central, podendo juntar-se saboga, barbo, safio, cação e tamboril. É uma grande surpresa para quem nunca provou e pede a assessoria de um Fernão Pires do Tejo com alguma idade. Olleboma – António Maria de Oliveira Bello – era fã incondicional deste prato de tacho de tradição rústica, que situava no Ribatejo, Lisboa e Sesimbra. Em termos de sabor apoiava-se muito no caldo inicial de cabeças de peixe, e não se fez rogado nas que em sua opinião eram as que mais contribuíam para o sabor final. Por ordem decrescente, eram estas: pescada, congro, goraz, pargo, robalo, enguia, linguado e ruivo. Um trabalho de sistematização notável, reconheça-se. Nesta profusão de sabores marítimos são de salientar a utilização de duas lagostas de quilo e um quilo de camarão da costa. Ou seja, é na Grande Lisboa que adquire estatuto de nobreza a nossa querida caldeirada. Para este colossal e patrimonial prato, propomos um Arinto com madeira e mais de seis anos em garrafa, A acidez natural irá fazer um bom trabalho na resolução dos excessos proteicos, que são de esperar em termos de complexidade.
Do Alentejo chega-nos a caldeirada de eirós (enguias), de preparação canónica e ao mesmo tempo símbolo de rendição à ancestral menta alentejana que é o poejo. É, como sabemos, a erva que mais rendimento de aroma e sabor dá, e a que mais se presta à cozedura extractiva lenta, com provas dadas através de inefáveis pratos estufados, como é o caso do cação. Leva também tomate e o vinho branco é referencial obrigatório, pelo que propomos um vinho estreme da casta Roupeiro/Síria, se possível com alguma idade. Prima não tanto pelo corte de gorduras e proteínas, mais pelo conforto e envolvência do palato, a proporcionar estabilidade e persistência de aromas e texturas, além do estímulo extremo do palato. Neste caso, quanto mais acidez fixa, melhor.
Já no enigmático e subtil Algarve gastronómico, damos com a caldeirada rica, marcada pela presença de pata-roxa, corvina, sargo, besugo, linguado, robalo, tainha, rodovalho, salmonete e garoupa. Exige longas e aturadas preparações de cada peixe, numa muito eficaz fusão e sabores e texturas. Nunca nos podemos esquecer de que o Algarve é fonte de inspiração e manancial de aromas e texturas. Temos sempre de estar preparados para mais uma nova revelação. A experiência com um Negra Mole algarvio é uma grande e fundadora instrução para subsequentes e certeiras explorações. A harmonização com um Arinto dos Açores tem efeito imediato e universal. As tonalidades vulcânicas e a acentuada acidez fixa confirmam acentuadamente a capacidade de resolução de proteínas e mineralidade deste vinho.
Nos Açores, o caldo de peixe apresenta-se-nos como uma proverbial caldeirada, com sargo, garoupa, bicuda e muge na base, a que devemos juntar emoções e sensações de temperos como pimenta da terra e açafrão como ingredientes que vão equilibrar as diversas sensações de sabor. Ligação de excelência com um bom Arinto dos Açores do Pico.
Caldeirada europeia
No espaço e mares europeus, a exploração acontece naturalmente para dentro do espaço continental, já que do outro lado espera-nos o imenso oceano. Logo aqui ao lado, nas Astúrias, as receitas de caldeirada sucedem-se, na história e na riqueza. A celebrada “caldereta de Gijón” é uma das mais belas rendições à glória do peixe e do marisco disponíveis. É muito semelhante à nossa abordagem de caldeirada, excepção feita à utilização de caldos de conserva que se armazenam separadamente e que nós não utilizamos. É considerada localmente com a mais digna e nobre expressão que o mar asturiano tem para dar.
Avançamos para França e encontramos a famosa bouillabaisse concatenação de “bouille” – fervura com “baisse” – baixa e que significa, strictu sensu, cozedura a baixa temperatura e que, na literatura de índole gastronómica, entendemos como categoria culinária à parte. Itália também tem lugar reservado para as caldeiradas. Por lá, encontramos nos cardápios declinações felizes semelhantes às nossas. Carinhosamente, chamam-lhe cioppino, para indicar que se trata de um prato feito com base na fervura lenta de cortes de peixe integrados num caldo único.
O universo marítimo da mesa é um imenso e rico manancial de significados e significantes, com matizes que vêm e se perdem nas brumas do tempo. Que nunca nos faltem as caldeiradas!
Estive Lá: Ilha da Armona, mais próximo do paraíso
Assistir ao movimento das marés na barra da Ilha da Armona proporciona uma sensação muito agradável. E não só para mim. Sente-se na forma de estar das pessoas que passam a pé pela beira de água, nas que se banham nela e nas que apenas se sentam a apreciar a vista, como gosto de fazer […]
Assistir ao movimento das marés na barra da Ilha da Armona proporciona uma sensação muito agradável. E não só para mim. Sente-se na forma de estar das pessoas que passam a pé pela beira de água, nas que se banham nela e nas que apenas se sentam a apreciar a vista, como gosto de fazer por vezes. À medida que a maré baixa vários bancos de areia vão surgindo, convidando a um mergulho nas águas límpidas das lagoas que se vão formando ou a apanhar conquilhas e berbigões. Mais uma vez não resisti ao convite aos mergulhos. Quanto às conquilhas, este ano só as encontrei no prato, como se verá adiante.
É pelo prazer que me dá que volto à Armona todos os anos, mesmo que isso me obrigue a dar pelo menos 12 mil passos ida e volta, desde o lugar onde costumo deixar o automóvel até ao cais onde apanho o barco e, depois, pelo interior da ilha até à barra. Tal como é habitual o meu dia começou com uma tosta mista num dos cafés do mercado de Olhão, aquele onde vou sempre, na companhia de um sumo de laranja algarvia bem-apessoado, e de um café para acordar. A verdade é que não há melhor tosta mista para mim, principalmente pelos sabores e aromas irresistíveis e inimitáveis do pão, ligeiramente barrado, por fora, com manteiga, onde se aconchegam molemente o queijo e o fiambre. É impossível deixar de repetir.
Enquanto espero a encomenda, vou sempre ao mercado do peixe porque me sabe bem fazê-lo e me ajuda a manter o olhar treinado. No verão, se se for cedo, há quase sempre sardinha, carapau de todos os tamanhos, safia, dourada e sargo, pescada, robalo, salmonete, chaputa, raia, cação, atum e muitos outros peixes e mariscos. Por isso, vou sempre lá abastecer-me, o melhor que consigo, antes de voltar para Lisboa. Mas se, for sábado, tem de ser cedo, porque, a partir das 10h, a oferta já rareia. A frescura, os sabores e aromas e a relação qualidade/preço valem sempre o investimento.
A ida mais recente à Armona levou-me, na volta, ao Restaurante Grupo Naval de Olhão. Estava a apetecer-me lá voltar e fica mesmo perto do cais de embarque para as ilhas. Foi um lanche ajantarado que se iniciou perto das 4h30 da tarde, na esplanada, composto por ostras da Ria Formosa, como não podia deixar de ser, conquilhas à Bolhão Pato que ainda souberam melhor na companhia do pão fresco, cheiroso e gostoso que só se consegue arranjar no Algarve, tal como a salada de polvo de cores vivas e os carapaus alimados. Tudo na boa companhia do vinho Sebastião, da casta Chardonnay, que seleccionei entre as cerca de duas dezenas de sugestões de uma carta com opções para todos os gostos e bolsas. A sua frescura, a fruta discreta mas presente e o ligeiro toque de madeira e de especiarias contribuíram para que fizesse boa companhia a todos os petiscos. Foi um belo final de tarde de beira ria neste verão.
Restaurante Grupo Naval de Olhão
Morada: Av. 5 de Outubro, Olhão
Tel.: 289 050 543
Mercados de Olhão
Morada: Av. 5 de Outubro, Olhão
Tel.: 289 817 024
Site: www.mercadosdeolhao.pt
Bilheteira Olhão – Ferry para as Ilhas
Morada: Av. 5 de Outubro 2A, Olhão
(Artigo publicado na edição de Setembro de 2024)
Estive lá: Café de São Bento – O charme discreto de um clássico
Percebe-se, quando se transpõe a cortina, que a ideia é preservar uma certa intimidade num espaço que se pretende reservado e cuja decoração baseada nos vermelhos, madeira velha e latão, faze lembrar um vetusto clube inglês. Foi objecto de renovação recente quando mudou de mãos na viragem dos 40 anos de existência e passou a […]
Percebe-se, quando se transpõe a cortina, que a ideia é preservar uma certa intimidade num espaço que se pretende reservado e cuja decoração baseada nos vermelhos, madeira velha e latão, faze lembrar um vetusto clube inglês. Foi objecto de renovação recente quando mudou de mãos na viragem dos 40 anos de existência e passou a ter como proprietário Miguel Garcia, um velho cliente da casa com vasta experiência anterior no ramo da hotelaria e que nos recebe em pessoa nesta primeira visita.
Já com um flute de espumante na mão, dou comigo a pensar que é sempre bom sinal quando um cliente fiel toma conta de uma casa que se foi tornando sua com o tempo. E por isso tudo ali respeita a tradição e a memória. A começar pelos funcionários, fardados com o seu colete axadrezado e lacinho, alguns deles com dezenas de anos de casa e que são retratados como vedetas em fotos individualizadas expostas na escada de acesso ao 1º piso também ele remodelado. São eles a alma deste espaço e garantem a perenidade de um serviço profissional, atento, mas também discreto, que os clientes são muitas vezes figuras publicas e políticos vindos do parlamento ali em frente, e as suas conversas pedem recato.
Se a decoração respeita a tradição, que dizer então da ementa? Estão lá os clássicos todos que deram fama à casa, a começar pelo famoso Bife à Café de São Bento, amplamente publicitado como “o melhor de Lisboa”. Se o é ou não, teria de provar todos os outros antes de confirmar a sentença. Mas o que posso assegurar de experiência vivida que o lombo de corte alto se deixa cortar como manteiga derretida, imerso no sápido molho de natas inspirado na receita de Marrare, guloso quanto baste, com os palitos de batatas fritas crocantes. É o emblema da casa e consta que permanece inalterado há 40 anos.
Mas há outras opções, tanto nas carnes, como no bacalhau gratinado (outro clássico) e mesmo uma alternativa vegetariana que os novos tempos e tendências aconselharam a introduzir recentemente. A nós foi-nos servido como entrada uns belíssimos camarões “al ajillo” e não poderíamos ter começado melhor. O vinho da casa foi feito em parceria com a Ravasqueira e é suficientemente polivalente para casar bem com a maioria das propostas. Para fechar, os mais gulosos podem ainda tentar-se pela doçaria com propostas também elas clássicas, não sem antes limpar o palato com o sorvete de limão com vodka. Tenho para mim, no entanto, que não é só pela comida que a numerosa clientela é atraída diariamente ao Café de São Bento. A nostalgia pelo classicismo e a envolvência num ambiente que desperta memórias e saudades por um tempo que já se perdeu fazem valer os seus encantos.
Café de São Bento
Rua de São Bento 212, 1200-821 Lisboa
Telefone: 913 658 343
Horário: segunda a sexta-feira – 12h30 às 14h30 e 19h00 às 2h00; sábado e domingo – só jantar
Prioridade total ao sabor
A harmonização de comida com vinho tem vivido sobretudo de dogmas, a que é mais que tempo de renunciar e ao mesmo tempo urge substanciar racionalmente. Além de novos perfis vínicos que os produtores têm vindo a oferecer, o gosto evoluiu muito nas últimas décadas. Hoje acreditamos que o grande objectivo da ligação é que […]
A harmonização de comida com vinho tem vivido sobretudo de dogmas, a que é mais que tempo de renunciar e ao mesmo tempo urge substanciar racionalmente. Além de novos perfis vínicos que os produtores têm vindo a oferecer, o gosto evoluiu muito nas últimas décadas. Hoje acreditamos que o grande objectivo da ligação é que vinho e comida sucumbam harmoniosamente nos braços um do outro, sem vencedor nem vencido. Bem-vindos ao fascinante mundo do equilíbrio e ousadia à mesa.
O assunto é delicado, mais apropriado seria dizer que é pouco visitado. No entanto, precisamos absolutamente de um jogo coerente à mesa para conseguir chegar ao objectivo supremo de uma digestão feliz. A plataforma universal de conhecimento tem de assentar muito mais no racional do que o nosso sistema fisiológico consegue identificar do que simplesmente numa cartilha sensaborona tacitamente adoptada. O magistral e fundador trabalho de Brillat-Savarin lavrado no fundamental livro “A fisiologia do gosto” estabelece quatro sabores fundamentais: ácido, doce, amargo, salgado e um quinto sabor “do qual ainda ouviremos falar muito”, e que baptizou como osmezoma. Aprendemos a chamar-lhe umami com a instalação das chamadas cozinhas orientais, principalmente a japonesa. Se nos apoiarmos nestes cinco pilares dos alimentos da nossa mantença, temos já belíssimos pontos de partida para a exploração vínica.
A estruturante acidez
A salada acompanha e equilibra muitas vezes um prato, à maneira da janela que se abre para entrar ar fresco e que o prato ganhe luz e matizes diferentes de sabor. Azeite, vinagre e ervas aromáticas como o agrião ou o manjericão operam facilmente essa transformação. Umas simples gotas de limão avivam uma ostra fazendo sobressair a sensação marítima do vibrante bivalve de que Portugal é porta-estandarte. Este costume de deitar uns pingos sobre a membrana da ostra era para ver se estava viva. A reacção ao ácido fazia-a reagir indicando por isso que estava em condições para consumir. Com a certificação dos tempos modernos, há apenas que procurar produtores acreditados, a frescura está garantida. Igualmente fresco é o sorvete de limão que se tornou vezeiro em sobremesas diversas supostamente para criar frescura, mas há que atender ao sabor que no caso tende a ser dominante. A raspa da casca de uma laranja ou limão pode ser o toque de frescura que faz abrir e impressionar um simples bolo, frango assado ou o merengue italiano que cobre uma tarte. Menos perceptível, mas igualmente estruturante é a acidez num prato quente. Mas se num caldo ou prato de tacho quase se pode medir pelo pH – e nesse caso devemos procurar obter 4 ou menos – num prato estruturado e com vários componentes há que fazer prevalecer o bom senso e a experiência. O tomate é sempre um elemento forte em saladas frias, comporta-se em cru como fruto rico em licopeno, fortemente antioxidante, mas conhece bem o seu caminho quando incluído em configurações culinárias de cozinha lenta. O mesmo é dizer que tem honras de fundo fundamental de cozinha o que afinal é o elemento ácido indispensável e único na libertação lenta e sustentada. O alho e a cebola contribuem de forma particularmente eficaz para o perfil acídulo do trabalho culinário. O primeiro infelizmente tem mais detractores que adeptos fervorosos, o grelo que está dentro de cada dente do hortícola deve ser removido antes de toda a sequência de preparação, depois é que surge a glória do que é um dos mais felizes moderadores de acidez da história da cozinha. Há além disso que ter a garantia da boa origem do alho, é muito sensível às águas de rega na horta, a garantia bio é sem dúvida fundamental. Procure pequenos produtores da sua confiança ou mesmo que conheça pessoalmente e vai ver a diferença. A cebola de boa semente portuguesa comporta-se de forma abnegada e sistematicamente aceita papel secundário. Picada, liberta ácido sulfúrico, de resto responsável pelas lágrimas que jorramos no processo, cortada em gomos transforma-se fundindo harmoniosamente com a restante assessoria. Ligações felizes: Arinto de Lisboa sem madeira. Vinho Verde Alvarinho. Tintos baseados na casta Castelão. Aragonez do Alentejo.
O capítulo das coisas doces estimula particularmente o sentimento nacional e talvez por isso mesmo tenhamos copiosa oferta vínica para as acompanhar. Passou de moda o saudável costume de beber um copo de licor como digestivo no final da refeição, e aparentemente não volta tão cedo ao altar da mesa. Permanece, contudo, a esperança de que as aguardentes bagaceiras e vínicas prossigam nas suas sendas felizes, indispensáveis para os portugueses. Imparáveis estão o whisky e o gin, que são bebidas duras geralmente de qualidade excepcional, há que dizê-lo. Isto enquanto não aparecem projectos sólidos de destilados de fruta que temos e é tão boa. Mas adiante, que estamos na festa doceira, há muito por que festejar. Leite-creme, arroz-doce, mousse de chocolate são glórias quotidianas que vão adoçando a boca às famílias, receitas registadas nos canhanhos que vão animando os frigoríficos. A concorrência dos preparados instantâneos é feroz e lá cedemos à pressão, que a gente tem pressa.
Portugal tem âncora forte e sápida na chamada doçaria conventual, sabedoria de matriz regional crivada de conhecimento popular. Ganhou especial impulso no início do séc. XIX, quando a extinção das ordens religiosas conduziu a que o que tinha crescido nas cozinhas dos conventos passasse a fonte principal de rendimento. O torrão real e o fartes de Portalegre, fortemente baseados em ovos e frutos secos são glórias universais da doçaria, são dois exemplos apenas de um vastíssimo receituário de que ainda hoje gozamos suaves rendimentos. Os livros de receitas sobreviveram graças sobretudo ao facto de muitas das oficiantes estarem ao serviço durante o dia mas iam dormir a casa, e assim foram adquiridos conhecimentos preciosos. O que seria de nós sem esse manancial? Nem pastel de nata teríamos, quanto mais papos de anjo, ovos moles ou castanhas doces. A refinação de açúcar é assunto relativamente recente, o mel é ancestral e natural e marca presença de vulto na doçaria nacional, tanto directamente em receitas de pastelaria como em molhos e outros condimentos. O chocolate é outra descoberta recente, tudo se passa na era pós-descobrimentos, mas não foi por isso que o adoptámos com menos fervor e continua a ser desafiante no que toca à harmonização com vinhos.
O percurso vínico da variante doce da nossa alimentação tem sido mais ou menos errático, movido mais por dogmas do que razões. Quem nunca experimentou casar doçaria conventual com um tinto velho com mais de vinte anos não sabe o que perde. A estrutura está mais aberta e a componente doce é preservada. O caso do pastel de nata resolve-se com um moscatel de Setúbal ou um Carcavelos. Já as sobremesas com chocolate negro – mais de 70% de cacau – pedem um Porto Vintage novo. O chocolate de leite gosta mais de Madeira Malvasia. Nos bombons, pralinés ou recheados, a opção certa pode ser um Porto Tawny 30 ou 40 anos.
Os injustiçados amargos
Não há equilíbrio sem extremos e o grupo de amargos é aquele de que menos se fala. Mesmo na prosápia da crítica de vinhos é que mais estranheza provoca no leitor, por se tratar de uma área que inspira defeito, quando é um sabor fundamental ao nível dos restantes. Convivemos bem com ele e sem ele a vida é sensaborona. Apercebi-me disso pela primeira vez quando há muito tempo me foi servida uma entrada unicamente de beterraba crua sem qualquer marinada ou molho. Sabemos que é rica em açúcar, mas há que sabê-la trabalhar para que o amargo não domine demasiado o conjunto. No contexto certo torna-se deliciosa, e até base de saladas tépidas exóticas. Na ligação com o vinho há apenas que ter o cuidado de optar por vinhos com pouca ou nenhuma madeira, para não puxar demasiado pelos polifenóis presentes na bebida. Num campo bem diverso estão os igualmente diversos amargos do peixe. Destaco os fígados, parte importante e particularmente injustiçada e que raramente se leva à mesa requintada e na qual está muito do sabor. Há que ter a ousadia de por exemplo servir em iscas tal como se faz com porco ou vitela e depois saber-lhe dar a devida assessoria, trabalhando fundos e molhos. O vinho azedo, quase vinagre que se aplica nas axilas e coxas do leitão antes de se entregar ao fogo sacrificial vai mais tarde fazer a grande diferença no sabor final. O vezeiro espumante cumpre bem o seu desígnio, mas um tinto de Baga pode ajudar na leitura do requinho de que todos tanto gostamos. Temos surpresa garantida colocamos espinafres crus numa salada fria, os amargos presentes nas folhas podem destruir o objectivo primordial, que seria a harmonia integradora. Mas curiosamente se as passarmos primeiro numa frigideira anti-aderente sem gordura, a estrutura vegetal abre e deixa-se impregnar de condimentos e temperos, piscando o olho a um bom Pinot Noir. Mesmo quando os vai utilizar num gratinado, vale a pena dar este tratamento prévio. O forte amargo que caracteriza a semente de cacau pode ser uma mais-valia na preparação e processamento culinário de certos pratos, funcionando como intensificador de sabor. O registo vínico feliz será neste caso um Arinto da Bairrada com madeira. O café é também um referencial amargo e não é em vão a inclusão em estufados longos ou em molhos. A perdiz adquire estatuto de realeza e o bife ganha dimensão universal.
Grupo salgado
O sal está diabolizado e procura diariamente clemência junto de consumidores, médicos e nutricionistas. É um fenómeno social cíclico que está à mercê de revoadas de opinião e radicalismo geralmente pouco informadas e de certa forma alarmistas. O gosto português, contudo, não o dispensa e está na base da história da nossa alimentação desde há muitos anos. Deve utilizar-se com muita moderação, apenas como intensificador de sabor, embora saibamos que usamos e abusamos dele na cozinha. E se é pouco razoável o extremismo cego, urge instalar uma nova consciência em todo o espectro do consumo. A manteiga portuguesa, a mesma com que barramos o pão do pequeno-almoço, tem muito sal, devíamos ter o grau “meio sal” dos franceses para compensar tudo o que pomos no pão, ele próprio já rico em sal. A expressão pejorativa de pãozinho sem sal diz quase tudo sobre o assunto e no restaurante o vezeiro saleiro tem de estar ao lado. Trata-se, portanto, do sabor fundamental que domina o gosto de um prato e ao mesmo tempo o aviva. Não imaginamos o nosso maravilhoso fumeiro sem o sal. Não há presunto tradicional sem a forte salga inicial, que o ajuda a secar também e o ajeita para a empreitada do fumo. A cura do queijo concentra nele a tonalidade salina, por força da evaporação da componente líquida, indo de pasta mole a velho. O molho de soja de que abusamos na forma como comemos sushi e sashimi faz-nos ir muito além no sal, devíamos passar as peças pela soja muito ao de leve, e nem todas precisam sequer de passar. Tornou-se um hábito social que acaba por arruinar a experiência de pureza e verdade que procuramos junto dos bons sushimen que temos de norte a sul do país. Além disso, não damos hipótese a que o vinho brilhe, recorremos à cerveja numa espécie de jogo de opostos que nada tem a ver com a majestade implicada na cozedura da lâmina que tornou famosa a cozinha japonesa. Pelo fenómeno da criação de dimetilamina já referido, o vinho tinto está excluído da harmonização, pelo que deve optar por brancos de álcool moderado e acidez pronunciada. Já o queijo velho pode gostar da companhia de um tinto vigoroso com madeira. Para o presunto, há que considerar a maridagem com brancos de curtimenta com alguma evolução e ir contra o preconceito cego de acompanhar com tinto. Tudo depende da idade e cura do presunto e da gordura disponível. No geral, os enchidos curados de fatia pedem o corte da acidez, pelo que pode dar-se o caso da oportunidade para um tinto do Dão sem madeira. Já no caso da alheira clássica, deve levar-se perfurada com alfinete nas pontas e levar-se a uma frigideira anti-aderente sem qualquer gordura, lume no mínimo. Vai bem com branco de Trás-os-Montes, servida com grelos salteados e ovo estrelado.
Umami, o sabor que sabe bem
Eis-nos chega dos ao quinto sabor, o umami, que está na moda e na boca dos chefs. Numa escala de intensidades, o leite materno é campeão, seguido cá muito em baixo pelo caldo de vitela da primeira fervura, que em francês se diz “fond de veau” e está na base de muitos cozinhados. Não é tanto a intensidade, mas a envolvência e sensação de satisfação que leva a que os nossos bebés gostem tanto do leite materno no período de aleitação. Se atribuirmos 300 unidades de umami a essa essência materna, ao caldo de vitela damos 75. O terceiro classificado é o caldo dashi de camarão da cozinha chinesa e japonesa, com cerca de 50 unidades. Depois vêm todos restantes alimentos, com menos de dez pontos. Brillat-Savarin sabia bem de que falava no seu matricial livro Fisiologia do Gosto. As cozinhas orientais têm-nos ensinado muito sobre equilíbrio e completude de uma refeição e no fundo tem muito a ver com digestibilidade. A mesa kaizeki, alta cozinha japonesa composta de uma sequência de pratos de grande recorte técnico, representa todo um tratado de alimentação. Nós, ocidentais temos beneficiado muito da fusão e confrontação lúcida e intelectualmente orientada com as técnicas e sabores das cozinhas orientais. Apreciamos sobretudo a plenitude de sentidos sem pesar demasiado e a digestão fácil e simples. Tofu e seitan estão a entrar no nosso léxico nutricional justamente por esta razão. Há uma procura de equilíbrio que deve envolver a totalidade da refeição em vez de apenas partes e é imperativo que abracemos de forma culta e instruída tudo o que formos integrando pacificamente nas nossas cozinhas. Os vinhos resultantes de práticas biodinâmicas têm-me surpreendido muito sobretudo por esta vertente de umami e compreende-se que muitos menus de degustação do famoso Abade de Priscos começassem por um consomé de aves e fossem acompanhados por Madeira Sercial, ponte divinal apenas alcançável por mestres dos equilíbrios. Temos produtores entre nós que estão apostados nesta via, adoptando práticas que dão saúde à terra e nos integram nas suas paisagens. Um simples queijo fresco do dia acompanhado por um Vinhão de Vasco Croft, da região dos Vinhos Verdes representa bem a redenção que todos queremos. E merecemos.
(Artigo publicado na edição de Outubro de 2023)
The Yeatman: Alta gastronomia, em evolução
“Evolução de Aromas” é o nome da actual carta do restaurante Gastronómico do The Yeatman que, apenas com treze anos de existência e sob a alçada do chef Ricardo Costa, já embainhou duas estrelas Michelin, a primeira em 2012 e a segunda em 2017. “Esta carta é o resumo de toda a minha vida”, é […]
“Evolução de Aromas” é o nome da actual carta do restaurante Gastronómico do The Yeatman que, apenas com treze anos de existência e sob a alçada do chef Ricardo Costa, já embainhou duas estrelas Michelin, a primeira em 2012 e a segunda em 2017. “Esta carta é o resumo de toda a minha vida”, é a confissão de Ricardo Costa que, sendo natural de Aveiro, coloca na cozinha muitas das influências da suas origens, da salicórnia ao leitão, passando pela doce “tripa”, vendida tradicionalmente em quiosques nas praias daquela zona.
A introdução à experiência — pensada pelo chef “para ser uma evolução de aromas e sabores que despertam diferentes sensações” — dá-se no bar do hotel vínico, com três aperitivos: Suspiro de Bacalhau, recheado com molho holandês picante, ovas de bacalhau e terminado no topo com germinado de coentros; Lagostim marinado em yuzu no interior de um crocante de alga nori e arroz, com creme e pele crocante de frango de churrasco; e o Cozido Português, uma recriação do mesmo com couve portuguesa crocante, terrina do cozido ao centro e o caldo deste misturado com óleo de chouriço. É durante esta fase, antecedente à entrada no Gastronómico, que o chefe de sala Pedro Marques nos introduz ao menu e toma conta de alguma intolerância alimentar, ou outro tipo de alteração que o cliente deseje. “Isto dá tempo à cozinha de se organizar nesse sentido, para que tudo continue a fluir”, explica-nos Elisabete Fernandes, directora de vinhos do The Yeatman e responsável, entre muitas outras coisas, pelas harmonizações vínicas do restaurante, numa selecção a que chama de “Antologia”, por se tratar de uma “viagem pelas diversas regiões vitivinícolas de Portugal”. Para compor os suplementos vínicos dos menus, Elisabete dispõe de uma garrafeira com 1400 referências, na sua maioria portuguesas, e cerca de 40 mil garrafas.
Segue-se o momento em que o chef convida os comensais a visitar a cozinha, e nela desfrutar de uma ou duas criações gastronómicas, neste caso a Zamburinha, uma concha de foie gras preparada em nitrogénio espuma de iogurte fumada, gel de beterraba e croûtons de especiarias na base, terminada com pérolas de beterraba e germinado de pepino; e os Churros salgados com pó de azeite, acompanhados de uma composição de lírio marinado, nata ácida e caviar. Enquanto isso, observa-se a “valsa lenta” executada pela equipa entre as várias estações da cozinha, cronometrada e imperturbável, já habituada à presença de intrusos.
No towel, no problem
Passando à mesa, o que nos envolve é uma sala com classe, mas despretensiosa, atributos que também descrevem o serviço. Nesta altura do ano, ao fim do dia, a cidade do Porto e o rio Douro são enquadrados por um céu azul-acizentado e pelas cores quentes que os antigos dizem adivinhar bom tempo. É isto que vemos enquanto jantamos, e já faz metade da experiência. Num apontamento original, que o The Yeatman associa a um esforço no sentido da sustentabilidade, não há toalhas nas mesas, mas isso nunca se revela um problema ao longo da refeição. Pelo contrário, é confortável, dá um aspecto moderno à sala e a madeira bonita e polida do tampo conecta-nos às cores e texturas naturais dos pratos. Estes iniciam-se com a Salada de Tomate em diferentes apresentações — sorbet de tomate verde, cubo de tomate Coração de Boi, pickle de tomate cereja, gelatina de tomate assado e neve de tomate, com vinagrete de água de tomate e óleo de manjericão — acompanhado de um gin não-alcoólico com infusão de melancia, lima e hortelã, elemento que levanta a cortina a uma das novidades no campo das harmonizações, o suplemento de bebidas sem álcool, que inclui seis propostas, como kombucha feita com chá verde e notas de pétalas de rosa, uma infusão de ervas, especiarias e citrinos, ou um blend de cereja com água de tomate e mirtilos. Esta opção, juntamente com a versão 100% vegetariana do menu (outra novidade), vem reconhecer (finalmente) que há mais do que um perfil de consumidor de alta cozinha, e que é possível manter a excelência neste tipo de variações. “É uma tendência, e iremos continuar a explorar este conceito no futuro”, afirma o chef Ricardo Costa. Na versão vegetariana, “a intenção é que cada momento cumpra a mesma lógica, filosofia e experiência do menu clássico, mas sem a proteína animal”, explica o chef.
Continuando no menu “clássico”, chega a Gamba do Algarve marinada, com creme de pinhões e alho francês na base, gelatina dashi no topo, quinoa crocante e molho de salicórnia, um prato que é terminado na mesa com tremoço preparado em nitrogénio. Depois, a Santola ao Natural, cozida no momento, servida num prato impactante com a forma da dita santola, acompanhada por germinado de cerefólio e molho feito com o coral do crustáceo, e pérolas de pão frito com manteiga, numa referência às marisqueiras portuguesas. A seguir, Pregado cozinhado a baixa temperatura (“55 graus, 7 minutos”, revela o chef) terminado no sautée, com uma crosta de Bulhão Pato (coentros e bivalves), cubos de pancetta ibérica, chalota recheada com coentros e bivalves, e molho de caldo de cebola, óleo de cebolinho e percebes. Continuando no mar, entra em cena a Enguia, cozinhada a vapor e braseada, com a pele crocante, pequena salada de cogumelos Morilles, aneto, alho francês e cerefólio, e linguíni de aipo, tudo sob um molho beurre blanc com óleo de chili. Antes do Tamboril em feijoada — com as peles do peixe, filete glaceado em manteiga branca, fígado e molho do mesmo, e germinado de mostarda — vem o momento do Pão, caseiro e 100% feito de trigo barbela, com manteiga de creme de vaca e iogurte natural e azeite da Quinta de Vargellas. A fermentação que origina a manteiga é de 24h, “sendo posteriormente lavada com água gelada para retirar as impurezas”, adianta Ricardo Costa. Da memória do chef surge o único prato de carne da carta, o Leitão, concretamente barriga com pele crocante no topo, salada de alface Iceberg, creme de milho, milho frito, e pó de azeitona Kalamata (da região grega com o mesmo nome). Para partilhar, batatas insufladas temperadas com pimenta preta e molho de leitão, “feito com os sucos do leitão enquanto está a assar” e com pimenta, louro e chili.
Chegados às sobremesas (surpreendentemente sem o estômago pesado, depois deste desfile gastronómico de treze momentos), damos as boas-vindas à Ostra de Gaia, onde, numa base de creme de ovos moles com amêndoa tostada e “nitro” de ovos moles, entra uma concha preparada em nitrogénio com o mesmo creme, finalizada com pérolas de chocolate e amêndoa. Para os fãs das sobremesas frutadas e menos doces, vem também um creme de amêndoa com nectarina marinada em açafrão e baunilha, gelado de mascarpone e lima kafir, terminado com “nitro” bicolor de nectarina e caldo da mesma.
O menu “Evolução de Aromas” tem o custo de €250 por pessoa, tanto na versão “clássica” como na vegetariana. O suplementos vínicos são dois, o Prime Selection (€250) e o The Yeatman Selection (€125). Já o suplemento de bebidas não-alcoólicas custa €90 por pessoa.
No final de uma refeição preparada pelo chef Ricardo Costa e pela sua equipa, sentimos que, por trás das distinções e das estrelas, está uma grande devoção à gastronomia e à tradição, às matérias-primas e às formas. Sentimos, também, que há muito estudo e criatividade envolvidos na evolução dos processos e das técnicas, e na selecção de novos ingredientes, por vezes inéditos. E sentimos, ainda, as origens, as influências e a mão do chef, qual artesão que pega num pedaço de barro amorfo e o transforma em algo único, com identidade. Vistas as coisas por este prisma, também uma cozinha pode ser um pequeno terroir.
(Artigo publicado na edição de Setembro de 2023)
Quinta de São Luiz abre restaurante na The Vine House
A The Vine House, mais recente proposta do grupo Sogevinus acaba de abrir o seu primeiro restaurante com o cunho do Chef Vítor de Oliveira. Aberto de terça a domingo, o novo espaço da Quinta de São Luiz by Chef Vítor de Oliveira já aceita reservas. O rio Douro serve de inspiração para o conceito […]
A The Vine House, mais recente proposta do grupo Sogevinus acaba de abrir o seu primeiro restaurante com o cunho do Chef Vítor de Oliveira. Aberto de terça a domingo, o novo espaço da Quinta de São Luiz by Chef Vítor de Oliveira já aceita reservas.
O rio Douro serve de inspiração para o conceito gastronómico desenvolvido, que tem como pano de fundo as tradições da região duriense e os sabores trabalhados e apresentados de forma informal e orgânica. A essência do fogo lento e das panelas de ferro preto esquecidas ao lume, fazem parte do imaginário recriado, ao qual se juntam matérias-primas como o Bacalhau Salgado Seco, o Polvo do Algarve, a Carne Barrosã DOP, o Porco Bísaro e até o Galo Celta.
Nas tábuas esculpidas a partir de barricas centenárias surgem dispostos os exclusivos Queijos de Ovelha com Alecrim ou Malagueta de Trás-os-Montes e o Queijo de Cabra Biológico, mas também as melhores peças de presunto, dada a mestria do chef no manuseio do presunto alentejano, fumado e ibérico. A terra de berço do Tomate Coração Boi, é também palco de laranjas, toranjas e limões que ganham destaque na cozinha do chef Vítor de Oliveira.
Os vinhos da casa fazem companhia aos pratos e assumem um merecido protagonismo, das icónicas referências de Porto Kopke às colheitas mais recentes DOC Douro da gama São Luiz, sem esquecer o carácter experimentalista de São Luiz Winemaker’s Collection.
Para além do restaurante, onde é possivel degustar as iguarias do chef, existem também outras ofertas disponíveis, como um Piquenique na Quinta de São Luiz. Desta experiência, que tem como pano de fundo uma paisagem cultural da região e a tradição vitivinícola da quinta, será possível pedir um cesto que inclui as seguintes especialidades: Pão e Broa de Milho, Pastel Salgado Tradicional da Região, Tábua de Queijos Portugueses, Saladas de Legumes e Fruta, Sandes de Presunto Ibérico e Azeite da Quinta, Sardinha com Azeite e Tomilho, Doce Tradicional da Região, Fruta da Época e uma garrafa de vinho São Luiz Colheita Branco ou Colheita Tinto. O cesto é válido para duas pessoas e tem um valor de €80,00.
Situada na margem esquerda do rio Douro, perto do Pinhão, em plena sub-região do Cima-Corgo, a Quinta de São Luiz oferece agora a todos os seus visitantes uma experiência enoturística que une o vinho e a gastronomia.
Quinta de São Luiz by Chef Vítor de Oliveira
Morada: E.N. 222 – Adorigo | 5120-012 Tabuaço
Horários: De Terça-feira a Domingo, das 19h00 às 22h00. Sábados e Domingos aberto ao almoço das 12h30 às 15h00. Encerra à Segunda-feira
Reservas: +351 939 953 311 ou book@saoluiz.rest
Preço médio: 30,00€ por pessoa (sem bebidas incluídas)
Estive Lá: Ir Com Sede ao Pote, em Famalicão
Na localidade de Portela, Famalicão, a poucos metros do restaurante de fine dining Ferrugem, num aprazível quintal de uma velha casa de família, é-nos proposta uma autêntica viagem no tempo através das nossas memórias gastronómicas, aquelas que estão profundamente inculcadas no ADN da nossa identidade. Ao ar livre, no chão, em cima de fogo vivo […]
Na localidade de Portela, Famalicão, a poucos metros do restaurante de fine dining Ferrugem, num aprazível quintal de uma velha casa de família, é-nos proposta uma autêntica viagem no tempo através das nossas memórias gastronómicas, aquelas que estão profundamente inculcadas no ADN da nossa identidade.
Ao ar livre, no chão, em cima de fogo vivo ou de brasas incandescentes, estão grandes potes de ferro fundido fumegantes, cozinha em modo lento e onde a partilha das vitualhas é palavra de ordem. Um evento que se repete por 10 vezes, entre Maio e Outubro, e em que cada sessão tem a mais-valia de ter um chefe convidado, num duelo fraternal de troca de experiências e saberes, garantindo que as propostas são sempre diferentes. Daqueles velhos potes, primorosamente restaurados e limpos, saem caldos deliciosos, cozidos pungentes, gloriosos estufados de comer e chorar por mais. O difícil é conseguir parar!
Aos vinhos é também dado o devido destaque, com um produtor convidado em cada uma das jornadas. Anselmo Mendes, Kompassus, Palato do Côa, PicoWines, Quinta da Lapa, Quinta das Bágeiras, Quinta de Cottas, Quinta do Crasto, Secret Spot Wines, Adega Casa da Torre e Soalheiro, reservaram presença nas diversas edições a realizar durante o ano 2023.
O espaço em redor é idílico. Árvores frondosas, caramanchão bucólico, mesas e cadeiras espalhadas fomentando o convívio e a interação entre os participantes. Na edição em que fui, no ano passado, tirando os chefs (o anfitrião e o convidado) e o produtor presente, não conhecíamos mais ninguém. Nada que impedisse o diálogo divertido e o espírito de camaradagem que depressa se estabeleceram entre todos, como se fossemos membros de uma velha tertúlia.
Não há nada como a boa comida para soltar a língua e a boa disposição aos portugueses, pontuada aqui e ali por sonoras gargalhadas! Na sua primeira edição, o “Ir Com Sede ao Pote” foi distinguido como «Experiência Turística 2022» nos Prémios de Inovação e Turismo do Minho, em reconhecimento do seu papel na promoção e valorização da cultura gastronómica da região. Renato Cunha e a mulher Anabela, têm iniciativa e são persistentes. Mas acima de tudo fazem deste evento uma declaração de amor às nossas raízes e á nossa cultura.
Morada:
Casa de Ana Monteiro, Portela, Vila Nova de Famalicão
Sessões:
20 de Maio; 3 e 17 de Junho; 1, 15 e 29 de Julho; 12 de Agosto; 9 e 23 de Setembro; 7 de Outubro. A partir das 18:00 horas. Cada sessão limitada a 40 participantes
Bilhetes:
Através do número 932012974 ou do e-mail restaurante@ferrugem.pt
€100 por pessoa; 50€ para crianças entre os 4 e 12 anos