Editorial Abril: Doce

Editorial LUÍS LOPES

Editorial da edição nrº 84 (Abril 2024)  Dizem os especialistas do gosto que, dos distintos sabores primordiais, o doce é aquele que mais fácil e imediatamente cativa o ser humano. Há quem explique essa atracção (não propriamente fatal, se comedida) pelo facto de ser doce o primeiro sabor experimentado pelo recém-nascido ao beber o leite […]

Editorial da edição nrº 84 (Abril 2024)

 Dizem os especialistas do gosto que, dos distintos sabores primordiais, o doce é aquele que mais fácil e imediatamente cativa o ser humano. Há quem explique essa atracção (não propriamente fatal, se comedida) pelo facto de ser doce o primeiro sabor experimentado pelo recém-nascido ao beber o leite materno. Mesmo que a relação não esteja cientificamente comprovada é, pelo menos, uma boa desculpa para os mais gulosos.
Porém, no que aos vinhos doces respeita (o que em Portugal significa quase sempre licorosos), os ventos parecem não ir de feição. Em grande parte do mundo assiste-se a um certo afastamento dos consumidores relativamente aos vinhos doces, atingindo mesmo os não fortificados, Sauternes incluído. Até o vinho do Porto, que parecia imune à erosão de mercado sentida por muitos dos outros célebres congéneres (caso do Jerez, por exemplo), entrou numa lenta, mas inexorável, decadência de consumo, perdendo 20% em volume nas últimas duas décadas. Em 2023, de novo, caiu em quantidade e valor face ao ano anterior. No vinho Madeira essa tendência é menos evidente, mas existe: de 2022 para 2023, decresceu em quantidade, ainda que ganhando muito ligeiramente em valor. Paradoxalmente, é o mais doce (e, porventura, o mais subvalorizado) de todos os fortificados nacionais, o Moscatel de Setúbal, tema de capa desta edição da GE, que melhor se tem “aguentado”. Partindo embora de uma base muito mais pequena, nas últimas duas décadas quase duplicou o volume certificado. E as vendas mostram uma certa estabilidade, com crescimentos moderados. O que não deixa de espantar, se pensarmos que mais de 90% do negócio é feito em Portugal. E, mais interessante ainda, ao invés do que acontece com Porto e Madeira, o consumo em território nacional é feito sobretudo por portugueses, não por turistas estrangeiros. Já agora, comportamento muito semelhante tem o Moscatel do Douro, este com uma fatia um pouco maior de exportação. Significa isto que os portugueses são particularmente gulosos?
Dizia a minha avó (e aposto que muitas avós) que o que é doce nunca amargou. Eu nunca fui por aí. Prefiro os amargos, ácidos e salgados, um pastel de nata de quando em vez já é extravagância. Mas se o aforismo estiver certo, a verdade é que os grandes licorosos do mundo, de uma forma geral, não estão a ganhar muito com isso, antes pelo contrário. Resumindo, o que parece doce e é doce, está na mó de baixo. Mas, estranhamente, o que não parece doce e é doce, continua em alta e sem indícios de perder a boa onda. A esmagadora maioria dos vinhos tintos (portugueses, espanhóis, italianos, franceses, chilenos, argentinos, etc.) de preço moderado e médio, vendidos na Europa, Ásia e Américas, tem uma quantidade apreciável de MCR (mosto concentrado rectificado) adicionada. Ou seja, são, enfim, a modos que…docinhos.
Nada contra, é absolutamente legal e, quase diria, necessário, vai ao encontro do que o mundo pede, ou melhor, exige. E atenção, não são só os consumidores “de supermercado”, supostamente menos “conhecedores”, que os adoram. Muitíssimos destes vinhos são crónicos vencedores de concursos internacionais, onde são provados por sommeliers, enólogos, jornalistas, e ali batem concorrentes bem mais ambiciosos. Assim sendo, talvez o problema dos doces e licorosos não esteja, afinal, na doçura. A minha avó tinha outra na manga para estas ocasiões: “todo o burro come palha, é preciso saber dar-lha”.

Editorial Março: Os Melhores

Editorial LUÍS LOPES

Editorial da edição nrº 83 (Março 2024) Quando se fala de vinhos, poucas coisas haverá mais discutíveis do que reduzir aromas e sabores a um número. Mais difícil ainda será partir de uma lista com idênticas classificações e escolher um vinho em detrimento de outro. Para sermos, tanto quanto possível nestas circunstâncias, justos, na Grandes […]

Editorial da edição nrº 83 (Março 2024)

Quando se fala de vinhos, poucas coisas haverá mais discutíveis do que reduzir aromas e sabores a um número. Mais difícil ainda será partir de uma lista com idênticas classificações e escolher um vinho em detrimento de outro. Para sermos, tanto quanto possível nestas circunstâncias, justos, na Grandes Escolhas procuramos que esta responsabilidade seja partilhada entre todos os provadores, através de uma eleição. Mas mesmo assim não é fácil. E no final, é mais do que certo, ninguém sai satisfeito. Nem os produtores que não viram os seus vinhos destacados como “os melhores” (seja lá o que isso for…); nem os provadores que não obtiveram “votos” suficientes nos vinhos que propuseram e defenderam.
Apenas duas coisas acalmam, de alguma forma, os naturais desapontamentos (pelo menos, os nossos). Primeiro, a noção de que fizemos tudo para sermos rigorosos, independentes, justos; segundo, a absoluta certeza de que, quer os 30 vinhos eleitos como “os melhores do ano”, quer os cinco apontados como vencedores em cada categoria, são indiscutivelmente grandíssimos vinhos. Adjectivo que se ajusta por inteiro aos nomes vencedores: o espumante Murganheira Assemblage Grande Reserva 2006, o branco Bacalhôa 1931 Vinhas Velhas Bical 2021, o rosé Quanta Terra Phenomena 2022, o tinto Quinta do Crasto Vinha Maria Teresa 2019 e o fortificado Dalva Tawny 50 anos.
Se destacar vinhos grandes entre os grandes tem sempre uma elevada subjectividade, esse grau multiplica-se quando se trata de avaliar pessoas, empresas, instituições.
A reunião anual da redacção para escolher “Os Melhores”, espaço onde cada um apresenta as suas propostas, depois submetidas a debate e votação, é sempre o momento mais tormentoso do ano. As discussões são épicas e duram horas. A coisa fica tão feia que, normalmente, organizamos o jantar de Natal da empresa nessa mesma noite, na esperança de que o espírito natalício e umas belas garrafas de vinho promovam as reconciliações. Normalmente, resulta.
O mais importante é que, quando na noite dos Melhores do Ano subimos ao palco para anunciar os nomes vencedores, cada um de nós assume essa escolha colectiva como sua e defende-a intransigentemente.
Mais uma vez, e como acontece com os vinhos, como seria possível de outra forma, face à qualidade dos premiados? Senão vejamos. No que à gastronomia respeita, este ano pontificam os restaurantes Pedro Lemos, Três Pipos e Soão, todos eles referência no seu estilo de cozinha, a loja gourmet Comida Independente, que com poucos anos de vida já deixou marca, e a historiadora e investigadora Isabel Drumond Braga, com importante obra feita na área. No retalho e serviço de vinhos, três nomes incontornáveis: o wine bar Mind The Glass, a garrafeira Imperial e o talentoso sommelier Filipe Wang. Wine in Moderation e Algarve Wine Tourism são outros conceitos/projectos em evidência. Quanto a produtores, destacamos as boas surpresas do Domínio do Açor e da Herdade da Cardeira, a singularidade de Baías e Enseadas, a consistência da Adega Cooperativa de Ponte de Lima, a ambição da Menin Wine Company, o pioneirismo da Barbeito e a excelência clássica da Fundação Eugénio de Almeida. Na vinha e na adega, há que “tirar o chapéu” a Álvaro Martinho Lopes, Manuel Henrique Silva e Francisco Antunes. E, por fim, grande aplauso para um autêntico Senhor do Vinho, António Soares Franco.
Foram as escolhas certas? Cada qual que decida. Foram as nossas escolhas e estamos muito satisfeitos com elas.

Editorial Janeiro: Fama

Editorial LUÍS LOPES

Editorial da edição nrº 81 (Janeiro 2024) A chegada de amadores (no sentido daquele “que ama”) ao sector do vinho é relativamente recente, o fenómeno teve o seu “boom” já no século XXI. Gente financeiramente bem-sucedida noutras áreas de actividade, mas completamente desconhecida do grande público, viram nesta bebida uma forma de satisfazer um hobby […]

Editorial da edição nrº 81 (Janeiro 2024)

A chegada de amadores (no sentido daquele “que ama”) ao sector do vinho é relativamente recente, o fenómeno teve o seu “boom” já no século XXI. Gente financeiramente bem-sucedida noutras áreas de actividade, mas completamente desconhecida do grande público, viram nesta bebida uma forma de satisfazer um hobby e, ao mesmo tempo, alimentar o ego de forma saudável. Quem pode ser criticado por gostar de ver o seu nome (ou da sua empresa) no rótulo de uma garrafa? E, com sorte e trabalho, alcançar os ambicionados “15 minutos de fama”?
Mais difíceis de entender serão as razões que levam alguém que já tem dinheiro e espaço nos media a enveredar pelo mundo do vinho. Apesar de glamouroso, o vinho nunca poderá competir com a notoriedade que se alcança enquanto profissional do cinema, da música ou do desporto, por exemplo. Nunca ninguém rico e famoso vai ficar mais famoso por investir no vinho. E vai, quase de certeza, ficar menos rico.
Apesar disso, pessoas a quem pediríamos autógrafos na rua continuam a entrar neste universo vínico, bem mais pequeno e limitado do que aquele de onde vieram. Os exemplos são incontáveis e surgem, sobretudo, dos Estados Unidos da América (mas não só) com gente do cinema à cabeça. Francis Ford Coppola foi pioneiro com a sua marca, em 1979, (em Napa Valley, depois Sonoma, mais tarde Oregon) e o que mais longe chegou no ultrapassar dos naturais preconceitos dos “conhecedores”, tornando-se um produtor de vinho bastante respeitado enquanto tal. Muitos outros e outras o seguiram: George Lucas (Skywalker Vineyards – só podia… – em 1991) Drew Barrymore, Emilio Estevez, Sam Neil, Cameron Diaz, Brad Pitt, Angelina Jolie, Kurt Russell, Goldie Hawn, Antonio Banderas e, até o hoje tão discutido – pelas piores razões – Gérard Depardieu, são apenas alguns dos nomes da sétima arte que possuíram ou possuem adegas e vinhas, nos EUA, Espanha, França, Itália ou Nova Zelândia. Do mundo da música, Cliff Richards (que teve a Adega do Cantor no Algarve), será o exemplo mais próximo. Mas também Dave Matthews, Mary Blige, Brandi Carlile, Mick Fletwood, Kylie Minogue, Sting, Pink e Snoop Dogg fazem parte da lista. Lista essa que se estende ao desporto, com o basquetebolista Yao Ming, o piloto Mario Andretti, os golfistas Nick Faldo e Greg Norman e os futebolistas David Ginola, Ronaldo “Fenómeno” e Andrés Iniesta, entre vários.
Como já perceberam pela capa desta revista, abordo o tema por causa de Francisco Costa, o Costinha do futebol. Quando nos cruzámos pela primeira vez, há quase duas décadas, já Costinha era um apreciador de vinhos, gosto que ganhou no Mónaco, para onde foi jogar com 20 e poucos anos. Hoje, é um profundo conhecedor do que de melhor se faz em Portugal e no mundo. E também um pequeno produtor que participa activamente em todo o processo, na vinha e adega, e engarrafa um vinho de excelência.
Chegados a este ponto, talvez percebamos melhor o que é que o vinho tem, capaz de atrair ricos e famosos a este mundo tão particular. Não é certamente a razão que os move, antes o coração. A paixão, o prazer da descoberta, a exaltação dos sentidos, não coisas que se expliquem. O vinho tem tudo isso e Costinha sabe-o bem.

PS: A peça sobre o novo desafio de Costinha foi a última escrita nesta revista pela jornalista Mariana Lopes. Também ela troca de profissão, mas, felizmente, mantém-se ligada ao mundo vínico. O seu talento vai agora estar do “outro lado”, onde o vinho nasce. No seu lugar, a partir da edição de Fevereiro, coordenando a redacção da Grandes Escolhas, estará o experiente jornalista José Miguel Dentinho, com muitos anos de escrita nesta área. A ambos desejo muita sorte e sucesso.

Editorial Dezembro: Na caixa

Editorial LUÍS LOPES

Editorial da edição nrº 80 (Dezembro 2023) Nunca gostei de ver pessoas ou conceitos arrumados por categorias. Tudo o que é complexo não pode, por natureza, ser confinado numa caixa hermética, imune a influências, nuances, estados de espírito. Poucas coisas são absolutamente brancas ou pretas, há uma infinidade de matizes que podem e devem ser […]

Editorial da edição nrº 80 (Dezembro 2023)

Nunca gostei de ver pessoas ou conceitos arrumados por categorias. Tudo o que é complexo não pode, por natureza, ser confinado numa caixa hermética, imune a influências, nuances, estados de espírito. Poucas coisas são absolutamente brancas ou pretas, há uma infinidade de matizes que podem e devem ser desvendados.
Vejamos o caso dos vinhos. Nos últimos anos, assiste-se a uma tendência, por parte de algumas franjas de mercado, para catalogar os vinhos consoante a forma como são elaborados ou até, no limite do disparate, consoante a “filosofia” que lhes está subjacente (como se uma forma de ser ou estar na vida tivessem um caderno de encargos, uma checklist a ser verificada ponto por ponto).
Cuba inox, lagar, cimento, barro, plástico, barrica nova, barrica usada, tonel, foudre, sulfuroso, flor de castanheiro, ácido tartárico, leveduras seleccionadas, clara de ovo, bentonite, etc. estão entre as muitas ferramentas que se encontram ao dispor do enólogo/produtor, algumas delas com milénios de utilização na transformação da matéria-prima (uva) em produto final (vinho). Maceração longa, maceração curta, maceração carbónica, fermentação com engaço, bica aberta, curtimenta, maloláctica, bâtonnage, remontagem, são algumas das muitas práticas utilizadas no intuito de realizar essa prodigiosa transformação. Do mesmo modo que produção integrada, orgânica, biodinâmica (quando devidamente certificados, atenção!) configuram distintos modelos de produção de uvas/vinhos, nenhum objectivamente melhor ou mais respeitável do que o outro.
Nada disto é absolutamente estanque, permitindo combinações infinitas. Posso ser orgânico, adicionar sulfuroso e usar uma rolha de microaglomerado de cortiça; posso ter vinha e adega em produção integrada e fermentar com engaço e leveduras indígenas; posso ser biodinâmico, fazer macerações muito longas e estagiar o vinho 36 meses em barrica 100% nova.
As únicas categorizações que, a meu ver, se justificam no vinho, são aquelas que implicam a conjugação de dois factores: primeiro, uma certificação absolutamente clara e inequívoca; segundo, um mercado onde essa certificação orienta uma intenção de compra. Por exemplo, seria absurdo chegar a uma loja e ver os vinhos divididos por “barrica nova” ou “barrica usada”. Mas faz todo o sentido haver uma prateleira (ou uma loja!) só para vinhos orgânicos. Do mesmo modo que haverá uma prateleira (ou uma loja) só para vinhos Alentejo. Já um espaço orientado e comunicado como exclusivo para “vinhos de baixa intervenção” seria apenas publicidade enganosa, uma vez que não há qualquer definição, fiscalização ou certificação do modelo/produto. É o mesmo que vender uma pulseira que transmite uma “boa onda”. Acredita quem quer e não vem daí mal ao mundo, somente à carteira dos incautos.
Aqueles que se intitulam “fora da caixa” (sem perceberem que assim se inserem, desde logo, numa caixa e num rótulo) são, frequentemente, os que mais se esforçam por colocar todos os outros vinhos e produtores em caixinhas muito bem fechadas, catalogadas e arrumadas num canto, de preferência escuro e longínquo. Como se o mundo do vinho se resumisse a “nós” e “outros”. Felizmente, para quem aprecia a extraordinária diversidade e complexidade que o Vinho encerra, este é bem mais, bem maior e bem melhor do que isso.

Editorial: Conta-me estórias

Editorial LUÍS LOPES

Editorial da edição nrº 78 (Outubro 2023) Maria Pureza é biodinâmica. Cumpre os preceitos da Antroposofia de Rudolf Steiner, em harmonia com a Natureza e a biodiversidade. Os 6 hectares de vinha que possui são trabalhados manualmente, com preparados biodinâmicos à base de produtos naturais como algas, cobre, enxofre, tisanas de plantas diversas. Galinhas, patos, […]

Editorial da edição nrº 78 (Outubro 2023)

Maria Pureza é biodinâmica. Cumpre os preceitos da Antroposofia de Rudolf Steiner, em harmonia com a Natureza e a biodiversidade. Os 6 hectares de vinha que possui são trabalhados manualmente, com preparados biodinâmicos à base de produtos naturais como algas, cobre, enxofre, tisanas de plantas diversas. Galinhas, patos, ovelhas, ouriços, andam livremente pelo meio das cepas e são eles que ditam, comendo ou rejeitando as uvas, quando estas devem ser colhidas. Maria não possui certificação biodinâmica nem a procura: “O biodinamismo, a comunhão com o mundo natural, é algo que vem do nosso interior”, diz, “não se impõe do exterior”. O seu empenho no modelo tem-se revelado determinante no perfil e na comunicação dos vinhos que ostentam a sua marca, recolhendo o aplauso de críticos e consumidores de mais de 55 países, com 600 mil garrafas vendidas para todo o mundo.

António, um dos maiores produtores da sua região, faz vinhos num território muito especial, com um particular microclima, onde as influências atlânticas e continentais se misturam de forma equilibrada, em termos de amplitudes térmicas e humidade. São vinhos de vincado cariz regional, conjugando tradição e modernidade a partir de uvas cuidadosamente escolhidas das castas Syrah, Touriga Franca e Castelão. Naqueles solos arenosos e argilo calcários, as uvas amadurecem lentamente, ganhando açúcar sem perder indispensável acidez. Após a fermentação, o vinho tinto vai estagiar nas melhores barricas novas de carvalho francês, provenientes das mais reputadas tanoarias. Podemos encontrar o seu Monte da Floribela Reserva de Assinatura em supermercados seleccionados, ao preço médio de €3,10.

Jorge é um verdadeiro vigneron português, não produzindo mais do que 20 mil garrafas. Prefere não possuir vinha própria, trabalhando em estreita parceria com pequenos lavradores, ajudando-os a manter viva a sua actividade e as cepas de que tanto gostam. Grande parte destes vinhedos são bastante antigos e é a partir deles que, num espaço alugado em adega vizinha, Jorge elabora os seus vinhos. Entre eles destaca-se a linha Irreproduzível Vinhas Velhas, constituída por um tinto e um branco de field blend, o primeiro quase exclusivamente Touriga Nacional com um toque de Tinta Roriz, o segundo maioritariamente Encruzado, com Verdelho e Viognier. Das melhores barricas destes vinhos, com 95% de tinto e 5% de branco, à maneira de Cotes du Rhone, este vigneron elabora a sua marca de topo, o On Your Face Vinhas Muito Velhas, já presente nos melhores restaurantes portugueses de “fine dining”.

Na sua adega, Teresa faz 300 mil litros de vinho, entre brancos, rosés e tintos. Na vindima de 2019 resolveu elaborar um branco diferenciador, “vinho de sommelier”, como ela lhe chama, feito sem inoculação, unicamente a partir das leveduras autóctones. Para tal, no canto mais escuro da adega, Teresa conserva uma colónia de leveduras indígenas, uma espécie de “aldeia dos gauleses de Asterix cercada pelos romanos”, como ela a classifica com humor. Sendo a adega diariamente visitada por grupos de enoturistas, naquele local Teresa delimitou o pavimento com fitas fluorescentes, para ninguém pisar a sua “arca do tesouro”. Assim, em cada vindima, para fazer o vinho de leveduras indígenas, vai ao canto da adega com uma colher de chá e recolhe com cuidado o precioso fermento. A verdade é que estas leveduras imprimem ao seu Naturalix branco um carácter completamente distinto, com aromas e sabores de enorme pureza e sentido de terroir.

 

 

Editorial: A outra Bairrada

Editorial LUÍS LOPES

Editorial da edição nrº 77 (Setembro 2023) Manuel F. Silva (Casa de Saima) 1981, Luis Pato Vinhas Velhas 1990, Quinta das Bágeiras Garrafeira 2001, Kompassus Reserva 2013. O que têm em comum estes quatro vinhos que, em conjunto, atravessam quatro décadas? Diversas coisas: são brancos, nasceram na Bairrada e mostram, à data de hoje, qualidade, […]

Editorial da edição nrº 77 (Setembro 2023)

Manuel F. Silva (Casa de Saima) 1981, Luis Pato Vinhas Velhas 1990, Quinta das Bágeiras Garrafeira 2001, Kompassus Reserva 2013. O que têm em comum estes quatro vinhos que, em conjunto, atravessam quatro décadas? Diversas coisas: são brancos, nasceram na Bairrada e mostram, à data de hoje, qualidade, complexidade, carácter e longevidade notáveis. Não menos significativo, pelo menos para mim, existem cá em casa algumas garrafas de cada um deles, abertas com parcimónia quando a ocasião e a companhia o justificam.
Aquele que pode, muito justamente, ser considerado o pai da Bairrada moderna, Luís Pato, sabe-a toda. Desde há muito que tem a opinião formada a este respeito e emite-a com frequência, originando reacções de surpresa ou escândalo, consoante as almas mais ou menos sensíveis: “A Bairrada é, acima de tudo, região de vinhos brancos. Tintos e espumantes apenas complementam a oferta”.

A prova de vinhos brancos da Bairrada publicada nesta edição da Grandes Escolhas parece dar-lhe razão. São 25 vinhos (e poderiam estar aqui mais alguns) oriundos de distintos produtores e terroirs da região, nenhum classificado abaixo de 17 e sete deles alcançando 18 ou mais pontos. Tenho muitas dúvidas que igual número de espumantes ou tintos Bairrada atingisse esta impressionante consistência qualitativa.

Razões para isso, existem várias. O clima, desde logo. Escrevo estas linhas em Sangalhos, às 10:30 de um dia de Agosto. O sol ainda não apareceu e estão 22ºC. Ontem estive no Baixo Alentejo. À mesma hora, debaixo de um sol radioso, estavam 39ºC. O Atlântico dita aqui a sua lei. Depois, os solos. Tradicionalmente, os melhores (e mais raros) terrenos da Bairrada, de argila com maior ou menor presença de calcário, eram reservados para casta Baga, pois só ali seria expectável alcançar grandes tintos. Com algumas excepções, as castas brancas eram assim “empurradas” para os solos arenosos, e destinadas, sobretudo, ao espumante. Na última década, porém, muita coisa mudou. Por um lado, a crescente valorização dos brancos tranquilos, levou vários produtores a plantar castas brancas em solos de maior potencial. Por outro, a ascensão do “blanc de noirs” Baga-Bairrada desviou a Baga menos boa do tinto para o espumante, libertando mais e melhores uvas para vinhos brancos.

A tudo isto, acrescentemos as castas brancas da Bairrada. Em que outro local de Portugal é possível encontrar mostos de Maria Gomes (Fernão Pires) com 13,5% de álcool e 8 gramas/litro de acidez total? Da primeira vez que me anunciaram estes resultados não acreditei e pedi para ver o boletim de análise. Agora, já estou acostumado. Se a Maria Gomes dá estrutura e intensidade, a Bical confere elegância e finura, a Cercial (não confundir com Cerceal-Branco do Dão nem com Sercial/Esgana Cão da Madeira/Bucelas) oferece frescura e tensão. E ainda há a ubíqua Arinto, que sempre considerei (na Bairrada, atenção!), inferior às outras três, mas que, progressivamente, me tem vindo a convencer.

A consistência demonstrada pelos 25 produtores cujos vinhos entraram nesta prova não deve ser confundida com uniformidade. E esse é o ás de trunfo da Bairrada: à diversidade de castas, solos e microclimas, junta-se uma profusão de conceitos e práticas de vinificação que fazem com que os vinhos sejam muito distintos entre si, sem nunca perderem os traços que os remetem para a sua origem – complexidade, carácter, frescura, longevidade – e os destacam entre os melhores brancos de Portugal.

Editorial: E no barro se fez vinho

Editorial LUÍS LOPES

Nas peregrinações que, desde finais dos anos 80, faço regularmente pelas tabernas e casas de petiscos do grande Alentejo, encontro talhas de todos os tamanhos e formatos, bem como inúmeras nuances na pesga do barro ou nos processos de vinificação, variando a tradição de concelho para concelho, quase de aldeia para aldeia.   Editorial da […]

Nas peregrinações que, desde finais dos anos 80, faço regularmente pelas tabernas e casas de petiscos do grande Alentejo, encontro talhas de todos os tamanhos e formatos, bem como inúmeras nuances na pesga do barro ou nos processos de vinificação, variando a tradição de concelho para concelho, quase de aldeia para aldeia.

 

Editorial da edição nrº 75 (Julho 2023)

 

A publicação nesta edição de julho de um trabalho sobre o projecto XXVI Talhas, em Vila Alva, na sequência de um outro apresentado em junho sobre os vinhos Mamoré da Talha, em Borba, sugere uma reflexão sobre as diferentes formas de expressar esta milenar tradição vínica e cultural do Alentejo.

Os vinhos de talha estão na moda, é um facto. À boleia de um nicho de mercado que quer experimentar a diferença, aquilo que era um produto do Alentejo profundo, das tabernas e casas particulares, transferiu-se das populações rurais para os produtores profissionais, ganhando dimensão e buzz mediático. Agora que toda a gente sabe o que é Vinho de Talha Alentejo seria bom não esquecermos os amadores (no verdadeiro sentido da palavra, “aqueles que amam”) que, teimosamente, ao longo das últimas décadas, mantiveram vivos não apenas a tradição como o conhecimento, o saber fazer. Sem essas muitas centenas de anónimos, o renascer do vinho de talha não teria sido possível.

Dito isto, desenganem-se os que se assumem como guardiões da “verdadeira” tradição do vinho de talha do Alentejo. É que o Alentejo é enorme em todos os sentidos, e o tamanho corresponde à sua diversidade. Nas peregrinações que, desde finais dos anos 80, faço regularmente pelas tabernas e casas de petiscos do grande Alentejo, encontro talhas de todos os tamanhos e formatos, bem como inúmeras nuances na pesga do barro ou nos processos de vinificação, variando a tradição de concelho para concelho, quase de aldeia para aldeia. Para pesgar a talha, nuns sítios usavam resina de pinheiro e cera de abelha, noutros só a cera ou só a resina; alguns pesgavam de 5 em 5 anos, outros usavam as talhas pesgadas pelo pai há duas décadas; enquanto uns colocavam todo o engaço na talha, outros só uma parte, outros ainda somente as uvas esmagadas. Esmagamento que, consoante o hábito local, podia ser feito directamente para a talha ou pisadas as uvas no chão de barro da adega, correndo o mosto para o “ladrão” (talha enterrada) e daí baldeado para as ânforas. A dada altura, algumas dessas talhas começaram a ser revestidas a epoxy (“tinta anti-mosto”, assim lhe chamavam nas aldeias) por razões de facilidade e higiene, perdendo embora o carácter do pez. Destas muitas tradições resultavam e resultam vinhos tão distintos quão diversos são os matizes do cante alentejano ou os ingredientes e temperos do cozido de grão. Há tantos Alentejos…

Em 2010 decidiu a CVRA, e muito bem, regulamentar o Vinho de Talha Alentejo, como forma de preservar a sua origem e identidade, impedindo assim a sua apropriação por terceiros. No entanto, ao só permitir este designativo em vinhos produzidos dentro das 8 sub-regiões, deixou de fora zonas emblemáticas para o vinho de talha. Ao mesmo tempo, aceitou todas as castas autorizadas para DOC. Como resultado, posso fazer um Vinho de Talha Alentejo 100% Syrah ou Touriga Nacional, uma perversão cultural de que, felizmente, os produtores não se têm aproveitado. Mas não posso fazer Vinho de Talha Alentejo, ou sequer utilizar a palavra “talha” no rótulo, se estiver em Campo Maior (histórico centro oleiro de talhas) ou em Cabeção (onde ainda subsistem dezenas de produtores artesanais e centenas de talhas). Será que, com algum bom senso, se consegue resolver esta absurda contradição? O Alentejo, tão diverso quanto único e inimitável, agradece.

 

Editorial: Verde

Editorial LUÍS LOPES

Poderia sugerir a estes novos cruzados do ambiente o seguinte: mais eficazmente sustentável do que recusar provar garrafas “pesadas”, seria fazer menos viagens intercontinentais. Um jornalista de vinhos recusar provar em garrafa pesada, por razões ambientais, é como um jornalista de automóveis recusar comentar Fórmula 1, pelas mesmas razões.   Editorial da edição nrº 74 […]

Poderia sugerir a estes novos cruzados do ambiente o seguinte: mais eficazmente sustentável do que recusar provar garrafas “pesadas”, seria fazer menos viagens intercontinentais. Um jornalista de vinhos recusar provar em garrafa pesada, por razões ambientais, é como um jornalista de automóveis recusar comentar Fórmula 1, pelas mesmas razões.

 

Editorial da edição nrº 74 (Junho 2023)

Não tenho dúvida, haverá muita gente que, no seu dia a dia, actua de forma mais respeitadora do ambiente do que eu. Mas sei que, em casa e fora dela, sigo padrões de sustentabilidade acima da média. Alguns exemplos diversos: quase 90% da minha energia doméstica vem de painéis solares; as duas centenas de garrafas das provas que abro em cada mês são descarregadas no vidrão; a água da piscina nunca foi mudada em 25 anos, a evaporação é compensada pela chuva; nas deslocações inferiores a 200 km uso um carro eléctrico; o duche matinal dura três ou quatro minutos; alimento e abrigo a passarada no jardim; prefiro, sempre, bens e produtos produzidos nacional ou localmente. Podia continuar, mas já chega. Expus aqui em público, e muito a contragosto, uma parte da minha vida privada, apenas para acentuar que, no que a práticas ambientais diz respeito, acolho sempre ensinamentos, mas não aceito moralismos de ninguém.

Vamos então ao que interessa, um caso paradigmático de um certo populismo ambiental que me incomoda. Dois conceituados críticos internacionais anunciaram recentemente aos seus leitores que, de agora em diante, se recusarão a provar vinhos em garrafas de vidro “pesado”. Fica-lhes bem. De uma assentada aparecem como salvadores do mundo e apaziguam a consciência própria, também ela pesada. É que a principal fonte de receita destes dois profissionais passa por dar palestras e provas nos cinco continentes, viajando confortavelmente de avião (naturalmente) e em primeira classe (mais naturalmente ainda). Como sabemos, a aviação comercial tem o maior peso ambiental (em pegada de carbono) entre todas as actividades económicas. Já o número de garrafas “pesadas” face às “normais” ou “leves” é bastante reduzido, pois são unicamente usadas em (alguns) vinhos de topo. A título de exemplo, um produtor português que viu o seu vinho recusado por um dos críticos referidos, enche 5.000 garrafas “pesadas” num total de 2 milhões de “normais” e “leves”. Assim, poderia sugerir a estes novos cruzados do ambiente o seguinte: mais eficazmente sustentável do que recusar provar garrafas “pesadas” seria fazer menos viagens intercontinentais. Ou, quem sabe, comer fruta da época, em vez de “fruta de avião” colhida no outro lado do oceano. Um jornalista de vinhos recusar provar em garrafa pesada, por razões ambientais, é como um jornalista de automóveis recusar comentar Fórmula 1, pelas mesmas razões.

O que quero eu dizer com tudo isto? Primeiro, que o modelo “certo” de sustentabilidade ambiental não existe; segundo, que preservar o ambiente implica sacrifícios que devemos estar preparados para fazer; terceiro, que mais importante do que ser “verde” por fora, é sê-lo por dentro, ter verdadeira consciência ambiental, com bom senso, sem radicalismos, sem hipocrisias – a manta é curta, o que tapamos de um lado destapamos do outro: queremos carros eléctricos e telemóveis, mas a mineração do lítio que seja feita bem longe, de preferência na China…

Portanto, sejamos, todos, menos propagandistas e mais consequentes nas nossas acções privadas. A garrafa pesada vai, provavelmente, desaparecer do mercado nos próximos anos: só que, como em tudo, serão os consumidores a fazer com que isso aconteça. O vidro pesado é apenas uma gota num oceano de desperdício. É aquilo que estamos dispostos a fazer, nas nossas casas e nos locais de trabalho, que, verdadeiramente, vai promover a diferença.

 

Editorial: Digital (E papel, também)

Editorial LUÍS LOPES

Renovar graficamente uma revista em papel numa era onde o digital assume um peso cada vez maior, pode parecer caminhar contra os ventos da história. Mas, para nós, continua a fazer todo o sentido investir numa revista de apresentação cuidada e conteúdos apelativos e, ao mesmo tempo, apostar muito forte, e de forma inovadora, na […]

Renovar graficamente uma revista em papel numa era onde o digital assume um peso cada vez maior, pode parecer caminhar contra os ventos da história. Mas, para nós, continua a fazer todo o sentido investir numa revista de apresentação cuidada e conteúdos apelativos e, ao mesmo tempo, apostar muito forte, e de forma inovadora, na digitalização.

 

Editorial da edição nrº 73 (Maio 2023)

 

O leitor da Grandes Escolhas vai ficar surpreendido (espero que positivamente) com a edição que tem agora em mãos. Renovar graficamente uma revista em papel numa era onde o digital assume um peso cada vez maior, pode parecer caminhar contra os ventos da história. Mas, para nós, continua a fazer todo o sentido investir numa revista de apresentação cuidada e conteúdos apelativos e, ao mesmo tempo, apostar muito forte, e de forma inovadora, na digitalização.

O mês de Maio traz assim muitas novidades ao universo Grandes Escolhas. A única menos positiva, mas inevitável face ao significativo crescimento dos custos, é o aumento de €0,50 no preço da revista em papel e no “vinho de capa”. De resto, tudo coisas boas. A revista (versão papel ou digital) está bem mais arejada (e arrojada) do ponto de vista gráfico, dando às fotografias um relevo maior do que no passado. A mudança no tipo de letra possibilita também uma leitura mais fácil e confortável. Em termos de conteúdos, o novo grafismo “obriga” a textos mais curtos, mas, também por isso, mais textos, mais concisos, mais diversos e mais focados. Nada que atrapalhe uma equipa redactorial que, enquanto director, é para mim motivo de orgulho, pelo conhecimento, dedicação e profissionalismo. Aqui não houve mudanças pois, como dizem no futebol, em equipa que ganha não se mexe.

Um princípio que, na verdade, não respeitámos quando nos virámos para o website Grandes Escolhas. É que o website estava a ganhar folgadamente e, mesmo assim, mudámos e mudámos muito. Os números oficiais da Google Analytics, relativos a 2022 são, sem dúvida, impressivos para um website tão especializado: 771 mil sessões iniciadas por 533 mil utilizadores (dos quais 67% novos utilizadores!) mais de 3 milhões de páginas visualizadas, e mais de 4 páginas por sessão, com uma taxa de rejeição de apenas 1,1%. Números destes levaram-nos a fazer um grande esforço, em parceria com a Upgrade, no sentido de potenciar ainda mais esta adesão por parte dos apreciadores de vinho. O novo website, já online mas ainda a ser diariamente aperfeiçoado, está “turbinado” em todos os sentidos, na forma e no conteúdo. Permitam-me referenciar aqui apenas dois aspectos, que considero, enquanto utilizador, de grande relevância, e ambos relacionados com a pesquisa de vinhos: primeiro, a extraordinária rapidez com que chegamos ao vinho pretendido após digitarmos as primeiras letras do nome; segundo, a possibilidade de, ao clicarmos no botão “Comprar”, sermos de imediato direccionados para a página onde esse vinho se encontra nos websites de 7 das principais garrafeiras de Portugal.

Na base desta pesquisa de vinhos estão mais de 14000 notas de prova produzidas pela equipa da Grandes Escolhas. Um património absolutamente único no seio dos vinhos portugueses, pela sua dimensão, qualidade e credibilidade, e que as ferramentas digitais nos ajudam a levar a todos os apreciadores. E desvendo aqui a próxima novidade: muito em breve iremos lançar uma app, com reconhecimento de rótulos, que permitirá a qualquer utilizador, entre outras funcionalidades, apontar o seu telemóvel para uma garrafa e obter as notas de prova e a classificação da Grandes Escolhas. No mês em que este projecto cumpre o seu sexto aniversário, acho que não poderíamos dar e receber melhores notícias.

Editorial: Do vinoso comum à mineralidade

Editorial LUÍS LOPES

O trabalho de Valéria Zeferino, publicado nesta edição, sobre o conceito de “mineralidade”, palavra hoje usada e abusada na descrição de vinhos, suscitou-me alguma reflexão sobre a natureza das notas de prova. Na verdade, entre a austeridade mais espartana e os delírios mais imaginativos, há margem para tudo.   Editorial da edição nrº 72 (Abril 2023) […]

O trabalho de Valéria Zeferino, publicado nesta edição, sobre o conceito de “mineralidade”, palavra hoje usada e abusada na descrição de vinhos, suscitou-me alguma reflexão sobre a natureza das notas de prova. Na verdade, entre a austeridade mais espartana e os delírios mais imaginativos, há margem para tudo.

 

Editorial da edição nrº 72 (Abril 2023)

Descrever um vinho pode ser extremamente complexo. Ou, ao invés, a coisa mais fácil do mundo. Depende, basicamente, do estilo e, se quisermos, da seriedade de quem o faz. O estilo varia imenso de provador para provador, sejam produtores, enólogos ou críticos. De tal forma que, quando lemos centenas ou milhares de notas de prova, acabamos por associar determinados estilos (ou até descritores) a determinados avaliadores. Lembro-me que, quando comecei a escrever sobre vinhos, em 1989, havia um reputado provador profissional que iniciava todas descrições de vinho tinto com “cor rubi de laivos granada, espuma fugaz rosada e aroma vinoso comum”. Do mesmo modo, duas décadas mais tarde, também não precisaria de pensar muito para de imediato identificar o autor de algo como “repleto de energia, de uma mestria de aromas e sabores quase sinfónica, seduz corajosamente pela fruta farta, pela dimensão imensurável, pela alegria tensa de um final explosivo, mas supinamente elegante.” Mais recentemente, o exótico “aroma peitoral” tem também autoria segura.

Mas a verdade é que a adjectivação, quando não demasiado rebuscada, ajuda muito a descrever um vinho: sólido, elegante, gordo, leve, intenso, discreto, exuberante, são descritores que apontam para diferentes perfis de vinho. Mais complexa é a associação a determinados aromas/sabores, pois nem todos são facilmente reconhecíveis pelo provador e, sobretudo, pelo leitor/consumidor. Todos temos memória olfactiva ou gustativa de limão, menta, amora, cereja, avelã, chocolate, apenas para citar alguns exemplos mais simples. Mas ainda assim, o enquadramento geográfico ou cultural de quem lê (ou ouve) a descrição do vinho é fundamental. Quantas pessoas, em Angola, comeram amoras ou cerejas? Ou, para não irmos tão longe, quantos portugueses “da cidade” cheiraram poejos?

Talvez o caso mais típico deste desfasamento cultural seja a tão conhecida (ou desconhecida…) bergamota, quase obrigatoriamente associada à casta Touriga Nacional. Porquê dizer que um vinho cheira a bergamota quando quase ninguém em Portugal (ou no mundo) cheirou ou provou este citrino verde em forma de pêra, oriundo do sul de Itália e que serve, sobretudo, para fazer óleos essenciais? Com a confusão adicional de, na principal região vinícola do Brasil, Rio Grande do Sul, chamarem bergamota à tangerina…

Por outro lado, existem descritores que acabam por se tornar moda, utilizados para quase todos os vinhos supostamente “nobres”. É o caso do famoso “mineral”, foco do artigo que citei na entrada desta peça. Num restaurante de “fine dining”, é raro o sommelier que não enfatize a “mineralidade” do vinho que está a sugerir; do mesmo modo que é raro o “mineral” escapar à nota de prova de um branco ou tinto mais ambicioso. Se tivéssemos presente que os aromas minerais, (casos da pólvora ou do sílex, por exemplo), nada tem a ver com os minérios presentes no solo (ao contrário do que muitos pensam), e que a sensação de mineralidade na boca está sobretudo associada à acidez, talvez fossemos um pouco mais comedidos na utilização deste descritor.

Mas pouco importa. Felizmente, todos nós, profissionais ou consumidores, somos livres de descrever um vinho como muito bem nos apetecer. O vinho é isso mesmo, prazer e liberdade. Uma coisa, porém, posso garantir: se um dia ler que um vinho cheira a “erva recém cortada por carneiro velho na encosta Norte da Serra da Estrela”, vou a correr comprar uma garrafa. Não quero morrer ignorante.