Castas Minoritárias por Luís Antunes

Portugal possui, como é sabido, um património genético vitícola de valor incalculável, em boa parte preservado, graças ao trabalho de entidades como a PORVID e ao esforço individual de muitos produtores. Já Espanha “afunilou” as suas variedades quase até alcançar o ponto de não retorno. Felizmente, também do lado de lá, alguém se chegou à […]
Portugal possui, como é sabido, um património genético vitícola de valor incalculável, em boa parte preservado, graças ao trabalho de entidades como a PORVID e ao esforço individual de muitos produtores. Já Espanha “afunilou” as suas variedades quase até alcançar o ponto de não retorno. Felizmente, também do lado de lá, alguém se chegou à frente (ITACyL) para evitar a perda irreparável. Portugueses e espanhóis juntaram-se à mesa, com copos e conversa. Na ementa, Negro Sauri, Puesta en Cruz, Cornifesto, Tinta da Barca, Malvasia Preta ou Cenicienta.
Temos muitas castas de vinhos em Portugal. Muitas, muitas, e com nomes difíceis de pronunciar e de explicar. O nosso vinho é de lote, com raras excepções: Bucelas-Arinto, Bairrada-Baga, Monção e Melgaço-Alvarinho, generosos de Setúbal-Moscatel, mais os Madeiras, onde a casta é também um estilo de vinho e um nível de doçura. Simplificando, é isto. No resto do país vinho, impera o lote. E o lote, na viticultura antiga, começava logo na vinha, com cada casta adequada ao tipo de chão, exposição solar, pendência do terreno, profundidade do solo, etc. Na viticultura mais moderna plantaram-se talhões de castas, e o lote é feito na adega, pelos enólogos. Sempre perseguindo um ideal: o equilíbrio do vinho, o seu respeito pelo estilo tradicional de cada lugar, muitas vezes respeitando uma bonita co-evolução com a gastronomia local. Talk about terroir, na essência é isto mesmo.
As modas que afectaram os sítios deixaram rasto, com mudanças na estrutura dos lotes. Em particular, a febre da Touriga Nacional gerou uma certa invasão do país, e a Touriga, originária do Dão e que tinha muito pouca expressão nas vinhas, galgou degraus e rapidamente entrou no top 10 das castas mais plantadas. Mas já antes Portugal tinha sobrevivido a uma febre parecida, a do Cabernet Sauvignon, nada autóctone, mas que gerou um certo medo de perda de identidade. Talvez esse medo primordial nos tenha defendido mais tarde das febres invasoras e/ou unitárias.
O mesmo não aconteceu em Espanha. Talvez por causa do nosso atávico e tradicional atraso (de vida, vejam lá, somos pobrezinhos blá blá blá, conversa que detesto…), conseguimos sobreviver com muito mais variedade genética de castas e clones do que nos países mais avançados. Vejamos, a Borgonha de tintos tem Pinot Noir e um pouco de Gamay, optimizaram. Também optimizaram os brancos, com Chardonnay e um pouco de Aligoté. Bordéus tem Cabernet Sauvignon, Merlot, e temperam isto com Cabernet Franc e Petit Verdot.

As regiões mais conhecidas de Espanha também estreitaram as castas até ao “óptimo”. Jerez com Palomino, só Palomino. Rioja, Ribera del Duero ou Toro com Tempranillo. Só Tempranillo. Mas temprano quer dizer cedo, e com o aquecimento global esta casta de ciclo curto começou a trazer ansiedades. Os produtores tentaram adaptar-se trazendo castas internacionais (ou francesas) como Cabernet Sauvignon ou Syrah. Foi aí que investigadores como Alberto Martín, do ITACyL (Instituto Tecnológico Agrario de Castilla y León) decidiram estudar as velhas tradições, as velhas vinhas, o que estava antes, e que alguns velhos ainda conheciam. De vinha em vinha, de cepa em cepa, foram descobrindo, classificando e catalogando 130 castas de uvas. Destas, seleccionaram 29 para salvar e explorar, verificar o seu potencial enológico. De uma destas, havia apenas três cepas, a Cenicienta. Ou seja, este era um trabalho de heróis. Desde 2002 até hoje, estas 29 foram multiplicadas, salvas, estudadas com microvinificações, até chegarem a 100 cepas de cada uma, o suficiente para 40 garrafas de vinho anuais. As microvinificações levantam sempre problemas técnicos, não são uma boa fotografia do potencial de uma variedade. Por isso algumas foram mais exploradas, para fazer já vinificações de dimensões dignas. Os vinhos foram entregando as suas promessas e o ITACyL foi fazendo o seu trabalho não só de investigação, mas também de transferência de tecnologia para o sector vitivinícola, e propondo alterações aos regulamentos das denominações de origem, para incluir estas novas castas que vão ao encontro dos objectivos dos produtores, mas também dos desejos dos consumidores.
Em Portugal começámos de uma situação menos grave, na verdade, uma situação confortável em termos de variedade de castas, mas os nossos técnicos perceberam cedo o problema e não perderam tempo. A PORVID é uma associação do sector (público e privado em associação estreita) que mantém uma vinha em Pegões onde tem exemplares de todas as castas conhecidas, e não só isso, focando na maximização do número de clones de cada casta. Um tesouro para os investigadores em vitivinicultura, mas acima de tudo um seguro de vida para o sector, e uma garantia de que o foco da nossa produção de vinhos não é a optimização de um tipo ou estilo de vinhos que esteja correntemente na moda. Em vez disso, como afirmou António Graça (I&D da Sogrape e PORVID), é a enologia que abraça a nossa variedade genética e encontra os vinhos que optimizam as castas e clones existentes em cada local. António deu um exemplo simples: se não tivesse sido criado o Champagne, o Pinot Noir e o Pinot Meunier já estariam possivelmente extintos.
Contou-me ainda o António Graça que em Bordéus já perceberam o drama de estreitar demasiado as opções nas castas e nos clones “melhores” e começaram a plantar outras castas, inclusive a nossa Touriga Nacional. Mas fazem-no com a mesma atitude de outrora: encontrar a nova superstar, a panaceia, que vai resolver todos os problemas. A atitude deve ser outra: olhar para o que se tem, tentar entender as razões antigas da escolha dessas castas/clones, e preservar a variedade genética como a manutenção de opções abertas para o futuro.
Em Espanha, 20 anos depois, são já os vignerons que recorrem ao ITACyL para os ajudar a encontrar as tais castas que podem apontar aos vinhos do futuro. Aproveitando a visita de Alberto Martín a Lisboa, organizei um jantar onde provámos vinhos de castas raras de um e outro lado da fronteira. É que em Portugal, se não estreitámos tudo só a uma casta, também fizemos apostas num número pequeno de variedades. No Douro, de um estudo preliminar de José António Rosas e João Nicolau de Almeida, tiraram-se conclusões definitivas: Touriga Nacional, Touriga Franca, Tinta Roriz, Tinta Barroca e Tinto Cão. Mas as vinhas velhas fizeram de almofada, e seguraram boas quantidades de um grande número de castas. Algumas que tiveram sempre apostas para as cinco seguintes, como a Tinta Amarela (Trincadeira), Sousão, Alicante Bouschet, Tinta da Barca, Tinta Francisca e muitas outras. Mas também outras que, permanecendo nas vinhas, estão hoje disponíveis para vinhos de estilos mais leves e onde a cor é menos premente. Rufete, Cornifesto, Malvasia Preta, Bastardo.
De umas e outras provámos na Manja#Marvila, para nos maravilharmos perante um mundo novo de castas que nos dão vinhos deslumbrantes para desfrutar à mesa. Os nomes espanhóis por vezes contrastam com os nossos, mas a sinonímia sempre será fonte de conversa: Bastardo-Negro Sauri-Merenzao; Rabigato-Puesta en Cruz; Cornifesto-Gajo Arroba. Adivinho que a Tinta da Barca vai explodir em breve como uma grande casta, primeiro do Douro e depois nacional. A seguir, quem sabe? Do que provei, Malvasia Preta e Cornifesto. São grandes dias para os amantes de vinho.
(Artigo publicado na edição de Fevereiro de 2023)
Feira de vinhos, para que te quero?

O que faz com que o consumidor se decida por uma marca em detrimento de outra? Para além do apelo do preço, que tem sobretudo maior relevância nos vinhos de entrada de gama, há um factor que tem uma força indesmentível no momento crítico da selecção: a identificação com a marca e as suas “estórias” […]
O que faz com que o consumidor se decida por uma marca em detrimento de outra? Para além do apelo do preço, que tem sobretudo maior relevância nos vinhos de entrada de gama, há um factor que tem uma força indesmentível no momento crítico da selecção: a identificação com a marca e as suas “estórias”
Texto: João Geirinhas
Quando no já longínquo ano 2000, a equipa que está hoje na Grandes Escolhas, organizou a sua primeira feira de vinhos, muita gente fez esta pergunta. E, confesso, na altura não foi fácil de explicar, até porque o conceito não tinha ainda sido ensaiado em Portugal. “É uma montra para vender garrafas ao público?”, perguntavam-me quando solicitei reuniões a algumas das empresas mais importantes do sector para explicar o incipiente projecto. “Serve para registar as encomendas dos clientes?” A todos respondia que não, não era bem isso que se pretendia.
Uns meses antes tínhamos visitado em Londres uma mostra de vinhos organizada por uma revista da especialidade num charmoso hotel, com toda a pompa e circunstância, com bilhetes e provas vendidas a preços estratosféricos. Sentimo-nos inspirados, mas com a certeza que em Portugal o modelo teria de ser diferente. Mas a ideia de uma mostra de vinhos promovida por uma revista começava a fazer todo o sentido. Estava-se a viver por esses tempos a eclosão de novos produtores, a explosão de marcas a inundarem o mercado, os jornais começavam timidamente a falar deste assunto e o vinho começava a ficar na moda e o interesse pelo tema era crescente. Afinal onde se encontravam aqueles vinhos feitos pela nova geração de enólogos de que tanto falávamos nas páginas da revista? Onde os podemos conhecer e provar? Que quintas e herdades são essas que enchiam as nossas páginas?
Foi esta necessidade de partilhar com os nossos leitores os vinhos de que toda a gente falava, mas que não existiam ainda nas prateleiras dos supermercados que levou a aquela equipa a organizar aquilo que podemos hoje considerar, sem falsas modéstias, a primeira experiência de uma feira pensada no e para o novo consumidor, mais exigente e ávido de experiências inovadoras. Chamámos então os produtores, muito poucos nessa primeira edição, e convidámos os nossos leitores para virem conhecê-los e provarem as novidades. Não por acaso chamámos ao evento de “Encontro”.
Este encontro de vontades foi um sucesso que ultrapassou as nossas melhores expectativas. O modelo vingou, cresceu e foi depois replicado por muitos outros e em vários locais. Hoje é unanimemente reconhecido que estas “novas” feiras de vinhos foram importantes para abrir horizontes, divulgar produtores e marcas que de outra forma teriam acesso dificultado ao mercado.
Mas se tudo isto é história, que aplicação tem no presente? E voltamos à pergunta inicial: para que serve hoje uma feira como a Grandes Escolhas Vinhos & Sabores? O modelo mantém validade ou está esgotado como alguns se apressam a vaticinar? Ou a feira apenas vale pelos contactos profissionais que o dia de segunda-feira proporciona, sendo o tempo dedicado aos consumidores uma maçada constrangedora? A verdade é que quem olha para o mundo através de uma folha de Excel e apenas contabiliza o deve e haver das encomendas firmes vê apenas uma parte da realidade. E ainda por cima distorcida.
Vejamos. Na longa cadeia de elos que compõem a fileira do vinho, produtor e consumidor estão em polos opostos. Para além de distantes, entre eles há uma barreira natural que decorre do normal funcionamento do mercado: distribuidores, grandes e regionais, comerciais retalhistas, etc. Uma garrafa de vinho passa por muitas mãos antes de acabar nas mãos de quem a bebe. Pelo meio deste percurso longo haverá sempre algo que se perde. O produtor e sua equipa de viticultura e enologia desenham um vinho para o mercado, essa entidade abstrata e invisível que decide às vezes misteriosamente a sorte do investimento e de todo o trabalho que eles colocaram na sua criação. Adivinhar qual será a reação do mercado a um novo produto é a tal pergunta de milhão que todos gostariam saber de antemão.
O consumidor por outro lado é bombardeado com comunicações, anúncios do lançamento de novas marcas, inúmeras referências e amiúde fica perdido no meio de tantas mensagens e apelos comerciais, promoções agressivas e grandes descontos, alguns deles aliás bem falaciosos. Em frente de uma prateleira de supermercado ou mesmo numa garrafeira da especialidade não raras vezes depara-se com a dificuldade da escolha. O que faz com que ele se decida por uma marca em detrimento de outra? Para além do apelo do preço, que tem sobretudo maior relevância nos vinhos de entrada de gama, há um factor que tem uma força indesmentível no momento crítico da selecção: a identificação com a marca e as suas “estórias”. Quando por detrás desta o consumidor reconhece uma imagem, uma cara, uma conversa, uma prova que lhe são familiares, quando um vinho lhe recorda uma experiência gratificante, estão encontrados os pressupostos emocionais que conduzem a uma escolha em detrimento de outra. A feira de vinhos, permitindo o contacto directo, com o produtor que expõe a cultura da casa, a explicação do enólogo que desvenda as particularidades daquele talhão ou as vicissitudes da vinificação, os segredos da construção de um lote, tudo isso ajuda a construir uma narrativa que se cola à marca e que fica para sempre na memória do consumidor curioso. Uma garrafa de vinho sem a contextualização da história que a suporta é… apenas uma garrafa de vinho!
Uma feira de vinhos, quando bem preparada e melhor servida por profissionais competentes, com atitude disponível para o acolhimento, simpatia quanto baste, ajuda na construção da marca, consolida a imagem do vinho e fideliza o consumidor. O sucesso nas vendas vem a seguir.
Editorial: Ser “vigneron”

Fazer vinho exclusivamente a partir das suas próprias uvas tem hoje, em Portugal, muito mais desvantagens do que benefícios. É que, aos enormes constrangimentos de produção que esse modelo obriga, não corresponde um acréscimo efectivo de notoriedade ou valor de marca junto do consumidor. Para este último, são todos produtores de vinho. Mas não é […]
Fazer vinho exclusivamente a partir das suas próprias uvas tem hoje, em Portugal, muito mais desvantagens do que benefícios. É que, aos enormes constrangimentos de produção que esse modelo obriga, não corresponde um acréscimo efectivo de notoriedade ou valor de marca junto do consumidor. Para este último, são todos produtores de vinho. Mas não é verdade.
Vem este tema a propósito de uma das peças desta edição de julho da Grandes Escolhas, a que aborda os extraordinários Garrafeiras brancos da Quinta das Bágeiras e do seu criador, Mário Sérgio Nuno. Alguém que, contra ventos e marés, criou uma marca de referência e que, teimosamente, continua a fazer os seus vinhos exclusivamente a partir das uvas que crescem nas suas vinhas. Mesmo que, para tal, abdique de vender, a bom preço, mais umas boas dezenas de milhar de garrafas por ano. A única compensação: poder, com orgulho e legitimidade, intitular-se “Vigneron” e manifestar isso mesmo nas T-shirt que usa nos eventos e provas de vinho. Mas, feitas as contas, vale a pena?
Tempos houve em que acreditei que sim. Quando comecei a escrever sobre vinhos, em 1989, a estrutura de produção, em Portugal, estava perfeitamente definida. Havia as adegas cooperativas, que vinificavam as uvas dos cooperantes; havia os armazenistas puros, que não vinificavam (e eram muitos, acreditem!), compravam vinho feito que engarrafavam com a sua marca; havia os armazenistas “híbridos”, que faziam o mesmo que os anteriores mas também vinificavam, compravam uvas e, por vezes, até tinham algumas vinhas; havia os viticultores, que vendiam uvas e, muitas vezes, também faziam vinho para vender a granel aos armazenistas; e havia os produtores-engarrafadores que, genericamente, correspondiam aos então chamados “vinhos de quinta” que começavam a ganhar notoriedade. Este conceito de fazer vinho a partir de uvas de uma só quinta mexeu bastante com o mercado dos anos 90: eram vinhos bem mais cotados e mais caros do que os de “armazenistas”. Significava que eram melhores? Nuns casos sim, noutros não. Mas os consumidores tinham por eles mais respeito e estavam dispostos a pagar mais.
Com o tempo, tudo isto se diluiu. Hoje, para o apreciador, mesmo o mais exigente, tudo entra no mesmo saco com a etiqueta “produtor de vinho”, incluindo os “marketeiros” que assinam rótulos de vinho que nunca produziram. No entanto, a legislação existe e é bem explícita. A inscrição obrigatória, no IVV, para o exercício de atividade no sector vitivinícola, determina em que categoria, ou categorias se está. Alguns exemplos, resumidos, da lei. “Armazenista: pratica o comércio de vinho a granel ou engarrafado”; “Negociante sem estabelecimento: compra e vende vinhos engarrafados sem dispor de instalações para a sua armazenagem” (aqui caberiam muitas das marcas de nicho hoje reverenciadas em restaurantes da moda…); “Produtor: produz vinho a partir de uvas obtidas na sua exploração ou compradas” (aqui se insere a esmagadora maioria das empresas nacionais); “Vitivinicultor-engarrafador: elabora vinho a partir de uvas produzidas exclusivamente na sua exploração vitícola” (é o que, em França, se chama “vigneron”). As empresas podem inscrever-se em mais do que uma categoria, mas a lei determina que a inscrição como vitivinicultor-engarrafador é incompatível com a inscrição como armazenista ou como produtor. Ou seja, é o que tem as mãos “atadas”, sem vantagens óbvias.
Ao contrário do que, até junho de 2019, era obrigatório colocar nas cápsulas de todos vinhos franceses (R de “recoltant” ou N de “negociant”) e que ainda hoje se mantém em diversas AOC, como Champagne (aqui até de forma bem mais rigorosa), em Portugal essa obrigatoriedade nunca existiu. Resultado: os poucos “vigneron” que ainda existem entre nós vão fazendo contas à vida e percebendo que não compensa insistir nesse ideal romântico, mas pouco rentável, de usar só as uvas que criam. São vinhos melhores do que os outros? Não necessariamente. Mas num mercado que, tantas vezes, paga irracionalmente a diferença, esta é uma diferença que merece ser paga.
Editorial da edição nº 63 (Julho 2022)
Editorial: A cor do vinho

Parecendo não lhe dar grande importância, a verdade é que o consumidor (e, por arrasto, o mercado) continua a olhar para a cor de um vinho (seja branco, rosé ou tinto) como um factor importante na avaliação da qualidade geral do produto. Mas será que é mesmo assim? Existem cores (ou intensidades de cor) certas […]
Parecendo não lhe dar grande importância, a verdade é que o consumidor (e, por arrasto, o mercado) continua a olhar para a cor de um vinho (seja branco, rosé ou tinto) como um factor importante na avaliação da qualidade geral do produto. Mas será que é mesmo assim? Existem cores (ou intensidades de cor) certas ou erradas?
Editorial da edição nº 62 (Junho 2022)
A cor, enquanto atributo qualitativo na avaliação de um vinho, não é uma coisa recente. Na cultura do vinho do Porto, por exemplo, a intensidade de cor foi, durante séculos, o primeiro indicador qualitativo na apreciação de um vinho, só depois vindo o aroma e sabor. Ainda hoje, muitos provadores ao olharem para um Porto Vintage condicionam desde logo a sua avaliação pela intensidade da cor. Tão importante era (ou é) este factor que se tornaram famosos os “concentrados” de baga de sabugueiro que alguns lavradores durienses tradicionalmente juntavam aos seus vinhos para lhes aumentar a cor e, consequentemente, o seu valor junto dos compradores de Gaia.
Mas a obsessão pela intensidade corante não se resumia ao negócio do Porto. Nos anos 60 e 70 do século XX, sobretudo, também os vinhos de mesa transacionados a granel por todo o país eram frequentemente “tintados” para aumentar o seu valor. Nem sempre foi assim, porém. No final do século XIX e durante a primeira metade do século seguinte, a forte influência da cultura francesa junto das elites nacionais, levou a que muitos agentes com responsabilidades no sector do vinho privilegiassem a delicadeza em detrimento da potência, colocando no lugar mais elevado do podium vinhos com pouca cor natural, como os tintos de Colares, do Dão ou de Lafões, os palhetes (mistura de uvas brancas e tintas) ou os sofisticados claretes, estes últimos o mais próximo que havia dos famosos tintos abertos que Bordéus sempre fez até ao advento da “parkerização” dos anos 80 e 90.
Demos um salto na história até aos dias de hoje. E o que encontramos? No que aos tintos respeita, podemos assumir que a importância conferida à cor varia em função do segmento de preço em que o vinho se insere. Os vinhos mais simples e baratos são oriundos de produções vitícolas com elevados rendimentos por hectare e, portanto, necessariamente menos concentrados e com menos cor. Mas o consumidor que paga €3 ou €4 por uma garrafa valoriza bastante a cor, que associa de imediato a vinhos mais ambiciosos. Portanto, um vinho de cor intensa nesse segmento de preço tem sucesso garantido, sobretudo se tiver também macieza e doçura, claro.
A cor continua a ser muito importante nos segmentos superiores, de €10, €20, €30 ou acima, mesmo que muitos consumidores não o admitam. Cor é concentração, concentração é qualidade, acredita-se. Porém, à medida que a escala de preço sobe, a importância da cor atenua-se. E começam a aparecer tendências vitícolas e enológicas que, embora orientadas para mercados de nicho ou super nicho, mostram desenvolvimento crescente e sustentado. Uma delas assenta na colheita mais precoce, fugindo assim das sobrematurações. Outra, actualmente com bastantes seguidores junto dos produtores de topo, aposta na menor e mais suave extracção das componentes corantes e fenólicas das uvas, fazendo, por exemplo, menos remontagens nas cubas (em alguns casos mais extremados, abandonando-as por completo) e macerações menos prolongadas.
Outra ainda, cada vez mais notória, passa pela reabilitação de castas antigas e abandonadas por, entre outros motivos, terem “falta de cor”. É o caso de variedades como, por exemplo, Bastardo, Rufete, Alvarelhão, Tinta Carvalha, Tinta Francisca, Moreto e até, em certa medida e dependendo da origem, Jaen e Castelão. Junte-se a isto a recuperação de métodos de vinificação ancestrais (como a talha de barro) e percebe-se que a intensidade de cor, nos vinhos tintos, não é hoje motivo de preocupação junto de enólogos/produtores, em particular nas gamas mais altas da pirâmide de marcas.
Já no que aos brancos respeita, a conversa é outra. Seja qual for o segmento de preço, os brancos com mais cor do que o “socialmente aceitável” estão votados ao ostracismo. Isso significa que o vinho branco de cor mais intensa, a rondar o limão maduro, é imediatamente percepcionado pelo consumidor como estando demasiado evoluído, cansado, oxidado, fora de prazo. É uma preocupação adicional para os enólogos, sobretudo os que trabalham em regiões mais quentes ou com castas brancas que, naturalmente, retiram mais cor da película na prensagem. Muitos são obrigados, apenas por causa da cor “incorrecta”, a utilizar produtos enológicos descorantes, aí sim, com efeitos colaterais negativos na estrutura do vinho.
Mas também nos vinhos brancos há, felizmente, lugar aos super-nichos. É o caso dos brancos de curtimenta, fermentados total ou parcialmente com as películas e que acabam por ficar com a tal cor de limão maduro. E estes vinhos podem mesmo ser objecto de uma abordagem mais extremada através de oxidação controlada para produzir os conhecidos “orange wines”, bem alaranjados. Portanto, enquanto o mundo dos tintos aceita, progressivamente, diferentes gradações de cor, o mundo dos brancos é altamente polarizado: a quase totalidade dos consumidores quer vinhos com muito pouca cor e uma minúscula aldeia de irredutíveis rebeldes paga o que for preciso por um vinho laranja.
Ainda mais estranho, inexplicável mesmo à luz de tudo o que é racional, é o que se passa com os rosés. Há 10 ou 15 anos, havia dois tipos de rosés: os rosés de bica aberta, com muito pouco contacto pelicular, e de cor mais aberta, em diferentes gradações de rosa; e os rosés obtidos a partir de sangria de cubas de tintos, com cores de cereja, quase a rondar o palhete.
A dada altura, a “onda Provence” foi subindo de sul para norte, a partir do Algarve, com a pressão dos turistas estrangeiros, primeiro, e dos consumidores nacionais, depois, a exigir a cor que caracteriza os vinhos rosados daquela região francesa. Primeiro, foram apenas os rosés de topo, mais caros e ambiciosos, a adoptar a cor Provence, bem mais exigente em termos de colheita e prensagem das uvas. Mas rapidamente quase todos os outros produtores, mesmo para os rosés mais simples e baratos, foram obrigados a seguir o modelo. Frequentemente, é preciso descorar o vinho para afinar a cor. E, por vezes, o zelo é tanto que o vinho se confunde com água. Também aqui, porém, existem excepções. A mais notável é, sem sombra de dúvida, a do icónico Mateus. O rosé mais famoso do mundo não vai em ondas e mantém a cor, hoje “fora de moda”, que sempre o caracterizou. E, ao que parece, o mercado não queixa, com as vendas a continuarem em alta. Também, aqui e ali, começam a aparecer produtores a fazer rosés caros e corados. Talvez tenham chegado à conclusão de que, se a cor Provence deixou de ser distintiva, uma vez que todos a seguem, então mais vale destacar-se pela diferença voltando às cores de antigamente.
A grande, incontornável verdade, é que cor nada tem a ver com qualidade. Está tão dependente da origem do vinho, das variedades de uva, dos métodos de produção, do perfil do enólogo ou produtor, que procurar uma relação entre a cor e a excelência de um vinho é tarefa fútil e insensata. A cor pode dar-nos sinais, isso sim, sugerir-nos maior ou menor concentração, maior ou menor evolução, climas mais quentes ou mais frios, castas mais ou menos coradas. Mas um tinto de Rufete não é inferior a um outro de Alicante Bouschet apenas por ter menos cor.
O vinho tem tantas cores quanto aromas e sabores. E desde que nos dê prazer a beber, não existem cores certas e cores erradas.
Editorial: Tempestade perfeita (mesmo)

Sim, eu sei, é um clichê, uma expressão demasiado usada e abusada, em particular no “economês” e “politiquês”. Mas, sinceramente, não encontro nenhuma outra que traduza de forma tão expressiva a rara combinação de circunstâncias negativas com que se debatem as empresas do sector do vinho. Editorial da edição nº60 (Abril 2022) Após ter mostrado […]
Sim, eu sei, é um clichê, uma expressão demasiado usada e abusada, em particular no “economês” e “politiquês”. Mas, sinceramente, não encontro nenhuma outra que traduza de forma tão expressiva a rara combinação de circunstâncias negativas com que se debatem as empresas do sector do vinho.
Editorial da edição nº60 (Abril 2022)
Após ter mostrado notável resiliência à pandemia em 2020, e ainda mais extraordinária recuperação em 2021, o sector da vinha e do vinho em Portugal depara-se, hoje, com factores estruturais e conjunturais que, associados, constituem um enorme desafio às suas capacidades. Porque abordo este assunto numa revista orientada, sobretudo, para os consumidores? Pela simples razão de que, ao contrário das ameaças óbvias do covid-19 ao negócio do vinho (encerramento de pontos de venda, enoturismos, lojas e restaurantes), os efeitos que esta “coligação negativa” está a ter nos produtores passam despercebidos aos apreciadores. A “tempestade” resulta de um conjunto de circunstâncias, das quais destaco três: aumento astronómico dos custos de produção, escassez de mão-de-obra e, claro, Rússia.
No que a alguns custos diz respeito, o consumidor está avisado, pois também os sofre na pele. Sabe que gás, electricidade e combustíveis aumentaram e já percebeu que vai pagar mais caro a carne, o leite, os legumes. Mas desconhece, por exemplo, que os produtos para a vinha (de adubos a fungicidas) aumentaram mais de 200% num ano. Não imagina que caixas de papel e madeira, rótulos, cápsulas, garrafas, rolhas, aumentaram em média, no mesmo período, 30 a 45%. Ou que os fretes de exportação inflacionaram entre 300 a 400%. Além da energia, claro. Dizia-me outro dia o enólogo de uma empresa que produz a sua própria aguardente que, há um ano, por 24 horas de destilação pagava €1500 de gás; agora paga €2200. Tudo o que é necessário para que uma garrafa de vinho chegue ao consumidor não está apenas muito mais caro: também não está disponível. Há muitos produtores a atrasarem engarrafamentos por não haver garrafas; e diversos outros têm exportações firmadas, mas não sabem quando haverá contentores.
O que vai sentir quem compra uma garrafa no supermercado? A curto e médio prazo, provavelmente, nada. O vinho no supermercado está demasiado barato e assim irá continuar. Enquanto houver um produtor desesperado disposto a substituir outro, mesmo vendendo abaixo do preço de custo, continuará a haver vinho bom e barato nas prateleiras. Mas é importante que o consumidor saiba o que está por trás dos €2,19 que paga por uma garrafa. Quanto aos vinhos mais ambiciosos, será talvez menos difícil reflectir parte do aumento de custos no preço final. Mas estes vinhos representam uma pequena fatia do mercado.
Depois, a escassez de mão-de-obra. É um problema transversal a todos os sectores de actividade, como sabemos. Mas é ainda mais grave no sector agrícola, em geral, e no vitivinícola, em particular. Boa parte das vinhas portuguesas não são inteiramente mecanizáveis, desde a poda até à colheita. E, para alguns vinhos de topo, essa mecanização nem é desejável. Mas onde estão as pessoas disponíveis para trabalhar? Neste momento, os podadores são tão raros que se vão buscar equipas a centenas de quilómetros de distância. Se a colheita de 2022 for abundante ou a vindima longa e com interrupções, haverá uvas que ficam nas videiras por não haver quem as apanhe ou não compensar apanhá-las. Ou vão ser colhidas demasiado tarde, com reflexo na qualidade dos vinhos.
Finalmente, a insanidade da guerra. A exportação para a Rússia estava a crescer e, para muitos produtores, o país era o segundo ou terceiro mercado. Agora, acabou, e a escassez e custo dos fretes dificultam o desvio das atenções para novos mercados.
O sector do vinho já provou ser um “navio” com elevada resistência ao mar tempestuoso. Agora, de novo, vai ter de mostrar tudo o que vale.
Melhores do Ano: celebrar 2021

Luís Lopes Como habitualmente, esta edição de Março é dedicada aos Prémios Grandes Escolhas. Aqui distinguimos os vinhos, as pessoas, as empresas e organizações, os projectos que em 2021 mais se evidenciaram junto dos profissionais e dos apreciadores. E sobre o ano que passou existem muitos e bons motivos para celebrar. Editorial da edição nº59 […]
Luís Lopes
Como habitualmente, esta edição de Março é dedicada aos Prémios Grandes Escolhas. Aqui distinguimos os vinhos, as pessoas, as empresas e organizações, os projectos que em 2021 mais se evidenciaram junto dos profissionais e dos apreciadores. E sobre o ano que passou existem muitos e bons motivos para celebrar.
Editorial da edição nº59 (Março 2022)
Na Grandes Escolhas acompanhamos de muito perto o sector do vinho e os que indirectamente lhe estão ligados, como o comércio especializado ou a restauração, por exemplo. Experimentamos por isso quer as dificuldades, quer os momentos de superação de empresas e pessoas que, apaixonadamente, fazem deste mundo vínico o seu modo de vida. E seguimos e estudamos com afinco a dinâmica dos mercados e os padrões dos consumidores, pois produção, comércio e consumo fazem todos parte da mesma fileira, a fileira do vinho.
Nesse sentido, estamos convencidos de que 2021 foi, para todos em geral, um ano cheio de significado, pela positiva. Contrariando as incertezas e fantasmas alimentados pela pandemia, o sector do vinho mostrou extraordinária resiliência e dinamismo, superando as adversidades e voltando à senda de crescimento sustentado que caracterizou o primeiro trimestre de 2020, até o vírus nos cair em cima. O vírus aí continua, é certo, mas agora sabemos viver com ele e, sobretudo, sabemos viver apesar dele, não comprometendo a nossa forma de estar, a nossa felicidade, o nosso futuro.
Vamos, pois, celebrar 2021 através dos prémios Grandes Escolhas. Celebrar, desde logo, os vinhos. E de entre os muitos que premiámos, permitam-me que destaque aqui os grandes vencedores em cada categoria: o espumante Vértice Pinot Noir 2011, o branco Vinha dos Utras 2019, o tinto Quinta da Manoella VV 2018, o rosé Kopke Winemaker’s Collection Tinto Cão 2020, o fortificado Ramos Pinto RP30 Tawny 30 anos, todos eles merecedores dos maiores encómios.
Celebremos igualmente a estóica resistência à adversidade e a fantástica recuperação dos restaurantes em 2021. Com perfis e conceitos bem distintos, premiámos o trabalho de três casas de bem comer e bem servir: Come Prima, Cisco e Essencial. E, a propósito de serviço, talvez a mais valiosa função do sommelier, é de enaltecer a enorme categoria de Marc Pinto.
Há casas onde o vinho se sente em casa. Ou de onde o podemos levar para nossa casa. A Garrafeira Nacional, em constante adaptação e modernização, é uma referência incontornável, como também o é a loja gourmet Tradicional. O wine bar Capela Incomum marca pelo espaço e pelo que lá está dentro. E que dizer do acolhimento familiar num Alentejo genuíno que experienciamos no enoturismo da Herdade do Sobroso?
Ao nível do desempenho de empresas e produtores, apreciámos a transformação da “nova” Sovibor, a consistência da Adega de Penalva e o sólido crescimento da Costa Boal. Apostando numa filosofia muito própria, a Reynolds Wine Growers destacou-se pela singularidade associada à qualidade. A revolucionária Azores Wine Company mexeu com toda uma região, a Wine & Soul provou que, mesmo no conservador vinho do Porto, “small” pode ser “beautiful”. E a viticultura sustentável da Herdade de Coelheiros é um exemplo a seguir. Em tempo de celebração, celebremos também a solidariedade e a partilha, através da associação Bagos d’Ouro.
Finalmente, mas não por último, as pessoas que, pelo seu talento, conhecimento e obra, se destacaram. No que a enologia respeita, vibrámos com os vinhos feitos por Sandra Tavares da Silva, no Douro e Lisboa, e por Pedro Sá, em Carcavelos. O chef Diogo Rocha oficia de forma inigualável nos fogões mas também na divulgação da gastronomia portuguesa: o prémio que leva o nome do grande jornalista David Lopes Ramos, está muito bem entregue.
Termino com o galardão mais ambicionado. Poucas pessoas terão, como Jorge Dias, contribuído em tantas e tão distintas áreas para o desenvolvimento e reconhecimento do Douro e do Vinho do Porto. É, sem sobra de dúvida, um grande Senhor do Vinho.
Editorial: Do que eu não gosto

Editorial da revista nº57, Janeiro 2022 LUÍS LOPES Um recente trabalho de Ricardo Felner no Expresso identificou-me, de certo modo, como “inimigo” dos chamados vinhos “naturais”. Sinceramente, não sou inimigo de nada nem de ninguém. Mas existem, é verdade, comportamentos no sector do vinho que me incomodam. Com 60 anos feitos, 33 dos quais a […]
Editorial da revista nº57, Janeiro 2022
LUÍS LOPES
Um recente trabalho de Ricardo Felner no Expresso identificou-me, de certo modo, como “inimigo” dos chamados vinhos “naturais”. Sinceramente, não sou inimigo de nada nem de ninguém. Mas existem, é verdade, comportamentos no sector do vinho que me incomodam. Com 60 anos feitos, 33 dos quais a escrever sobre vinhos, acho que posso abrir o livro e deixar claro aquilo de que não gosto. Então aí vai.
Não gosto de colocar tudo no mesmo saco: orgânico, biodinâmico, leveduras indígenas, sustentabilidade, filtração, sulfuroso, “natural”. São produtos, práticas e conceitos diferentes e, alguns, até antagónicos. Só o Esporão, por exemplo, tem mais área de vinha orgânica do que todos os “naturais” juntos. Luis Pato faz alguns vinhos e espumantes sem adição de sulfuroso mas não é orgânico. A Casa de Mouraz é mesmo biodinâmica mas protege os seus vinhos com sulfuroso. Mário Sérgio Nuno, da Quinta das Bágeiras, nunca colocou uma levedura nos lagares ou nos toneis de fermentação. E o gigante espanhol Miguel Torres é referência mundial em produção sustentável e protecção ambiental e há muito que abandonou o modelo orgânico.
Não gosto de rótulos, a não ser nas garrafas. “Natural” por oposição a “tecnológico” é ver o mundo a preto e branco. O vinho, é tudo menos isso, é uma paleta infinita de cores, um universo de diversidade, estilos e conceitos, distintas formas de trabalhar e de transformar o fruto da videira numa bebida apaixonante.
Não gosto do primado da diferença sobre a qualidade. É fantástico quando conseguimos associar, num copo, qualidade e diferença. Mas prefiro qualidade sem diferença, do que diferença sem qualidade.
Não gosto de confundir gosto e qualidade. Gosto discute-se, qualidade não. A qualidade é imediatamente reconhecível, mesmo por quem não é especialista ou conhecedor. Se um vinho cheira mal, não há quem me convença de que cheira bem. Uma couve podre é uma couve podre, um guisado queimado é um guisado queimado. Não há volta a dar.
Não gosto de catequismos. Não sou crente, mas respeito todas as crenças. Desde que não insistam em catequizar-me. Quando um sommelier me disser, condescendente, que não aprecio um vinho que cheira e sabe mal apenas porque não estou acostumado a ele, irei responder como Susana Esteban o fez, nas mesmas circunstâncias: “pois não, estou habituado a beber vinhos bons”.
Não gosto da demonização da ciência. Rejeitar a enologia é como rejeitar a medicina. É verdade que alguns o fazem. Mas eu não queria estar na pele deles quando tiverem uma apendicite aguda.
Não gosto do elitismo. O vinho não pode ser algo apenas ao alcance de um grupo de iluminados que se acham superiores. Enquanto produto, o vinho é, e deve continuar a ser, democrático, acessível a todas as bolsas. Para poder ter preços acessíveis tem de ser feito em volumes grandes. Uma vez que estabilizar dois milhões de litros não é o mesmo que cuidar de duas barricas, existem para o efeito produtos enológicos, legalmente autorizados e fiscalizados. Bebo muitas vezes vinhos de €2,49? Raramente. Tal como raramente vou ao McDonald’s. Mas prefiro, de longe, comer um hambúrguer de carne fresca do que um robalo de mar com 15 dias de frigorífico.
Não gosto da publicidade enganosa, das aldrabices, da mentira. Exemplos? Quando se impinge a turvação de um vinho como valorizadora, apenas porque não se esperou o tempo suficiente antes de engarrafar. Quando um produtor “orgânico” apanha com um ataque de míldio e utiliza o que for preciso para salvar as uvas. Quando se inundam as redes sociais de fotos das galinhas e ovelhas nos 2 hectares de vinha biodinâmica e se compram 200 toneladas de uva aos vizinhos que até glifosato usam. Quando se afirma que o espumante é “natural” porque não levou sulfuroso, mas depois leva 7 gramas de açúcar no licor de expedição. Quando dizem “fazer” vinho e não sabem podar uma videira, quando se assumem “vignerons” e não têm vinha. Em boa verdade, há muito mais coisas de que não gosto, mas acho que já chega.
Editorial – A Bairrada do espumante

Editorial da revista nº56, Dezembro 2021 Mais do que uma região onde tradicionalmente se produz espumante, a Bairrada é uma região onde o espumante faz parte da tradição. Parecendo a mesma coisa, é bem diferente. No primeiro caso, envolve apenas os produtores; no segundo, todos, produtores e população, vivem a cultura do espumante. Quando, […]
Editorial da revista nº56, Dezembro 2021
Mais do que uma região onde tradicionalmente se produz espumante, a Bairrada é uma região onde o espumante faz parte da tradição. Parecendo a mesma coisa, é bem diferente. No primeiro caso, envolve apenas os produtores; no segundo, todos, produtores e população, vivem a cultura do espumante.
Quando, em 1890, José Maria Tavares da Silva levou a cabo as primeiras experiências de espumantização na então chamada Escola Prática de Viticultura e Pomologia, em Anadia, estaria longe de pensar o efeito transformador que o seu trabalho traria para a região da Bairrada. A apresentação oficial dos seus espumantes, em 1891, desencadearia um processo de industrialização que daria o primeiro passo em 1893 com a criação da Associação Vinícola da Bairrada (produtora do apelidado “Champagne Portuguez”) e teria a sua explosão a partir dos anos 20 do século seguinte, com o nascimento de dezenas de “Caves”.
Na década de 60, as Caves davam trabalho a uma boa parte da população local e contribuíam para o sustento de milhares de pessoas: praticamente todas as famílias acumulavam um emprego (na indústria metalomecânica ou cerâmica, sobretudo) com o amanho de uma ou mais parcelas de vinha, entregando as uvas nas adegas cooperativas (que depois vendiam o vinho às Caves) ou fazendo os vinhos nas suas adegas caseiras, onde os compradores das Caves os iam depois escolher e adquirir.
Quando visitei pela primeira vez a Bairrada do vinho, no início de 1990, o espumante era um produto comum a todos os agentes económicos da fileira, grandes e pequenos. Ao mudar-me de Lisboa para Sangalhos, em 1995, reparei que a cultura do espumante era transversal a toda a população, mesmo a que nada tinha a ver com a produção de vinho: qualquer casa que visitasse me recebia com “uma tacinha de espumante”. E em qualquer refeição, a garrafa de espumante estava presente, do início ao fim. Só aí entendi que a região da Bairrada, e não apenas os profissionais do vinho, sentia e vivia espumante, numa interiorização cultural da bebida por parte das gentes locais que só encontrei paralelo em Champagne e, em menor grau, em algumas vilas da Catalunha.
De então para cá, algumas coisas mudaram. Nos anos 90, a produção de espumantes em Portugal estava quase totalmente centrada em dois grandes núcleos: Lamego e Távora-Varosa (com Raposeira e Murganheira) e a Bairrada, com as suas Caves. Hoje, são centenas os produtores de vinho nacionais, desde o Vinho Verde ao Algarve, que fazem também um espumante como complemento de gama. Ainda que, na sua esmagadora maioria, os novos produtores recorram a diversos “facilitismos” e dispensem, entre outras, três práticas que fazem a diferença entre um bom espumante e um grande espumante: leveduras livres, espumantização/estágio a temperatura baixa e constante e, sobretudo, largo tempo em garrafa sobre as borras da segunda fermentação. O genuíno método clássico (outrora chamado, não por acaso, “método champanhês”), como sabemos, não abdica de nada disto. Mas esse é tema para outra conversa.
Interessante é que, apesar da dispersão geográfica da sua produção, ainda hoje, 60% do vinho espumante produzido em Portugal é feito entre Coimbra e Aveiro. Deste, cerca de metade obtém a certificação Bairrada ou IG Beira Atlântico, e foi uma amostra desse universo que provei para esta edição da Grandes Escolhas. Preservando o estilo de cada casa e o carácter das castas utilizadas, a qualidade geral dos espumantes da região é notável. Segredo, não existe. Ou, se quisermos, são muitos: clima, solos, castas, história, caves, conhecimento técnico, cultura, tempo. É tudo isso e muito mais que faz da Bairrada uma grande região de espumantes. A Bairrada, na verdade, respira espumante. Afinal de contas, sempre são 130 anos disto.
Editorial – Desafiante

Editorial da revista nº55, Novembro 2021 Terminada que está a colheita das uvas, talvez a melhor forma de classificar a vindima de 2021 será dizer que, quando pensarmos nela no futuro, não suscitará grandes saudades. Quero com isso sugerir que foi uma vindima medíocre? Não, de forma alguma. Mas, poderia ter sido bem melhor, como […]
Editorial da revista nº55, Novembro 2021
Terminada que está a colheita das uvas, talvez a melhor forma de classificar a vindima de 2021 será dizer que, quando pensarmos nela no futuro, não suscitará grandes saudades. Quero com isso sugerir que foi uma vindima medíocre? Não, de forma alguma. Mas, poderia ter sido bem melhor, como 2011, por exemplo…
Convenhamos: uma vindima perfeita, como foi 2011, só acontece uma vez em cada década, ou até mais raramente. Desde a minha estreia na escrita de vinhos assisti a 33 vindimas, percorrendo vinhas e adegas de todo o país. E provei nas cubas, barricas e garrafas os seus resultados. Considero, assim, poder fazer uma avaliação global minimamente informada e realista. Portugal é, felizmente, um país muito diverso, em climas, solos e castas. Com muita frequência, uma mesma vindima é excelente numa região e apenas sofrível noutra. Quase nunca acontece uma mesma colheita ser nacionalmente considerada medíocre ou extraordinária. No primeiro caso, lembro-me de 1993 e, em parte, 2002. No segundo, sem qualquer dúvida, 2011.
Uma década passada sobre a vindima de 2011, não há produtor de vinho que não se recorde das suas circunstâncias. Maturações lentas e de regular progressão, sem excessos de calor. Uvas sanitariamente perfeitas. Ausência de chuva durante o período de colheita. Foi um daqueles anos em que as uvas amadureceram devagar, preguiçosamente, e o lavrador esperou por elas, descansado, sem stress, porque a previsão meteorológica a duas semanas nada anunciava de preocupante. Cada talhão foi colhido no momento certo e as uvas permaneceram nos depósitos todo o tempo que precisaram, sem pressa de sair para dar lugar à carga seguinte. Hoje, independentemente de alguns eventuais excessos de concentração (mais por “moda” da época do que por culpa das uvas), a verdade é que os 2011 se destacam, imponentes, em qualquer prova vertical que se faça dos vinhos de um dado produtor, de norte a sul do país.
2021 foi muito diferente. Antes da vindima, foi difícil controlar pragas e doenças. Depois, as maturações das uvas estavam globalmente atrasadas, e houve que esperar. Com as brancas, sobretudo nas zonas mais quentes, tudo correu pelo melhor e há muitos bons (e bastantes excelentes) vinhos. Com as tintas, não foi bem assim. Ainda que as maturações dos taninos se tenham antecipado (o que evitou vinhos amargos e verdes) o açúcar não estava lá, e sem uvas maduras não há aromas e sabores. As uvas tardaram muitíssimo em chegar ao ponto certo e antes de o alcançarem vieram as chuvas. A generalidade dos produtores resolveu, e bem, esperar em busca de uma aberta no tempo que permitisse aos cachos eliminar a água e reganhar concentração. Em muitos casos, assim aconteceu, uma vindima às pinguinhas, com avanços e recuos, mas que deu bons resultados. Em muitos outros, quando as uvas estavam quase prontas vinha nova chuvada e, a dada altura, só havia uma decisão possível: apanhar o mais que se puder no primeiro dia de sol e não parar a partir daí. Para os produtores, foi uma vindima muito longa e, acima de tudo, bastante extenuante, física e mentalmente. Como um enólogo me dizia, “foi uma vindima desafiante, mas desafiante com M…”
O que podemos então esperar? Provei mais de 300 amostras de vindima desta campanha e, posso dizer que, globalmente, os resultados estão acima das minhas expectativas. Não estamos perante um 2002 e, muito menos, um 1993, bem longe disso. Há mesmo muitos vinhos tintos surpreendentes pela qualidade da fruta e frescura de boca, com menos álcool que o habitual, claro, mas isso até é positivo. Mais uma vez, as pessoas fizeram a diferença. A qualidade e quantidade de profissionais de campo e adega nada tem a ver com a de há uma ou duas décadas. Prevenir, tratar, decidir, separar. Assim se conseguiram os melhores vinhos de 2021. Vindima desafiante? Porque não? Sempre é melhor do que o tão batido “vindima atípica”…
Editorial – A Serra

Editorial da revista nº54, Outubro 2021 Esta edição da Grandes Escolhas tem como tema de capa os vinhos da Serra de São Mamede. Dizer apenas “Portalegre” já seria suficiente para despertar a atenção, justificada pelos recentes investimentos feitos nesta sub-região do Alentejo e pela qualidade e carácter dos vinhos ali produzidos. Mas Serra de São […]
Editorial da revista nº54, Outubro 2021
Esta edição da Grandes Escolhas tem como tema de capa os vinhos da Serra de São Mamede. Dizer apenas “Portalegre” já seria suficiente para despertar a atenção, justificada pelos recentes investimentos feitos nesta sub-região do Alentejo e pela qualidade e carácter dos vinhos ali produzidos. Mas Serra de São Mamede, enquanto parte da DOC Alentejo-Portalegre, é diferente, uma unidade geográfica e uma realidade vitivinícola com uma identidade vincada e muito própria.
Quando se fala de Portalegre numa perspectiva de vinha e de vinho, devemos visualizar (pelo menos) três realidades distintas, correspondendo a outras tantas unidades geográficas. Primeiro, o distrito de Portalegre, que coincide com o chamado Alto Alentejo, limitado a norte pela Beira Baixa. É uma vasta região que vai desde Elvas e Campo Maior, a sul, até Gavião e Nisa, a norte. Este é claramente um Alentejo mais verde na paisagem, mais ondulado na orografia e mais fresco no clima. Embora não olhemos hoje para os 15 concelhos do distrito como sendo, globalmente, de forte implantação vitivinícola (ao contrário do que acontece com muitos outros concelhos dos distritos de Évora e Beja), não podemos esquecer que aqui se situam algumas das mais antigas casas de vinho do Alentejo, desde logo Tapada do Chaves (Portalegre), Mouchão (Sousel) e, mesmo, Fundação Abreu Callado (Avis) que, embora sem a notoriedade das anteriores, engarrafa vinho desde os anos 50.
Quando apertamos o foco geográfico, chegamos então a Portalegre enquanto sub-região da Denominação de Origem Alentejo. Aqui encontramos a vinha e o vinho em todo o seu esplendor, numa expressão diferenciadora do carácter Alentejo, já de si muito diversificado em função da multiplicidade de solos, orografias, climas, castas.
A DOC Alentejo-Portalegre abrange o concelho de Portalegre e pequenas partes dos concelhos de Castelo de Vide, Crato, Marvão e Sousel. Os vinhos DOC Alentejo-Portalegre são claramente marcados pela Serra de São Mamede, que exerce a sua influência desde as explorações situadas no seu sopé até aos vinhedos localizados mas zonas mais altas. Muitas das vinhas mais antigas do Alentejo situam-se precisamente em Portalegre (como as parcelas tinta e branca da Tapada do Chaves, com registos de plantação de 1901 e 1903), para além de várias outras espalhadas pela Serra e cuja recuperação e preservação contribui decisivamente para o carácter dos vinhos aqui produzidos.
Dentro da DOC, porém, existe uma unidade geográfica mais pequena que, embora não esteja oficialmente individualizada em termos vitivinícolas (ao contrário do que é habitual noutros países europeus), revela uma forte identidade em termos dos vinhos que origina: a Serra de São Mamede propriamente dita, local mágico onde a altitude dita a sua lei. Ali, a floresta alterna com vinha, plantada, regra geral, entre os 500 e os 700 metros de altitude.
Vinhas velhas e vinhas mais recentes, produtores de perfil mais clássico ou mais moderno, juntam-se num fantástico mosaico vitivinícola e cultural, dando corpo àquilo a que podemos – por enquanto apenas “oficiosamente” – chamar, os vinhos da Serra de São Mamede. Nem melhores nem piores do que outros grandes vinhos de Portalegre ou do Alentejo, mas, sem dúvida alguma, diferentes. E, também por isso, tremendamente entusiasmantes.