Castas Minoritárias por Luís Antunes

Portugal possui, como é sabido, um património genético vitícola de valor incalculável, em boa parte preservado, graças ao trabalho de entidades como a PORVID e ao esforço individual de muitos produtores. Já Espanha “afunilou” as suas variedades quase até alcançar o ponto de não retorno. Felizmente, também do lado de lá, alguém se chegou à frente (ITACyL) para evitar a perda irreparável. Portugueses e espanhóis juntaram-se à mesa, com copos e conversa. Na ementa, Negro Sauri, Puesta en Cruz, Cornifesto, Tinta da Barca, Malvasia Preta ou Cenicienta.  

Temos muitas castas de vinhos em Portugal. Muitas, muitas, e com nomes difíceis de pronunciar e de explicar. O nosso vinho é de lote, com raras excepções: Bucelas-Arinto, Bairrada-Baga, Monção e Melgaço-Alvarinho, generosos de Setúbal-Moscatel, mais os Madeiras, onde a casta é também um estilo de vinho e um nível de doçura. Simplificando, é isto. No resto do país vinho, impera o lote. E o lote, na viticultura antiga, começava logo na vinha, com cada casta adequada ao tipo de chão, exposição solar, pendência do terreno, profundidade do solo, etc. Na viticultura mais moderna plantaram-se talhões de castas, e o lote é feito na adega, pelos enólogos. Sempre perseguindo um ideal: o equilíbrio do vinho, o seu respeito pelo estilo tradicional de cada lugar, muitas vezes respeitando uma bonita co-evolução com a gastronomia local. Talk about terroir, na essência é isto mesmo.

As modas que afectaram os sítios deixaram rasto, com mudanças na estrutura dos lotes. Em particular, a febre da Touriga Nacional gerou uma certa invasão do país, e a Touriga, originária do Dão e que tinha muito pouca expressão nas vinhas, galgou degraus e rapidamente entrou no top 10 das castas mais plantadas. Mas já antes Portugal tinha sobrevivido a uma febre parecida, a do Cabernet Sauvignon, nada autóctone, mas que gerou um certo medo de perda de identidade. Talvez esse medo primordial nos tenha defendido mais tarde das febres invasoras e/ou unitárias.

O mesmo não aconteceu em Espanha. Talvez por causa do nosso atávico e tradicional atraso (de vida, vejam lá, somos pobrezinhos blá blá blá, conversa que detesto…), conseguimos sobreviver com muito mais variedade genética de castas e clones do que nos países mais avançados. Vejamos, a Borgonha de tintos tem Pinot Noir e um pouco de Gamay, optimizaram. Também optimizaram os brancos, com Chardonnay e um pouco de Aligoté. Bordéus tem Cabernet Sauvignon, Merlot, e temperam isto com Cabernet Franc e Petit Verdot.

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É nas vinhas antigas, como na Quinta do Caedo, que se encontram castas do passado que podem vir a ser o futuro.  © Luís Lopes

As regiões mais conhecidas de Espanha também estreitaram as castas até ao “óptimo”. Jerez com Palomino, só Palomino. Rioja, Ribera del Duero ou Toro com Tempranillo. Só Tempranillo. Mas temprano quer dizer cedo, e com o aquecimento global esta casta de ciclo curto começou a trazer ansiedades. Os produtores tentaram adaptar-se trazendo castas internacionais (ou francesas) como Cabernet Sauvignon ou Syrah. Foi aí que investigadores como Alberto Martín, do ITACyL (Instituto Tecnológico Agrario de Castilla y León) decidiram estudar as velhas tradições, as velhas vinhas, o que estava antes, e que alguns velhos ainda conheciam. De vinha em vinha, de cepa em cepa, foram descobrindo, classificando e catalogando 130 castas de uvas. Destas, seleccionaram 29 para salvar e explorar, verificar o seu potencial enológico. De uma destas, havia apenas três cepas, a Cenicienta. Ou seja, este era um trabalho de heróis. Desde 2002 até hoje, estas 29 foram multiplicadas, salvas, estudadas com microvinificações, até chegarem a 100 cepas de cada uma, o suficiente para 40 garrafas de vinho anuais. As microvinificações levantam sempre problemas técnicos, não são uma boa fotografia do potencial de uma variedade. Por isso algumas foram mais exploradas, para fazer já vinificações de dimensões dignas. Os vinhos foram entregando as suas promessas e o ITACyL foi fazendo o seu trabalho não só de investigação, mas também de transferência de tecnologia para o sector vitivinícola, e propondo alterações aos regulamentos das denominações de origem, para incluir estas novas castas que vão ao encontro dos objectivos dos produtores, mas também dos desejos dos consumidores.

Em Portugal começámos de uma situação menos grave, na verdade, uma situação confortável em termos de variedade de castas, mas os nossos técnicos perceberam cedo o problema e não perderam tempo. A PORVID é uma associação do sector (público e privado em associação estreita) que mantém uma vinha em Pegões onde tem exemplares de todas as castas conhecidas, e não só isso, focando na maximização do número de clones de cada casta. Um tesouro para os investigadores em vitivinicultura, mas acima de tudo um seguro de vida para o sector, e uma garantia de que o foco da nossa produção de vinhos não é a optimização de um tipo ou estilo de vinhos que esteja correntemente na moda. Em vez disso, como afirmou António Graça (I&D da Sogrape e PORVID), é a enologia que abraça a nossa variedade genética e encontra os vinhos que optimizam as castas e clones existentes em cada local. António deu um exemplo simples: se não tivesse sido criado o Champagne, o Pinot Noir e o Pinot Meunier já estariam possivelmente extintos.

Contou-me ainda o António Graça que em Bordéus já perceberam o drama de estreitar demasiado as opções nas castas e nos clones “melhores” e começaram a plantar outras castas, inclusive a nossa Touriga Nacional. Mas fazem-no com a mesma atitude de outrora: encontrar a nova superstar, a panaceia, que vai resolver todos os problemas. A atitude deve ser outra: olhar para o que se tem, tentar entender as razões antigas da escolha dessas castas/clones, e preservar a variedade genética como a manutenção de opções abertas para o futuro.

Em Espanha, 20 anos depois, são já os vignerons que recorrem ao ITACyL para os ajudar a encontrar as tais castas que podem apontar aos vinhos do futuro. Aproveitando a visita de Alberto Martín a Lisboa, organizei um jantar onde provámos vinhos de castas raras de um e outro lado da fronteira. É que em Portugal, se não estreitámos tudo só a uma casta, também fizemos apostas num número pequeno de variedades. No Douro, de um estudo preliminar de José António Rosas e João Nicolau de Almeida, tiraram-se conclusões definitivas: Touriga Nacional, Touriga Franca, Tinta Roriz, Tinta Barroca e Tinto Cão. Mas as vinhas velhas fizeram de almofada, e seguraram boas quantidades de um grande número de castas. Algumas que tiveram sempre apostas para as cinco seguintes, como a Tinta Amarela (Trincadeira), Sousão, Alicante Bouschet, Tinta da Barca, Tinta Francisca e muitas outras. Mas também outras que, permanecendo nas vinhas, estão hoje disponíveis para vinhos de estilos mais leves e onde a cor é menos premente. Rufete, Cornifesto, Malvasia Preta, Bastardo.

De umas e outras provámos na Manja#Marvila, para nos maravilharmos perante um mundo novo de castas que nos dão vinhos deslumbrantes para desfrutar à mesa. Os nomes espanhóis por vezes contrastam com os nossos, mas a sinonímia sempre será fonte de conversa: Bastardo-Negro Sauri-Merenzao; Rabigato-Puesta en Cruz; Cornifesto-Gajo Arroba. Adivinho que a Tinta da Barca vai explodir em breve como uma grande casta, primeiro do Douro e depois nacional. A seguir, quem sabe? Do que provei, Malvasia Preta e Cornifesto. São grandes dias para os amantes de vinho.

(Artigo publicado na edição de Fevereiro de 2023)

 

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