Um país sem regras, um mundo diferente…

No tempo em que se fazia vinho sem o escrutínio da burocracia, a José Maria da Fonseca identificava a proveniência ou outras características dos seus Garrafeira com uma ou duas letras. Hoje, descobrir o significado destas siglas é um desafio aliciante. E ainda há algumas sem explicação…   AS regiões demarcadas, todos sabemos ou imaginamos, […]

No tempo em que se fazia vinho sem o escrutínio da burocracia, a José Maria da Fonseca identificava a proveniência ou outras características dos seus Garrafeira com uma ou duas letras. Hoje, descobrir o significado destas siglas é um desafio aliciante. E ainda há algumas sem explicação…

 

AS regiões demarcadas, todos sabemos ou imaginamos, têm de se reger por regras. Isto é válido para todas as regiões e mesmo na primeira, na que o Marquês de Pombal mandou demarcar, estava claramente estabelecido o que se podia e onde se podia produzir vinho com direito à Denominação de Origem. Imaginamos que, se assim não fosse, a rebaldaria estaria instalada e a noção de região demarcada deixava de ter sentido.

Depois desta demarcação de 1756 houve um hiato enorme, que durou até 1908, e foi a partir daí e nos anos subsequentes que se demarcaram em Portugal algumas regiões como o Dão, Madeira e Vinhos Verdes e as minúsculas regiões de Bucelas, Carcavelos e Colares. O tal hiato instalou-se de novo e até aos finais dos anos 70 ninguém mais ouviu falar em regiões demarcadas.

Assim sendo, e porque ninguém estava a infringir a lei, cada produtor ou empresa podia editar o seu vinho (seu ou comprado) sem ter sequer de dizer de onde ele era originário. Refiro aqui o “vinho comprado” porque muitas empresas eram sobretudo armazenistas, ou ajuntadores, se lhes quiserem chamar assim, porque vendiam vinho que compravam já feito ou a produtores individuais ou a adegas cooperativas.

Não esqueçamos que o movimento cooperativo arrancou em força nos anos 50 do século passado e isso mudou, e muito, o vinho português. Pode mesmo falar-se de um “antes” e um “depois” da criação das adegas. A principal razão é o tegão único onde cada viticultor passou a despejar as suas uvas – por muita originalidade que pudessem ter, tal deixava de ser tido em conta; depois, o próprio conceito de produção de uva mudou, estando agora todos mais interessados na quantidade e no grau e menos na qualidade ou originalidade. Foi assim, é história, e felizmente muito mudou desde então.

Todas as empresas (Caves) da Bairrada se inseriam neste grupo de compradores de vinho, abastecendo-se quase sempre na própria região e no Dão. A falta de regras permitia também que se misturassem vinhos do Dão com outros da Bairrada e, não juro que com todos mas com alguns sim, os Garrafeira eram muitas vezes vinhos que resultavam do lote das duas regiões.

Sem regras a servirem de empecilho, sem burocratas a embirrarem com o tamanho da letra dos rótulos e sem câmaras de prova lhes reprovassem os vinhos “por falta de tipicidade”, várias empresas foram editando vinhos que ficaram famosos e que ninguém sabia de onde vinham. É o caso dos famosíssimos Garrafeira da empresa C.R. & F. e os enigmáticos vinhos da casa José Maria da Fonseca, apenas identificados com uma sigla, cuja descodificação não era revelada.

O que começou como uma brincadeira, uma ideia original de António Soares Franco que em 1945 lançou o primeiro vinho com a letra P, tornou-se num enigma digno de livro policial. Foi a amizade com Álvaro Santos Lima, dono da Quinta da Passarela, a causadora de tudo. Em 45, Soares Franco comprou um tonel de vinho na quinta do Dão e depois do estágio considerado necessário, resolveu engarrafá-lo. Para não revelar a origem chamou-lhe apenas P. Seguiram-se muitas outras colheitas deste vinho (sempre estagiado no mesmo tonel) e a ideia de fazer vinhos que identificassem o local, o enólogo, a região ou a quinta e o modo de fabrico levou a que fossem então criadas inúmeras siglas.

Estávamos na época (dourada, dirão alguns) em que estas coisas se podiam fazer sem dar cavaco a quem quer
que fosse. Só a imaginação (nuns casos), o bom gosto (noutros) e a ousadia comandavam as decisões que se tornaram tão difíceis mais tarde quando se começaram a recusar rótulos porque Touriga Nacional estava escrito sem hífen e outras coisas importantíssimas, tão importantes que até me emocionam, só de pensar nelas.

Voltando aos nossos Garrafeira, aqui incluímos a lista possível que nos foi disponibilizada pela empresa de Azeitão, a quem agradecemos. Mas, para que o assunto não perca de todo o carácter encriptado, ficam aqui duas sugestões para os leitores: identificar as siglas que na empresa não há maneira de serem descodificadas porque não há ninguém que o saiba; e, em segundo lugar, acrescentar alguma que conheçam (melhor ainda se houver foto do rótulo) porque em Azeitão não se tem a certeza de que esta lista esteja completa. Creio que até na Casa José Maria da Fonseca iriam apreciar o contributo. Cá estaremos para dar conta da contribuição que quiserem dar. Aqui ficam então as siglas e respectivas descodificações. As que vão em branco, quem sabe, talvez o Dan Brown nos ajude…

Garrafeiras de José Maria da Fonseca (e outros que não eram Garrafeira)
TE – Tinto Especial, (Qta Camarate)
RA – Região Algeruz (Castelão areias)
CO – Clara de Ovo (Castelão calcários)
EV – Eng. Vieira (Azeitão)
AP – Alentejo Portalegre
AE – Alentejo Estremoz (Júlio Bastos, pai)
PN – Dão Penalva
DT – Dão Tondela
DS – Dão Silgueiros
CB – Cova da Beira (Fundão)
AC – Aveiras de Cima
VB – Bairrada (Vilarinho do Bairro)
DA – Dão Albuquerque (Ínsua)
MC – Maceração Carbónica (Azeitão)
CS – Bairrada (Souselas)
PT – ?
C – ?
Alguns brancos de experiências:
R – Riesling (Qta. Camarate)
S – Semillon, Sauvignon (Qta. Camarate)
ED – Eng. Domingos (Roupeiro, Azeitão)
V – ?

Muito vinho e alguma poeira

É uma história antiga que envolve bicicletas, enxadas e muita arte. De cavar mas também de beber. Algures no Portugal profundo, quando ainda se via o céu estrelado e onde apenas os latidos dos cães perturbavam o silêncio absoluto.   O Armindo era meu amigo. Morava perto de mim, tinha mais ou menos a minha […]

É uma história antiga que envolve bicicletas, enxadas e muita
arte. De cavar mas também de beber. Algures no Portugal
profundo, quando ainda se via o céu estrelado e onde apenas
os latidos dos cães perturbavam o silêncio absoluto.

 

O Armindo era meu amigo. Morava perto de mim, tinha mais ou menos a minha idade, brincávamos juntos durante o Verão. Havia um mundo enorme que nos separava: ele vivia todo o ano no campo, eu apenas lá ia durante as férias; eu vivia numa cidade onde havia electricidade e transportes públicos, ele vivia numa aldeia sem luz, sem água canalizada, sem estradas alcatroadas.

Tinha sobre mim uma enorme vantagem: sempre que havia a lua nova, Armindo podia desfrutar da imensidão estrelada do universo, uma vez que no raio de muitos quilómetros não havia lugarejo com luz eléctrica; já eu, com sorte, só podia ficar a gozar esse espectáculo alguns dias por ano, nos dois meses de férias que passava no campo. Apesar desse enorme abismo, ele era um artista com a fisga, com o pião e não levava desaforo para casa; o que fosse para resolver era na rua, ao soco e pontapé. Nada disso impedia que jogássemos à bola, fossemos colocar armadilhas para apanhar os pássaros e fumássemos barbas de milho em cachimbos de cana feitos por nós.

O pai, trabalhador rural, também era um artista, com a enxada e com o garrafão de vinho. Sem máquinas de que tipo fosse para ajudar no trabalho da terra, era à custa de enxada que se preparavam os terrenos nas hortas, trabalho esse sempre acompanhado de um garrafão de três litros. De manhã, quando ia a casa do empregador buscar as alfaias, o pai do Armindo recebia o garrafão que o acompanhava durante o dia. É verdade que o garrafão ia “baptizado” com alguma água, tornando o vinho menos alcoólico e permitindo que o trabalho agrícola fosse feito apesar dos três litros. Era no regresso que a coisa se complicava. Ao chegar a casa para entregar as alfaias e o garrafão vazio, o pai do Armindo era ainda presenteado com uns três copos de vinho (presumivelmente igual ao que tinha consumido durante o dia) e fechavam-se as contas.

Não havia metro de estrada onde o pai do Armindo não tivesse ainda aterrado, esfregando a cara na terra

A seguir montava-se na sua bicicleta e ia à sede da freguesia, onde havia uma tasca “à séria”, ou seja, com vinho de barril não baptizado, logo, bem alcoólico. Era ali que o caldo se começava a entornar. Depois de “varrer” um número não contabilizado de copos de 3, lá vinha ele direito a casa. Por sorte, o caminho desde a tasca até sua casa, cerca de 1 km, era sempre a descer e por isso o esforço era mínimo. Já para se aguentar em cima do veículo numa estrada poeirenta e cheia de buracos, era um sarilho. Por isso se comentava no lugar, e com alguma razão, que não havia metro de estrada onde o pai do Armindo não tivesse ainda aterrado, esfregando a cara na terra. Lá se levantava, aos tombos e conseguia chegar a casa. O Armindo, coitado, por vezes ainda apanhava sem saber porquê, tudo consequência da bebedeira diária do pai.

Este cenário, muito vulgar no país rural que fomos durante séculos e que, ao que nos contam, ainda se presencia no Douro profundo, tinha imensos protagonistas: o pai do Armindo não era artista a solo, no lugar onde morava contavam-se histórias de outros trabalhadores que, alcoólicos como ele, acabaram os seus dias com cirroses, provavelmente a razão de morte mais habitual naquelas paragens. Por aqui vinho de qualidade era um conceito desconhecido, o melhor vinho era o do copo cheio e, a haver, a qualidade media-se pelo grau: quanto mais alcoólico melhor.

Quando, no caminho, nos cruzávamos com o pai do Armindo, tínhamos de saltar para a berma porque não sabíamos se era aquele “o metro” de estrada que tencionava abordar naquele dia. Ele, com ar lívido e fixo, nem dava pelos transeuntes, tal o nível de alcoolémia. Tinha mais sorte nos dias de lua cheia porque o caminho ficava um pouco mais iluminado. No dia seguinte voltava a ir trabalhar e a mostrar que, com vinho baptizado, era um artista a trabalhar a terra. Dava gosto ver, ao final do dia, como a horta estava preparada para receber as sementes. Uma pintura. E, muitas vezes nas nossas incursões matinais para pormos as armadilhas dos galegos, flosas, pintassilgos e outros passarinhos, ao passar numa horta, se notávamos a perfeição do trabalho feito logo víamos que tinha sido o pai do Armindo.

Castas? Leveduras? Malolácticas? Qual quê, naquele tempo o vinho bebia-se e pronto. Muito, demasiado, sem critério nem conversa. O mundo acabava ali e para se saber o que se passava noutras paragens tinha de se usar um rádio de pilhas, a única modernice autorizada, já que, até para saber a que horas se acabava o trabalho, era o sino da igreja que ao longe indicava o tempo. E à noite, à espera que viesse o sono, íamos para a varanda ver as estrelas. A essa hora o pai do Armindo ressonava (a casa era perto e ouvia-se) e, além dos latidos de alguns cães ao longe, o sono do artista era o único som que se ouvia. Férias de Verão, estórias do vinho de antanho.

O Pineau e os especialistas

Neste assunto dos vinhos é sempre bom ter alguma contenção nas opiniões para que as asneiras não sejam gritantes. Mas… não é essa também a beleza do vinho, a capacidade que tem de nos reduzir à nossa insignificância?   EU até podia ir à procura da data certa em que tudo isto aconteceu, mas em […]

Neste assunto dos vinhos é sempre bom ter alguma contenção nas opiniões para que as asneiras não sejam gritantes. Mas… não é essa também a beleza do vinho, a capacidade que tem de nos reduzir à nossa insignificância?

 

EU até podia ir à procura da data certa em que tudo isto aconteceu, mas em boa verdade dava tanto trabalho que acho que não valia a pena o esfor­ço. E também, como se verá, a história é mais ou menos intemporal e por isso não exige o rigor histórico e jornalístico que seria requisito obrigatório noutras circuns­tâncias. Tudo se passou em Bruxelas, algures em meados dos anos 90. Estava eu em pleno Concurso de Vinhos de Bruxelas, então como representante (quase único) da pá­tria no painel de jurados.

As indicações que se dão aos provadores são mínimas, apenas a data da colheita de cada amostra. De resto… o deserto, tanto podem ser vinhos da Tailândia, da Índia, da China ou do México ou, claro, portugueses. Aconte­ceu que numa dessas sessões de prova surgiram amostras que traziam inequivocamente a “marca na testa”, ou seja, eram vinhos do Porto. A dúvida seria se se trataria de Porto do tipo Colheita ou, eventualmente, tawnies com indicação de idade. A qualidade era um bocado desigual, com alguns vinhos algo magros e sem grande estrutura mas outros bons.

De entre eles destacava-se um que mostrava imensa clas­se, enriquecido pelos anos de casco e pela idade vetusta que já tinha, tudo a dizer-nos quer era vinho merecedor de todos os encómios. Puxando um pouco pelos galões de representante do país que tal vinho produziu, aprovei­tei para explicar melhor ao painel (5 pessoas) o que era um Porto Colheita, o engarrafamento da mesma colheita ao longo do tempo, as virtudes que tinham os vinhos en­velhecidos em Gaia. Aproveitei para esclarecer as dúvidas de alguns e dar as primeiras luzes àqueles que nunca ti­nham provado.

Tudo correu bem até ao momento em que, no final da sessão, se descodificaram os vinhos: não eram vinhos do Porto o que tínhamos estado a beber! Fiquei para morrer e se tivesse ali um buraco à mão nunca mais ninguém me veria. Mas como é que era possível? Que vinho poderia ser tão confundido com um Porto velho? Quem o fazia e onde era produzido tal vinho? As perguntas eram muitas e a resposta (descodificação) não me tranquilizou, uma vez que eu próprio não conhecia nem o tipo de vinho nem a região de origem. Tratava-se de um Pineau de Charentes.

Pensei logo (mas aí já de boca fechada, que para asnei­rada já tinha a minha dose…), indicaram mal Pinot, que não é assim que se escreve! Felizmente a boca fechada ajudou-me desta vez. Pineau de Charentes é um vinho do tipo licoroso (melhor dizendo, abafado) que se faz na região de Cognac, juntando-se 3 quartas partes de mos­to fresco (de castas variadas mas frequentemente de Ca­bernet Sauvignon, Cabernet Franc ou Merlot) com uma parte de Cognac. A partir daí é o tempo em casco que o pode transformar em algo verdadeiramente interessante. Cabisbaixo e a achar que seria melhor dedicar-me à jardi­nagem em vez de andar nisto dos vinhos, tive de engolir em seco para não responder aos comentários jocosos dos membros do meu painel, do tipo: “Com que então Vinho do Porto, hã?” Pois era, tinha sido mau de mais. Pelo sim, pelo não, tomei nota do nome do produtor e da marca do vinho (papel que entretanto perdi). A parte divertida viria no dia seguinte.

Onde entra o Canadá e uma personagem do Porto
No dia seguinte decorria em Bruxelas uma pequena feira de vinhos. Nada de espaventoso, nada de grande confu­são, uma feira de bom tamanho e medida. Sem programa para a tarde (as provas são apenas de manhã), lá fui à feira, sobretudo para ocupar o tempo. Stand após stand, quase sempre a ver nomes desconhecidos e a concluir que o que sabemos e conhecemos de vinho é tão, mas tão diminuto, que nos devemos remeter à nossa pequenez.

Eis senão quando deparo com um stand do produtor do Pineau de Charentes que me tinha levado à certa. Eu entretanto já me tinha informado e ficado a saber que aquela bebida é relativamente mal considerada em França porque os produtos no mercado são pouco inte­ressantes e de qualidade baixinha, baixinha. As excep­ções são muito poucas e o tal que me tinha atrapalhado era precisamente o mais reconhecido e venerado pro­dutor daquela bebida. Ali estava eu em frente a ele e re­solvi não esconder nada; contei-lhe exactamente o que se passou e fui muito efusivo nos parabéns que lhe dei pelo fantástico produto que tinha. Ele também não se ficou e disse-me: “Confundiu isto com Vinho do Porto? Deixe lá, já não é a primeira vez; há algum tempo fez-se uma prova de vinhos do Porto no Canadá e lá no meio puseram o meu vinho. Ficou em quarto lugar. E eram várias dezenas!” Suspirei de alívio, sentindo que o chão me voltava a surgir debaixo dos pés.

A ida à feira tinha valido a pena, tinha recuperado algu­ma auto-estima e afinal não era só a mim que o vinho confundira. Mais tarde, no Porto, ao contar esta história a Dirk Niepoort fiquei a saber que o seu pai, Rolf, era um grande apreciador de Pineau, exactamente porque tinha algumas similitudes com o Vinho do Porto. A tranquili­dade voltou. Para ficar. Mas aprendi a lição, ou melhor, várias lições: em primeiro lugar percebi que errar num palpite destes é a coisa mais normal que pode acon­tecer e não é por se errar que se é menos capaz; em segundo lugar, também fiquei a saber que não dar pal­pite nenhum com medo de errar é um sinal evidente de fraqueza que não se justifica.

Isto é sobretudo um exercício de base de dados mental. Nessa base armazenamos dados e quando surge infor­mação nova que não tem ainda referências na tal base, acontece isto. O Pineau não constava e foi por isso que me tramou. Fica-me o contentamento de ter dado in­formação detalhada sobre Porto Colheita aos membros do meu painel nesse dia. E qual foi o vinho que me tra­mou? Não recordo com exactidão, mas arrisco: Château de Beaulon Collection Privée 20 Ans. Custará cerca de €65 em garrafeiras. Ideias feitas? Especialistas? Narizes dourados? Está bem, abelha…

Recados de Dublin

Escrevo esta crónica a partir da Irlanda. Começada no quarto de hotel, continuada numa esplanada e terminada já no aeroporto. Viajar é conhecer. E fiquei a conhecer melhor o mercado de vinhos irlandês, onde Portugal é quase um ilustre desconhecido. SOL zul como há anos não se via, diz quem cá vive vai para cinco […]

Escrevo esta crónica a partir da Irlanda. Começada no quarto de hotel, continuada numa esplanada e terminada já no aeroporto. Viajar é conhecer. E fiquei a conhecer melhor o mercado de vinhos irlandês, onde Portugal é quase um ilustre desconhecido.

SOL zul como há anos não se via, diz quem cá vive vai para cinco anos, ambiente primaveril, grande agitação na economia e finanças com empresas gigantes a mudarem-se de Inglaterra para Dublin por força do Brexit e uma pressão imobiliária enorme porque… não há casas que cheguem, o arrendamento urbano atinge preços incomportáveis e quem para cá vem trabalhar tem de se contentar com alojamento bem longe do centro (e é de carregar “longe” nisso). Mas nas ruas, e ao fim da tarde, vê-se o que sempre se viu, que isto de mudar de hábitos está cada vez mais difícil: bares cheios e passeios circundantes com gente a conviver com copos de cerveja na mão, falando alto e celebrando a vida.
Vinho? Não aqui, que os irlandeses são muito mais bebedores de cerveja, embora o consumo de vinho, para um país de apenas 4,7 milhões de habitantes, já seja muito significativo. Em 1990 foram vendidas 1,7 milhões de caixas de vinho (a medida internacional mais corrente é a caixa de 12 garrafas) e esse volume subiu para 8,5 milhões em 2007, mantendo-se desde então bastante estável. Apesar dos números animadores, 50% do consumo de álcool é ainda reservado para a cerveja e apenas 28% para o vinho. Para um jantar mais requintado e na restauração, os irlandeses tendem a consumir cada vez mais vinho. E o quê? Sem surpresa ficámos a saber que o Chile é responsável por 28% desse consumo, seguido pela Austrália (18%); num segundo nível estão França, Espanha e Itália. No “terceiro anel” vêm EUA, Af. Sul, Nova Zelândia, Argentina e Alemanha. Perdido no “resto do mundo”, Portugal é assim um parceiro sem relevo nem importância. Não faz sentido.

Fazer muito com pouco
Diz-se que é a nossa grande virtude e provavelmente será bem empregue também aqui na Irlanda. O destino não é prioritário e, por via disso, as campanhas de promoção do vinho português são inexistentes. Disso se queixaram os importadores que estiveram presentes na prova de vinhos portugueses que teve lugar no hotel mais bonito e charmoso da cidade – The Shelbourne Hotel – e que foi promovida e organizada pela embaixada portuguesa.
Foi-me colocado o desafio de ir ali falar e comentar uma selecção feita por mim de vinhos já disponíveis no mercado local, partindo das listas de existências que me foram fornecidas. Já se sabe que estas iniciativas têm preparação demorada, aqui com a embaixada e o seu staff a fazerem o papel de agência de comunicação, recolhendo informação sobre todos os importadores locais e identificando os convidados que seria interessante estarem presentes, desde sommeliers a wine writers, além dos próprios importadores.

A prova correu muito bem e o entusiasmo no final era evidente, com comentários do tipo “verdadeiramente surpreendia fiquei sobretudo com os brancos em prova, nunca pensei que Portugal tivesse esta delicadeza e finura em vinhos brancos”, ou outros que me comentaram o quanto melhor tinham ficado a perceber os nossos vinhos por terem sido explicados e contextualizados, nos climas,nos solos, com castas com nomes por vezes impronunciáveis mas que ajudam a perceber a originalidade dos nossos produtos.

A promoção é que está a falhar, redondamente. A Irlanda não é um mercado prioritário e, assim, em vez de se fazer alguma coisa, não se faz nada. Tal situação tem paralelo noutros mercados europeus onde a presença regular faria mais falta. Aqui, na ausência de uma agência que promova os nossos vinhos, têm sido alguns importadores que assumem esse papel. Ao que me dizem, apenas o Alentejo promove a Alentejo Wine Week. Já se sabe que neste tema, como noutros, estamos sempre com a pescadinha de rabo na boca: não se promove porque o negócio é pequeno e ele é pequeno porque ninguém se mexe. Existem fórmulas mais caras, mas há acções de baixo custo que podem e devem ser feitas com uma periodicidade anual.

Atenção aos mercados europeus
No fundo, e especialmente na Irlanda, não há uma tradição de consumo de vinho português que venha das gerações anteriores; dessas os irlandeses apenas herdaram a ideia do Port como vinho de sobremesa. Ora isto é uma vantagem, já que não há nem vencedores instalados, nem regiões que dominem, há campo aberto para que possam brilhar os menos conhecidos e badalados.

A Irlanda, apesar de país pequeno em número de habitantes, já é o 20º maior importador mundial de vinho e isso também nos deixa elementos de reflexão: com alguma promoção, ainda que não vá além de uma prova anual, podem criar-se condições para uma maior expansão do negócio. As embaixadas apenas dispõem de orçamento para as despesas correntes e não têm capacidade financeira para serem promotores. Fica assim a ideia que é de dentro que temos de criar programas que depois as embaixadas possam apoiar.

Os mercados europeus, que são nossos parceiros há décadas, não devem, penso eu, ser remetidos a 3º plano por troca com novos mercados que, aparentemente, são promissores, mas que depois se revelam verdadeiras “apostas no cavalo errado”. Sabemos que Londres continua a ser o centro da nossa presença no palco europeu dos vinhos mas será que só Londres vale a pena? Tenho imensas dúvidas e uma visita a garrafeiras em Londres ou grandes cadeias de supermercado também nos confirma que “falam, falam” mas depois a presença, até visual, nas prateleiras é bem menor do que se diz. Cabe naturalmente aos produtores a articulação com as agências de promoção e, claro, à Viniportugal, cujo orçamento tem origem na produção e na certificação de vinhos.

Consultório de porta aberta?

Aqui consulta-se. Ajudam-se doentes e dão-se placebos a quem não precisa de ser tratado. Mas quando a doença é grave não há outro remédio que não seja atacar o mal pela raiz. Estamos a falar de gripes? Não. Estamos a falar de enologia… JÁ muito se falou sobre enólogos e sobre as consultorias que eles […]

Aqui consulta-se. Ajudam-se doentes e dão-se placebos a quem não precisa de ser tratado. Mas quando a doença é grave não há outro remédio que não seja atacar o mal pela raiz. Estamos a falar de gripes? Não. Estamos a falar de enologia…

muito se falou sobre enólogos e sobre as consultorias que eles dão a vários produtores. Desde que nos anos 80 do século passado se vulgarizou a figura do flying winemaker, personificada na imagem de Michel Rolland, que não mais parou de se falar na valia (ou não) de ter enólogos vindos de fora (no fundo é sempre isso que um consultor é) para orientar o vinho deste e aquele produtor. A dicotomia (a existir) seria entre produtor e enólogo e a questão colocar-se-ia assim: será que o produtor precisa do enólogo ou se, para melhor afirmar a originalidade do seu vinho, deve ser ele a fazer o vinho como entende? É por aqui que o tema se espalha.

Confesso que perdi a conta aos textos e artigos que já li, ou passei os olhos, sobre este assunto. Já escrevi crónicas sobre este tema mas é verdade que a matéria não está esgotada e por isso volto a ela. O motivo deste regresso foi uma entrevista que li há poucos meses em que um importador americano de vinhos franceses debitava um discurso hipercrítico sobre os enólogos. As razões dele? Porque os enólogos se limitam a usar uma fórmula que é sempre válida independentemente de todas as variantes de solo, clima e casta e por isso os vinhos tendem a ficar todos parecidos, quando não iguais. Esta posição é difícil de contestar. No lado oposto teríamos então o produtor, qual depositário de um saber antigo, a fazer o seu vinho cheio de personalidade e autenticidade. Parece-me que muito dificilmente se podem equacionar as questões de forma tão simplista, sobretudo em Portugal. Chamo aqui o país à colação porque eu aceito que um lavrador que descende de várias gerações de produtores de vinho, assuma que quer fazer como faziam os seus antepassados, com vinhos que provaram ser originais e de grande valia. Nesses casos, o que faria lá o tal enólogo consultor? Temo que nada! Mas tal fenómeno de produção que atravessa gerações na mesma família praticamente não existe em Portugal, com a excepção da região do Douro e, mesmo aí, a tradição será a de produção de uvas e não de vinho ou, pelo menos, de vinho não generoso. Vejamos agora o exemplo do sul do país. Em tempos terra de trigo e montado, o Alentejo virou zona de intensa produção de vinho. Muitos dos que cá chegaram vieram de outros ramos de actividade e investiram na terra. Mas depois coloca-se a questão: sem tradição de castas sem um saber acumulado ou recém-adquirido, o que restava ao novo investidor que não fosse a contratação de um enólogo competente?
Quer então dizer que, a situações diferentes, poderá corresponder uma posição distinta quanto ao uso de enólogos consultores. Curiosamente, nestes artigos críticos falam-se de temas específicos da enologia que, também eles, não podem ser colocados todos no mesmo saco. Reparemos em alguns deles: o uso das leveduras indígenas é uma das bandeiras dos defensores do terroir, das suas virtudes e dos vinhos autênticos. Muito bem, pode ser giro mas também pode não ser realista. As leveduras indígenas são as que existem na região, não são da casta A ou B. Faz sentido que se usem as da região mas elas (as ditas leveduras) podem ser muito preguiçosas e a fermentação espontânea sem adição de leveduras não só pode demorar muito a arrancar (com os riscos que se correm de desenvolvimento de acidez volátil) como, uma vez iniciada, pode estender-se por vários meses, ao fim dos quais o vinho, finalmente, está feito. Dizia-me um pequeno produtor do Alentejo, com vinhas velhas na serra de São Mamede, que o seu vinho tinha demorado um ano a fermentar em barrica usada. Aqui está, é giro para um pequeno produtor que tem meia dúzia de barricas (que não é por ser pequeno que corre menos riscos técnicos…), mas é impraticável para um grande produtor ou uma adega cooperativa que tem tractores à porta à espera de vez para entregar as uvas. E tal espera não se coaduna com cubas cheias de mosto que não há maneira de arrancar a fermentar porque, ah e tal, as leveduras são indígenas. Temos assim duas posições não conciliáveis: com o pequeno produtor é tudo possível e aceitável, com uma produção gigante há práticas que são indesejáveis. E só o pequeno produtor é que origina vinhos autênticos e cheios de personalidade? Duvido muito e, se estivermos a falar de Bordéus, seguramente é mentira. Um técnico competente é assim uma “ferramenta” indispensável para o produtor, sobretudo se tem uma produção em volume. Não podemos andar a dizer que o produtor não tem dimensão para estar em mercados e exportar e depois criticar porque deita mão de soluções práticas que a ciência enológica põe à sua disposição.

As leveduras são um fermento e o mosto precisa delas para transformar o açúcar em álcool. Mas não tenhamos dúvidas: há leveduras e leveduras e actualmente a indústria de produtos enológicos tem para todos os gostos. Existem com todas as componentes que podem depois condicionar o vinho final e o seu perfil ou, também, as mais simples que pouco mais são do que fermento de padeiro. Deixemo-nos por isso de acreditar que por serem indígenas são boas, tal como já não vamos na conversa que as vinhas são boas por serem velhas. E não é por entregar a condução técnica do vinho a um enólogo que o produtor perde a sua personalidade.

Um bom consultor conhece os métodos certos para se produzir bem mas não tem uma varinha mágica para transformar um vinho apenas bom num vinho excepcional e original. Isso é algo que não se consegue por querer. É um dom da Natureza. É nesses casos que o produtor se deve limitar a não estragar o que a Natureza dá e, nesses e só nesses, é que é provável que o enólogo seja dispensável. Ainda assim, há enólogos minimalistas e existem outros muito interventivos. Todos gostamos de vinhos bons e originais e eles (os vinhos) não escolhem quem os faz. É no resultado que colocamos as nossas expectativas.