O que nós passámos para aqui chegar

A História faz-se de avanços e recuos. A do vinho também e é por isso que não é bom perder a visão de conjunto, ficarmos nos pormenores e deitar fora o essencial. E custou muito chegar até aqui. João Paulo Martins Estamos numa época em que muito se fala dos méritos que tinham os vinhos […]

A História faz-se de avanços e recuos. A do vinho também e é por isso que não é bom perder a visão de conjunto, ficarmos nos pormenores e deitar fora o essencial. E custou muito chegar até aqui.

João Paulo Martins

Estamos numa época em que muito se fala dos méritos que tinham os vinhos de antigamente, dos métodos perfeitos que então se usavam, das virtudes que derivavam da simplicidade dos processos, do perfeito equilíbrio entre o homem e a Natureza. Se seguirmos esta perspectiva, o que se pede então ao produtor de hoje é que seja capaz de fazer como dantes: sem tecnologia, sem ciência, sem equipamentos e, já agora, sem enólogos que não passam de uns empatas que só querem usar químicos.
A história do vinho sempre acompanhou os avanços que a ciência – seja a física, a química ou a microbiologia – trouxeram para o aperfeiçoamento da técnica de produção. Digo técnica de produção porque o vinho não se faz por si, não aparece feito na Natureza, tal como o pão não nasce numa planta. São precisas uvas para fazer vinho e é preciso saber o que fazer com elas. Com o pão passa-se o mesmo: é preciso cereal mas há que saber o que fazer com ele e, imagina-se, há muitas maneiras de chegar ao produto final. Tal e qual como no vinho.
Quando se ouve alguém falar no vinho de outrora, do antigamente e dos velhinhos que, esses sim, é que sabiam o que faziam, fica-se com a sensação que por vezes não se sabe do que se fala. Com a evolução vertiginosa que o mundo teve (em todos os domínios) nos últimos 60 anos, para falar do “antigamente” não é preciso ir muito longe, poderá bastar (e provavelmente sobra…) ir até aos anos 50 do século passado. Pois então repare-se: na época apenas se fazia vinho a lagar e o mosto fermentava posteriormente em tonéis de madeira de grandes dimensões. Simples, não é? Não se usavam leveduras, não se fazia o controle de quase nada, não havia malolácticas, nem estágios nem filtrações. Fazia-se o vinho com o que chegava à adega, quando as uvas sobrevivam às quantidades enormes de químicos que os lavradores usavam. Já ninguém se lembra do DDT e do 605 Forte e dos anúncios que davam na televisão do Senhor Prudêncio? Ninguém ouviu falar dos tempos em que eram às carradas o ácido tartárico que se usava nos vinhos para lhes conferir acidez e assegurar a longevidade? Já todos esquecemos que, se estivermos a falar dos Bordéus dos anos 50 só há um ano considerado muito bom, o 1953? Porquê? Pela simples razão que os outros, apesar de virem de casas famosas, avariaram, estragaram-se, evoluíram mal. Achamos isso normal, mas é bom tentar saber porquê. Nos anos 70 não há quase Bordéus que sejam dignos de nota e Borgonhas também não? Porque será? É bom saber que a responsável pela melhoria generalizada dos vinhos foi a ciência, nas suas múltiplas disciplinas e que os produtores beneficiaram de coisas tão estupidamente simples como seja…haver mais higiene nas adegas, deixar de usar cestos de verga para transportar uvas, eliminar na quase totalidade os tonéis velhos que, à falta de manutenção, mais não são que viveiros de bactérias.

Afinal, o que ganhámos com a técnica?

Fazer vinho hoje é aplicar uma quantidade enorme de conhecimentos e melhoramentos que foram sendo adquiridos ao longo das últimas décadas. Algumas dessas melhorias apenas decorrem do bom-senso – como seja a escolha das uvas à entrada da adega ou a lavagem das instalações para impedir a propagação das bactérias acéticas. Outras são a consequência de muito estudo, ensaio, erro e progresso. E esses avanços foram, nas últimas décadas, responsáveis pela melhoria generalizada dos vinhos no nosso país e no resto do mundo. É difícil dizer onde tudo começou mas a verdade é que o melhor conhecimento da uva e da vinha, da condução e da poda, da gestão da canópia, do equilíbrio entre produção por cepa e qualidade final do vinho, tudo isso contribuiu para que hoje as uvas cheguem à adega mais sãs e mais capazes de dar bom vinho. Fez-se tudo bem? Nem por isso. Os erros que se fizeram com porta-enxertos errados, com selecção clonal desajustada e condução incorrecta da vinha serviram também para se melhorar hoje os disparates cometidos nos anos 80 em Portugal (nomeadamente no Douro) e em França, no caso da selecção clonal.
Do início dos anos 60 até hoje aprendemos quase tudo o que nos permite evitar que se volte a ter uma década negra como tiveram os franceses nos anos 50 em Saint-Émilion. Vejamos: deixámos gradualmente as madeiras velhas para a fermentação dos mostos, descobrimos o método certo para controlar a temperatura da fermentação, preservando assim os aromas e assegurando o respeito pelo local de onde vieram as uvas; aprendemos quase tudo sobre a fermentação maloláctica, a sua monitorização e acompanhamento; conhecemos muito melhor o universo das leveduras e descobrimos que elas não só não são todas boas meninas, como podem não ser capazes de levara a bom proto a tarefa que delas esperamos; conhecê-las e controlá-las foi um enorme avanço. Hoje sabemos muito mais sobre a microbiologia da uva, dos processos químicos associados à transformação do mosto em vinho, sabemos gerir melhor o pH e a acidez das uvas com a consequente redução do uso do ácido tartárico embora ele continue a ser útil nos climas quentes, tal como o mosto concentrado é necessário nos climas frios. Substituímos muitos tonéis velhos por barricas novas e, quer sobre a fermentação em barrica quer sobre o estágio em madeira, temos hoje conhecimentos muito maiores que nos permitem não voltar a fazer o erro dos anos 80 em que os vinhos eram verdadeiros destilados de carvalho. E sobre a utilização de sulfitos estamos muito mais informados, também para saber que não os usar é um passaporte quase certo para a curtíssima longevidade do vinho.
Do passado mantivemos o que valia a pena: as vinhas velhas, (no caso de serem boas), a pisa (ou mesmo a fermentação) em lagar, as ânforas, os depósitos de cimento (agora com novos formatos) e, se se tiver confiança nelas, as barricas velhas mesmo para fermentar vinhos brancos, como hoje ainda fazem algumas das grandes regiões de brancos do Mundo.
A grande diferença em relação ao passado é que, hoje, o conceito de vinho imbebível praticamente desapareceu e mesmo os vinhos ridiculamente baratos são bebíveis. São vinhos Barbie, como alguém disse? Não sei se são Barbie, mas são os vinhos que a esmagadora maioria da população bebe, a tal população para quem vinhos a €5 são coisas para o Natal, e e…! Ao contrário dos tempos de Fernando Nicolau de Almeida, hoje a Casa Ferreirinha poderia fazer Barca Velha quase todos os anos. Tivesse o criador do mítico vinho acesso a todos os avanços técnicos que hoje temos e conhecemos e seria, com certeza, o primeiro a abraçá-los. Temos escolha porque temos mais sabedoria. Sabemos o que queremos fazer e como. E, por isso, sabemos que se quisermos errar não é por sermos mais espertos que os outros ou por sermos nós que respeitamos a Natureza. Creio que será por outras razões.
Passámos muito para aqui chegar e seria um desperdício deitar tudo a perder.

Edição nº 34, Fevereiro 2020

O frio é uma coisa relativa

O mundo está mais pequeno e as modernas tecnologias aproximam gentes e paragens até ao ponto em que se desconfia que a aventura é um conceito fora de moda. Nada disso! Façamo-nos à estrada e enfrentemos o desafio de procurar o país profundo. Contra tudo e contra todos. Mesmo contra os elementos, por mais adversos […]

O mundo está mais pequeno e as modernas tecnologias aproximam gentes e paragens até ao ponto em que se desconfia que a aventura é um conceito fora de moda. Nada disso! Façamo-nos à estrada e enfrentemos o desafio de procurar o país profundo. Contra tudo e contra todos. Mesmo contra os elementos, por mais adversos que eles teimem em mostrar-se.

Luís Francisco

Há quem continue a achar que o vinho é uma coisa que dá trabalho, sim, mas apenas em algumas ocasiões bem definidas no calendário. Na vindima, claro, quando as uvas se precipitam para a adega e toda a gente anda numa correria, mostos para aqui, mostos para ali, depósitos a encher e a esvaziar, fermentações e decisões enológicas, mão-de-obra intensiva e o nervoso miudinho de ver todos os sonhos e planos de um ano a ganharem forma. Claro, também há aquela coisa da poda, no Inverno, mas isso é o menos. Basta visitar uma adega em outra altura do ano que não na vindima e percebe-se logo o sossego de quem dá o litro (metáfora irresistível) em Setembro e Outubro e depois descansa durante 300 dias…
E, no entanto, não é nada assim. Na vinha ou na adega, há sempre trabalho para fazer. E foi para falar nisso que um dia saímos em reportagem. Escolhemos o destino – no caso, a Quinta do Gradil, região de Lisboa – e lá fomos, decididos a recolher e partilhar informação sobre tudo o que se passa numa exploração vitivinícola nos meses que medeiam entre uma vindima e a outra. É claro que, num acesso de masoquismo ou consciência profissional (prefiro a segunda, mas, como hão-de ver a seguir, há indícios de que o primeiro não esteve totalmente ausente do cenário…), não embarcámos em facilidades. Se era para mostrar trabalho, então que fosse na altura mais improvável, o Inverno.
Escusava era de ser o dia mais frio do ano. A suspeita começou a ganhar forma com os primeiros arrepios da madrugada, a nortada gélida a fatiar sadicamente as résteas de conforto térmico oferecido pela roupa. E foi então que vimos um post no Facebook. De saída para o Alentejo, onde a empresa estava a preparar terrenos para plantar novas vinhas, o viticólogo do Gradil, Bento Rogado, registara a temperatura que se fazia sentir às 6h30 da manhã no sopé da Serra de Montejunto. O termómetro do carro anunciava uns inquietantes -7º centígrados…
Ler esta indicação nas férias, sentados junto à lareira num chalet de montanha até pode ser giro, mas garanto que não tem graça nenhuma quando nos preparamos para andar pelas vinhas, de máquina fotográfica em punho ou de bloco e esferográfica na mão para tomar notas… E, naturalmente, as duas inocentes alminhas que viajam para o Gradil nessa madrugada esqueceram-se de levar luvas. Provavelmente não dariam jeito nenhum quando chegasse a hora de trabalhar, mas, caramba, para algum momento haviam de servir…

Uma cave… quentinha

Chegamos, depois de deixarmos a estrada numa viragem perpendicular que nos aponta à linha amarela dos edifícios para lá do vale coberto de vinhas. O vento vai soprando. Mas, ansiamos, o termómetro há-de ter agora melhores notícias para nós – diz-se que a última hora da noite é a mais negra e a mais fria, mas o Sol já nasceu. Envergonhado, tímido, lá vai espreitando num tom esbranquiçado por entre as nuvens do amanhecer. Os cientistas juram que esta gigantesca fornalha celestial que queima hidrogénio e o transforma em hélio funciona ininterruptamente a uma temperatura que atinge os 5500 graus centígrados, mas esta manhã, desculpem lá, não há ciência que nos salve… Está tanto frio que até a ameaça do aquecimento global soa a música para os nossos enregelados ouvidos.
São 8h30 da manhã e ainda estão dois graus negativos. Daí a duas horas, o termómetro chegará finalmente ao zero. E, pela hora do almoço, a água que tapa o fundo do tanque situado no terreiro central da quinta, junto ao restaurante, continua sólida. Atiramos uma pedrinha, outra. E sempre o som cavo do gelo, austero e definitivo. Valha a verdade, por essa altura o pior já passou: andámos pelas vinhas para saber mais sobre a poda e a orientação das videiras, conversando com gente que maneja a tesoura com mestria (perdoem-me a insistência, mas eles tinham luvas!), visitámos a adega para conversar sobre operações de filtragem e estabilização, perceber trasfegas e limpezas, conhecer os muitos pequenos passos que nos permitem abrir uma garrafa e beber com prazer.
Quando nos convidam para descer à cave das barricas, que fica uns bons metros abaixo do solo, a primeira sensação é de arrepio. Se em dias quentes às vezes é complicado visitar estes sítios de manga curta, como será hoje… O elevador transporta-nos para o subsolo e, de repente, está quentinho! Longa vida às maravilhas do isolamento térmico: aqui a temperatura mantém-se estável à volta dos 15/16ºC, um verdadeiro paraíso tropical quando comparado com a manhã siberiana que nos aguarda lá em cima, no regresso à superfície. O elevador sobe e o bafo da respiração diz-nos que nestes últimos minutos o cenário térmico não mudou.
Felizmente, a reportagem aproxima-se do seu fim e a última parte será feita à mesa, onde vamos conversar com os responsáveis do Gradil. Lá fora, o tanque continua gelado e as vinhas, despidas, parecem encolher-se para resistirem à nortada. Até os passarinhos estão mudos que nem pedras. Uma breve mirada às notas no bloco confirma que a manhã não foi fácil: gatafunhos quase imperceptíveis, palavras cortadas a meio, frases que se perdem em linhas mal amanhadas… não vai ser fácil decifrar isto.
Mas agora temos vinho no copo. As mãos e a alma começam a aquecer. Lá fora, a silhueta da serra ganha luz e cor. De repente, tudo parece bonito e acolhedor. A mente humana tem a espantosa capacidade de obliterar impiedosamente as más memorias. Sim, porque isto do frio é uma coisa muito relativa.

Edição n.º33, Janeiro 2020

Nota do Director: Os dias do coronavírus

luis lopes editorial

A edição de Abril da Grandes Escolhas que no início do próximo mês chegará às bancas foi planeada, escrita, fotografada e produzida semanas antes da pandemia do coronavírus (COVID-19) atingir Portugal com todo o seu impacto. É certamente a última revista “normal” que iremos editar, até ao momento em que, esperemos, uma relativa normalidade seja […]

A edição de Abril da Grandes Escolhas que no início do próximo mês chegará às bancas foi planeada, escrita, fotografada e produzida semanas antes da pandemia do coronavírus (COVID-19) atingir Portugal com todo o seu impacto. É certamente a última revista “normal” que iremos editar, até ao momento em que, esperemos, uma relativa normalidade seja reposta. As medidas, absolutamente necessárias, que foram decretadas pelo Governo, têm profundas implicações na vida pessoal e profissional de todos nós.

A equipa da Grandes Escolhas está, como deve ser, a trabalhar em casa. Mas, mesmo assim, é um trabalho muito condicionado: não é possível visitar produtores, é mais difícil receber e provar vinhos, os enoturismos e restaurantes estão fechados. Os eventos de vinhos e gastronomia (feiras, conferências, acções de formação) cujo sucesso e qualidade muito tem contribuído para solidificar a nossa imagem de marca, estão em suspenso, sem sabermos quando poderão ser realizados.

É hoje impossível prever o futuro com um mínimo de segurança. E mesmo depois da tempestade, quando vier a bonança (que virá, não podemos duvidar), nada será como dantes.

De momento, as palavras de ordem são prevenir e resistir. Prevenir, tomando todos os cuidados e seguindo todas as recomendações da DGS, pela saúde das nossas famílias, dos nossos amigos, dos nossos vizinhos, dos nossos concidadãos. Resistir, para que o trabalho que fazemos desde há mais de três décadas, disponibilizando informação séria e credível aos apreciadores de vinhos de qualidade e organizando eventos vínicos e gastronómicos de referência, possa continuar a ser feito. Estamos aqui e estamos convosco.

Hoje, são os dias do coronavírus. Outros e melhores dias virão, certamente.

Luís Lopes

2020

Luís Lopes

É um número bem redondinho, o do ano que agora se inicia. E como é natural, todos esperam ou desejam que o novo ano seja melhor do que o anterior. Ao nível individual, as previsões não fazem sentido. “Prognósticos, só no final do jogo”, como dizia o outro. Mas sectorialmente, podemos sempre descortinar tendências. No […]

É um número bem redondinho, o do ano que agora se inicia. E como é natural, todos esperam ou desejam que o novo ano seja melhor do que o anterior. Ao nível individual, as previsões não fazem sentido. “Prognósticos, só no final do jogo”, como dizia o outro. Mas sectorialmente, podemos sempre descortinar tendências. No que vinho diz respeito, aqui deixo o meu contributo sobre o que podemos esperar de 2020.

Luís Lopes

Espumantes. As bolhas parecem estar, finalmente, a conquistar o coração e a boca dos portugueses. O mercado pede mais espumante e praticamente todos os produtores procuram incluí-lo no seu portefólio. Muitos esquecem, no entanto, que o espumante é um produto altamente especializado em termos de vinha, cave, equipamento e know-how. E que para se alcançar um patamar elevado, para além desses requisitos, é preciso dar-lhe tempo. E tempo é dinheiro. Porém, para quem quer um bom espumante a um preço muito acessível, o método “cuba fechada” é sempre uma boa solução, e com tendência para crescer.

Diferença. O consumidor de nicho ambiciona ser reconhecido enquanto tal. E para isso, nada como beber diferente. De tal forma o “conhecedor” valoriza a singularidade que, em alguns casos, a qualidade deixa de ser importante. Mas a qualidade e diferença são compatíveis e estão disponíveis no mercado, basta escolher os produtores que não abdicam da primeira para ter a segunda. Para atingir o factor distintivo tão valorizado no consumo de nicho, toda a diferença serve: altitude, atlântico, castas raras, orgânico, vegan, “natural”, talha, branco de curtimenta ou branco de tintas, pet nat. Separar o trigo do joio, é o desafio para o apreciador.

Marcas. O mercado não vive dos nichos. A esmagadora maioria dos consumidores quer beber vinho, não estatuto. Com as prateleiras inundadas de marcas e designativos, o cliente que procura ir além dos exclusivos super promocionados dos hipermercados, tentará defender-se com aquilo que conhece e que, normalmente, não o desaponta. As marcas que fizeram nome assente na consistência qualitativa e na boa comunicação, vão ser cada vez mais um porto seguro no revolto oceano de vinho. E fazer marca, construir marca, será também a forma dos produtores se defenderem e garantirem o futuro.

Aquisições. Para quem produz, o negócio tornou-se muito competitivo e difícil. Para ganhar dinheiro, dentro e fora de portas, é preciso ser-se muito talentoso e muito profissional. E mesmo para aqueles que são tudo isso, frequentemente, falta músculo financeiro. Um número considerável dos agentes do sector do vinho, em Portugal, arruma-se em dois tipos: os amadores, que não vivem de e para o vinho; e os de média dimensão, nem tão pequena que permita viver do mercado de nicho, nem suficientemente grande para alcançar economia de escala e capacidade de investimento. A solução é vender. Há muitos negócios, propriedades e marcas apetecíveis que irão mudar de mãos em 2020.

Sub-regiões. Afinal, elas existem. Depois do grito do Ipiranga dado por Monção e Melgaço, os produtores de outras sub-regiões começam a perceber a mais valia que pode haver na afirmação identitária de uma unidade geográfica mais pequena. E a pouco e pouco, as sub-regiões vão aparecendo nos rótulos e na comunicação empresarial: Lima e Baião, nos Vinhos Verdes, Douro Superior, no Douro, Portalegre e Vidigueira, no Alentejo, Serra da Estrela, no Dão, são algumas das que já iniciaram esse caminho. E a tendência será sempre o reforço dessas identidades regionais.

Sustentabilidade. É absolutamente incontornável. A consciência ambiental generaliza-se junto de produtores e consumidores. Cada vez mais, os primeiros sentem uma genuína necessidade de introduzir práticas e modelos amigos do ambiente, na vinha e na adega. E cada vez mais, os segundos querem saber que essas medidas são implementadas, mesmo que não estejam dispostos a pagar mais por um vinho “eco-friendly”. Todos somos escrutinados nas nossas acções e comportamentos ambientais. Sem fundamentalismos, que nada trazem de positivo para o ambiente e para o mundo, é bom que assim seja.

Edição nº 33, Janeiro 2020

A barragem invisível

O mundo está mais pequeno e as modernas tecnologias aproximam gentes e paragens até ao ponto em que se desconfia que a aventura é um conceito fora de moda. Nada disso! Façamo-nos à estrada e enfrentemos o desafio de procurar o país profundo. Contra tudo e contra todos. Nem que seja para descobrir que as […]

O mundo está mais pequeno e as modernas tecnologias aproximam gentes e paragens até ao ponto em que se desconfia que a aventura é um conceito fora de moda. Nada disso! Façamo-nos à estrada e enfrentemos o desafio de procurar o país profundo. Contra tudo e contra todos. Nem que seja para descobrir que as nossas memórias não estão garantidas para sempre.

Luís Francisco

Estranha miragem esta, no calor alentejano: em vez de nos iludir com a visão turva de água onde ela não está, antes nos oferece um desolador espaço vazio onde outrora o azul do céu se reflectia. Mais um olhar para o ecrã de navegação do carro e, lá está, as máquinas não sofrem ilusões de óptica. Para elas, na sua monolítica competência, tal coisa não existe, e o mesmo vale para as memórias mal calibradas pela erosão do tempo. A imagem de uma mancha azul de um e outro lado da ponte que atravessamos é óbvia e inquestionável. Devíamos estar a ver água. E nada.

Encostamos à berma. Não é uma questão de estarmos perdidos. Acabámos de passar por Avis a caminho de Benavila, o GPS está correcto, as memórias das férias de infância estão vivas, a paisagem em redor só varia na presença agora maciça de olivais super-intensivos, respira-se o mesmo ar quente e quieto do estio, ouve-se o roçagar das cigarras nas árvores e os moscardos zumbem, desorientados. Bate tudo certo, menos a água. Não há água na barragem!

E as memórias voltam à tona. Como fotos desfocadas, meia dúzia de “chips” de dados arquivados sem contexto, mas, ainda assim, indesmentíveis na solidez palpável das impressões que vincaram.  O túnel da barragem de Maranhão, um vórtice hipnótico que parecia puxar-nos lá para dentro, num inquietante canto de sereia geométrico. Porque estava assim exposto? De quem foi a ideia de vir até aqui, a este pontão vertiginoso que assusta e inquieta, para contemplar o olho ciclópico que a tranquilidade das águas devia esconder?

As águas que vão e vêm

Foi há muitos anos, tantos que a explicação paira sem certezas à volta de uma só imagem: um paredão imenso, a espiral do túnel, a ausência da água. As obras da barragem ficaram concluídas em 1957, já estaria, portanto, em funcionamento há uns valentes anos quando, de repente, ficou vazia. Obras. Isso: foi preciso fazer uma reparação na infra-estrutura e isso implicou o esvaziamento da albufeira. Quanta água não terá rugido por aqui na implosão líquida que deixou à vista esta cicatriz arrepiante…

Depois, a chuva voltou a cair, a ribeira de Seda continuou a correr por entre fragas e mato e os vales encheram-se de novo. Os peixes cresceram e multiplicaram-se, os pescadores voltaram a trocar anedotas e comentários de circunstância enquanto tentavam iludir as carpas e os achigãs, as pontes modernas voltaram a fazer sentido e abaixo do paredão os campos continuaram a ser regados. As décadas passaram e a imagem de um gigantesco sorvedouro à vista turvou-se e fez-se miragem. Estava tudo como devia estar.

Até ao dia em que um novo problema nas comportas – este, sim, mais recente e bem documentado na memória – voltou a tirar quase toda a água desta paisagem grandiosa. Reapareceram as velhas estradas serpenteando pelas encostas, as ruínas das casas submersas, a velha ponte de arcos lá em baixo, tão estreita que nem parece real. Um rio corre pelo fundo do vale, como terá acontecido durante milénios antes de os homens bloquearem a passagem uns quilómetros mais abaixo. E, depois, novamente a água a cobrir tudo, a encher-se de vida, uma sucessão de slides de Verão, desses tempos da juventude em que os anos parecem não passar e tudo ainda está por acontecer.

Um Verão que não acaba

A vida leva muitas voltas. Estamos agora parados, a contemplar o imenso vazio do leito de uma barragem ausente. Outubro de 2017 e ainda parece Verão. Está calor, nem uma nuvem no céu. E nem uma gota de água na barragem. Desta vez não é a visão assustadora de um vórtice de betão, nem a curiosidade passageira de uma viagem ao passado que em breve ficará de novo submerso. Nada disso. Desta vez é a consciência absoluta de que algo está profundamente errado.

Não choveu este ano. Talvez também não tenha chovido o que devia nos anos anteriores. Mas como explicar o desaparecimento catastrófico de uma massa de água que, no seu pleno, pode atingir os 205 milhões de metros cúbicos? Esta é a oitava maior barragem do país em capacidade. E morre assim, de um ano para o outro?

Esforçando o olhar aqui da ponte podemos, talvez, adivinhar a linha onde a água resistiu até ao último momento, denunciada pelas difusas manchas esverdeadas de erva rasteira que ainda subsistem. Mas os braços laterais da albufeira estão transformados em ermos de pedra solta, as ruínas submersas durante décadas torram agora ao sol de um Verão que já passou o prazo de validade no calendário mas recusa ir-se embora. Descemos ao vale e pisamos as planuras erodidas por décadas de submersão, tão belas na suavidade dos seus contornos como inquietantes na sua despudorada exposição.

Havemos de fazer ainda muitos quilómetros pela zona, para conhecer as propostas enoturísticas de produtores de Avis, Benavila e Crato. A imensidão da barragem que já não existe continuará a rodear-nos ao longo de boa parte do caminho. Do outro lado da estrada, os olivais super-intensivos e os seus exigentes sistemas de rega levantam suspeitas. Mas o que fica realmente é a certeza de que nada está garantido para sempre. Nem mesmo as memórias da juventude, quando tudo era possível para lá de qualquer dúvida.

 

Edição n.º32, Dezembro 2019

A Escolha do Mestre: Touriga Franca, sinónimo de elegância

A Touriga Franca é um dos pilares dos vinhos portugueses. Tem um papel decisivo nos vinhos do Porto, aparece em lotes de alguns dos melhores vinhos de mesa do país e timidamente começa a surgir igualmente em rótulos como monovarietal. TEXTO Dirceu Vianna Junior MW FOTOS Arquivo A Touriga Franca deve sua popularidade pelo facto […]

A Touriga Franca é um dos pilares dos vinhos portugueses. Tem um papel decisivo nos vinhos do Porto, aparece em lotes de alguns dos melhores vinhos de mesa do país e timidamente começa a surgir igualmente em rótulos como monovarietal.

TEXTO Dirceu Vianna Junior MW

FOTOS Arquivo

A Touriga Franca deve sua popularidade pelo facto de ser produtiva, versátil e responsável por vinhos equilibrados. Por ser uma casta fácil de lidar, tando no campo quanto na adega, agrada simultaneamente quem planta a uva e quem faz o vinho. Ainda que ligada sobretudo ao Douro aparece em várias regiões do país proporcionando vinhos ricos em cor, sedosos, exibindo exuberância de frutas e delicadas notas florais que asseguram elegância.

Casta que gosta de sol

Portugal dispõe das condições ideais para que a Touriga Franca se desenvolva perfeitamente, um dos motivos pela qual é a segunda mais plantada do país com 12.667 hectares. Trata-se de uma casta onde exposição solar é fortemente aconselhada explica Carlos Agrellos, diretor técnico da Quinta do Noval e Quinta da Romaneira. Pelo facto de necessitar calor para se desenvolver plenamente, adapta-se muito bem na região do Douro onde domina as plantações com 10.121ha, segundo dados do Instituto da Vinha e do Vinho.

Paulo Coutinho, enólogo responsável da Quinta do Portal, concorda sobre a afinidade da Touriga Franca com locais quentes, mas alerta que o excesso de calor pode levar a planta ao stress hídrico, causando interrupção temporária do ciclo de maturação. Outro significativo desafio é o ataque das traças. Touriga Franca é resistente ao oídio e ao míldio, mas detesta humidade. Domingos Soares Franco, vice presidente e enólogo chefe do grupo José Maria da Fonseca, admite que a decisão de plantar vinhedos na serra da região da Península de Setúbal, em encostas voltadas ao norte, décadas atrás, foi uma experiência que não revelou bons resultados, pois em zonas com maior humidade é mais sensível às doenças fúngicas e não atinge o grau de maturação adequado. Hoje seus melhores vinhedos de Touriga Franca estão por isso em solos arenosos, menos férteis e locais mais quentes.
Apesar de ser moderadamente vigorosa, a planta tem porte erecto facilitando o manuseio da canópia. Alexandre Relvas, da Casa Agrícola Alexandre Relvas, explica que a planta necessita de alguns anos para se desenvolver. Antes dos sete anos continua frágil e suscetível a bloqueios de maturação, especialmente em anos quentes e condições áridas com e o caso da sub-região de Redondo, no Alentejo. Já na Vidigueira, devido à presença de solos mais ricos, com melhor disponibilidade de água, a planta sofre menos stress e atinge boa maturação.

O rendimento é geralmente uniforme e consistente, mas pode variar desde 0.5 até 3,5 kg por planta. Tipicamente atinge entre 1,5 to 2,5 kg por planta. Para obter um vinho de qualidade nas condições do Douro o ideal, na opinião de Paulo Coutinho, é buscar rendimentos abaixo de 1 kg por planta, mas varia dependendo do ano, da zona e da idade da vinha. Carlos Agrellos considera normal 35 hl por hectare podendo decair até aos 12 hl/ha em vinhas velhas. Quando a produção é excessiva, as uvas podem não atingir o nível de amadurecimento adequado resultando em vinhos com menos cor, estrutura adstringente e que não possibilitam a elaboração de monovarietais de qualidade, segundo Carlos Agrellos. No Alentejo, Alexandre Relvas acredita que é possível produzir cerca de 7 a 8 toneladas por hectare sem sacrificar qualidade. Nas condições de Setúbal, Domingos Soares Franco prefere restringir o rendimento para cerca de 5 ou 6 toneladas para proteger suas características e riqueza aromática.

Muda consoante o local

Uma particularidade da Touriga Franca, explica Domingos Soares Franco, é que os sabores encontrados na fruta na época da colheita são bastante subtis e não mostram o que vai ser o vinho no futuro. Alexandre Relvas não aconselha ficar à espera de concentração e exuberância no bago. Por esse motivo é preciso conhecer intimamente as parcelas. Além disso, a maturação nas condições do Alentejo não é previsível. Em poucos dias o potencial de álcool pode saltar de 10% para 12,5%. No Alentejo amadurece no meio da vindima juntamente com a Touriga Nacional e Alicante Bouschet, antes de Cabernet Sauvignon e Petit Verdot. Curiosamente no norte do país amadurece mais tarde, o que pode atrair danos provocado por pássaros.

A Touriga Franca manifesta características distintas dependendo das condições edafo-climáticas locais. Uma parcela localizada em altitude de 550 metros, na margem direita do rio Pinhão, origina vinhos com boa acidez e potencial alcoólico na casa de 13%, ideal para compor um lote, declara Paulo Coutinho. Em contraste, outra parcela localizada numa altitude de 300 metros na margem esquerda recebe maior incidência solar e é capaz de atingir nível de maturação superior. Os vinhos são mais estruturados, encorpados e capazes de constituir excelentes monovarietais ou utilizados em lotes de vinhos de alta gama. Com relação ao seu comportamento em solos distintos, Domingos Soares Franco explica que vinhas plantadas em xisto resultam em vinhos elegantes, com boa acidez e certa mineralidade. Em solos arenosos revela estilo mais potente, exuberante, com complexidade, mas sem a mineralidade associada ao Douro.

O bago tem tamanho médio e é envolvido por uma película espessa de cor negra-azulada. Tanto a fruta quanto as folhas são resistentes às altas temperaturas. Os cachos variam em tamanho, entre médio e grande, e são compactos representando um desafio, pois em condições húmidas estão sujeitos a podridão que pode acontecer de dentro para fora. Quando o ataque se torna visível pode ser demasiado tarde. Outro perigo é a chuva quando a fruta já está em estado avançado de maturação. Pode causar crescimento em demasia do bago, possível ruptura e estimular desenvolvimento de podridão.

Fácil de lidar na adega

Na adega é uma casta de fácil extração e, de forma geral, fácil lidar afirma Alexandre Relvas. Um desafio para Paulo Coutinho é a conexão entre o bago e o engaço ser resistente, portanto um obstáculo a desengaçar. Por isso é importante que a fruta seja colhida no seu melhor estado de maturação. Em condições mais frescas quando existe algum engaço verde é prudente não abusar nas macerações longas. Carlos Agrellos explica que a vinificação pode ser feita em lagares com a inclusão de engaço, mas o uso de inox é mais frequente. Caso seja usada como um componente de lote é recomendável fazê-lo o mais cedo possível. Se não for parte de um ‘field blend’ que seja logo no início da fermentação, diz Paulo Coutinho. Touriga Franca responde positivamente ao uso de madeira. Paulo Coutinho prefere barricas novas de tosta média a forte, mas Alexandre Relvas acredita que tonéis grandes de 2500 e 5000L e velhos são melhores para preservar o perfil da fruta e a senso de lugar do Alentejo.

Carlos Agrelos explica que devido à sua qualidade e versatilidade, a Touriga Franca é maioritariamente utilizada em vinhos de lote. Além da contribuição do perfil aromático mais complexo, o facto de ter um álcool provável mais baixo ajuda equilibrar os lotes. Para Paulo Coutinho, a Touriga Franca ajuda harmonizar o conjunto, mesmo quando presente em pequena proporção é capaz de equilibrar o lote e manter as outras variedades no lugar como uma espécie de cola.

Touriga Franca vs Touriga Nacional

A Touriga Franca pode não possuir a mesma exuberância aromática que Touriga Nacional, mas possui textura sedosa e esbanja elegância. É uma casta robusta, capaz de produzir vinhos estruturados e com grande potencial de guarda. Para Carlos Agrellos, Touriga Nacional é mais intensa, explosiva e também capaz de produzir vinhos equilibrados, frescos e exibindo notas frutadas e florais. Ambas se complementam muito bem e são capazes de representar a tipicidade dos vinhos de determinadas regiões. Paulo Coutinho alerta que a Touriga Franca, ao contrário da Nacional, raramente impressiona ao primeiro contacto. É recomendável paciência durante a fase inicial da evolução, tanto com tempo em garrafa quando após servida, deixar revelar-se no copo. Entre as duas, Alexandre Relvas confessa preferência pela Touriga Franca, pois quando atinge maturação ideal é capaz de desenvolver maior concentração, elegância e complexidade. Para Domingos Soares Franco é simplesmente a melhor casta tinta portuguesa.

De acordo com Paulo Coutinho, após os primeiros anos pode mostrar-se agreste. Perde a timidez e começa a revelar suas qualidades e complexidade após o quarto ano. Lembra da colheita de 1997 a qual já havia julgado estar em decadência, mas após sete anos surpreendeu e hoje oferece admirável complexidade aromática. Domingos Soares Franco concorda que as características permanecem inicialmente escondidas e recomenda paciência pois são capazes de despertar vivacidade como é o caso das colheitas de 1999 e 2000 cujos vinhos continuam mostrando excelente características.

Em Portugal e no mundo

Apesar de se portar muito bem em regiões de clima quente a Touriga Franca raramente aparece fora de Portugal. Plantações experimentais existem na Tasmânia. Na Califórnia é possível encontrá-la em San Antonio Valley, Sacramento, Lodi e Paso Robles. Natalie Folsom, Gerente Geral da propriedade Cinquain Cellars, explica que a Touriga Franca foi plantada em 2002 e se porta muito bem nas condições quentes de Paso Robles. Além de compor lotes de vinhos fortificados contribui positivamente na estrutura e exuberância aromática de vinhos tranquilos, juntamente com Touriga Nacional e Tinta Cão. Em Portugal aparece nas denominações DOC do Porto, Douro, Távora-Varosa, Bairrada, Óbidos, Alenquer, Arruda, Torres Vedras e Tejo. No DOC Alentejo é permitida desde que não exceda 25% do lote. A legislação permite que seja usada em lotes de vinhos regionais (IG) na maioria das regiões incluindo Trás-os-Montes, Douro, Beiras, Dão, Lisboa, Tejo, Península de Setubal, Alentejo e Algarve.

O passado e futuro

A Touriga Franca tem um passado evasivo visto que sua origem ainda não foi inteiramente estabelecida. Na opinião de Domingos Soares Franco, baseada em conversas com produtores da região do Douro, a casta teve origem na França, o que ajuda explicar o nome. Por outro lado, existem relatos explicando que a casta foi denominada Touriga Francesa meramente em homenagem à Escola de Hibridação Francesa que serviu de inspiração aos trabalhos de investigação feitos em Portugal no final do século XIX com o objetivo de encontrar plantas resistente a filoxera. Além disso existem narrativas que atribuem a criação da Touriga Franca a um curioso e autodidata do Douro chamado Albino de Sousa, eis a explicação de um dos sinônimos, embora não oficial, pela qual a casta é conhecida localmente. Opiniões divergem com relação a origem e não existem evidências conclusivas que suportem qualquer uma dessas teses, mas um facto incontestável é o parentesco. Antonio Graça, diretor de investigação e desenvolvimento da empresa Sogrape, afirma que os progenitores da Touriga Franca são a Touriga Nacional e o Marufo também conhecido pelo sinónimo de Mourisco Roxo. A casta passou no final do século XX a ser reconhecida como Touriga Franca, para evitar ambiguidade, mas alguns produtores, como Domingos Soares Franco, consideram isso um erro visto que o sector não foi devidamente consultado na época. Insiste em usar a terminologia original na espera que os ambos nomes sejam autorizados no futuro.

Não obstante alguns detalhes do passado sejam contenciosos, o futuro parece mais previsível para essa casta que está perfeitamente adaptada às condições climáticas de Portugal, mas dependerá do comportamento climático das próximas décadas. Como a opinião da maioria dos especialistas prevê condições mais quentes e áridas, as plantações continuarão crescendo. Entretanto, caso essas alterações ocorram de forma dramática isso poderá comprometer o ciclo regular de maturação. Por esse motivo é preciso pensar no futuro distante e plantar vinhedos em locais hoje considerados marginais. Paulo Coutinho sugere explorar locais de maior altitude e, no caso do Douro, entrar pelos afluentes do rio principal, normalmente mais frescos que no vale do Rio Douro.

Raridade…uma questão de mercado?

Um aspecto intrigante é o facto de que apesar de ser a segunda casta mais plantada do país, raramente aparece como vinho monovarietal. Na opinião de Alexandre Relvas não existem mais vinhos monovarietais simplesmente por uma questão de mercado devido ao foco que o país em geral tem com a Touriga Nacional. À medida que houver mais interesse por parte de jornalistas e sommeliers e mais confiança por parte dos produtores, os consumidores terão a oportunidade de descobrir os encantos da Touriga Franca que é uma excelente alternativa para os apreciadores de vinhos frutados, exuberantes e sedosos como Malbec, Merlot, Shiraz. Carlos Agrellos utiliza a casta há muitos anos e faz parte de muitos vinhos da Quinta do Noval e da Quinta da Romaneira. O primeiro monovarietal da Quinta da Romaneira Touriga Franca Vinhas Velhas 2016 foi lançado recentemente. O sucesso comercial imediato levou à produção de todas subsequentes colheitas que serão lançadass nos próximos anos.

A Touriga Nacional pode ser considerada a rainha das castas tintas de Portugal, mas a tímida Touriga Franca é capaz de surpreender com sua excepcional elegância. O termo elegância, na terminologia vínica, é frequentemente usado mas raramente explicado. Embora seja um descritor essencial, não existe definição concreta ou explicação científica para ele. Os vinhos elegantes possuem uma certa precisão, equilíbrio e subtileza. Não se trata de sabores específicos, mas como eles interagem e se revelam no copo. É algo difícil de descrever, pessoal e intangível, mas uma coisa é certa: sabemos quando a encontramos. Na medida que surjam mais vinhos monovarietais de Touriga Franca, mais consumidores irão descobrir o que significa elegância no vinho.

Edição n.º32, Dezembro 2019

30 anos não são 3 dias

Luís Lopes

Neste mês de dezembro de 2019 atinjo três décadas consecutivas de escrita sobre vinhos. Não sei se é muito ou pouco, mas talvez seja o suficiente para poder transgredir a regra de ouro do jornalismo (nunca se tornar o sujeito da notícia) e deixar aqui uma reflexão, tão lúcida quanto possível, sobre a minha passagem […]

Neste mês de dezembro de 2019 atinjo três décadas consecutivas de escrita sobre vinhos. Não sei se é muito ou pouco, mas talvez seja o suficiente para poder transgredir a regra de ouro do jornalismo (nunca se tornar o sujeito da notícia) e deixar aqui uma reflexão, tão lúcida quanto possível, sobre a minha passagem por esta profissão.

TEXTO Luís Lopes

Tenho 58 anos de idade, sou jornalista há 35 e escrevo sobre vinhos há exatamente 360 meses, sem interrupção. Não trocaria esta profissão por nenhuma outra e adorei todos (ou quase todos) os momentos que passei aprendendo, provando, conversando, visitando pessoas, vinhas, adegas, mercados, em Portugal e no mundo.

Ao contrário do que se vê por aí, eu não renego o passado e muito menos procuro reescrever a história, apagando ou omitindo factos e personagens à boa maneira estalinista (nos dias de hoje, com o digital, seria ainda mais fácil fazer desaparecer das fotos os antigos líderes do regime…). Pelo contrário, olho para trás com saudade, respeito e prazer. Orgulho-me de, em 1989, ter fundado a Revista de Vinhos (estão a ver, escrevi o nome e não fui fulminado por um raio…) e ter orientado essa publicação ao longo de quase vinte e oito anos. Tanto quanto me orgulho destes dois anos e meio enquanto director da Grandes Escolhas.

Ao longo da minha vida assisti à ascensão de muitos produtores, castas, técnicas enológicas, perfis de vinho, conceitos, padrões de consumo e modelos de negócio, e ao desvanecer de outros tantos. O meu trajecto profissional permitiu-me conhecer pessoas extraordinárias e criar com algumas delas relações de grande amizade. Aprendi (e continuo a aprender) muitíssimo com todos, desde o viticultor ao enólogo, do produtor ao vendedor na loja. Mas foi junto do consumidor que mais profundos ensinamentos recolhi. Perceber porque é que alguém prefere este vinho àquele é algo que continua a fascinar-me. Entender os mecanismos do gosto e tudo aquilo que condiciona a compra de uma garrafa é, para mim, uma verdadeira paixão.
Cometi erros de avaliação, certamente muitos. A todos os produtores que viram o seu esforço prejudicado por uma prova menos acertada, deixo aqui as minhas desculpas. Acreditem, porém, que sempre procurei escrever e provar com o máximo de concentração, isenção e profissionalismo. A classificação de um vinho encerra sempre alguma subjectividade e, também por isso, exige total sentido de responsabilidade, que deverá estar obrigatoriamente presente quando levamos um copo à boca. Nesse aspecto, estou de consciência tranquila.

Os projectos são feitos de pessoas, e na Revista de Vinhos e na Grandes Escolhas muitas foram aquelas e aqueles que ajudaram a tornar o sonho realidade. Alguns ficaram pelo caminho (ou por vontade própria ou porque a lei da vida não os deixou prosseguir), com outros continuo a trabalhar diariamente. A todos agradeço sentidamente o terem-me ajudado a fazer o que gosto e que espero continuar a fazer por muitos e bons anos, assim leitores e consumidores tenham paciência para me ler e ouvir.

Na última década, sobretudo, muitas vezes me questionaram sobre o que de mais significativo ajudei a mudar ou desenvolver no sector do vinho ao longo da minha carreira. Uma pergunta à qual tenho respondido, invariavelmente, da mesma forma: o progresso é feito de contributos colectivos, não individuais, e o que verdadeiramente me deu gozo foi poder assistir, na primeira fila, à fulgurante caminhada que o Portugal do vinho tem feito desde 1989. De agora em diante, porém, quando surgir a questão a resposta será outra. O contributo de que mais me orgulho, o meu legado, se quiserem, é presente e futuro e não passado: chama-se Mariana, tem 28 anos e é jornalista de vinhos.

Termino como comecei, solicitando a vossa indulgência por desperdiçar espaço editorial desta revista a falar sobre a minha pessoa, coisa que, como sabem todos os que minimamente me conhecem, não é algo que me agrade. Mas enfim, há momentos para tudo, e trinta anos não são três dias.

Edição n.º32, Dezembro 2019

A minha vinha é mais velha do que a tua

Luís Lopes

Os mais ambiciosos tintos do Douro são tema em destaque nesta edição da Grandes Escolhas. Entre as quase seis dezenas de vinhos provados surgem denominadores comuns: a muito grande qualidade (em alguns casos atingindo o brilhantismo) e o vincado carácter regional estão na primeira linha. Transversalmente, emergem as palavras mágicas: vinhas velhas. TEXTO Luís Lopes […]

Os mais ambiciosos tintos do Douro são tema em destaque nesta edição da Grandes Escolhas. Entre as quase seis dezenas de vinhos provados surgem denominadores comuns: a muito grande qualidade (em alguns casos atingindo o brilhantismo) e o vincado carácter regional estão na primeira linha. Transversalmente, emergem as palavras mágicas: vinhas velhas.

TEXTO Luís Lopes

O Douro é hoje, inquestionavelmente, a região de eleição dos consumidores portugueses nos segmentos superiores de preço. Um sucesso inteiramente merecido e que assenta, sobretudo, na qualidade dos seus vinhos, produzidos num território especialmente vocacionado para a excelência vínica. Mas também no elevado nível de profissionalismo, dedicação, foco, por parte da maioria dos seus produtores, que fazem um trabalho de formiguinha incansável junto das lojas de vinho e dos líderes de opinião (em Portugal e no mundo) batendo às portas certas e tocando a melodia perfeita. Do lado da estratégia comunicacional, a chave que abre mais portas chama-se “vinhas velhas”.

Dos 58 vinhos durienses de topo que apreciámos no nosso painel de prova, mais de metade apresenta-se no rótulo, no contra-rótulo ou na ficha técnica, como sendo oriundos de vinhas velhas. Se olharmos para estes números, podemos ser levados a acreditar que, ou no Douro a maioria das vinhas são velhas, ou a vinha velha é determinante para fazer um grande vinho nesta região. Conclusões absolutamente erradas que partem de uma premissa errada. É que ninguém sabe definir, em concreto, o que é isso de uma vinha velha.

O problema não se manifesta apenas no Douro, longe disso. “Vinhas Velhas” tornou-se um designativo que, por falta de enquadramento legal, é usado indiscriminadamente como bandeira de qualidade um pouco por todo o país. Noutras regiões, já visitei “vinhas velhas” com 20 anos. E porque não, se é a vinha mais velha do produtor? Para ele, faz todo o sentido. Mas sentido, significado, valor, é precisamente o que vamos perder se continuarmos a banalizar a expressão “vinhas velhas” ao sabor da vontade de cada um. Numa pesquisa rápida pelos sites das cadeias de retalho, encontro tintos intitulados “vinhas velhas” a €4,50. Acho que isto resume tudo.

Vinha velha não significa necessariamente qualidade, todos os produtores o sabem, mas a expressão tem sido vendida ao consumidor como um sinónimo de excelência e personalidade. O Douro, sendo a região de Portugal onde se preservaram mais vinhas antigas e, consequentemente, aquela que mais utiliza o conceito para promover os seus vinhos, tem aqui responsabilidade acrescida. Deverá por isso ser o Douro, no seu próprio interesse, a liderar o processo de definição e regulamentação da designação vinhas velhas. Uma associação de viticultores, a Prodouro, que congrega 72 agentes económicos regionais, já deu o primeiro passo propondo, para definir uma vinha velha duriense, resumidamente, algo como isto: “vinha plantada até ao ano 1965 segundo o modelo comum ‘socalco pós-filoxera’, embora, por razões de topografia do terreno, possa não ter obrigado à construção de socalcos suportados por muros de pedra posta.  Contudo a vinha velha em socalco pós-filoxera constituirá um subgrupo de eleição a que sugerimos chamar ‘vinha velha histórica’.”

É um ponto de partida, para ser apreciado e discutido no Douro. Como é evidente, este modelo, idade e descritivo não serve a todas as regiões de Portugal. Por isso, cada uma deverá encontrar critérios e regras adequadas ao seu passado e presente vitícola. Mas acredito que, se o Douro der o exemplo, as outras regiões o seguirão. E se o fizerem, conseguiremos duas coisas: primeiro, deixar de iludir/confundir os consumidores; e depois, trazer verdade e valor ao conceito de vinhas velhas e aos vinhos que originam, contribuindo assim para preservar esse tão importante património genético, histórico e cultural do Portugal do vinho.

Edição n.º31, Novembro 2019

Uma discreta elaboração de acasos

Mexemos, remexemos e buscamos no baú das memórias e dos canhanhos e vamos que todas as criações culinárias são acidentais. Confirma-se tanto nos clássicos franceses como por cá. A globalização do talento nunca aceitou barreiras. TEXTO OPINIÃO Fernando Melo Quando olhamos para o molho Béchamel, supostamente criado por Louis de Béchamel, marquês de Nointel e […]

Mexemos, remexemos e buscamos no baú das memórias e dos canhanhos e vamos que todas as criações culinárias são acidentais. Confirma-se tanto nos clássicos franceses como por cá. A globalização do talento nunca aceitou barreiras.

TEXTO OPINIÃO Fernando Melo

Quando olhamos para o molho Béchamel, supostamente criado por Louis de Béchamel, marquês de Nointel e maître d’hotel de do rei-sol Luís XIV, custa-nos crer na autoria, tal o uso comum que lhe foi sempre dado. É um molho branco feito com leite, farinha e manteiga e na verdade trata-se de uma apropriação ilícita do trabalho do célebre cozinheiro francês La Varenne. Como em tantos casos, não foi o seu nome que vingou pela história fora. A plêiade de gratinados, pastéis e pratos a que deu origem é interminável e ainda hoje o desafio de cozer bem a farinha continua na esmagadora maioria dos casos por cumprir. Justa Nobre faz desde sempre um gratinado de legumes que é referencial e padrão, irrepreensível na cozedura. Nos bons tempos do Nobre na Ajuda, era servido à colher no prato de cada um aconchegava o estômago e a alma. Quando não é o caso, o efeito é exactamente o contrário. A brandada de bacalhau deve ter surgido no final do Séc. XVIII, das mãos de autor francês anónimo, ao aquecer por acidente o bacalhau que vinha da Terra Nova, depois emulsionado com azeite; a origem será sempre difícil de rastrear, mas a certo ponto a emoção da emulsão protagonizada pelo bacalhau toca-nos bem a nós também, curiosamente sem nunca termos vulgarizado o pil-pil, quando em Espanha se faz muito, a partir do colagénio contido na própria estrutura e pele do peixe. Por cá, está por toda a parte mesmo sem darmos por isso, a começar no pastel de bacalhau – bolinho no Norte – e a terminar na complexa receita fixada por João Ribeiro no glorioso Hotel Aviz, e que dá pelo nome de bacalhau à Conde da Guarda. Temos em Vítor Sobral o guardião dessas transformações inefáveis do peixe que ainda gostamos de processar seco, com que ele intima frequente e avidamente. Já que temos a âncora no final do Séc. XVIII é também nessa altura que começa a imparável epopeia da batata, pela mão de Parmentier. No longo período de cativeiro não só elevou a planta meramente decorativa a alimento, como a elevou a iguaria e medicamento sem rival. Parmentier é o nome do assado de batata, leite e às vezes queijo, a que o mundo inteiro continua a render homenagem. O conduto já destronou em Portugal a castanha, passou ainda pouco tempo para a transição plena, mas já vive bem nos nossos empadões, alegria e sustento das famílias além, de prato festivo, com múltipla declinações. Em 1888, pegando em tomilho, alho, manteiga e ovos de forma inédita, Annette Poulard sacraliza a sua omelete souflée na pensão Poulard, no Monte Saint Michel. Foi para lá com o patrão, arquitecto encarregue da restauro do forte que era prisão e passou a templo turístico. Graças a um trabalho excepcional separando as claras das gemas, respeitando as cozeduras diferentes, a Mere Poulard superou em popularidade o próprio monumento. Não houve celebridade que não provasse a especialidade, cenário interior e exterior formidáveis, o prato sempre feito na sala à vista de toda a gente e a encantar. Grande omelete servia o Café Guarany, na Avenida dos Aliados, Porto, logo desde que abriu, em 1933, talvez inspirado nesse enorme sucesso de Annette na Normandia, nunca saberemos. Certo é que a omelete de gambas que ali se serve ainda configura tentação. Mas, tal como aconteceu com o peixe cozido, as pessoas deixaram de pedir omeletes. Pior, deixaram de as fazer também. Entre ambas as venturas, acontece a glória do pato do Tour d’Argent, em Paris. Criação de Frédéric Delair em 1890. Comporta um trabalho de sala fascinante, a extracção muito rápida dos peitos do pequenino pato, o corte das coxas e depois a extracção do sangue por prensagem, também na sala, e que vai dar origem ao molho do primeiro serviço. Um outro molho é depois produzido para acompanhar o segundo serviço, das coxas desossadas e servidas em pedaços. Delair vendeu cedo o restaurante ao mítico André Terrail, e ao longo de mais de cinquenta anos teve três estrelas Michelin. Na mente poderosa de Jorge Valle, fundador da Casa da Comida, o pato teve sempre preponderância e uma receita, actualmente disponível apenas por encomenda, continua sem par. É o pato com azeitonas, fabuloso e copioso prato. O malogrado Bernard Loiseau foi um dos mais geniais criadores da nova cozinha francesa e deixou um legado grande de pratos e pistas de desenvolvimento de muitos outros. Inesquecíveis as coxas de rã com puré de alho e jus de salsa. Mas o que dizer das coxas de rã em tomatada de António Nobre, ainda disponíveis nos hoteis M’Ar de Ar, em Évora? Rusticidade e alta cozinha de mãos dadas, converte mesmo o maior detractor das coxas de rã. Todo um tratado, que Loiseau prova agora no Olimpo e certamente aprova. O mítico e maravilhoso Paul Bocuse, o chef dos chefs, teve no início dos anos setenta duas iluminações próximas uma da outra. A primeira aconteceu durante um jantar em casa do seu apanhador de trufas, em que as ditas eram laminadas para a sopa de legumes que estava a ser servida; a segunda foi no restaurante de um seu contemporâneo, Paul Haeberlin, onde lhe foi servida uma tigela com foie gras e um pedaço de trufa, tudo coberto com massa folhada. Combinou as duas numa e criou a sopa de trufas Valérie Giscard d’Estaing, para comemorar a atribuição da legião de honra que lhe foi feita pelo então presidente francês em 1975. Pedro Mendes, do Alentejo Marmóris em Vila Viçosa levou-me às lágrimas com os seus pézinhos de porco de coentrada, criados em homenagem a Paul Bocuse e servidos migados, numa cebola vazada. O batimento existe, cabe-nos a nós ir acompanhando o pulsar imanente dos territórios. Só não podemos ficar quietos no lugar, partir em descoberta é a grande premissa.

O vintage 2017 e o fim das tradições

Finalmente foram quebradas as antigas regras não escritas que determinavam que “Porto Vintage, só três vezes em cada década”. Espera-se que acabem de vez e que não tenha sido apenas um fogacho. TEXTO OPINIÃO João Paulo Martins As declarações de um ano como Vintage sempre foram acontecimentos importantes para o sector do Vinho do Porto. […]

Finalmente foram quebradas as antigas regras não escritas que determinavam que “Porto Vintage, só três vezes em cada década”. Espera-se que acabem de vez e que não tenha sido apenas um fogacho.

TEXTO OPINIÃO João Paulo Martins

As declarações de um ano como Vintage sempre foram acontecimentos importantes para o sector do Vinho do Porto. O Vintage é o vinho mais prestigiado mas também, entre os “grandes”, aquele que tem menos custos de produção, sobretudo se comparado com os tawnies com indicação de idade. Fazer um bom tawny é uma dor de cabeça que se prolonga por vários anos , qual criança que tem de ser apoiada e educada para vir a ser um adulto à séria. O Vintage, quase inexplicavelmente, já nasce adulto e feito e por isso trata-se é não estragar o que a natureza deu e colocar essa qualidade rapidamente dentro da garrafa para que depois o tempo faça o seu papel, mas já em interferência do produtor. O primeiro deveria ser bem mais caro que o segundo mas a verdade é de sentido inverso: para se vender um tawny ao preço que actualmente se vendem os vintages das empresas mais prestigiadas, temos de apontar para um 30 ou 40 anos de idade. Só de pensar as voltas que tal vinho deu, o que se perdeu para os bebedolas lá de cima (há quem lhes chame anjos…) ficamos com os cabelos em pé. Mas é assim que o sistema funciona, vamos em frente. A tradição, criada sabe-se lá por quem, de apenas declarar como clássico um vintage duas ou três vezes por década não tem dado grandes frutos. Os ingleses, muito ligados a essa tradição, fizeram questão de a cumprir por mais de um século e por isso deixaram algumas potenciais declarações fora do “classicismo” como 1995, 2005 e 2015.
A tese é deles, mas casas como Ramos Pinto, Poças, Sogrape, Porto Cruz, Noval ou Niepoort não querem nem ouvir falar de termos como “clássico” e “não clássico”. Para estes produtores, a declaração acontece quando o ano é bom, independentemente da frequência. Mas o que ninguém nega, mesmo os outsiders, é que em ano “clássico” as vendas são rápidas e os preços bem convenientes. Vantagens para todos à boleia da tradição inglesa.
Foi preciso chegar à segunda década deste século para ver ruir a tradição. Diz-se nos mentideros que não se declarou o 2015 porque se percebeu que o 2016 era de grande qualidade e foi esse o escolhido para ser clássico. Só que, ironia do destino, o 2017 logo à nascença deu mostras de ser um grande Vintage, o que se veio a confirmar. Estavam lançados os dados para se furar a tradição e declarar um Vintage “clássico” dois anos seguidos. Toda a gente declarou e muitos já venderam tudo. Só que…o 2018 está em cave à espera e ninguém é por agora capaz de afiançar se vai declarar ou não. Falta tempo mas não tanto assim, uma vez que a partir de Janeiro se podem começar a enviar amostras para aprovação. Vamos ter um tri-clássico? É cedo mas, como sabemos, depois de pecar a primeira vez os pecados seguintes soam apenas a pecadilhos. E o Porto bem precisa de promoção e que se fale dele por esse mundo fora. Os consumidores portugueses, dizem-nos no comércio, andam um pouco arredados do Vintage e as vendas estão muito longe de serem o que eram há uma ou duas décadas. Mas os actuais vintages têm a enorme vantagem de darem cartas na elegância mesmo em novos, coisa que os antigos não davam. E lá se vai assim, de uma penada, mais uma tradição pelo cano: à ideia antiga de que o vintage ou se bebia muito novo ou tinha de se esperar 15 a 20 anos sucedeu a geração actual, assente em melhor viticultura e em aguardente de qualidade incomparavelmente superior à que se usava antigamente, Dessa forma, permite-se que o vinho seja apreciado novo e mesmo na década a seguir à colocação no mercado. Confesso que continuo a gostar mais dele com 15 ou 20 anos mas tiro o chapéu aos novos vinhos, muito mais assentes na fruta e na elegância e que dão boa prova em qualquer momento. É verdade que as quantidades actualmente declaradas são cautelosas (3 a 5 000 caixas de 12) e a Taylor’s faz figura de “exagerada” por ter declarado, no 2017, 11 500 caixas mas, voltando ao exemplo clássico, em 1927 a Cockburn’s e a Croft terão declarado entre 20 e 30 000 caixas. Isso sim, eram declarações à grande!
Ficamos assim na expectativa sobre o que vai acontecer com o 2018 e quem sabe, dados os bons prenúncios desta vindima, com o 2019… Isto está a complicar-se, disso não tenhamos dúvidas, mas é destas complicações que nós gostamos.

 

Edição Nº30, Outubro 2019