Sardinhas: A delícia marinha mais popular

sardinhas

Enquanto não chega a primavera, o português vive inquieto e suspira junto ao mar pela sua muito amada sardinha. O necessário e obrigatório defeso termina em Abril, e a grande corrida começa. A abundância varia de ano para ano, e a festa dura até ao Outono. Preparemos, então, as grelhas e as brasas, que elas […]

Enquanto não chega a primavera, o português vive inquieto e suspira junto ao mar pela sua muito amada sardinha. O necessário e obrigatório defeso termina em Abril, e a grande corrida começa. A abundância varia de ano para ano, e a festa dura até ao Outono. Preparemos, então, as grelhas e as brasas, que elas aí vêm.

Todo o peixe tem a sua época ideal de captura e consumo e na costa portuguesa continental a reprodução ocorre numa janela temporal bastante alargada. É entre Outubro e Abril que acontece, o que coincide com o defeso decretado sobre a espécie “Sardina pilchardus”, que é a nossa.
Cerca de um ano depois, a sardinha atinge a fase adulta, pronta a dar-nos muitas alegrias. É essa que nos é oferecida por esta altura do ano, e é com essa que somos muito felizes. Apresenta-se com cerca de quinze centímetros de comprimento e forte conteúdo de ácidos gordos do tipo ómega-3, estruturante na alimentação humana.

A pescaria dá-se sobretudo no Atlântico norte e nenhuma sardinha é mais saborosa que a nossa. A atestá-lo estão a fecundidade e os nutrientes do nosso maravilhoso oceano. São, além disso, muitas as espécies marinhas e aves especiais que se alimentam da amiga sardinha. De certa forma, o frágil equilíbrio do planeta seria ainda mais complexo se não existisse o irrequieto e vigoroso peixe. A abundância, contudo, faz-nos acreditar que há sempre sardinhas. Pesca-se através da arte do cerco, afectando-se uma área grande e profundidade suficiente para que os pequenos peixes fiquem retidos e a pescaria abranja peixes semelhantes. Cavala, sarda, biqueirão, carapau e petinga são confinados nas redes e a segunda arte consiste em devolver ao mar o que não pertence na altura capturar. Pequenos crustáceos, por exemplo, essenciais na alimentação da própria sardinha, vêm frequentemente para cima, juntamente com o peixe.

sardinhas

Dá gosto assistir à chegada à lota para ver e sentir a tremenda azáfama dos enérgicos peixes quando as caixas começam a levar destino

 

Vinhão e… vinho Madeira da casta Malvasia

Valorizamo-la mais quando a canícula aperta e os santos populares despertam, mas pode não ser essa a melhor altura para a comer. Uma fatia de pão com uma sardinha assada em cima é festa bastante para o português, e come-se com batata cozida e pimentos assados nas brasas. Quanto ao vinho, precisamos geralmente de treinar. Estamos perante um peixe gordo, pelo que o vinho deve ter acidez pronunciada para cumprir correctamente a sua missão de neutralizar pelo corte da acidez fixa.

Um verde tinto da casta Vinhão pode ser o indicado, mas há sempre opções a considerar. Na prova pública que me coube organizar, aquando da eleição das sete maravilhas da cozinha portuguesa, foram servidas sardinhas com dois vinhos. Vinhão e… vinho Madeira da casta Malvasia. E todos preferiram a maridagem com o Madeira. Não pela doçura, mas pela acidez do vinho, que conseguiu destruir o núcleo gordo do peixe, tornando-o mais digerível. Foi um momento feliz, há que dizê-lo. Os dogmas só fazem sentido quando são interrogados e postos em causa. A prova aconteceu em 2011 e deixou algumas marcas profundas.

A sardinha desperta em nós a sensação de abundância. No nosso entendimento, há sempre sardinhas. Mas nós queremo-las gordas e ovadas. E sobretudo baratas, que a vida não está para excessos. O que acontece é que acabamos por facilitar e contemporizar com as pequenas adversidades com que deparamos. A irrequieta sardinha está sempre a ginasticar-se e gosta da vida de cardume. Dá gosto assistir à chegada à lota para ver e sentir a tremenda azáfama dos enérgicos peixes quando as caixas começam a levar destino. Ficamos logo mais enérgicos só de ver a energia disponível que têm. E no fundo a reacção é real. A sardinha faz bem ao corpo e à alma.

sardinhas

Uma fatia de pão com uma sardinha assada em cima é festa bastante para o português, e come-se com batata cozida e pimentos assados nas brasas

 

As sardinhas congelam e conservam bem

Se encontrar na praça sardinhas que lhe agradam muito, não hesite, congele! Desde que ao descongelar respeite a integridade do paixe, vai correr bem. Respeitar a integridade significa aqui manter o peixe inteiro e intacto, como se de um peixe de bitola maior se tratasse. Há que embalar muito bem, para evitar propagação do cheiro. O facto de estarmos a temperaturas de 15 graus negativos não impede que o cheiro povoe o congelador. O ideal é utilizar sacos de congelação individuais e herméticos, feitos por um bom fabricante. Depois deixe na parte mais baixa do frigorífico de um dia para o outro, e no dia seguinte vai ter belas sardinhas para cozinhar ou transformar como mais gosta. Trata-se de um peixe rico em ácidos gordos e só por isso é já capaz de preservar melhor as características e propriedades originais. Se há vontade e arte, pode optar por filetar e depois congelar. Em preparações do tipo tempura, vai fritar muito bem e ficar cheia de sabor. As boas peixarias fazem esse trabalho por si e em casa vai poder dar asas à sua criatividade.

Chegamos a um momento chave da exploração da sardinha enquanto alimento de elevado valor nutritivo: a conserva. Para muitos, trata-se de uma opção menor, mas não há qualquer razão para assim acontecer. Uma boa lata de sardinhas contém peixe de elevadíssimo gabarito, que podemos e devemos trabalhar para os mais elevados fins. Sabemos que é staple food, mas isso não significa que seja encarada como comida de emergência. É notável o que a indústria conserveira moderna evoluiu, e o que tem feito para dignificar ao mais alto nível o produto dos nossos mares. Temos hoje petinga – a sardinha mais pequena – que facilmente integramos em saladas frias e legumes e que podem bem constituir refeição completa. Ovo cozido, feijão-frade e pimentos assados, por exemplo, dão uma salada fria maravilhosa. Falando de maridagens de sucesso, o resultado pode ser brilhante com um Alvarinho jovem da região dos vinhos verdes, especialmente se a salada incluir frutos tropicais. Seja como for, há glória em cada pequenina lata de sardinhas, glória essa que contém muita história.

Nos santos populares e não só

A sardinha assada nas brasas estala nos santos populares. Mas até pelo que atrás se disse nessa altura não está no seu zénite. Há que a deixar engordar para estar no seu melhor de textura e rendimento de sabor. O momento é excelente para dar a conhecer as maravilhosas festas de Santa Bebiana, que ocorrem em pleno Inverno em Belmonte e Caria. Trata-se de uma festa pagã que promove sempre o casamento entre São Martinho e Santa Bebiana. Importante é que se beba a rodos. Curiosamente, há uma irmandade que, ano após ano, garante a continuidade das festas. Em Caria festeja-se no dia dois de Dezembro, já dia de São Martinho aconteceu e a água-pé já se produziu, a seguir às pisas nos lagares. Se eu não tivesse assistido, ainda hoje não acreditaria.

Cumpridos vários rituais, que incluíram, por exemplo, a confissão de que tínhamos falhado porque estivemos sóbrios na maioria do ano, a procissão termina num largo, com as competentes e rubras brasas à espera das sardinhas geladas, e o povo vai soltando glosas como “Santa Bebiana, senhora de muita Graça, não tem capela mas tem o Largo da Praça”. E é neste largo, com uma multidão a postos, que se leva as sardinhas à grelha. Estamos em contraciclo total com os santos populares, mas a devoção popular é impressionante. Está prestes, de resto, a ser classificado como património imaterial pela Unesco. É mais que bem vindo um vinho tinto da casta Rufete. Mineralidade a toda a prova, taninos presentes sem dominar, e muito sabor. Viajar é mesmo ganhar. A sardinha representa bem a portugalidade.

Em plena Expo’98, coube-me acolher e acompanhar um dos grandes empresários do Japão, accionista principal de uma grande empresa americana. As coisas não correram muito bem na véspera, quando fui recebê-lo ao aeroporto de Lisboa. Estendi-lhe a mão para o cumprimentar, o que vim a saber mais tarde nunca devia ter feito. Não se pode olhar nos olhos nem tocar num shogun. Já na exposição universal, visitámos o pavilhão do Japão, de onde saiu irritado por assistir ao vídeo em português, para mais com a música “Vamos fazer um farol”. A desgraça anunciava-se. Seguimos para jantar no pavilhão dos EUA, buffet tipicamente americano, convenientemente harmonizado com excelentes Cabernet Sauvignons e Merlots de Napa Valley. Gostou muito dos vinhos, odiou a comida. “Aqui não há nada para eu comer, quero ir para o hotel”. Lindo serviço, e eu com vontade de perder a cabeça com os maus modos do japonês poderoso. Combinámos almoçar no dia seguinte.

Ele estava mais calmo e pediu-me que o almoço fosse de peixe. Assim foi. Fomos ao Mercado do Peixe, no Caramão da Ajuda. Ao contrário do sucedido na véspera, estava muito bem disposto, até contou duas anedotas no caminho para o restaurante. Fui-lhe explicando que iria escolher o peixe e que o mesmo iria ser cozinhado como ele determinasse. Deu uma gargalhada grande e aproveitou para dizer que não me preocupasse, que ele iria gostar. Confesso que temi o pior, face à sua boa disposição. Chegámos e tínhamos a nossa mesa reservada num espaço relativamente reservado. Propus-lhe um Arinto fresco de Bucelas para a empreitada gastronómica, que de novo com maus modos rejeitou liminarmente. Escolheu um Cabernet Sauvignon da Península de Setúbal. Tinto, portanto. Fomos até ao expositor de peixe, para escolher o conteúdo do apaziguador almoço que forçosamente teríamos de conseguir realizar. Fui-lhe descrevendo os diferentes peixes do expositor, e como poderíamos cozinhar cada um.

De repente, apontou para as sardinhas e começou a bater palmas. Não cabia em si de felicidade. E começou a conversar directamente com o cozinheiro, dando-lhe indicações de como queria o peixe. Grelhado fechado, como nós grelhamos as sardinhas, servido sobre uma fatia grossa de pão, salada de pimentos grelhados ao lado. Fiquei de boca aberta, nunca podia ter imaginado que a catástrofe da véspera podia ter sido evitada de forma tão simples. Foi notável a sua desenvoltura na exploração das sardinhas grelhadas sobre a fatia de pão, directamente com as mãos.

sardinhas

Uma boa lata de sardinhas contém peixe de elevadíssimo gabarito, que podemos e devemos trabalhar para os mais elevados fins

 

Gostamos de arraiais

Qualquer dia de festa com amigos, em casa ou restaurante, vira arraial, e o assunto invariavelmente vai ter às sardinhas. Dei-me conta, há poucos meses, de uma verdade insofismável. O português sabe acender o lume certo com carvão e acendalhas em três tempos. Tenho convivido ao longo da vida com argentinos e absorvi este facto notável: aprende-se na escola primária da Argentina a grelhar carne. Com algumas varas de lenha, até num lavatório de casa de banho conseguem criar condições para grelhar uma peça de carne. Tive acesso a preciosa e ricamente ilustrada literatura argentina que faz parte o programa de ensino básico. Consta, por exemplo, o repto de jamais passar demasiado a carne, com desenhos das fibras a suar e sofrer pelo excesso de calor. Passar o ponto ideal de cozedura é para os argentinos carbonizar a carne.

A conversa mais recente sobre o assunto aconteceu justamente em casa de amigos da Argentina. Mas eles têm a casta Malbec, que o tempo e a tradição depuraram até chegar à harmonização ideal. Claro que fico enciumado e claro que já experimentei com as nossas sardinhas nas brasas. Não funciona. Curiosamente, com um bom Tinta Roriz jovem sem estágio em madeira consegue-se excelentes resultados com grelhados no carvão. Se nunca experimentou, não hesite em fazer o teste no seu jardim ou varanda. Sardinhas em sal grosso, pimentos, batatas, melancia, e está montado o arraial da nossa satisfação. Não há português que não adore um bom arraial, mas geralmente o comportamento em relação ao vinho é entre o incerto e o incorrecto. Triunfa normalmente a sangria. Os amigos espanhóis têm o “Tinto de Verano”, que é vinho traçado com gasosa e cumpre a missão importante de afastar a canícula da mesa. Conseguimos, com um bom Roriz servido frio, o mesmo efeito. Fica aqui a confissão.

O piquenique perfeito e a sardinha

Uma das experiências vínicas que gosto muito de fazer acontece com a bôla de sardinha de Lamego. Perto de São João de Tarouca, onde hoje encontramos algumas casas produtoras de excelentes espumantes, foi onde outrora os monges de Cister instalaram e cuidaram a casta Malvasia Fina. Que é também provavelmente a primeira casta importada para Portugal. Juntando as peças todas como num puzzle, por que não fazer uma prova de vinho do Porto branco com bôla de sardinha? Melhor ainda, por que não fazer essa experiência sentados no chão de uma vinha dessa casta? As interrogações sucedem-se, assim como as inquietações. Temos de ser ousados e não ter receio de enveredar por caminhos menos usados. Na dúvida, sigamos a sardinha!

(Artigo publicado na edição de Julho de 2025)

Sanleti: Um poiso de petiscos na Praia da Rocha

Sanleti Tapas & Vinhos

O meu Algarve não é o meu poiso de férias, como acontece com muitos outros portugueses. É a minha terra, aquela onde brinquei, joguei  ao berlinde e aos jogos de apanhada, fiz amizades eternas, estudei e aprendi, andei pelos campos, apanhando aqui e ali uma romã, uma nêspera, uma laranja, e fui à pesca, à […]

O meu Algarve não é o meu poiso de férias, como acontece com muitos outros portugueses. É a minha terra, aquela onde brinquei, joguei  ao berlinde e aos jogos de apanhada, fiz amizades eternas, estudei e aprendi, andei pelos campos, apanhando aqui e ali uma romã, uma nêspera, uma laranja, e fui à pesca, à ameijoa e ao berbigão, num dos sítios para onde gosto mais de olhar: a Ria Formosa. É um Algarve de muitos algarves, parecidos, mas todos ainda um pouco diferentes uns dos outros, apesar da muralha de casario, um pouco desordenado, que separa a linha de costa do resto, parecer querer uniformizar a paisagem.

Sanleti Tapas & Vinhos

Sítio de comer

Uma das coisas que gosto é conseguir encontrar sempre sítios de comer onde me sinto bem e sou bem tratado. São vários por toda a região e um deles, na zona de Portimão, é o Sanleti Tapas & Vinhos, sobretudo porque tem uma oferta diversificada de petiscos, que vai variando ao longo do ano, uma carta bem composta de vinhos algarvios e, à noite boa música ao vivo, calma, tocada e cantada por bons interpretes. Ao longo do tempo, fui conhecendo melhor o seu proprietário, Rui Silva, moço da região que estudou e deu os primeiros passos na profissão pelo norte, mas não resistiu a voltar.

Estabeleceu o seu Sanleti em Ferragudo, perto da margem esquerda do rio Arade, e mudou-se mais recentemente para a zona da Praia da Rocha, para um espaço maior com vista para a marina de Portimão, que continua a ser essencialmente uma casa de petiscos, cuja oferta vai variando ao longo do ano. Já lá comi Peixinhos da horta, Moxama de atum, Bolinhas de alheira com chouriço e outros, mas desta vez optamos pela Tiborna de Cavala com tomate, manga e pimentos vermelhos aos cubos, em pão tostado, que repito quase sempre, mais uma Tirinhas de polvo salteadas com puré de pimentos e Brás do Sanleti, com bacalhau, batata, camarão e ovo. Tudo saboroso e agradável, como habitual, desta vez apreciado na companhia de um Lagoa Reserva single vineyard, da casta Crato Branco, um vinho branco de aroma fresco, com notas de alperce, pêssego e fruta branca e o volume e frescura apropriados para o repasto.

Faltou-me apenas a tarte de amêndoa da mãe do Rui, incontornável, mas apenas porque me esqueci de reservar, já que a concorrência é grande pela sobremesa e é apenas ela que a sabe fazer. Mas fica para a próxima.

Sanleti Tapas & Vinhos

 

 

 

 

Sanleti Tapas & Vinhos

Morada:  R. Bartolomeu Dias, Loja A, Praia da Rocha, 8500-806 Portimão

Tel.: 963 405 776

Site: sanleti.wixsite.com

 

Intemporal: A aposta pessoal de Miguel Laffan

intemporal

A casa que estava em ruínas desde os anos 60 do século passado foi, entretanto, recuperada com um projecto da arquitecta Paula Arez e a concessão entregue ao grupo multinacional Wellow Network que aqui se estreia no negócio da restauração.  Mas foi Miguel Laffan que se apaixonou pelo espaço e imaginou fazer dele a sua […]

A casa que estava em ruínas desde os anos 60 do século passado foi, entretanto, recuperada com um projecto da arquitecta Paula Arez e a concessão entregue ao grupo multinacional Wellow Network que aqui se estreia no negócio da restauração.  Mas foi Miguel Laffan que se apaixonou pelo espaço e imaginou fazer dele a sua casa e com isso regressar à “linha” para uma aposta muito, mesmo muito pessoal. No piso térreo, uma cozinha de apoio e 4 lugares ao balcão do chefe. No piso superior, frente a uma generosa janela que nos traz até à mesa o mar de Oeiras em todo o seu esplendor, 12 a 14 lugares apenas.

Espaço intimista, pois, próprio para uma contemplação demorada às cores, aromas e sabores de uma cozinha muito personalizada, com bastante bagagem acumulada e extremamente segura de si. Como o nome indica, o conceito foi construído em torno do tempo. A carta varia em função das quatro estações (nós provamos o menu Primavera) em que se procura tirar o máximo partido da frescura dos produtos sazonais, enquanto se cruzam memórias numa combinação de sabores de raiz portuguesa perfumada com um toque cítrico de inspiração oriental que tanto seduziu o chefe. Miguel Laffan aposta forte, não esconde que o objectivo deste seu fine dining é mesmo conquistar a ambicionada estrela Michelin que já foi sua quando esteve no L’And and Vineyards em Montemor-o-Novo. Não tenho dúvidas que o conseguirá tal é o rigor e a precisão que coloca na criação de cada prato.

No caso do menu Primavera, este é dividido em cinco partes: Prelúdio, com 3 snacks, onde destaco os “ovos rotos” com barriga de atum (!) e uma Gyosa de lagostim,  Passagem, 2 momentos, onde o destaque vai o “Maladrinho” de arroz de carabineiro, o Permanência, onde o pão de massa mãe e manteiga de botarga acompanham toda a refeição, Demora, onde os 4 momentos passam por criações inspiradas em torno de lulas em tandoori, goraz em caldeirada, espargos e cogumelos morilles com molho béarnaise e finalmente o cordeiro com legumes de Primavera. O menu termina com Eternidade com os 2 momentos que compõem a sobremesa, da responsabilidade da chefe de pastelaria Letícia Silva, um em torno dos morangos com gengibre e limão e outro ananás dos Açores, lima e o vinho de Carcavelos. O serviço de vinhos, da responsabilidade do sommelier Luis Feiteirinha, revelou-se competente e atento com propostas entre o seguro e o desafio que valorizaram o conjunto da refeição.

Intemporal

Menu Primavera:  €120, com harmonizações vínicas (6 vinhos) Intemporal a €45 e Experience a €90 por pessoa.

Rua Vista Alegre, 2770-046 Paço d’Arcos

Horário (de terça a sábado): Almoços 12:30 às 15:00 e das 19:30 às 23:00

E-mail: reservas@intemporalrestaurante.pt

Telefone: 968 432 288

 

Cabrito, borrego e outras primícias

cabrito

A Natureza continua a marcar o ritmo de forma inexorável. O que é muito bom para todos nós, que continuamos a ser tão susceptíveis e permeáveis a tudo o que é novo só por si. Mas desde o abrolhamento nas vinhas à cobertura de flores pelos campos fora, tudo é sinal de renascimento. É o […]

A Natureza continua a marcar o ritmo de forma inexorável. O que é muito bom para todos nós, que continuamos a ser tão susceptíveis e permeáveis a tudo o que é novo só por si. Mas desde o abrolhamento nas vinhas à cobertura de flores pelos campos fora, tudo é sinal de renascimento. É o momento da afirmação anual da vida e da vontade de viver, e o inevitável toque a reunir das famílias. E de abrir boas garrafas de vinho para a festa da partilha.

Começo pelo mais importante, a nota de pesar relativa ao desaparecimento prematuro de Ana Soeiro, figura marcante e importante no desenrolar da afirmação da produção nacional em toda a sua abrangência. Acompanhei de perto o trabalho fundador que fez com a sua brilhante equipa de colaboradores no Ministério da Agricultura, de levantamento de produtos certificados e em vias de certificação por todo o país. Retenho, com honra e garbo, os magníficos ficheiros a que Ana Soeiro me deu acesso, dando conta dos avanços vagarosos e despretensiosos do colectivo que coordenava. A abrangência do seu labor é colossal, e vai desde a criação de gado à mais particular e subsidiária receita de um prato regional executado a preceito e de forma sistemática. Quando saiu de funções no ministério, fundou a Qualifica, que desde logo se prontificou a tornar visível muito desse trabalho, ao mesmo tempo que estabeleceu ponte inédita com a certificação no espaço europeu. Se hoje vemos as siglas IGP – Indicação Geográfica Protegida – e DOP – Denominação de Origem Protegida – disseminadas entre nós, parte significativa desse trabalho é-lhe devido. Há que ter em conta a capacidade de fazer face à morosidade e complexidade envolvidas normalmente nesses processos. O tempo há de encarregar-se de lhe fazer justiça. Para já, fica a nota necessária e fundamental, em jeito de tributo.

cabrito

 

Tenho bem presentes aspectos históricos e patrimoniais que imortalizam o borrego como proteína preferencial. O seu ensopado tem importância fundadora e que perdura até aos dias de hoje.

 

O cabrito só é feliz a saltarilhar

Dá-nos muitas alegrias à mesa o cabrito que, juntamente com o borrego, tem expressão fundamental e protocolar nos animais sacrificiais que, por esta altura, têm honras de mesa. Para Júlio Lameiras, acérrimo e sábio defensor das raízes beirãs da alimentação, “o cabrito para ser feliz tem de saltarilhar na pedra da serra”. A alimentação à base de ervas espontâneas e frutos de arbusto é suficiente para dar origem a belas e vigorosas crias, mesmo em fase de aleitação materna. Resulta, por isso, na matéria-prima tão do gosto do consumidor português, com a particularidade adicional da consensualidade. Não há quem não goste de um bom cabrito assado. De norte a sul do país, faz-lhe bem as honras o vasto receituário ditado pela cozinha de pastor. É grande o contributo das verduras de vagem que começam a grassar ao mesmo tempo. Ervilhas, favas, leguminosas diversas compõem muito o ramalhete das opções disponíveis. A carne ganha muito com uma marinada de água e limão um dia antes do momento formal do processamento culinário. Tem geralmente pouca gordura e assa muito bem, desde que a temperatura não seja demasiado alta. Uma segunda marinada em vinha de alhos é benéfica e vai assegurar excelência no período de forno ou grelha. Um tinto novo de Trás-os-Montes faz-lhe bem as loas.

Cabrito, borrego, leitão e vitela desempenham na história da nossa alimentação um papel festivo insubstituível. Para marcar momentos importantes, desde sempre utilizamos a prática de abater uma cria e levá-la à mesa inteira. O grau de requinte com que isso era feito depende obviamente da vontade, posses e disposições. Ainda hoje é assim, como nos tempos de outrora. Podemos contudo afirmar que, na perspectiva estrita da criação, abater uma peça primicial implica abdicar de um valor futuro maior, que nunca é despiciendo. Sempre se fez com os olhos postos nos valores futuros e universais, tai como a união de uma família, e criação efectiva e intemporal de riqueza, ou o regresso a casa de um membro da família que estava longe. Todas estas situações configuram a necessidade absoluta de festejar. Independentemente da proteína em jogo, a idade é o dado mais relevante no tocante à harmonização vínica. Tendencialmente, são apostas mais felizes os vinhos com pouca ou nenhuma madeira, a menos de algum pormenor de processamento culinário que faça toda a diferença. Sabemos contudo que não é assim. Desempenha papel importante neste cenário um vinho jovem estreme da casta Castelão sem madeira.

cabrito

Não há quem não goste de um bom cabrito assado. De norte a sul do país, faz-lhe bem as honras o vasto receituário ditado pela cozinha de pastor.

 

O borrego e seus muitos encantos

A vida ensinou-me bastante sobre criação de borregos, seu abate e ligações ideais da sua carne com vinho. Se no caso do cabrito a leitura tinha forçosamente de ser nacional, no tocante ao borrego, à excepção do prodigioso cordeiro de Miranda do Douro, a capital é estável e fica no Alentejo. São diversos os factores que apontam para esta evidência. As transumâncias longas e aturadas do gado ovino. A indústria distribuída do queijo. O aproveitamento da lã. E a resistência à intempérie. Isto além de outros factores que apontem claramente o ovino como a proteína mais capaz e vencedora. Tenho bem presentes aspectos históricos e patrimoniais que imortalizam o borrego como proteína preferencial. O seu ensopado tem importância fundadora e que perdura até aos dias de hoje. O desaparecido Manuel Fialho, com quem tive o imenso privilégio de conviver ao longo de vários anos, desenvolveu trabalho teórico de sistematização que jamais esquecerei. Aliás, trata-se mais de inquietações do que de sistematizações propriamente ditas. Quando estamos nos granitos frios do norte alentejano, é frequente encontrarmos património micológico muito relevante na composição do ensopado de borrego. A utilização de batata é intermitente nessas latitudes, sendo bastante frequente a castanha, que ainda hoje se encontra, a par da já mencionada utilização de cogumelos nativos. Descemos na geografia para Évora e damos com um ensopado de borrego que contém normalmente batata e ervilhas e disponibiliza caldo abundante, pelo que é frequentemente consumido com uma colher de sopa. As partes de carne e respectivos ossículos são explorados à mão. Quando chegamos a Serpa, capital da maior transumância ovina nacional, constatamos que não há batata nem ervilhas na composição do ensopado. Estamos perante um caldo rico orlado de bom pão alentejano, selecção rigorosa das peças cortadas para o ensopado e utilização de poejo e hortelã da ribeira como temperos fundamentais. Do ponto de vista da harmonização com vinho, há bondade na aproximação a tintos de Alicante Bouschet encorpados com estágio longo em madeira. O ensopado que situei em Évora constitui, contudo, excepção. Nesse caso, a batata e as ervilhas levam facilmente a que a harmonização ideal seja com um vinho branco jovem de Arinto e Fernão Pires, com algum estágio em madeira.

Há muitas verdades no assunto da ligação de vinho com comida, como todos sabemos e facilmente aceitamos. Trago aqui agora uma curiosidade culinária que para mim se tornou sacramental. Trata-se da perna de borrego assada com dois dentes de cravinho apenas, que aprendi a fazer com o gigante Gabriel Fialho. Vale a pena reconstituir a cena. Estou sentado na sala de entrada do restaurante Fialho, em Évora, onde Gabriel Fialho oficiava à frente da cozinha. A sua personalidade natural era de grande empatia com toda a gente. Quem o conheceu sabe como era assim. De repente, eis que entra na sala onde eu estava, com uma colher de sopa e uma mão por debaixo, em concha. Vem direito a mim e diz-me para abrir a boca. Era um molho, que logo me descreveu como sendo resultante de assar uma perna de borrego apenas com dois dentes de cravinho. Sentou-se à minha frente, sem conseguir esconder a excitação quase infantil que o animava naquele momento. O cravinho era espetado em dois pontos específicos que ele me indicou. Memorizei tudo o que me disse. Estão quase a cumprir-se doze anos desde que deixou a esfera do chão, há-de estar a deleitar os seus pares com as suas muitas perplexidades. A verdade é que nunca mais voltei a assar borrego que não fosse com aquele toque minimalista. Sete horas a 70 graus, a peça totalmente envolta em papel de alumínio. A melhor harmonização a que cheguei foi com Jaen de Oliveira do Conde, da região do Dão, sem qualquer contacto com madeira.

 

cabritoSurpresa é tudo

O universo culinário do cabrito, sendo bastante mais linear do que o do borrego, foi contudo o que mais me surpreendeu. Aconteceu numa das muitas deslocações ao Douro, no pino do Verão, a propósito de um evento ibérico. Houve uma prova num hotel perto, a que se seguiu um jantar na Quinta do Panascal. Fomos de barco até lá, e a noite estava igual ao dia que nos tinha calhado. O xisto ardente não deixava a temperatura descer. O meu carro tinha marcado 51ºC nessa tarde. Dois colegas espanhóis foram de urgência para o hospital.
Subimos até à balaustrada superior, que foi onde foi servido o jantar. Soprava uma ligeira aragem. Foi servido um vinho branco e tudo começou a assentar. Eis senão quando é servido o jantar, que era cabrito assado em forno a lenha. Desenhou-se ali mesmo uma espécie de antologia pantagruélica que nada nem ninguém podia ter imaginado. O cabrito e o Douro têm uma longa história conjunta, recheada de curiosidades e perplexidades. Aquele foi o melhor cabrito da minha vida, brilhantemente harmonizado com um estreme de Tinta Amarela do Baixo Corgo. O momento foi de esmagadora sublimidade. Ao mesmo tempo perdura na memória. Tudo o resto se desvaneceu volvidos estão mais de vinte anos. Foi a primeira vez que me dei conta da importância de voltar várias vezes a um mesmo prato para melhor o entender e melhorar. Inclui, naturalmente, o vinho. Foi também essa a primeira vez que verdadeiramente me apercebi da grandeza do cabrito à mesa. Tinha a vitela assada como emblema duriense, passei a dar a posição cimeira ao cabrito.

A importância da criatividade

Numa outra instância calhou-me a função de convidador no encontro anual de amigos na Quinta de Carvalhais, no coração do Dão. Organizado por Manuel Vieira, ainda nos seus tempos de enólogo da Sogrape, desafiava à vez. Depois, o indigitado tratava de reunir o grupo que nesse ano iria protagonizar os “Desafios de Carvalhais”. Convidei o chef Nuno Santos, do restaurante Puttanesca, em Leiria, para tratar do almoço. Com o seu temperamento border line, dado à extravagância culinária mas sempre genial, era difícil fazer uma ideia do que se iria passar. Decidiu fazer o seu cabrito, porventura a mais minimalista forma de cozinhar o dito que até hoje me foi dado provar. Levou também miudezas de cabrito, que transformou com mestria em petiscos deliciosos. O segredo principal daquele almoço esteve na não intervenção, permitindo que sabores originais fossem até ao fim da linha para nosso grande deleite. Memorável foi também a harmonização com Alfrocheiro do Dão com estágio em barrica. Esse almoço ainda hoje é recordado com carinho. Eventos como esse são raros hoje em dia e fazem muita falta pelo poder congregador que representam.

Das muitas graças que a carne de caprino tem, há um prato que venero. É a chanfana, que abunda na Beira Baixa e se faz por todo o país. Sempre que visito um restaurante e há chanfana, é a ela que dedico a maioria da minha atenção. A carne que lhe está na base é de cabra velha, e é cozida em caçoilas de barro. As melhores são as que são feitas com todo o tempo do mundo e “esquecidas” no forno a lenha, ficando de um dia para o outro nas brasas mortiças. Há que selecionar bem as peças que se introduzem no recipiente de cozedura e a banha que se utiliza é crucial. Um tinto de Portalegre com bastante madeira é quase sempre a minha escolha para a assessoria vínica, mas as hipóteses são ilimitadas. Gosto muito de frequentar as criações do chef Ricardo Costa, do Yeatman, no Porto. Fiel às suas raízes, inclui a chanfana em diversas preparações nos seus menus de degustação. Depura-a ao ponto de se tratar de uma criação de alta cozinha, o que significa olhar para aspectos como a digestibilidade e expressão de terroir. A cozinha tradicional portuguesa é sobretudo um matizado de cozinhas regionais e por isso a chanfana está presente em todos os pequenos recantos de Portugal. Espera-se dos chefs de primeira linha que inovem nas preparações de sempre e na cozinha dos seus avós.

(Artigo publicado na edição de Maio de 2025)

Restaurante Gastronómico: Requinte com vista deslumbrante!

restaurante Gastronómico

A cozinha é de imaginação, evidenciando qualidade, diversidade e a frescura dos produtos locais. Tudo pensado ao mais ínfimo pormenor, com elevado requinte e sofisticação e um serviço exemplar, para proporcionar um momento de degustação inesquecível. Aberto desde 2010, ano em que foi inaugurado o The Yeatman Hotel, o Restaurante Gastronómico é um destino de […]

A cozinha é de imaginação, evidenciando qualidade, diversidade e a frescura dos produtos locais. Tudo pensado ao mais ínfimo pormenor, com elevado requinte e sofisticação e um serviço exemplar, para proporcionar um momento de degustação inesquecível.

Aberto desde 2010, ano em que foi inaugurado o The Yeatman Hotel, o Restaurante Gastronómico é um destino de eleição para apreciadores de vinho e amantes da gastronomia de excelência. Liderado pelo chef Ricardo Costa desde o início, tem hoje duas estrelas Michelin e um conceito inspirado na gastronomia nacional, onde os ingredientes locais ocupam o lugar de destaque e os pratos tradicionais são recriados à luz dos novos tempos. Ao menu de degustação sazonal, composto por cerca de 12 momentos a 260€ por pessoa, pode ser adicionado um de três suplementos vínicos – The Prime Selection 260€, The Yeatman Selection 130€, The Non-alcoholic Selection 100€, selecionados por Elisabete Fernandes, diretora de vinhos do Yeatman, por forma a garantir um pairing memorável. O serviço é discreto, mas exemplar, profissional, de enorme simpatia. A atenção ao detalhe está presente em cada momento, seja na decoração, na louça, no requinte e sofisticação. Enfim, classe à mesa numa experiência de fine dining inesquecível.

À chegada somos convidados a apreciar um conjunto de snacks enquanto desfrutamos da vista maravilhosa à nossa frente. De entre as várias propostas, o Frango no churrasco, um homenagem ao célebre franguinho da Guia, foi talvez a mais surpreendente. O pairing com espumante Quinta das Bágeiras Rosé Baga Bairrada 2018 não poderia ser mais acertado. Antes de rumarmos ao interior do restaurante, tempo de visitar a cozinha, espaço onde uma equipa coesa e muito talentosa nos foi preparando os momentos que se seguiram. A refeição foi sempre em crescendo, passando pelo choco, o salmonete, o tamboril e o espetacular bacalhau com grelos, grão-de-bico e mão de vitela, pratos repletos de sabor e umami acompanhados por uma seleção de vinhos certeira, com destaque maior para o Quinta de San Joanne 2003. Antes do grande final, de salientar o pão caseiro The Yeatman, de massa mãe, com azeite e manteiga caseira. Não é fácil fazer do simples tão bom. E tão bem!

Para o final, o momento Leitão The Yeatman, cujo sabor  à moda da bairrada “se inspirou nos melhores assadores, Ricardo, do restaurante Mugasa, e o Sr. Vidal, da casa Vidal”, salientou, nesse dia, Ricardo Costa. A sobremesa Farturas, que remete de imediato para as festas populares, era crocante, de textura equilibrada e viciante, e fechou com chave de ouro a degustação, acompanhada por um Porto 50 anos. Que maravilha!

Restaurante Gastronómico

The Yeatman

Rua do Choupelo, 4400-088, Vila Nova de Gaia

Tel.: +351 220 133 100

Reservas: https://www.the-yeatman-hotel.com/pt/gastronomia/restaurante/

Email: reception@theyeatman.com

Aberto de terça-feira a Sábado ao jantar

Guelra: Um mergulho no mar!

Guelra

Na verdade, quase podíamos dizer que o Guelra são dois restaurantes em um. No rés do chão, com um balcão em U e a esplanada confortável adjacente, a que puseram o nome de “ocean to table”, a aposta é mais informal com algumas sugestões de cozinha de conforto e a montra de peixe e marisco […]

Na verdade, quase podíamos dizer que o Guelra são dois restaurantes em um. No rés do chão, com um balcão em U e a esplanada confortável adjacente, a que puseram o nome de “ocean to table”, a aposta é mais informal com algumas sugestões de cozinha de conforto e a montra de peixe e marisco a piscar-nos o olho, para além de ostras, rissóis de camarão, croquetes de polvo e puntinilhas de choco e outros snacks e petiscos. No “first floor” – porquê a insistência destes nomes em inglês? – a aposta é mais ambiciosa e está a meio caminho do fine dinning e os eventos sopram de leste, desde o Japão.

No Guelra oficiam dois chefes, Manuel Barreto que supervisiona os dois espaços e Gonçalo Gonçalves responsável pela cozinha do 1º piso a quem ficámos a dever a experiência do almoço que nos foi dado degustar. O serviço de vinhos está a cargo do sommelier Ricardo Bento que revelou muito acerto nas propostas de harmonização, tirando o caso particular da sobremesa em que o match não funcionou. O conceito aqui, no dizer dos responsáveis, é uma viagem gastronómica que reflete as transações entre Portugal e o país do sol nascente. Começamos com uma ostra da Ria Formosa com um tempero especial que nos despertou os sentidos. Avançamos depois para um Sashimi de peixe, no caso lírio dos Açores, com miso e vinagre de arroz, muito delicado e contido. Vem depois o caldo Dashi retemperador e pleno de sabor. As propostas seguintes passaram pelo Tártaro de atum, precioso, e a boa surpresa do Ramen de lula, um prato muito bem conseguido cheio de umami. Terminámos o percurso pelo mar do Oriente com um peixe bem português, um Robalo de ponto apurado, com endívia roxa, puré de raiz de aipo mostrando uma habilidosa fusão de sabores e revelando uma boa técnica culinária. A refeição termina com a sobremesa à base de pera Nashi, batata doce e camomila que só pecou pelo facto do vinho Moscatel que foi servido ter resultado menos bem na harmonização. Este “First Floor” funciona tanto ao almoço com menu de 3 etapas a €30 e ao jantar com menu de 7 momentos a €60.

O conceito do Guelra pode parecer um pouco confuso ao princípio, mas para o cliente que entre na onda revela-se uma agradável surpresa.

Guelra

Guelra

Rua de Belém, 35

Aberto todos os dias, das 12 às 22:00 horas

Email: reservas@guelraott.com

Tel: 939 002 081

Estive Lá: No Rossio Gastrobar

Rossio Gastrobar

Já não me lembro do número de vezes que calcorreei a Avenida da Liberdade acima e abaixo, 1,5 km de prédios antigos que foram sendo paulatinamente substituídos por edifícios modernos, de grande dimensão e, muitas vezes, de gosto duvidoso, onde ficam hoje algumas lojas das marcas mais mediáticas e caras de Portugal, essas geralmente de […]

Já não me lembro do número de vezes que calcorreei a Avenida da Liberdade acima e abaixo, 1,5 km de prédios antigos que foram sendo paulatinamente substituídos por edifícios modernos, de grande dimensão e, muitas vezes, de gosto duvidoso, onde ficam hoje algumas lojas das marcas mais mediáticas e caras de Portugal, essas geralmente de montras ornamentadas com melhor gosto que alguns prédios que as albergam. Nesse final, de uma sexta-feira recente, o destino foi o hotel Altis Avenida, que fica entre os Restauradores e o Rossio, para um cocktail e um repasto no restaurante/bar do seu topo.

O Rossio Gastrobar, que tem uma varanda com vista para a Baixa de Lisboa e o Castelo de S. Jorge, mais ao longe, é agradável. Nesse final de dia fresco ficámos no exterior, confortados pelas chamas dos aquecedores a gás a usufruir de um espaço que esteve sempre cheio de gente, sobretudo turistas que iam ali para estar um pouco numa das poucas esplanadas com vista sobre Lisboa e talvez também para saborear um dos cocktails de Flavi Andrade, chefe de Bar do hotel que alberga este espaço, que foi eleita a melhor barmaid do ano na edição de 2024 do Lisbon Bar Show. Foi também o que fizemos e valeu a pena.

Depois de uma pequena conversa com a autora, para perceber melhor o que a inspira a criar os seus cocktails, optei pelo seu Cacilheiro, já que estávamos tão perto do Tejo, e fiz bem. O repasto que se seguiu foi criado pelo chefe João Correia, com a entrada a ser composta por Mini tarteletes de cogumelos e pickle de limão, Crocantes de gamba da costa e maionese de coentros e Pastéis de massa tenra, vitelão e cebolinho, o primeiro e o último a fazerem muito boa companhia ao Caves S. João Pulo do Lobo Arinto de 2020. Para além de um Arroz Saboroso, regado com o suco da cabeça de camarão tigre,  e feito ao estilo da paelha valenciana, em parceria de um tinto Porta de Cavaleiros Reserva 2019, muito equilibrado e elegante, também saboreámos, para terminar, uma Tarte de Noz Pecan e gelado de aguardente. Tudo isto servido, de forma eficiente, por pessoas simpáticas e agradáveis. Soube bem.

 

Rossio Gastrobar

Rua 1º Dezembro, 118, Lisboa

Tel.: + 351 210 440 018

Email: rossio@altishotels.com

 

 

Chocolate: Um ingrediente sedutor e romântico

Chocolate

Vou na sexta década de existência, e aquilo que conheço como chocolate mudou várias vezes. A primeira configuração de que fui sempre fã foi, até que desapareceu, a de uma tablete chamada “Comacompão”, que vinha numa embalagem alaranjada com uma diagramação apetecível de sanduíche de chocolate. O modo de usar era, para mim, simples e […]

Vou na sexta década de existência, e aquilo que conheço como chocolate mudou várias vezes. A primeira configuração de que fui sempre fã foi, até que desapareceu, a de uma tablete chamada “Comacompão”, que vinha numa embalagem alaranjada com uma diagramação apetecível de sanduíche de chocolate. O modo de usar era, para mim, simples e cómodo, pois bastava abrir um papo-seco a meio e colocar dentro a tablete inteira. Não tinha muito açúcar – nunca gostei de coisas muito doces – e tinha minúsculas passas de uva que tornavam a exploração mais saborosa.
Entretanto, muita água passou por debaixo da ponte e o mundo do chocolate revelou-se descoberta empolgante. Apareceram marcas e estilos diferentes, em resultado sobretudo da abertura de Portugal ao mundo, com a consequente invasão de produtos importados.

O chocolate em pó tinha um sabor amargo pronunciado. Vim a saber que resultava da extrusão por pressão da parte escura da fava de cacau. Nunca, contudo, me habituei a colocá-lo no leite e o termo de comparação que tinha era o do fabuloso chocolate quente, que bebia nas vezes em que lanchava com as minhas tias na pastelaria Suíça ou na Mexicana. Curiosamente, ambas as casas continuam a existir e a servir chocolate quente e continua delicioso. Nada a ver, contudo, com a fabulosa combinação de chocolate com churros que, nas frequentes deslocações a Madrid, me era dado provar. Espessura quase de pudim, muito sabor e a ligação com os pequenos fritos frisados sempre me fascinou.

Cada casa, em Portugal ou Espanha, tinha o seu próprio chocolate mas, no fundo, existia o denominador comum de se tratar de chocolate de leite. Foi também em Espanha que provei pela primeira vez chocolate branco, aquilo que rodeia a semente da fava e se consegue separar facilmente. Em rigor, não se devia chamar chocolate. Mas, na prática, passava por tal por conter partes derivadas da dita fava, a que se acrescentava açúcar. Exactamente nos antípodas daquilo que me atraía no chocolate e, por isso, passei a desprezar. A maioria dos trabalhos de moldagem de chocolate são contudo conseguidos graças ao chocolate branco ou manteiga de cacau, depois tingidos a gosto. Os chips de cacau, obtidos a partir da camada intermédia da fava por manipulação com pressão ou calor, cobrem um espectro vasto de aplicações em proporções variadas. É a partir de produto dessa zona que se faz o que conhecemos como chocolate de leite. Normalmente parte-se de chocolate em pó e depois tempera-se até atingir a doçura e a consistência desejadas. Até 60% de cacau, considera-se chocolate de leite na maioria das aplicações e marcas. Acima disso, começamos a atingir o chamado chocolate negro, rico em antioxidantes. Acima de 70%, podemos considerar que estamos perante chocolate negro, a que muitos erradamente chamam chocolate amargo.

 

Chocolate

 

Os frutos do cacaueiro reconhecem-se facilmente, pois são pendentes coloridos com o formato oblongo de bolas de râguebi. O interior contém um material esbranquiçado e sementes, das quais se obtém o cacau.

 

Vinho e chocolate

A bondade da ligação de vinho com chocolate tem origem nas muitas pontes de sabor que facilmente se estabelecem entre ambos. No vinho temos álcool, acidez, polifenóis e açúcar como base de degustação e diferenciação. No chocolate temos açúcar, acidez e amargos. Nas inúmeras provas que tive o privilégio de orientar, criei uma espécie de regra de três simples, estritamente extraída da experiência. Com chocolate branco, moscatel de Setúbal; com chocolate de leite, vinho Madeira Malvasia; com chocolate negro, vinho do Porto ruby. Nos tempos idos do evento Chocolate em Lisboa, assisti a autênticas epifanias no lado do consumidor, quando as pessoas passaram a ter o comando sobre o racional da prova. Perceberam sobretudo que os flavonóides do chocolate têm correspondência directa com os taninos do vinho. Uns e outros correspondem aos elementos antioxidantes, e podem ser, além disso e a propósito, os elementos saudáveis de que precisamos para uma alimentação equilibrada. Como em tudo, os excessos são de evitar. Mas se soubermos seleccionar o que nos faz bem, as nossas vidas correm melhor.

 

Um pouco de história

A chamada árvore de cacau existe sobretudo na América Central e o fruto reconhece-se facilmente, pois trata-se de pendentes coloridos que têm o formato oblongo de bolas de râguebi. O interior contém um material abundante e esbranquiçado e sementes, das quais se obtém o cacau. As ditas sementes só se obtêm nos territórios de que falamos, numa história notável que nos faz recuar até dois mil anos antes de Cristo. As civilizações maia e asteca criaram um filão que encantou o descobridor espanhol Hernan Cortés no séc. XVI, a ponto de chegar a ver nele uma riqueza infindável.

Do que nos foi até hoje revelado, o chocolate era essencialmente consumido na forma líquida. As quantidades diárias ingeridas eram estratosféricas e apenas sacerdotes e governantes tinham acesso à bebida, talvez por isso mesmo. O célebre líder asteca Montezuma II consumia, segundo relatos do próprio Cortés, 50 chávenas de chocolate quente por dia. Terá sido por isso que a bebida foi rapidamente levada para Espanha, passando a ter honras até então reservadas ao chá e ao café. A Europa do final do séc. XVII, início do séc. XVIII. estava totalmente rendida ao grande novo valor do chocolate. As pessoas lotavam todas as salas disponíveis para beber uma chávena de chocolate quente. No final do séc. XVIII, o chocolate não podia estar mais na moda e a tablete ou barra impuseram-se enquanto forma individualizada de o consumir.

A grande revolução acontecia a olhos vistos, e o truque, da autoria do suíço Rodolphe Lindt, foi adicionar manteiga de cacau ao chocolate líquido. O procedimento industrial foi baptizado de conchagem (conching) e, no dealbar do séc. XIX, estabelecia-se toda uma nova ordem, coroando de glória a grande invenção. Nascia o chocolate da era moderna. Além de mais sólido, era também mais durável. Podia conservar-se facilmente num armário doméstico ou na despensa. O fascínio, esse, permanece vivo na mente e no coração dos actuais criadores. A marca Lindt é a que ainda hoje conhecemos e deve-se ao grande inventor e chocolateiro suíço. Muitos outros se lhe seguiram, diluindo bastante o seu protagonismo.

Chocolate

O célebre líder asteca Montezuma II consumia, segundo relatos do próprio Cortés, 50 chávenas de chocolate quente por dia.

 

Compliquemos um pouco

O assunto chocolate cobre bastante mais do que a simples enumeração de ingredientes e técnicas de produção. O estado actual das coisas aponta para a proveniência da fava como factor determinante para conseguir chegar ao pináculo do conhecimento. Percorremos o catálogo da Michel Cluizel, um dos melhores fabricantes de chocolate do mundo, e abismamos perante o triunfo da diversidade que este grande produtor oferece. Vahlrona, Callebaut – provavelmente a maior de todas as marcas -, Neuhaus e muitas outras marcas povoam densamente o universo superior da arte do chocolate. Todas têm o seu manifesto próprio quanto a origens das suas plantas de cacau e, por isso mesmo, todas também fazem marcação cerrada à concorrência. Por cá temos grandes intérpretes do chocolate, chefs que se distinguiram pela originalidade das suas criações. Rui Costa, da pastelaria Marbela, em Esposende, é um grande exemplo. Francisco Siopa, do Hotel Penha Longa, em Sintra, apresenta sistematicamente novas criações que nos fazem vibrar e enternecer. Francisco Melgão e seu irmão Serafim desenvolveram marca própria e dominam todas as técnicas industriais. No seu reduto, em Montemor-o-Novo, vão-nos brindando com as suas inovações. Pode visitar-se e comprar no local, ou encomendar e receber em casa. Cito apenas três, dos vários que poderia citar, com um critério de elencagem estritamente geográfico. Portugal está cheio de talentos por descobrir, que fazem trabalho notável. Eventos aqui e ali vão-nos dando pistas para novas descobertas, mas o país tem massa crítica para ir mais longe na ambição. Fica o modesto repto.

 

Fama com (muito) proveito

Todo o português leva ao peito os produtos da sua preferência mas, na doçaria, somos ainda tímidos. O bolo de chocolate cobre o planeta inteiro e cabe-nos a nós epicuristas provar e aprovar alguns. Aquele que me prendeu mais a alma até hoje provei-o na Suécia e é muito popular por lá. É baseado em chocolate negro, parco no açúcar e muito denso. É desafiante do ponto de vista da harmonização, mas resulta bem com um Pinot Noir novo e sem madeira. É fantástica a torta caprese, que me ficou na memória quando, em 1993, visitei a ilha italiana de Capri. Não leva qualquer tipo de farinha mas leva amêndoa, que lhe dá uma tonalidade com algum corpo, mas pede leveza no vinho. Um Porto branco com mais de vinte anos faz-lhe bem as honras.

O truque mais famoso do mundo pasteleiro é cozer pouco o bolo de chocolate e quando isso é feito intencionalmente o impacte é sempre grande. Os americanos chamam-lhe lava cake, pelo efeito do chocolate a escorrer, evocativo da lava de um vulcão em erupção. Nós chamamos-lhe coração de chocolate quente, ou fondant de chocolate. Um vinhão sem madeira da região dos vinhos verdes, desde que servido a temperatura inferior a 16ºC faz-lhe bem as loas. Pode parecer demasiado arriscado mas o sucesso é garantido, até pelo contraste de temperaturas.

Só fui duas vezes a Viena, e a primeira incursão tinha de ser coroada com a visita ao célebre café Sacher. Mas confesso desde já a minha desilusão. Foi criada na primeira metade do séc. XIX por Franz Sacher, que na altura tinha apenas 16 anos, para o então príncipe chanceler da Áustria. Leva doce de alperce e tem uma espessa camada de chocolate. Até hoje ainda não consegui acertar na maridagem certa. A que funcionou melhor foi com licor de tangerina. A Sacher-Tarte foi, desde aquele dia de 2002, um projecto aberto que vou tentando fechar em beleza. Para contrabalançar a experiência menos feliz, entrego-me facilmente e sem hesitações a um bolo brigadeiro. É um autêntico festival de chocolate e a sua estrutura húmida ajuda a gula a cumprir o seu desígnio. Apesar da estrutura baseada em chocolate negro, a minha opção vínica vai invariavelmente para Porto Tawny 40 anos. A cremosidade é preservada e o vinho sustenta com frescura e eficácia o brigadeiro gigante.

Chocolate

 

O bolo de chocolate cobre o planeta inteiro e cabe-nos a nós epicuristas provar e aprovar alguns.

 

As pequenas coisas

O gengibre revestido com chocolate é grande amigo do vinho, especialmente se for servido em pequenas tiras, ou fingers. Nesta harmonização, contudo, o ingrediente mais importante é o gengibre e não o chocolate que o reveste. A melhor experiência nesta abordagem aconteceu, sem surpresa, com um Arinto de Lisboa com mais de dez anos. Se o revestimento exterior for feito com chocolate de leite, opte por um aragonês alentejano novo e sem madeira. A reacção da casta ao gengibre é inesquecível. O celebrado bombom After Eight cabe nesta categoria e pede assessoria vínica certeira, e irá bem com um Alicante Bouschet de talha, também de terroir alentejano. Estamos no domínio da guloseima e o caso da laranja e chocolate é namoro antigo. Faz crescer água na boca a lasca de casca de laranja passada por chocolate negro. Se for acompanhada de um Gewurztraminer, é o céu. Aconselho esta mesma configuração, com pimento vermelho passado por chocolate negro. A explosão de sensações é fantástica, neste caso.

Passando ao domínio dos frutos secos, o simples revestimento de um pistáchio torrado com chocolate branco é toda uma emoção. E se lhe acrescentar piripiri ainda melhor. Maridagem mais delicada, mas proveitosa, é a que se consegue com um moscatel de Setúbal com mais de vinte anos. Um fruto seco que há que expor ao chocolate é a noz. Faça a experiência com chocolate de leite e depois harmonize com um bom malvasia da Madeira. Também gosto muito de maridar tâmaras passadas por chocolate negro e com vinho do Porto branco seco, sem madeira. Se tem experiência e confiança para entrar nos bombons, não deixe de experimentar foie gras ligado com chocolate negro. Abra um bom Porto Vintage e regozije com a experiência. Faça vários, porque vai ter muita audiência na família ou no grupo de amigos. Boas provas!

(Artigo publicado na edição de Março de 2025)