Cabrito, borrego e outras primícias

A Natureza continua a marcar o ritmo de forma inexorável. O que é muito bom para todos nós, que continuamos a ser tão susceptíveis e permeáveis a tudo o que é novo só por si. Mas desde o abrolhamento nas vinhas à cobertura de flores pelos campos fora, tudo é sinal de renascimento. É o […]
A Natureza continua a marcar o ritmo de forma inexorável. O que é muito bom para todos nós, que continuamos a ser tão susceptíveis e permeáveis a tudo o que é novo só por si. Mas desde o abrolhamento nas vinhas à cobertura de flores pelos campos fora, tudo é sinal de renascimento. É o momento da afirmação anual da vida e da vontade de viver, e o inevitável toque a reunir das famílias. E de abrir boas garrafas de vinho para a festa da partilha.
Começo pelo mais importante, a nota de pesar relativa ao desaparecimento prematuro de Ana Soeiro, figura marcante e importante no desenrolar da afirmação da produção nacional em toda a sua abrangência. Acompanhei de perto o trabalho fundador que fez com a sua brilhante equipa de colaboradores no Ministério da Agricultura, de levantamento de produtos certificados e em vias de certificação por todo o país. Retenho, com honra e garbo, os magníficos ficheiros a que Ana Soeiro me deu acesso, dando conta dos avanços vagarosos e despretensiosos do colectivo que coordenava. A abrangência do seu labor é colossal, e vai desde a criação de gado à mais particular e subsidiária receita de um prato regional executado a preceito e de forma sistemática. Quando saiu de funções no ministério, fundou a Qualifica, que desde logo se prontificou a tornar visível muito desse trabalho, ao mesmo tempo que estabeleceu ponte inédita com a certificação no espaço europeu. Se hoje vemos as siglas IGP – Indicação Geográfica Protegida – e DOP – Denominação de Origem Protegida – disseminadas entre nós, parte significativa desse trabalho é-lhe devido. Há que ter em conta a capacidade de fazer face à morosidade e complexidade envolvidas normalmente nesses processos. O tempo há de encarregar-se de lhe fazer justiça. Para já, fica a nota necessária e fundamental, em jeito de tributo.
Tenho bem presentes aspectos históricos e patrimoniais que imortalizam o borrego como proteína preferencial. O seu ensopado tem importância fundadora e que perdura até aos dias de hoje.
O cabrito só é feliz a saltarilhar
Dá-nos muitas alegrias à mesa o cabrito que, juntamente com o borrego, tem expressão fundamental e protocolar nos animais sacrificiais que, por esta altura, têm honras de mesa. Para Júlio Lameiras, acérrimo e sábio defensor das raízes beirãs da alimentação, “o cabrito para ser feliz tem de saltarilhar na pedra da serra”. A alimentação à base de ervas espontâneas e frutos de arbusto é suficiente para dar origem a belas e vigorosas crias, mesmo em fase de aleitação materna. Resulta, por isso, na matéria-prima tão do gosto do consumidor português, com a particularidade adicional da consensualidade. Não há quem não goste de um bom cabrito assado. De norte a sul do país, faz-lhe bem as honras o vasto receituário ditado pela cozinha de pastor. É grande o contributo das verduras de vagem que começam a grassar ao mesmo tempo. Ervilhas, favas, leguminosas diversas compõem muito o ramalhete das opções disponíveis. A carne ganha muito com uma marinada de água e limão um dia antes do momento formal do processamento culinário. Tem geralmente pouca gordura e assa muito bem, desde que a temperatura não seja demasiado alta. Uma segunda marinada em vinha de alhos é benéfica e vai assegurar excelência no período de forno ou grelha. Um tinto novo de Trás-os-Montes faz-lhe bem as loas.
Cabrito, borrego, leitão e vitela desempenham na história da nossa alimentação um papel festivo insubstituível. Para marcar momentos importantes, desde sempre utilizamos a prática de abater uma cria e levá-la à mesa inteira. O grau de requinte com que isso era feito depende obviamente da vontade, posses e disposições. Ainda hoje é assim, como nos tempos de outrora. Podemos contudo afirmar que, na perspectiva estrita da criação, abater uma peça primicial implica abdicar de um valor futuro maior, que nunca é despiciendo. Sempre se fez com os olhos postos nos valores futuros e universais, tai como a união de uma família, e criação efectiva e intemporal de riqueza, ou o regresso a casa de um membro da família que estava longe. Todas estas situações configuram a necessidade absoluta de festejar. Independentemente da proteína em jogo, a idade é o dado mais relevante no tocante à harmonização vínica. Tendencialmente, são apostas mais felizes os vinhos com pouca ou nenhuma madeira, a menos de algum pormenor de processamento culinário que faça toda a diferença. Sabemos contudo que não é assim. Desempenha papel importante neste cenário um vinho jovem estreme da casta Castelão sem madeira.
Não há quem não goste de um bom cabrito assado. De norte a sul do país, faz-lhe bem as honras o vasto receituário ditado pela cozinha de pastor.
O borrego e seus muitos encantos
A vida ensinou-me bastante sobre criação de borregos, seu abate e ligações ideais da sua carne com vinho. Se no caso do cabrito a leitura tinha forçosamente de ser nacional, no tocante ao borrego, à excepção do prodigioso cordeiro de Miranda do Douro, a capital é estável e fica no Alentejo. São diversos os factores que apontam para esta evidência. As transumâncias longas e aturadas do gado ovino. A indústria distribuída do queijo. O aproveitamento da lã. E a resistência à intempérie. Isto além de outros factores que apontem claramente o ovino como a proteína mais capaz e vencedora. Tenho bem presentes aspectos históricos e patrimoniais que imortalizam o borrego como proteína preferencial. O seu ensopado tem importância fundadora e que perdura até aos dias de hoje. O desaparecido Manuel Fialho, com quem tive o imenso privilégio de conviver ao longo de vários anos, desenvolveu trabalho teórico de sistematização que jamais esquecerei. Aliás, trata-se mais de inquietações do que de sistematizações propriamente ditas. Quando estamos nos granitos frios do norte alentejano, é frequente encontrarmos património micológico muito relevante na composição do ensopado de borrego. A utilização de batata é intermitente nessas latitudes, sendo bastante frequente a castanha, que ainda hoje se encontra, a par da já mencionada utilização de cogumelos nativos. Descemos na geografia para Évora e damos com um ensopado de borrego que contém normalmente batata e ervilhas e disponibiliza caldo abundante, pelo que é frequentemente consumido com uma colher de sopa. As partes de carne e respectivos ossículos são explorados à mão. Quando chegamos a Serpa, capital da maior transumância ovina nacional, constatamos que não há batata nem ervilhas na composição do ensopado. Estamos perante um caldo rico orlado de bom pão alentejano, selecção rigorosa das peças cortadas para o ensopado e utilização de poejo e hortelã da ribeira como temperos fundamentais. Do ponto de vista da harmonização com vinho, há bondade na aproximação a tintos de Alicante Bouschet encorpados com estágio longo em madeira. O ensopado que situei em Évora constitui, contudo, excepção. Nesse caso, a batata e as ervilhas levam facilmente a que a harmonização ideal seja com um vinho branco jovem de Arinto e Fernão Pires, com algum estágio em madeira.
Há muitas verdades no assunto da ligação de vinho com comida, como todos sabemos e facilmente aceitamos. Trago aqui agora uma curiosidade culinária que para mim se tornou sacramental. Trata-se da perna de borrego assada com dois dentes de cravinho apenas, que aprendi a fazer com o gigante Gabriel Fialho. Vale a pena reconstituir a cena. Estou sentado na sala de entrada do restaurante Fialho, em Évora, onde Gabriel Fialho oficiava à frente da cozinha. A sua personalidade natural era de grande empatia com toda a gente. Quem o conheceu sabe como era assim. De repente, eis que entra na sala onde eu estava, com uma colher de sopa e uma mão por debaixo, em concha. Vem direito a mim e diz-me para abrir a boca. Era um molho, que logo me descreveu como sendo resultante de assar uma perna de borrego apenas com dois dentes de cravinho. Sentou-se à minha frente, sem conseguir esconder a excitação quase infantil que o animava naquele momento. O cravinho era espetado em dois pontos específicos que ele me indicou. Memorizei tudo o que me disse. Estão quase a cumprir-se doze anos desde que deixou a esfera do chão, há-de estar a deleitar os seus pares com as suas muitas perplexidades. A verdade é que nunca mais voltei a assar borrego que não fosse com aquele toque minimalista. Sete horas a 70 graus, a peça totalmente envolta em papel de alumínio. A melhor harmonização a que cheguei foi com Jaen de Oliveira do Conde, da região do Dão, sem qualquer contacto com madeira.
O universo culinário do cabrito, sendo bastante mais linear do que o do borrego, foi contudo o que mais me surpreendeu. Aconteceu numa das muitas deslocações ao Douro, no pino do Verão, a propósito de um evento ibérico. Houve uma prova num hotel perto, a que se seguiu um jantar na Quinta do Panascal. Fomos de barco até lá, e a noite estava igual ao dia que nos tinha calhado. O xisto ardente não deixava a temperatura descer. O meu carro tinha marcado 51ºC nessa tarde. Dois colegas espanhóis foram de urgência para o hospital.
Subimos até à balaustrada superior, que foi onde foi servido o jantar. Soprava uma ligeira aragem. Foi servido um vinho branco e tudo começou a assentar. Eis senão quando é servido o jantar, que era cabrito assado em forno a lenha. Desenhou-se ali mesmo uma espécie de antologia pantagruélica que nada nem ninguém podia ter imaginado. O cabrito e o Douro têm uma longa história conjunta, recheada de curiosidades e perplexidades. Aquele foi o melhor cabrito da minha vida, brilhantemente harmonizado com um estreme de Tinta Amarela do Baixo Corgo. O momento foi de esmagadora sublimidade. Ao mesmo tempo perdura na memória. Tudo o resto se desvaneceu volvidos estão mais de vinte anos. Foi a primeira vez que me dei conta da importância de voltar várias vezes a um mesmo prato para melhor o entender e melhorar. Inclui, naturalmente, o vinho. Foi também essa a primeira vez que verdadeiramente me apercebi da grandeza do cabrito à mesa. Tinha a vitela assada como emblema duriense, passei a dar a posição cimeira ao cabrito.
A importância da criatividade
Numa outra instância calhou-me a função de convidador no encontro anual de amigos na Quinta de Carvalhais, no coração do Dão. Organizado por Manuel Vieira, ainda nos seus tempos de enólogo da Sogrape, desafiava à vez. Depois, o indigitado tratava de reunir o grupo que nesse ano iria protagonizar os “Desafios de Carvalhais”. Convidei o chef Nuno Santos, do restaurante Puttanesca, em Leiria, para tratar do almoço. Com o seu temperamento border line, dado à extravagância culinária mas sempre genial, era difícil fazer uma ideia do que se iria passar. Decidiu fazer o seu cabrito, porventura a mais minimalista forma de cozinhar o dito que até hoje me foi dado provar. Levou também miudezas de cabrito, que transformou com mestria em petiscos deliciosos. O segredo principal daquele almoço esteve na não intervenção, permitindo que sabores originais fossem até ao fim da linha para nosso grande deleite. Memorável foi também a harmonização com Alfrocheiro do Dão com estágio em barrica. Esse almoço ainda hoje é recordado com carinho. Eventos como esse são raros hoje em dia e fazem muita falta pelo poder congregador que representam.
Das muitas graças que a carne de caprino tem, há um prato que venero. É a chanfana, que abunda na Beira Baixa e se faz por todo o país. Sempre que visito um restaurante e há chanfana, é a ela que dedico a maioria da minha atenção. A carne que lhe está na base é de cabra velha, e é cozida em caçoilas de barro. As melhores são as que são feitas com todo o tempo do mundo e “esquecidas” no forno a lenha, ficando de um dia para o outro nas brasas mortiças. Há que selecionar bem as peças que se introduzem no recipiente de cozedura e a banha que se utiliza é crucial. Um tinto de Portalegre com bastante madeira é quase sempre a minha escolha para a assessoria vínica, mas as hipóteses são ilimitadas. Gosto muito de frequentar as criações do chef Ricardo Costa, do Yeatman, no Porto. Fiel às suas raízes, inclui a chanfana em diversas preparações nos seus menus de degustação. Depura-a ao ponto de se tratar de uma criação de alta cozinha, o que significa olhar para aspectos como a digestibilidade e expressão de terroir. A cozinha tradicional portuguesa é sobretudo um matizado de cozinhas regionais e por isso a chanfana está presente em todos os pequenos recantos de Portugal. Espera-se dos chefs de primeira linha que inovem nas preparações de sempre e na cozinha dos seus avós.
(Artigo publicado na edição de Maio de 2025)
Alexandre Cabrita é o novo Chefe do Ano

Alexandre Cabrita, do restaurante Al Sud (uma estrela Michelin) do Palmares Ocean Living & Golf, em Lagos, venceu, aos 28 anos, a 36.ª edição do maior e mais antigo concurso nacional de cozinha e é o Chefe do Ano de 2025. A final do concurso decorreu no Centro Multiusos de Lamego. Numa final muito disputada, […]
Alexandre Cabrita, do restaurante Al Sud (uma estrela Michelin) do Palmares Ocean Living & Golf, em Lagos, venceu, aos 28 anos, a 36.ª edição do maior e mais antigo concurso nacional de cozinha e é o Chefe do Ano de 2025. A final do concurso decorreu no Centro Multiusos de Lamego.
Numa final muito disputada, o novo Chefe do Ano conquistou o júri com um menu composto por Açorda de tomate e espargos com gema de codorniz (Entrada Vegetariana), Bacalhau com grão e emulsão de colagénio e pimentos (Prato Bacalhau), Borrego com cenoura algarvia e arroz de forno (Prato de Carne com Arroz) e Mousse de laranja com texturas de azeite e aromas de poejo (Sobremesa com Azeite). Nesta edição, os candidatos enfrentaram o desafio de criar um menu completo que valorizasse as raízes da gastronomia portuguesa e privilegiasse os produtos de origem nacional.
“Ganhar o Chefe do Ano é inexplicável. Estou muito feliz! Foram meses de trabalho e dedicação para esta prova, para ter um bom desempenho e orgulhar-me do meu trabalho. E foi isso que aconteceu”, disse o vencedor. Nascido em Portimão, começou o seu percurso a sul, nos restaurantes F e O Rafaiol. Em 2020 integra o Vista, no Hotel Bela Vista com o chefe João Oliveira. Dois anos depois junta-se ao Al Sud, Palmares Ocean Living & Golf, sob a batuta do chefe Louis Anjos. Hoje exerce no restaurante a função de sub-chefe júnior. A equipa do Al Sud passa assim a integrar três vencedores do concurso, depois de Louis Anjos (vencedor em 2012) e Jeferson Dias (vencedor em 2023).
A avaliar a prova final estiveram os chefes António Bóia (JNcQUOI World e Presidente de Júri), Luís Gaspar (Sala de Corte; Chefe do Ano 2017), Marlene Vieira (Marlene, uma estrela Michelin), António Loureiro (A Cozinha, uma estrela Michelin; Chefe do Ano 2014), Andreia Moutinho (Chefe Pasteleira), Rui Martins (Chefe do Ano 2016), Dieter Koschina (Vila Joya; duas estrelas Michelin), Paulo Pinto (ACPP) e Diogo Novais Pereira (Porinhos; Chefe do Ano 2024), como jurado observador.
Jorge Bolito, do The Yeatman, e Vítor Miranda, do Pena Park Hotel e do Biclaque Trajano ficaram em 2.º e 3.º lugares, respetivamente, nesta edição do Chefe do Ano. A final contou ainda com a participação de Afonso Alves, do Mezze, Bruno Garcia, da Fortaleza do Guincho e Mário Santos, do Rossio Gastrobar.
Chefe David Jesus junta-se à Quinta do Vallado

O chefe de cozinha David Jesus juntou-se à Quinta do Vallado para liderar novo projeto gastronómico na Ribeira do Porto e renovar proposta dos hotéis de enoturismo. A parceria entre a Quinta do Vallado e David Jesus origina um novo capítulo na vertente gastronómica da Quinta do Vallado, que inclui os hotéis da Régua e […]
O chefe de cozinha David Jesus juntou-se à Quinta do Vallado para liderar novo projeto gastronómico na Ribeira do Porto e renovar proposta dos hotéis de enoturismo.
A parceria entre a Quinta do Vallado e David Jesus origina um novo capítulo na vertente gastronómica da Quinta do Vallado, que inclui os hotéis da Régua e de Foz Côa e o mais recente projeto na Ribeira do Porto.
O chefe português, actualmente chef e proprietário do restaurante Seiva, em Leça da Palmeira, conhecido pela sua cozinha vegetariana e sustentável, irá assinar a carta do Wine Bar e Restaurante do novo projeto da Quinta do Vallado, além de renovar as cartas dos dois hotéis com criações que respeitam as raízes do Douro, mas com uma identidade inovadora.
No coração da Ribeira do Porto, o novo espaço da Quinta do Vallado inclui uma loja de vinhos e sala de provas. Trata-se de um projeto assinado pelo arquitecto Francisco Vieira de Campos, que irá ocupar quatro pisos de um edifício histórico do século XVIII, restaurado em 2024.
Com vista privilegiada sobre o Douro e traços arquitetónicos originais, como arcadas em pedra, vitrais, tectos trabalhados e azulejos históricos, o novo projeto pretende ser um tributo ao Douro e à sua identidade.
Restaurante Gastronómico: Requinte com vista deslumbrante!

A cozinha é de imaginação, evidenciando qualidade, diversidade e a frescura dos produtos locais. Tudo pensado ao mais ínfimo pormenor, com elevado requinte e sofisticação e um serviço exemplar, para proporcionar um momento de degustação inesquecível. Aberto desde 2010, ano em que foi inaugurado o The Yeatman Hotel, o Restaurante Gastronómico é um destino de […]
A cozinha é de imaginação, evidenciando qualidade, diversidade e a frescura dos produtos locais. Tudo pensado ao mais ínfimo pormenor, com elevado requinte e sofisticação e um serviço exemplar, para proporcionar um momento de degustação inesquecível.
Aberto desde 2010, ano em que foi inaugurado o The Yeatman Hotel, o Restaurante Gastronómico é um destino de eleição para apreciadores de vinho e amantes da gastronomia de excelência. Liderado pelo chef Ricardo Costa desde o início, tem hoje duas estrelas Michelin e um conceito inspirado na gastronomia nacional, onde os ingredientes locais ocupam o lugar de destaque e os pratos tradicionais são recriados à luz dos novos tempos. Ao menu de degustação sazonal, composto por cerca de 12 momentos a 260€ por pessoa, pode ser adicionado um de três suplementos vínicos – The Prime Selection 260€, The Yeatman Selection 130€, The Non-alcoholic Selection 100€, selecionados por Elisabete Fernandes, diretora de vinhos do Yeatman, por forma a garantir um pairing memorável. O serviço é discreto, mas exemplar, profissional, de enorme simpatia. A atenção ao detalhe está presente em cada momento, seja na decoração, na louça, no requinte e sofisticação. Enfim, classe à mesa numa experiência de fine dining inesquecível.
À chegada somos convidados a apreciar um conjunto de snacks enquanto desfrutamos da vista maravilhosa à nossa frente. De entre as várias propostas, o Frango no churrasco, um homenagem ao célebre franguinho da Guia, foi talvez a mais surpreendente. O pairing com espumante Quinta das Bágeiras Rosé Baga Bairrada 2018 não poderia ser mais acertado. Antes de rumarmos ao interior do restaurante, tempo de visitar a cozinha, espaço onde uma equipa coesa e muito talentosa nos foi preparando os momentos que se seguiram. A refeição foi sempre em crescendo, passando pelo choco, o salmonete, o tamboril e o espetacular bacalhau com grelos, grão-de-bico e mão de vitela, pratos repletos de sabor e umami acompanhados por uma seleção de vinhos certeira, com destaque maior para o Quinta de San Joanne 2003. Antes do grande final, de salientar o pão caseiro The Yeatman, de massa mãe, com azeite e manteiga caseira. Não é fácil fazer do simples tão bom. E tão bem!
Para o final, o momento Leitão The Yeatman, cujo sabor à moda da bairrada “se inspirou nos melhores assadores, Ricardo, do restaurante Mugasa, e o Sr. Vidal, da casa Vidal”, salientou, nesse dia, Ricardo Costa. A sobremesa Farturas, que remete de imediato para as festas populares, era crocante, de textura equilibrada e viciante, e fechou com chave de ouro a degustação, acompanhada por um Porto 50 anos. Que maravilha!
Restaurante Gastronómico
The Yeatman
Rua do Choupelo, 4400-088, Vila Nova de Gaia
Tel.: +351 220 133 100
Reservas: https://www.the-yeatman-hotel.com/pt/gastronomia/restaurante/
Email: reception@theyeatman.com
Aberto de terça-feira a Sábado ao jantar
Guelra: Um mergulho no mar!

Na verdade, quase podíamos dizer que o Guelra são dois restaurantes em um. No rés do chão, com um balcão em U e a esplanada confortável adjacente, a que puseram o nome de “ocean to table”, a aposta é mais informal com algumas sugestões de cozinha de conforto e a montra de peixe e marisco […]
Na verdade, quase podíamos dizer que o Guelra são dois restaurantes em um. No rés do chão, com um balcão em U e a esplanada confortável adjacente, a que puseram o nome de “ocean to table”, a aposta é mais informal com algumas sugestões de cozinha de conforto e a montra de peixe e marisco a piscar-nos o olho, para além de ostras, rissóis de camarão, croquetes de polvo e puntinilhas de choco e outros snacks e petiscos. No “first floor” – porquê a insistência destes nomes em inglês? – a aposta é mais ambiciosa e está a meio caminho do fine dinning e os eventos sopram de leste, desde o Japão.
No Guelra oficiam dois chefes, Manuel Barreto que supervisiona os dois espaços e Gonçalo Gonçalves responsável pela cozinha do 1º piso a quem ficámos a dever a experiência do almoço que nos foi dado degustar. O serviço de vinhos está a cargo do sommelier Ricardo Bento que revelou muito acerto nas propostas de harmonização, tirando o caso particular da sobremesa em que o match não funcionou. O conceito aqui, no dizer dos responsáveis, é uma viagem gastronómica que reflete as transações entre Portugal e o país do sol nascente. Começamos com uma ostra da Ria Formosa com um tempero especial que nos despertou os sentidos. Avançamos depois para um Sashimi de peixe, no caso lírio dos Açores, com miso e vinagre de arroz, muito delicado e contido. Vem depois o caldo Dashi retemperador e pleno de sabor. As propostas seguintes passaram pelo Tártaro de atum, precioso, e a boa surpresa do Ramen de lula, um prato muito bem conseguido cheio de umami. Terminámos o percurso pelo mar do Oriente com um peixe bem português, um Robalo de ponto apurado, com endívia roxa, puré de raiz de aipo mostrando uma habilidosa fusão de sabores e revelando uma boa técnica culinária. A refeição termina com a sobremesa à base de pera Nashi, batata doce e camomila que só pecou pelo facto do vinho Moscatel que foi servido ter resultado menos bem na harmonização. Este “First Floor” funciona tanto ao almoço com menu de 3 etapas a €30 e ao jantar com menu de 7 momentos a €60.
O conceito do Guelra pode parecer um pouco confuso ao princípio, mas para o cliente que entre na onda revela-se uma agradável surpresa.
Guelra
Rua de Belém, 35
Aberto todos os dias, das 12 às 22:00 horas
Email: reservas@guelraott.com
Tel: 939 002 081
Estive Lá: No Rossio Gastrobar

Já não me lembro do número de vezes que calcorreei a Avenida da Liberdade acima e abaixo, 1,5 km de prédios antigos que foram sendo paulatinamente substituídos por edifícios modernos, de grande dimensão e, muitas vezes, de gosto duvidoso, onde ficam hoje algumas lojas das marcas mais mediáticas e caras de Portugal, essas geralmente de […]
Já não me lembro do número de vezes que calcorreei a Avenida da Liberdade acima e abaixo, 1,5 km de prédios antigos que foram sendo paulatinamente substituídos por edifícios modernos, de grande dimensão e, muitas vezes, de gosto duvidoso, onde ficam hoje algumas lojas das marcas mais mediáticas e caras de Portugal, essas geralmente de montras ornamentadas com melhor gosto que alguns prédios que as albergam. Nesse final, de uma sexta-feira recente, o destino foi o hotel Altis Avenida, que fica entre os Restauradores e o Rossio, para um cocktail e um repasto no restaurante/bar do seu topo.
O Rossio Gastrobar, que tem uma varanda com vista para a Baixa de Lisboa e o Castelo de S. Jorge, mais ao longe, é agradável. Nesse final de dia fresco ficámos no exterior, confortados pelas chamas dos aquecedores a gás a usufruir de um espaço que esteve sempre cheio de gente, sobretudo turistas que iam ali para estar um pouco numa das poucas esplanadas com vista sobre Lisboa e talvez também para saborear um dos cocktails de Flavi Andrade, chefe de Bar do hotel que alberga este espaço, que foi eleita a melhor barmaid do ano na edição de 2024 do Lisbon Bar Show. Foi também o que fizemos e valeu a pena.
Depois de uma pequena conversa com a autora, para perceber melhor o que a inspira a criar os seus cocktails, optei pelo seu Cacilheiro, já que estávamos tão perto do Tejo, e fiz bem. O repasto que se seguiu foi criado pelo chefe João Correia, com a entrada a ser composta por Mini tarteletes de cogumelos e pickle de limão, Crocantes de gamba da costa e maionese de coentros e Pastéis de massa tenra, vitelão e cebolinho, o primeiro e o último a fazerem muito boa companhia ao Caves S. João Pulo do Lobo Arinto de 2020. Para além de um Arroz Saboroso, regado com o suco da cabeça de camarão tigre, e feito ao estilo da paelha valenciana, em parceria de um tinto Porta de Cavaleiros Reserva 2019, muito equilibrado e elegante, também saboreámos, para terminar, uma Tarte de Noz Pecan e gelado de aguardente. Tudo isto servido, de forma eficiente, por pessoas simpáticas e agradáveis. Soube bem.
Rossio Gastrobar
Rua 1º Dezembro, 118, Lisboa
Tel.: + 351 210 440 018
Email: rossio@altishotels.com
Chocolate: Um ingrediente sedutor e romântico

Vou na sexta década de existência, e aquilo que conheço como chocolate mudou várias vezes. A primeira configuração de que fui sempre fã foi, até que desapareceu, a de uma tablete chamada “Comacompão”, que vinha numa embalagem alaranjada com uma diagramação apetecível de sanduíche de chocolate. O modo de usar era, para mim, simples e […]
Vou na sexta década de existência, e aquilo que conheço como chocolate mudou várias vezes. A primeira configuração de que fui sempre fã foi, até que desapareceu, a de uma tablete chamada “Comacompão”, que vinha numa embalagem alaranjada com uma diagramação apetecível de sanduíche de chocolate. O modo de usar era, para mim, simples e cómodo, pois bastava abrir um papo-seco a meio e colocar dentro a tablete inteira. Não tinha muito açúcar – nunca gostei de coisas muito doces – e tinha minúsculas passas de uva que tornavam a exploração mais saborosa.
Entretanto, muita água passou por debaixo da ponte e o mundo do chocolate revelou-se descoberta empolgante. Apareceram marcas e estilos diferentes, em resultado sobretudo da abertura de Portugal ao mundo, com a consequente invasão de produtos importados.
O chocolate em pó tinha um sabor amargo pronunciado. Vim a saber que resultava da extrusão por pressão da parte escura da fava de cacau. Nunca, contudo, me habituei a colocá-lo no leite e o termo de comparação que tinha era o do fabuloso chocolate quente, que bebia nas vezes em que lanchava com as minhas tias na pastelaria Suíça ou na Mexicana. Curiosamente, ambas as casas continuam a existir e a servir chocolate quente e continua delicioso. Nada a ver, contudo, com a fabulosa combinação de chocolate com churros que, nas frequentes deslocações a Madrid, me era dado provar. Espessura quase de pudim, muito sabor e a ligação com os pequenos fritos frisados sempre me fascinou.
Cada casa, em Portugal ou Espanha, tinha o seu próprio chocolate mas, no fundo, existia o denominador comum de se tratar de chocolate de leite. Foi também em Espanha que provei pela primeira vez chocolate branco, aquilo que rodeia a semente da fava e se consegue separar facilmente. Em rigor, não se devia chamar chocolate. Mas, na prática, passava por tal por conter partes derivadas da dita fava, a que se acrescentava açúcar. Exactamente nos antípodas daquilo que me atraía no chocolate e, por isso, passei a desprezar. A maioria dos trabalhos de moldagem de chocolate são contudo conseguidos graças ao chocolate branco ou manteiga de cacau, depois tingidos a gosto. Os chips de cacau, obtidos a partir da camada intermédia da fava por manipulação com pressão ou calor, cobrem um espectro vasto de aplicações em proporções variadas. É a partir de produto dessa zona que se faz o que conhecemos como chocolate de leite. Normalmente parte-se de chocolate em pó e depois tempera-se até atingir a doçura e a consistência desejadas. Até 60% de cacau, considera-se chocolate de leite na maioria das aplicações e marcas. Acima disso, começamos a atingir o chamado chocolate negro, rico em antioxidantes. Acima de 70%, podemos considerar que estamos perante chocolate negro, a que muitos erradamente chamam chocolate amargo.
Os frutos do cacaueiro reconhecem-se facilmente, pois são pendentes coloridos com o formato oblongo de bolas de râguebi. O interior contém um material esbranquiçado e sementes, das quais se obtém o cacau.
Vinho e chocolate
A bondade da ligação de vinho com chocolate tem origem nas muitas pontes de sabor que facilmente se estabelecem entre ambos. No vinho temos álcool, acidez, polifenóis e açúcar como base de degustação e diferenciação. No chocolate temos açúcar, acidez e amargos. Nas inúmeras provas que tive o privilégio de orientar, criei uma espécie de regra de três simples, estritamente extraída da experiência. Com chocolate branco, moscatel de Setúbal; com chocolate de leite, vinho Madeira Malvasia; com chocolate negro, vinho do Porto ruby. Nos tempos idos do evento Chocolate em Lisboa, assisti a autênticas epifanias no lado do consumidor, quando as pessoas passaram a ter o comando sobre o racional da prova. Perceberam sobretudo que os flavonóides do chocolate têm correspondência directa com os taninos do vinho. Uns e outros correspondem aos elementos antioxidantes, e podem ser, além disso e a propósito, os elementos saudáveis de que precisamos para uma alimentação equilibrada. Como em tudo, os excessos são de evitar. Mas se soubermos seleccionar o que nos faz bem, as nossas vidas correm melhor.
Um pouco de história
A chamada árvore de cacau existe sobretudo na América Central e o fruto reconhece-se facilmente, pois trata-se de pendentes coloridos que têm o formato oblongo de bolas de râguebi. O interior contém um material abundante e esbranquiçado e sementes, das quais se obtém o cacau. As ditas sementes só se obtêm nos territórios de que falamos, numa história notável que nos faz recuar até dois mil anos antes de Cristo. As civilizações maia e asteca criaram um filão que encantou o descobridor espanhol Hernan Cortés no séc. XVI, a ponto de chegar a ver nele uma riqueza infindável.
Do que nos foi até hoje revelado, o chocolate era essencialmente consumido na forma líquida. As quantidades diárias ingeridas eram estratosféricas e apenas sacerdotes e governantes tinham acesso à bebida, talvez por isso mesmo. O célebre líder asteca Montezuma II consumia, segundo relatos do próprio Cortés, 50 chávenas de chocolate quente por dia. Terá sido por isso que a bebida foi rapidamente levada para Espanha, passando a ter honras até então reservadas ao chá e ao café. A Europa do final do séc. XVII, início do séc. XVIII. estava totalmente rendida ao grande novo valor do chocolate. As pessoas lotavam todas as salas disponíveis para beber uma chávena de chocolate quente. No final do séc. XVIII, o chocolate não podia estar mais na moda e a tablete ou barra impuseram-se enquanto forma individualizada de o consumir.
A grande revolução acontecia a olhos vistos, e o truque, da autoria do suíço Rodolphe Lindt, foi adicionar manteiga de cacau ao chocolate líquido. O procedimento industrial foi baptizado de conchagem (conching) e, no dealbar do séc. XIX, estabelecia-se toda uma nova ordem, coroando de glória a grande invenção. Nascia o chocolate da era moderna. Além de mais sólido, era também mais durável. Podia conservar-se facilmente num armário doméstico ou na despensa. O fascínio, esse, permanece vivo na mente e no coração dos actuais criadores. A marca Lindt é a que ainda hoje conhecemos e deve-se ao grande inventor e chocolateiro suíço. Muitos outros se lhe seguiram, diluindo bastante o seu protagonismo.
O célebre líder asteca Montezuma II consumia, segundo relatos do próprio Cortés, 50 chávenas de chocolate quente por dia.
Compliquemos um pouco
O assunto chocolate cobre bastante mais do que a simples enumeração de ingredientes e técnicas de produção. O estado actual das coisas aponta para a proveniência da fava como factor determinante para conseguir chegar ao pináculo do conhecimento. Percorremos o catálogo da Michel Cluizel, um dos melhores fabricantes de chocolate do mundo, e abismamos perante o triunfo da diversidade que este grande produtor oferece. Vahlrona, Callebaut – provavelmente a maior de todas as marcas -, Neuhaus e muitas outras marcas povoam densamente o universo superior da arte do chocolate. Todas têm o seu manifesto próprio quanto a origens das suas plantas de cacau e, por isso mesmo, todas também fazem marcação cerrada à concorrência. Por cá temos grandes intérpretes do chocolate, chefs que se distinguiram pela originalidade das suas criações. Rui Costa, da pastelaria Marbela, em Esposende, é um grande exemplo. Francisco Siopa, do Hotel Penha Longa, em Sintra, apresenta sistematicamente novas criações que nos fazem vibrar e enternecer. Francisco Melgão e seu irmão Serafim desenvolveram marca própria e dominam todas as técnicas industriais. No seu reduto, em Montemor-o-Novo, vão-nos brindando com as suas inovações. Pode visitar-se e comprar no local, ou encomendar e receber em casa. Cito apenas três, dos vários que poderia citar, com um critério de elencagem estritamente geográfico. Portugal está cheio de talentos por descobrir, que fazem trabalho notável. Eventos aqui e ali vão-nos dando pistas para novas descobertas, mas o país tem massa crítica para ir mais longe na ambição. Fica o modesto repto.
Fama com (muito) proveito
Todo o português leva ao peito os produtos da sua preferência mas, na doçaria, somos ainda tímidos. O bolo de chocolate cobre o planeta inteiro e cabe-nos a nós epicuristas provar e aprovar alguns. Aquele que me prendeu mais a alma até hoje provei-o na Suécia e é muito popular por lá. É baseado em chocolate negro, parco no açúcar e muito denso. É desafiante do ponto de vista da harmonização, mas resulta bem com um Pinot Noir novo e sem madeira. É fantástica a torta caprese, que me ficou na memória quando, em 1993, visitei a ilha italiana de Capri. Não leva qualquer tipo de farinha mas leva amêndoa, que lhe dá uma tonalidade com algum corpo, mas pede leveza no vinho. Um Porto branco com mais de vinte anos faz-lhe bem as honras.
O truque mais famoso do mundo pasteleiro é cozer pouco o bolo de chocolate e quando isso é feito intencionalmente o impacte é sempre grande. Os americanos chamam-lhe lava cake, pelo efeito do chocolate a escorrer, evocativo da lava de um vulcão em erupção. Nós chamamos-lhe coração de chocolate quente, ou fondant de chocolate. Um vinhão sem madeira da região dos vinhos verdes, desde que servido a temperatura inferior a 16ºC faz-lhe bem as loas. Pode parecer demasiado arriscado mas o sucesso é garantido, até pelo contraste de temperaturas.
Só fui duas vezes a Viena, e a primeira incursão tinha de ser coroada com a visita ao célebre café Sacher. Mas confesso desde já a minha desilusão. Foi criada na primeira metade do séc. XIX por Franz Sacher, que na altura tinha apenas 16 anos, para o então príncipe chanceler da Áustria. Leva doce de alperce e tem uma espessa camada de chocolate. Até hoje ainda não consegui acertar na maridagem certa. A que funcionou melhor foi com licor de tangerina. A Sacher-Tarte foi, desde aquele dia de 2002, um projecto aberto que vou tentando fechar em beleza. Para contrabalançar a experiência menos feliz, entrego-me facilmente e sem hesitações a um bolo brigadeiro. É um autêntico festival de chocolate e a sua estrutura húmida ajuda a gula a cumprir o seu desígnio. Apesar da estrutura baseada em chocolate negro, a minha opção vínica vai invariavelmente para Porto Tawny 40 anos. A cremosidade é preservada e o vinho sustenta com frescura e eficácia o brigadeiro gigante.
O bolo de chocolate cobre o planeta inteiro e cabe-nos a nós epicuristas provar e aprovar alguns.
As pequenas coisas
O gengibre revestido com chocolate é grande amigo do vinho, especialmente se for servido em pequenas tiras, ou fingers. Nesta harmonização, contudo, o ingrediente mais importante é o gengibre e não o chocolate que o reveste. A melhor experiência nesta abordagem aconteceu, sem surpresa, com um Arinto de Lisboa com mais de dez anos. Se o revestimento exterior for feito com chocolate de leite, opte por um aragonês alentejano novo e sem madeira. A reacção da casta ao gengibre é inesquecível. O celebrado bombom After Eight cabe nesta categoria e pede assessoria vínica certeira, e irá bem com um Alicante Bouschet de talha, também de terroir alentejano. Estamos no domínio da guloseima e o caso da laranja e chocolate é namoro antigo. Faz crescer água na boca a lasca de casca de laranja passada por chocolate negro. Se for acompanhada de um Gewurztraminer, é o céu. Aconselho esta mesma configuração, com pimento vermelho passado por chocolate negro. A explosão de sensações é fantástica, neste caso.
Passando ao domínio dos frutos secos, o simples revestimento de um pistáchio torrado com chocolate branco é toda uma emoção. E se lhe acrescentar piripiri ainda melhor. Maridagem mais delicada, mas proveitosa, é a que se consegue com um moscatel de Setúbal com mais de vinte anos. Um fruto seco que há que expor ao chocolate é a noz. Faça a experiência com chocolate de leite e depois harmonize com um bom malvasia da Madeira. Também gosto muito de maridar tâmaras passadas por chocolate negro e com vinho do Porto branco seco, sem madeira. Se tem experiência e confiança para entrar nos bombons, não deixe de experimentar foie gras ligado com chocolate negro. Abra um bom Porto Vintage e regozije com a experiência. Faça vários, porque vai ter muita audiência na família ou no grupo de amigos. Boas provas!
(Artigo publicado na edição de Março de 2025)
Proximidades: Bacalhau, jeitos e preceitos

Diz o povo que há mil e uma maneiras de cozinhar bacalhau. Na verdade há apenas duas: a boa e a má. Boa é toda a receita que respeita o bacalhau e não o martiriza com excessos culinários. Má é a receita que faz exactamente o contrário, enchendo-o de temperos e outras desgraças. Longe de […]
Diz o povo que há mil e uma maneiras de cozinhar bacalhau. Na verdade há apenas duas: a boa e a má. Boa é toda a receita que respeita o bacalhau e não o martiriza com excessos culinários. Má é a receita que faz exactamente o contrário, enchendo-o de temperos e outras desgraças. Longe de ser consensual na forma entre os portugueses, o bacalhau é o nosso totem culinário e merece sempre que nos detenhamos sobre ele.
No maravilhoso livro “Receitas escolhidas”, a eterna Maria de Lurdes Modesto apresenta a seguinte receita do Bacalhau à Gomes de Sá:
“Coloca-se o bacalhau num tacho e escalda-se com água a ferver. Tapa-se e abafa-se o recipiente com um cobertor e deixa-se ficar assim durante 20 minutos. Depois escorregue-se o bacalhau, retiram-se-lhe as peles e desfaz-se em lascas. Põem-se estas num recipiente fundo, cobrem-se com leite bem quente e deixam-se ficar de infusão 1h30 a 3 horas. Entretanto, cortam-se as cebolas e o dente de alho às rodelas e levam-se a alourar ligeiramente com o azeite. Juntam-se as batatas, que se cozeram com a pele, se pelaram e se cortaram às rodelas. Junta-se ainda o bacalhau escorrido. Mexe-se tudo ligeiramente, mas sem deixar refogar. Tempera-se com sal e pimenta. Deita-se imediatamente num tabuleiro de barro e leva-se a forno bem quente durante 10 minutos. Serve-se no prato em que foi ao forno, polvilhado com salsa picada, e enfeita-se com rodelas de ovo cozido e azeitona preta.”
Resumindo, são três cozeduras para chegar ao excepcional resultado final do fabuloso bacalhau à Gomes de Sá, que, para mim, é a mais perfeita das formas de cozinhar o fiel amigo. É, segundo o que se sabe, atribuída a José Luís Gomes de Sá, estabelecido no Porto há cerca cem anos no negócio do bacalhau e é de facto de grande talante culinário. É também a receita mais aviltada de todas. Não há quem não lhe altere um aspecto ou outro. Mas isso é a vida e é facto inalienável. Além disso, só acrescenta à sua popularidade. Mesmo assim, está longe de ser a mais praticada em restaurante. Mas já lá vamos.
O prodígio está no peixe
A forte percentagem de colagénio contida no bacalhau torna-o desejado e apetecível. E deve evitar-se o excesso de cozedura. Acontecendo, seca o peixe, a posta ou a parte e lá se vão a utilidade e a textura mágicas. A riqueza é tal que do simples escaldar conseguimos já um caldo cheio de umami, que depois podemos congelar para utilizações futuras. As vulgares cuvetes que utilizamos para o gelo são óptimas para preservar o valor dos caldos, de bacalhau e não só. O caldo do cozido à portuguesa e o fundo de tomate são ambos belíssimas ilustrações do poder culinário que podemos e devemos conservar. Numa utilização quotidiana, rapidamente produz um molho excelente para um bife grelhado, por exemplo. Do bacalhau propriamente dito é que há que dizer que sem boa matéria-prima não há fórmula que resulte.
Temos várias declinações e atalhos sobretudo na forma congelada ao nosso dispor e, em rigor, devemos experimentá-las todas antes de escolher a nossa, que é, em princípio, a que mais se adequa à forma de cozinhar de cada um. Não tenhamos dúvidas de que estamos muito bem servidos, tanto em diversidade quanto em qualidade.
Se estamos empenhados na abordagem clássica, que é da demolha aturada por dois ou três dias com mudança periódica da água, estamos no caminho certo. É a forma de conseguir a regeneração plena do peixe, a partir do qual partimos com total segurança em direcção à receita que pretendemos executar. Não há nada de intrinsecamente errado na utilização de bacalhau demolhado e congelado, pronto a utilizar, note-se bem. É bem melhor do que deixar uma posta a boiar em água na bancada da cozinha por um par de dias. Além do cheiro nauseabundo, o peixe fica apodrecido e não serve mais para cozinhar, apesar de em muitos lares isso acontecer.
A Catalunha e o País Basco, servem desde, sempre as peças mais ricas em goma e colagénio do bacalhau. Kokotxas – papadas -, línguas e bochechas extraídas do peixe fresco fazem as delícias de todos, normalmente em ensopados ou outras soluções caldosas de massa ou arroz. Outrora, por cá essas partes estavam incrustadas nas caras de bacalhau que, com o restante peixe, se secavam e salgavam. Actualmente, graças ao extraordinário labor de produtores e transformadores de bacalhau dos nossos dias, temos acesso não só às ditas caras salgadas e secas, mas também a línguas e bochechas disponibilizadas em salmouras fortes. Feita a competente demolha, estão regeneradas e prontas a utilizar. E ainda temos os sames, que são as bexigas natatórias do bacalhau, de que herdámos importante receituário. Fazem parte do sistema de orientação do peixe pelas águas frias do norte e, por isso, são proteína rica e muito saborosa. A cozinha de pescador fez-lhes sempre as honras e hoje temos um prato ao nosso dispor, a feijoada de sames, que explora bem a riqueza destas pequenas bolsas, colocando-a ao lado de leguminosas diversas.
Igualmente valiosas são as línguas, de que os antigos percebiam bem as mais-valias culinárias. As choras de línguas vêm do tempo dos bravos dos bacalhoeiros na Terra Nova e após o necessários corte das cabeças preparava-se o maravilhoso caldo que era – e ainda é – de comer e chorar por mais. Nesta categoria caldosa, quando há tomate no fundo abra um bom Bical novo da Bairrada, com alguma madeira. Quando não há precisa desse fruto/legume, utilize um Arinto de Lisboa com madeira.
A forte percentagem de colagénio contida no bacalhau torna-o desejado e apetecível.
Os bacalhaus que amamos
Depois de tornar a variante Gomes de Sá como favorita, podemos e devemos acrescentar a lista de grandes pratos de bacalhau que representam condignamente o nosso grande totem. Como maridagem do Gomes de Sá, pode escolher entre um tinto alentejano sem madeira e um Loureiro dos vinhos verdes com madeira. Ambos brilharão junto do grande prato que é o bacalhau à Gomes de Sá. Eis os outros:
À Brás – A fascinante figura do galego Brás, da tasca montada, em tempos idos, na baixa lisboeta, continua a povoar fortemente o meu imaginário culinário. Bacalhau esfiapado fininho em seco e reservado, o sal sai naturalmente. Batatas palito de corte apertado, esmorecidas no azeite sem chegar à crocância da fritura plena, também reservadas. Chegava o cliente e o amigo Brás batia dois ovos, que, depois dos outros dois ingredientes a estalados na frigideira e com esta fora do lume, deitava por cima enquanto mexia. Há um bacalhau à Brás por cada casa, e a todos se pode assim chamar pela popularidade e facilidade da execução. O ovo macio e cremoso, aplicado com o preparado já fora do forno, vai determinar a eternidade do prato que ainda hoje gostamos de processar nas nossas casas. Um bom Alvarinho da região dos vinhos verdes vai fazer-lhe bem as loas.
À Narcisa – A receita é originária de um restaurante em Braga, chamado Narcisa, e era confecionado por uma cozinheira chamada Eusébia, entretanto falecida em 1972. Dada a sua origem, pode também ser chamado de bacalhau à Braga. Mas apesar da dor da perda irreparável da maravilhosa Narcisa, fixemo-nos na essência da receita. Dez postas altas de bacalhau que, após demolha, são abertas ao meio e em cada uma colocada uma fatia de presunto. É muito importante o tomate que faz o fundo do assado subsequente e que vai fazer a cama de cebola salteada em azeite. O presunto é parte interessada e, ao mesmo tempo, o único tempero do prato. O acabamento em forno quente vai decretar a natureza do prato, que apaladado com maionese vai gratinar na perfeição. Far-lhe-á boa justiça um tinto de castelão com menos de cinco anos de estágio em madeira, da região do Tejo.
À Zé do Pipo – O que faz a diferença neste prato é a utilização intensa e copiosa de maionese. As postas de bacalhau são cozidas em leite, parte do qual vai avivar o puré de batata que vai a gratinar em batatas duchesse, aplicadas com o saco de pasteleiro. Idealmente, o apaladar do Zé do Pipo consegue-se através da colocação de uma posta por frigideira de barro, orlada pelo puré de batata e depois coberta de maionese. Seguidamente vai ao forno gratinar e é servido assim, em dose individual. É brilhante e sofisticado o acompanhamento vínico com um bom Vinhão do Minho.
À Moda de Braga – É uma das mais vezeiras formas de processar bacalhau e, curiosamente, é a que mais frequentemente encontramos em Lisboa e no Porto. A posta é frita após demolha e é sempre acompanhada de cebolada forte e batatas fritas às rodelas. É porventura a preparação que mais abundantemente povoa o imaginário dos portugueses, variando no aspecto do pimento e do alho, o que sempre altera o sabor e a força do prato. Não posso deixar de referir a perfeição da confecção do chef José Dias, em Braga, no seu restaurante Bem me Quer, no Campo das Hortas. O vinho verde branco é o que é mais dado para acompanhar este prato ancestral da nossa tradição, sobretudo da casta Alvarinho, por permitir uma leitura ampla e tolerante do prato em todas as suas cambiantes.
Bolinhos/pastéis de Bacalhau – São emblema nacional e homenagem aprimorada ao bacalhau. Levam tanto de bacalhau como de batata e meia porção de cebola. Muito do segredo culinário está na correcção da fritura, da qual não deve haver excessos de gordura. Um bom pastel de bacalhau nem sequer deixa rasto de gordura nos dedos quando é comido à mão. E deve ser tão saboroso tanto quente como frio, pois tal como o ovo cozido, deve ser encarado como nibble, ou seja, para comer aos pedacinhos, para combater a fome súbita de qualquer português.
Cozido com todos – Por muitas voltas que demos, é a forma a um tempo mais clássica e mais sublime de comer bacalhau. Na quadra natalícia, é muito importante a cama de couve portuguesa curtida pela geada, a que se junta cenoura e nabo, além da óbvia rica e sápida posta de bacalhau, nunca demasiado cozida e servida com abundância de azeite e alho. É por excelência o manjar da consoada no país inteiro, excepção feita talvez ao Algarve e ao Alentejo, onde a carne de porco é imperativo familiar por excelência. Nos lares portugueses, tem assento real ao longo de todo o ano e é dos prazeres da mesa maiores que há, mais que não seja por evitar o peso nefasto da obrigação. A partir de um bom bacalhau cozido, tudo se pode fazer.
(Artigo publicado na edição de Fevereiro de 2025)