Três lanças portuguesas em Espanha

Edição nº11, Março 2018 Entrevista Alexandre Silva, Henrique Sá Pessoa e João Rodrigues tiveram por sua conta o maior palco da gastronomia mundial, o Madrid Fusión, que decorreu em Janeiro. O feito foi inédito, mas não houve um único jornalista português no local para relatar o que aconteceu. A Grandes Escolhas reuniu o trio de […]

Edição nº11, Março 2018

Entrevista

Alexandre Silva, Henrique Sá Pessoa e João Rodrigues tiveram por sua conta o maior palco da gastronomia mundial, o Madrid Fusión, que decorreu em Janeiro. O feito foi inédito, mas não houve um único jornalista português no local para relatar o que aconteceu. A Grandes Escolhas reuniu o trio de ataque numa tasca de Lisboa, para fazer memória futura e dar conta do estado (de graça) da cozinha portuguesa.

TEXTO Ricardo Dias Felner
FOTOS Ricardo Palma Veiga

Juntar três chefs com estrelas Michelin é mais difícil do que sentar à mesma mesa Donald Trump, King-Jong un e o Papa Francisco. Mas, ao fim de umas semanas de intensas trocas de emails, aconteceu. O lugar do encontro foi a Casa Cid, uma antiga tasca do Cais do Sodré, em Lisboa, onde se come peixe frito e torresmos, e que há décadas dá abrigo a noctívagos esfaimados às cinco da manhã.
Sinal dos tempos, já instalados, uma perfuradora fez-se ouvir — “Vão construir aqui um hotel”, disse o tasqueiro — e tivemos de nos mudar para o café Tati, mesmo ali ao lado. Ligado o gravador, a conversa correu livre, deixando claro que os três chefs actuam como um bloco — e querem continuar a conquistar mundo, em nome da cozinha de Portugal.

GRANDES ESCOLHAS – Tentei saber como vos correu o Madrid Fusión, mas não consegui encontrar informação.
ALEXANDRE SILVA – A verdade é que não houve imprensa portuguesa lá.
HENRIQUE SÁ PESSOA – Alguma imprensa especializada relatou o facto de nós irmos à conferência, antes. Só isso.

Porque é que acham que isso aconteceu? Terá a ver com a crise dos media, sobretudo da imprensa escrita?
AS – Acho que se arranjam sempre desculpas para tudo.
JOÃO RODRIGUES – A única coisa que é estranha é haver tanta gente a querer debater a cozinha portuguesa e a querer pôr o dedo na ferida mas, depois, quando vamos para um palco grande parece que, de repente, há um desinteresse generalizado. Ou então há outras razões que desconhecemos ou os jornalistas não são convidados.
AS – Acho que o Turismo de Lisboa e o Turismo de Portugal podiam ter dado apoios.
JR – Mas será que foram pedidos?
AS – Provavelmente não foram. Os portugueses acham que são os maiores e que é tudo muito bonito. A verdade é que podíamos ser mesmo os maiores. O problema é que só três ou quatro é que querem fazer e os outros ficam encostados.
JR – Fala-se num movimento nacional, mas para haver esse movimento nacional tem toda a gente de remar para o mesmo lado nos diferentes quadrantes.

Podemos então começar por tentar relatar o que aconteceu no Madrid Fusión. Vocês ocuparam uma manhã do palco principal, certo?
HSP – Sim. Nós quisemos ir para o palco os três ao mesmo tempo. Era importante passarmos a mensagem de que estávamos os três juntos. Não era a apresentação do João, do Alexandre e do Henrique.
JR – A ideia era que a soma das partes fizesse um conjunto. Cada um tinha a sua maneira de ver a cozinha, mas estava ali subjacente a cidade de Lisboa.

Foi um acaso terem os três feito demonstrações de receitas de peixe?
HRP – Era esse o briefing. O tema era a cozinha atlântica de Lisboa.
AS – Mas mesmo que não tivesse sido, provavelmente tínhamos feito o mesmo.

João, como correu a tua apresentação?
JR – A pessoa que era para falar antes de nós não pôde vir e, portanto, tivemos muito mais tempo do que era suposto. Isso não foi bom.
AS – Às tantas, parecia uma telenovela da TVI. Foi encher chouriços, encher chouriços.
JR – Eu cumpri o meu tempo, o Alexandre e o Henrique é que ficaram…

Sobrou para vocês…
[risos]
JR – Sim, principalmente para o Henrique.
HSP – Os gajos vieram ter comigo a pedir para estender por mais 15 minutos. Eu disse-lhes: “Só tenho um prato…” Acho que podíamos ter feito muito melhor se não tivesse acontecido este constrangimento.

Vocês, hoje, para além de chefs, têm de ser performers, oradores. Gostam disso?
AS – Tens que vender a tua cena.
JR – O músico também vai tocar no palco. Não toca só em casa, nem faz só discos.
HRS – A questão do palco intimida. Mas quando estás a falar de uma coisa em que estás à vontade é mais fácil. Qualquer um de nós já fez isto várias vezes.
JR – As apresentações são óptimas para tu explicares o que está por trás do teu trabalho diário. Podemos discutir se hoje a cozinha chegou a este ponto, em que os chefs já pensam e não fazem só bifes… Mas isso seria uma conversa longa.
[Risos]

E como foram as reacções?
HRP – Dadas as condições, as reacções foram positivas.

Às vezes, parece que Espanha ofusca Portugal, como se Portugal fosse uma sub-região gastronómica de Espanha. A polémica de a jaleca entregue aos chefs portugueses que ganharam a estrela Michelin, no ano passado, vir com a inscrição “La Guia”, em espanhol, foi, para algumas pessoas, o último episódio revelador disso. Como vêem esta relação entre os dois países?
HSP – Eles nunca olharam para nós. Mas ultimamente já nos vêem com alguma admiração.
JR – Isso só vai acontecer de facto quando nós não nos preocuparmos com isso. Nós é que levamos isso a sério. Eles têm cinco vezes o nosso tamanho, são mais ricos. É óbvio que estamos ao lado deles e passamos despercebidos.
AS – Mas não podes sentir que és o enteado. Nós temos pai e mãe.
HSP – Temos um complexo de inferioridade, mas não devíamos.

E isso não passa também por se bater o pé em coisas simbólicas, como esta da jaleca?
JR – Não sei. Aquilo é feito em Madrid.
HSP – Imagina que um dia fazemos cá a cerimónia de apresentação do Guia Michelin da Península Ibérica. Se calhar, nessa altura, em vez de dizer “La Guia” diz “Guia”.
JR – Mas porque é que ainda não aconteceu em Lisboa? Quem é que não se quer chegar à frente?
HSP – Aquilo é um negócio. E todos os anos o governo espanhol paga para que a cerimónia do Guia Michelin seja em Espanha. Qualquer candidatura que entra, paga. Nós não temos estrutura nem dinheiro para pagar.
AS – É exactamente assim.
JR – A ideia é olharmos para nós. Deixarmos de ter modelos. Há dez anos os restaurantes com estrelas Michelin eram todos iguais. Hoje já começas a ter restaurantes muito diferentes, como são os nossos três restaurantes. Quando começas a ter uma cultura própria, os outros começam a olhar para ti.

O que é que identifica os vossos restaurantes?
HSP – A ideia de que o nosso produto é o melhor do mundo é falsa. Temos um produto que é muito bom. Mas em Espanha também há, na Tailândia e em França também há. O que realmente é interessante na cozinha em Portugal, e em Lisboa em particular, é as cozinhas serem diferentes umas das outras. Em Espanha, ficaram com um vazio. O El Bulì ditava as tendências, havia ali uma enciclopédia, uma base de dados, que era lançada todos os anos e servia de orientação. Isso não existiu nem existe em Portugal. E isso é que é diferenciador.
AS – Isso é bom.
HSP – Vais ao restaurante do João, do Alexandre ou ao meu e tens experiências completamente diferentes. Podes gostar muito de um ou outro, mas é inegável a qualidade em todos os espaços e isso não acontecia há uns anos.
JR – Numa tertúlia recente, alguém disse que era impossível haver um restaurante de referência mundial português que não fizesse cozinha portuguesa tradicional. E eu perguntei a essa pessoa se ela reconhecia o Ferran Adrià como uma referência da cozinha espanhola. E se ele fazia cozinha espanhola tradicional.
HSP – Tens outro caso em Espanha, o David Muñoz, três estrelas Michelin [faz uma cozinha de fusão, com muitas influências asiáticas].
JR – Cá, se calhar, era morto.

Acham que a imprensa portuguesa é agressiva relativamente aos chefs?
AS – Pessoalmente, estou farto de ser criticado. Mas a verdade é que o restaurante é meu. Eu faço aquilo que eu quero, pago às minhas equipas, pago aos meus fornecedores. Na verdade, estou-me a borrifar para aquilo que as outras pessoas pensam. Mas custa-me muito quando lá vai uma pessoa jantar e depois escreve umas linhas e nem sequer sabe muito bem o que está a dizer e nós temos de engolir e as outras pessoas que também não sabem o que se passa também engolem. Ficamos todos a perder.

Mas isso não é a democracia a acontecer?
HSP – A questão é que já não existe imprensa.
JR – A qualidade técnica no jornalismo perdeu-se em detrimento de uma preocupação de imagem. Hoje em dia, toda a gente está mais preocupada com a estética e com a rapidez com que se comunica, com que se faz e se desfaz, do que propriamente com saber o conteúdo e a dimensão técnica da coisa. Isso define muito o meio gastronómico hoje em dia. Muitas das pessoas apareceram do nada e rapidamente chegaram ao topo porque têm uma boa base de imagem e uma boa base de comunicação. E muito pouco conhecimento técnico.

Vocês olham para as críticas do Zomato, por exemplo?
HSP – Eu não. Mas os nossos sócios, colaboradores, clientes, vêem.
JR – A última avaliação que tive no Zomato era uma pessoa que descrevia que o tio tinha tido morrido engasgado no restaurante. E isso não aconteceu. Escrevemos para a Zomato a alertar e acabou por ser retirado.
HSP – Isso é uma piada de muito mau gosto.
AS – E afecta o restaurante.

Mudando de assunto. Quando viajam lá para fora como é que vêem o que se está a fazer cá dentro?
AS – Quando viajo agrada-me ver que nós estamos muito bem.
HSP – É verdade. Agora. Há uns anos não era assim.
AS – Falta a parte do Governo, da imprensa, apoiarem-nos. Parece que nós nunca conseguimos arrancar.

O que é preciso para isso, em concreto?
AS – É preciso que o resto do mundo reconheça que nós somos bons. Que saibam que em Portugal há arte, há técnica, que conheçam as cozinhas regionais que nós temos no nosso país e que os outros países muito dificilmente conseguem ter.
HSP – A par da Itália nós somos o país que tem mais regionalidade.
AS – E temos uma margem enorme de progressão.

Como é que essa promoção pode ser feita? Passa por continuar a trazer jornalistas estrangeiros a Portugal?
JR – Acho que nós trabalhamos mais isso de trazer gente cá, individualmente. Mas tem havido iniciativas [do Governo], sim. Mas acho também que da parte dos empresários e dos privados falta essa noção do que nós queremos fazer. O dono do negócio pensa de forma conservadora, pensa no volume, para reaver rapidamente o investimento. E nunca se pensa em fórmulas para se conseguir um bocadinho de tudo: reaver o investimento e criar algo que de alguma forma possa servir de âncora para tudo o resto. O José Avillez tem feito isso muitíssimo bem.
HSP – Até há uns anos viajava e sentia um desnível enorme. Numa viagem recente a Nova Iorque, fui a cinco ou seis restaurantes e senti exactamente o contrário. O que nós estamos a fazer está ao mesmo nível. A única coisa que senti foi que nós evoluímos em quase todas as áreas, mas no serviço continua a haver limitações.

O que é que é um bom serviço para vocês?
AS – Um bom serviço é aquele que, no final, tu queres pensar no assunto e não consegues porque não o sentiste. Isso para mim é um bom serviço. O Loco é um caso diferente. Estamos sempre a abordar o cliente. Já fomos criticados por isso, porque interrompemos demasiadas vezes o cliente. Mas para mim é ter pessoas competentes, que saibam aquilo que estão a dizer. Encontras colaboradores que te estão a pregar uma grande peta em vez de serem sérios naquilo que fazem.

Há falta de recursos nesta área?
HSP – O problema é que toda a gente vê o serviço de sala como um trabalho temporário.
AS – E é mal pago.
JR – Acho que é muito mal pago.
HSP – Mas, João, é mais mal pago do que noutros sectores? Um empregado de mesa do Alma, com 22, 23 anos, ganha 1100 euros líquidos por mês, entre ordenado e gratificação.

Tens muitos turistas no Alma. O que é que os surpreende mais, no final da refeição?
HSP – Acho que somos uma caixinha de surpresas para eles. Eles pensam que estão no terceiro mundo e de repente ficam impressionados. “Mas vocês têm menus de degustação! Esta decoração!”
AS – Dizem-nos: “Este restaurante podia estar em Nova Iorque, em Londres.”
HSP – Quando entrei no programa do Anthony Bourdain em Lisboa, há uns anos, fiquei bastante desiludido quando vi o resultado final. Passou a imagem de que nós éramos um país que ainda não tinha saído do 25 de Abril. E agora vês o programa do Phil Rosenthal [episódio sobre a gastronomia de Lisboa, da série da Netflix] e até é um bocado exagerado. Tudo é incrível em Lisboa, Lisboa é espectacular! Mas prefiro essa mensagem à mensagem do coitadinho e do fado e das lágrimas e Salazar.