Grande Prova: No doce mundo dos Colheita Tardia

Prova Colheita Tardia

Os Colheita Tardia são vinhos doces não fortificados, o que os difere dos Porto, Madeira e outros licorosos, onde para preservar o açúcar natural acumulado nas uvas, a fermentação é interrompida por adição de aguardente. No caso dos Colheita Tardia o próprio nome explica, em parte, a forma como o vinho é obtido. As uvas […]

Os Colheita Tardia são vinhos doces não fortificados, o que os difere dos Porto, Madeira e outros licorosos, onde para preservar o açúcar natural acumulado nas uvas, a fermentação é interrompida por adição de aguardente. No caso dos Colheita Tardia o próprio nome explica, em parte, a forma como o vinho é obtido. As uvas são colhidas mais tarde, entrando em processo de desidratação, concentrando o açúcar e modificando os aromas.

Na história da humanidade, os vinhos doces eram muito apreciados em vários períodos a começar pela Roma Antiga – Vinum Dulce, Vinum Diachytum e Passum – feitos de uvas com maior ou menor grau de passificação.

Existem várias técnicas que permitem promover a desidratação dos bagos. A mais simples –  passerillage – é deixar as uvas secarem na vinha. Cessa a ligação vascular entre a videira e o bago e a água começa a evaporar. Este processo pode ser acelerado, torcendo os caules dos cachos.

Outra forma é colher as uvas mais cedo e deixar secar ao sol, como fazem na Toscana para produzir Vin Santo ou em Jura para o Vin de Paille. Assim preservam-se melhor os ácidos do bago, mas alguns aromas degradam com a temperatura. O Eiswein na Alemanha e Áustria ou Icewine no Canadá é o extremo de colheita tardia – as uvas ficam na vinha até congelarem com temperaturas negativas. A vindima ocorre em Janeiro, resultando em mostos altamente concentrados em açúcares. E finalmente, a forma mais difícil e sofisticada de fazer o vinho doce é usando as uvas afectadas pelo fungo Botrytis cinerea, chamada “podridão nobre” que só é possível em condições muito específicas. O Botrytis também pode ser induzido quer antes, quer depois de vindima e estudos confirmam que em ambas as situações, o fungo cumpre a sua função de transformação profunda da composição dos bagos.

O início dos vinhos botritizados é associado à região de Tokaj na Hungria, onde os primeiros registos datam de 1560. Os vinhos ganharam notoriedade em XVII e XVIII e hoje o Tokaji Aszú é um dos mais famosos vinhos doces no mundo.

A Alemanha também contribuíu para o desenvolvimento de vinhos botritizados, ocorrendo a primeira experiência em 1775 por mero acaso. O dono da propriedade Schloss Johannisberg, em Rheingau, esqueceu-se de dar ordem para vindima e as uvas acabaram por ficar afectadas pela podridão nobre. A região de Sauternes, em Bordeaux, é outro exemplo clássico, onde, segundo reza a história, o primeiro vinho botritizado também foi feito por acaso em 1815.

Prova Colheita tardia

Podridão sim, mas nobre!

Vinhos produzidos com a ajuda involuntária do fungo Botrytis cinerea é o fenómeno mais espantoso que existe no mundo vitivinícola. É um fungo patogénico, normalmente temido pelos viticultores dada a sua natureza extremamente danosa quando ataca as uvas. Provoca podridão cinzenta. Mas em condições certas, na altura certa, revela o seu alter ego – podridão nobre, actuando de forma benevolente e preparando a matéria-prima para os vinhos únicos.

Se o fungo é o mesmo, quando e como o lado bom de Dr. Jekyll domina o carácter sombrio de Mr. Hyde?

Há vários factores em jogo: meso- e microclima apropriado durante o tempo necessário; castas com determinadas características (em termos de maturação, anatomia do bago e cacho, produção de fitoalexinas em reação ao stress biológico etc.); e maturação total de uva na altura da invasão de Botrytis.

Numa situação ideal, as noites húmidas e nevoeiros matinais permitem o desenvolvimento do fungo, enquanto os dias solarentos e secos travam a sua evolução e ajudam a evaporação da água e desidratação dos bagos. E assim, repetidamente durante 2-4 semanas. No tempo demasiado chuvoso com pouco sol, as uvas não secam e outros microorganismos juntam-se à festa. Se, pelo contrário, o tempo permanecer muito seco, o desenvolvimento do fungo-maravilha é comprometido e o seu impacto benéfico fica sem efeito.

É facil concluir que só em alguns terroirs as condições ideais se verificam com a frequência comercialmente viável. O exemplo clássico é Sauternes e comunas adjacentes (Barsac, Cérons, Louipac, etc.) localizadas na proximidade do rio Garonne e o seu afluente Ciron de águas frias, alimentados por nascentes, onde o contraste da temperatura das águas é responsável pelo mesoclima. E mesmo nestes locais, com as alterações climáticas, hoje  tudo se torna mais imprevisível.

 

O papel do Botrytis

O Botrytis sinerea penetra o bago através de mircrofissuras na pele e começa a batalha enzimática entre a planta e o fungo. A película fica macerada e mais fina, funciona como uma esponja, facilitando a evaporação da água; o bago diminui em tamanho até 5 vezes, o que explica a concentraçã dos açúcares. Isto provoca o aumento da pressão osmótica no meio e o fungo acaba por morrer. A vindima tem de acontecer no momento certo e, como a evolução do fungo nos cachos é muito díspar, obriga a várias passagens na vinha.

Curiosamente quando B. cinerea coloniza as uvas, o fungo tende a ser dominante e a quantidade de outros fungos diminui drasticamente. Aliás, quanto mais pura for a colonização de botrytis, melhor será a qualidade do vinho. Entretanto, as bactérias acéticas são bem presentes nas uvas afectadas pelo botrytis e não perdem a oportunidade de participar no processo, sendo muitas vezes responsáveis pela alta produção de ácido acético.

A presença do fungo altera significativamente a composição do bago com forte impacto na vinificação e, sobretudo, nas características organolépticas do vinho. A textura extremamente cremosa e macia dos vinhos botritizados deve-se ao glicerol abundante, podendo a sua concentração ser superior a 20 g/l.  Alguns precursores aromáticos não existem nas uvas sãs, sendo criados pela acção da podridão nobre e outros ficam dramaticamente ampliados. A desidratação favorece a acumulação de compostos terpénicos (responsáveis pelos aromas florais, frutados e tabaco) enquanto a presença de B. cinerea facilita o seu desprendimento  dos precursores através das enzimas presentes no mosto.

Tióis voláteis estão também bem presentes nos vinhos botritizados e conferem aromas típicos de casca de limão, toranja e maracujá. Variadíssimos tipos de lactonas benefeciam os vinhos de podridão nobre com aromas de damasco e pêssego, caramelo, notas mentoladas, aromas de coco em certos casos, sobretudo se o vinho tiver estágio em madeira, reforçando o tal famoso aroma de laranja cristalizada. O sotolon, responsável pelos aromas de caril, feno-grego e nozes, frequente nos vinhos do Porto e Madeira devido ao seu envelhecimento oxidativo, também foi identificado em Sauternes.

Outros compostos aromáticos muito importantes em vinhos botritizados são os benzaldeído e furfural com aromas amendoados, e fenilacetaldeído (não encontrado em uvas ou mostos sãos), com aroma de mel e cera de abelha. Os álcoois superiores como o feniletanol juntamente com o seu éster feniletil acetato também são compostos associados aos vinhos botritizados, conferindo o aroma de rosas. O cheiro a cogumelo pode ser identificável em alguns vinhos. Geralmente, os vinhos de uvas desidratadas caracterizaram-se por um maior teor de compostos com aromas a fruta fresca, enquanto a podridão nobre induz a maior complexidade aromática.

Castas e vinificação

Entre as castas mais utilizadas para colheitas tardias com podridão nobre estão Sémillon e Sauvignon Blanc em Sauternes e Barsac, Riesling no perfil Beerenauslese e Trockenbeerenauslese na Alemanha e Áustria, Furmint nos famosos Tokaji Aszú da Húngria, Riesling, Gewurztraminer, Pinot Gris e Muscat em Vendange Tardive da Alsácia. Curiosamente, não são todos de película fina: algumas castas, como a Furmint ou a Gewurztraminer têm a película grossa, mas demonstram a susceptibilidade à podridão nobre.

Em Portugal utiliza-se muito a casta Sémillon, sobretudo no Douro sob a sinonimia Boal (não confundir com o Boal da ilha da Madeira que é a Malvasia Fina no continente). Arinto e Fernão Pires também são opções. No Dão, Encruzado em parceria com Malvasia Fina e, na Casa de Santar, com Furmint. Viognier entra no lote da Quinta da Folgorosa e Falcoaria (Manuel Lobo reconhece uma grande textura que esta casta confere ao vinho). Casa de Vilacetinho, nos Vinhos Verdes, aposta no Avesso e faz um colheita tardia com carácter muito particular. Na Herdade da Malhadinha Nova optaram por utilizar uma outra casta francesa, Petit Manseng.

A vindima das uvas com Botrytis é muito exigente. A selecção na adega é extremamente rigorosa – é preciso separar os cachos (ou uma parte deles) bem afectados pela podridão nobre, mas livres de outro tipo de podridões (branca ou preta) – conta Jorge Moreira, responsável de enologia na Real Companhia Velha. O enólogo Pedro Baptista da Fundação Eugenio de Almeida também frisa que tiram para fora os cachos em passa.

Devido à grande viscosidade, o mosto lágrima não pode ser obtido das uvas botritizadas. A prensagem tem de ser forte para conseguir extrair sumo e a separação de mostos é importante. Quando se trata das uvas saudáveis, o mosto lágrima e de primeira prensagem são os mais ricos em açúcar, mas nas uvas com podridão nobre é ao contrário: a maior concentração de açúcar só se consegue nas últimas fracções da prensa. “Prensamos como se fosse para o vinho tinto – explica Jorge Moreira – o mosto sai castanho a lembrar lama e depois da clarificação fica dourado.” A melhor prensa para isto é a antiga prensa vertical hidráulica. O enólogo Manuel Lobo conta que quando resolveram avançar com Colheita Tardia, tiveram de arranjar uma.

A fermentação é outra luta. O alto teor de açúcar é o primeiro obstáculo que dificulta o processo pela sua alta pressão osmótica prejudicial às celulas das leveduras. Como se não bastasse, o B. cinerea produz substâncias com propriedades antifúngicas, limitando o crescimento da população das leveduras e esgota os nutrientes, como o azoto, por exemplo, que são necessários para a sua actividade. Por estas razões, a fermentação é muito lenta, dura cerca de 3-4 semanas, podendo variar entre os lotes, e tem de ser monitorizada por perto para evitar a paragem ou que o vinho fique desequilibrado (muito álcool e pouco açúcar ou, ao contrário, muito açúcar e álcool baixo). A fermentação é parada no momento desejado com frio e adição de sulfuroso para cessar a actividade das leveduras.

A mais alta acidez volátil dos vinhos botritizados pode ter várias origens. As primeiras responsáveis são bactérias acéticas presentes nas uvas, que podem ter “ajuda” acidental das bactérias lácticas no mosto e, finalmente, as próprias leveduras a trabalhar na fermentação em condições pouco favoráveis também podem produzir mais acidez volátil. Por esta razão, o limite de acidez volátil para colheitas tardias é mais alto do que para outros vinhos. No caso de um branco ou um rosé novo e fresco, isto seria um desastre, mas nos Colheitas Tardias acidez volátil um pouco mais alta fica contextualizada na matriz aromática e até acrescenta complexidade.

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Colheita Tardia em Portugal

Em Portugal a tradição de vinhos doces prende-se mais com os vinhos fortificados e nesta matéria não há outro país igual no mundo. Por termos uma grande oferta destes, os Colheita Tardia não fazem parte da tradição nacional. É uma corrente mais recente.

Mas existe um Colheita Tardia histórico – o Grandjó da Real Companhia Velha. Parece incrível que no Douro, no início do século passado alguém se tenha lembrado de produzir um vinho branco doce a partir da casta Sémillon e ainda contratar um professor de Bordéus, J.Laborde para ensinar a fazê-lo. Foi o que aconteceu na Real Companhia Velha em 2010. E em 1912 foi registada a mais antiga marca da empresa (e do Douro) a Grandjó – da junção dos nomes Granja e Alijó.

O sucesso comercial, infelizmente, levou à diminuição da qualidade do vinho até ao seu desaparecimento na década dos anos 60. A produção só foi retomada a partir de 2002 sob supervisão do reputado enólogo da California, Jerry Luper. A seguir vieram colheitas de 2004, 2005, 2006, 2007 e 2008.

Em Portugal não é fácil encontrar um local onde se verifiquem as condições certas para o desenvolvimento da podridão nobre. No caso do Grandjó, a vinha com Sémillon fica a 600 metros de altitude no planalto do Alijó, com humidade matinal e dias solarentos. Mas com o aquecimento global, o clima torna-se cada vez mais quente e seco, não deixando que a podridão nobre se instale – lamenta Jorge Moreira. Se na primeira década do século foi possível produzir o Grandjó quase todos os anos, na segunda década só existe Grandjó de 2013 e fizeram também em 2020 apenas 700 litros (o que não chegará a 2000 garrafas de 350 ml). Tentam fazer todos os anos, deixam uvas na vinha e sem resultado.

Precisamente por ser difícil, são poucos os produtores que insistem em fazer Colheita Tardia com uvas afectadas pela podridão nobre. Pedro Baptista confirma que na Fundação Eugénio de Almeida também tentam fazer todos os anos, mas só se consegue em alguns.

Na Quinta do Casal Branco, na região do Tejo, a proximidade do rio em certos anos cria condições para o desenvolvimento do Botrtytis. Manuel Lobo que presta consultadoria enológica na propriedade do seu tio, contou que o ano chuvoso de 2014 deu origem ao primeiro Falcoaria doce. Houve umas parcelas que ficaram para trás e quando se descobriu os cachos afectados, instalou-se o pánico – as uvas apodreceram!  Felizmente, não era a podridão cinzenta, era a sua versão nobre. Manuel Lobo convenceu o seu tio e a equipa a avançar com um Colheita Tardia. Foi um ensaio à escala real. O Falcoaria de 2014 saiu muitíssimo bom e em 2016 ficou ainda mais afinado e elegante.

A dificuldade e carácter imprivisível associados aos vinhos botritizados levam a que a maior parte das empresas produz Colheita Tardia com uvas sãs, apanhadas mais tarde.

Uma estratégia diferente foi seguida na J. Portugal Ramos. Ali optaram por replicar as condições de produção de icewine – as uvas colhidas ficam na câmara frigorifica com temperaturas negativas (cerca de -8ºC). Pela lei da física, só congelam as uvas com menor concentração de açúcar. Posteriormente são prensadas rapidamente, dando origem a um mosto com uma riqueza enorme em açúcares. Segue-se a fermentação e estágio em barrica de carvalho francês e húngaro. Para manter o perfil que pretendem, o vinho final é um lote de várias colheitas de 2017 a 2020.

Os Colheita Tardia não podem (e não devem) ser baratos devido aos altos custos de produção e rendimentos extremamente baixos. O bago desidratado produz pouco sumo. Em Sauternes, por exemplo, o rendimento não ultrapassa 25 hl/ha e no caso de Château d’Yquem é apenas 9 hl/ha. Jorge Moreira refere que para a produção do Grandjó são necessários 7 kg de uva para obter um litro de vinho. Já para não falar nas uvas estragadas nas tentativas que não foram bem-sucedidas.

Embora a legislação europeia estabeleça como o limíte mínimo para um vinho ser considerado doce 45 g/l de açúcar, o teor de açúcar dos Colheita Tardia em Portugal varia entre 80 e 160 g/l aproximadamente. É claro que com esta doçura, a vertente acídica assume uma responsabilidade acrescida de assegurar o equilíbrio. Os estilos variam dos mais concentrados, com açúcar e acidez proeminentes até as versões mais leves com menos corpo, doçura e estrutura.

Prova Colheita tardia

Sugestões de harmonização

Uma das harmonizações clássicas para Colheitas Tardias é foie gras, mas as generalizações por vezes falham. Nem todos os Colheita Tardia são um par perfeito para esta iguaria. Para combinar um produto tão intenso de sabor e com alto teor de gordura é preciso assegurar uma intensidade e concentração no sabor do vinho com acidez alta. Isto automaticamente exclui os colheita tardia mais leves (mesmo que tenham uma boa acidez, ficam em “categorias de peso” diferentes em termos de sabor e concentração) e os mais doces que tendo muita concentração, não conseguem oferecer o equilíbrio necessário a nível de acidez e a junção de untuosidade com untuosidade pode ser excessiva.

O sommelier dos restaurantes JNcQUOI, Ivo Peralta, vê Colheita Tardia como vinho de sobremesa quando os vinhos fortificados são demasiado fortes em virtude do álcool mais elevado. Sobremesas com cremes e natas, por exemplo, ou com fruta (que tem sempre um componente ácido que pede uma acidez mais presente no vinho).

Do mundo dos queijos, o Roquefort é outra combinação clássica. O queijo de cabra curado também pode ser uma opção. Ivo Peralta sugere experimentar um Colheita Tardia com queijo de cabra e compota de alperce. Pessoalmente, aprecio o queijo de São Jorge curado com bons Colheita Tardia, onde o salgado e o picante do queijo é harmonizado pela cremosidade e doçura do vinho. E os melhores Colheita Tardia convidam à meditação, dispensando o acompanhamento. Sendo doces, não se tornam enjoativos. É uma doçura intelectual. São viciantes pela sua envolvência que apraz o palato, deixando uma frescura no fim, estimulando a repetir esta experiência sensorial.

(Artigo publicado na edição de Fevereiro de 2023)

Colheita Tardia: Uma vindima muito especial

Artigo publicado na edição nº 33, Janeiro 2020 O tempo normal das vindimas já lá vai há muito, mas eis os trabalhadores na vinha. E tesouras. E caixotes que se enchem de uvas. Os últimos meses do ano são a época dos Colheita Tardia, vinhos delicados e doces que nascem da anacrónica simbiose entre tempo […]

Artigo publicado na edição nº 33, Janeiro 2020


O tempo normal das vindimas já lá vai há muito, mas eis os trabalhadores na vinha. E tesouras. E caixotes que se enchem de uvas. Os últimos meses do ano são a época dos Colheita Tardia, vinhos delicados e doces que nascem da anacrónica simbiose entre tempo frio e húmido, fungos cinzentos e muita sabedoria. Chamam-lhe podridão nobre.

TEXTO Luís Francisco
FOTOS Ricardo Gomez

Se o saudoso Vasco Santana, actor incontornável das comédias portuguesas dos anos 1930 e 40, estivesse aqui, não deixaria de saudar esta visão com a adaptação livre de uma das suas mais famosas falas no filme “A Canção de Lisboa”: “Esta planta está muito doente!” E tem todo o ar disso, de facto. Se na longa-metragem de José Cottinelli Telmo o boémio e cábula candidato a médico interpretado por Vasco Santana via doença nas manchas da girafa, aqui mais razões teria para desconfiar da salubridade destas uvas: bolor, podridão, todo um leque de anomalias. E, no entanto…

Felizmente, há aqui gente sabedora, com muitos anos disto. De tesouras na mão – uma mais forte, para destacar os cachos, outra de pontas finas, para aparar os bagos que interessam –, decidem com rapidez e gestos precisos o que vai para o caixote e rumará à adega e o que fica no chão, enriquecendo o solo para colheitas futuras. É assim, afinal, em todas as vindimas. Um olhar mais atento permite, no entanto, descortinar uma diferença fundamental: as uvas que se aproveitam não são as de ar mais saudável, antes as que se encontram cobertas por uma suave teia de bolores cinzentos, as películas num tom arroxeado.

Afinal, o que se passa aqui?

O dia chegou com nuvens no céu, mas boas abertas, depois da chuva da véspera. O vento mal incomoda as folhas nas encostas suaves do vale de Santar, ajudando a suportar uma temperatura que ronda os 4 graus centígrados. Parece uma meteorologia pouco clemente para final de Verão, mas a verdade é que não estamos no Verão. O Outono já vai adiantado. Estamos em Novembro e é agora que se faz uma vindima muito especial: a das uvas destinadas aos vinhos Colheita Tardia.

Os Colheita Tardia são vinhos de sobremesa, delicados, aromáticos, quase incongruentes na sua alquimia de doçura e leveza. E são o produto da podridão das uvas. Não uma podridão qualquer, como facilmente se percebe observando o trabalho da dezena e meia de pessoas que se afadigam na vinha e escutando as explicações do viticólogo da GlobalWines, Aurélio Claro.

Há cachos que estão já castanhos, completamente podres e com um cheiro avinagrado. Estes não prestam, já passaram o ponto. Outros apresentam-se em tons verdes ou amarelados, típicos das uvas saudáveis de castas brancas. Nada feito, ainda não chegaram onde era preciso. As uvas que interessam estão colonizadas no exterior por um fungo cinzento, a botrytis cinerea, mas a polpa continua sumarenta e solta-se facilmente da película. É com elas que faz o Colheita Tardia.

Pequenas quantidades

As uvas que mãos e olhos sábios colhem esta manhã em Santar, nas vinhas da Casa de Santar, geridas pela GlobalWines, foram aqui deixadas propositadamente para este fim. São, ao todo, três longas fileiras (uns 300 metros cada uma) de Encruzado e outras duas de Furmint, casta que na Hungria está na base dos afamados Tokaj, um dos mais valorizados néctares do mundo dos vinhos. Dito assim, parece pouco, mas um cálculo por alto do enólogo Osvaldo Amaro aponta para uns 8 a 10 mil quilos nesta vinha (a que junta outro tanto numa vinha adjacente). Deste total, apenas entre 10 a 20 por cento são uvas com a qualidade necessária para fazer Colheita Tardia. Todas as outras acabam no chão.

Só que o crivo da qualidade não se esgota aqui. Depois de levadas para adega – são feitas apenas três prensagens pneumáticas; a primeira sem qualquer aperto (dá origem ao chamado mosto-flor), as outras com apertos suaves – destas uvas extraem-se mostos que vão, separados, para depósitos em inox, onde se procede à clarificação estática durante três a cinco dias. Daí passam para barricas de 225 litros de segundo uso com mais de dez anos, onde se dá a fermentação alcoólica. Este processo decorre, mais ou menos, durante 30 dias e é interrompido com frio, permitindo que o vinho mantenha a doçura que o caracteriza e um grau alcoólico controlado. Segue-se a alquimia do tempo. A estabilização microbiológica e a maturação podem durar entre 12 e 48 meses. Só então estes vinhos especiais ficam prontos para chegarem ao copo.

Aurélio Claro e Osvaldo Amado.

É muito trabalho. E pouco vinho, uma vez estas uvas não têm tanto sumo como as colhidas na época normal das vindimas. Não espanta, por isso, que os Colheita Tardia sejam uma pequena preciosidade, vendidas em garrafas de menores dimensões e a preços mais elevados. A marca Casa de Santar é comercializada em meias garrafas (375ml) que custam qualquer coisa a rondar os 20 euros.
Até porque, apesar dos cuidados na vindima e do acerto dos procedimentos na adega, estamos a falar de um processo natural de apodrecimento que nem sempre produz os resultados desejados. “Todos os anos é feita a vindima do Colheita Tardia. Mas o histórico diz-nos que só se engarrafa o vinho aí umas três vezes por década”, explica Osvaldo Amaro. O crivo é apertado: “Este é um Colheita Tardia onde procuramos a nobreza da podridão tardia”, sublinha. Há outras maneiras de fazer vinhos de sobremesa, mas o enólogo da GlobalWines é taxativo: “Deviam ter outro nome.”

O saber de muitos anos

Voltemos à Vinha do Judeu, onde se apanham as uvas para o Colheita Tardia. Os vindimadores avançam devagar, mas persistentemente, ao longo das linhas, ouve-se o “tique-tique” das tesouras, aqui e ali o arrastar de um caixote, de vez em quando uma instrução ou pedido dirigidos a alguém. Fala-se pouco, toda a atenção é necessária para selecionar as uvas na vinha. É aqui que está o segredo.

Conceição Neves tem 55 anos e “já uns aninhos” disto. Apesar da insistência dos repórteres, não se estica em comentários nem se faz à fotografia: está concentrada na escolha das uvas que vão para o caixote. Garante, no entanto, que “esta vindima é mais trabalhosa, exige outra atenção”. Só se consegue abrir uma brecha nesta compostura com uma pequena provocação. Depois de tanto trabalho, deve ser um gosto beber um copinho de Colheita Tardia… “Gosto muito”, atira, finalmente com um sorriso. “É maravilhoso!”

Por volta das 9h30, já com umas boas duas horas e meia de trabalho no corpo, o pessoal interrompe a vindima para comer uma bucha. Por esta altura, a temperatura subiu uns graus e até há quem ande manga curta. Um exagero, assuma-se, que isto ainda é uma manhã bem fresquinha de Inverno. No entanto, este frio é bom para as uvas, porque protege a sua frescura enquanto aguardam que o tractor as recolha para as levar para a adega; e também para as pessoas. Trabalha-se melhor ao fresco, sim, mas o argumento mais forte tem a ver com a reduzida actividade das vespas, nomeadamente as asiáticas, que hão-de aparecer daí a algum tempo, com o sol mais alto no horizonte, atraídas pelos aromas estonteantes das uvas podres que se vão amontoando nos caixotes – algumas, as escolhidas para o Colheita Tardia – ou no solo. E estas são a maior parte.

Por agora, gozemos a pausa na vindima. Passamos pelo gigantesco sobreiro que vigia a vinha do alto da encosta – e sob o qual crescem cogumelos de dimensões jurássicas – e vamos sentar-nos junto à estrada. Daqui contemplamos um imenso anfiteatro de vinhas, entremeadas com manchas de arvoredo, a paisagem típica do Dão vinhateiro. O mosaico de cores é fantástico, desde o verde berrante da erva fresca aos tons quase vermelhos da folhagem de algumas castas, passando por toda uma paleta de amarelos, ocres, castanhos e cinzentos. A paisagem fala por si. E justifica para lá de qualquer explicação o nome do vinho que daqui sai. Este é o Outono de Santar.