Entrevista: Daniel Niepoort
“É importante adaptarmo-nos aos tempos, sem radicalismos” Nascido em 1992, Daniel Niepoort é hoje responsável de enologia na empresa com o seu apelido, depois de ter trabalhado em vários países do Mundo. Poderia carregar o peso de ser filho de Dirk Niepoort, mas a verdade é que o jovem de 30 anos se preocupa mais […]
“É importante adaptarmo-nos aos tempos, sem radicalismos”
Nascido em 1992, Daniel Niepoort é hoje responsável de enologia na empresa com o seu apelido, depois de ter trabalhado em vários países do Mundo. Poderia carregar o peso de ser filho de Dirk Niepoort, mas a verdade é que o jovem de 30 anos se preocupa mais com as uvas, com o que tem no seu copo e com que a empresa coloca no copo do consumidor. Apareceu, para a nossa conversa, descontraído, como já o conhecemos e queremos, e acompanhado pela sua cadela. São inseparáveis. Sobre a Niepoort e o Douro, tem as suas convicções, e não deixa nada por dizer.
Texto: Mariana Lopes Fotos: Niepoort
Quem é Daniel Niepoort?
Gosto de vinhos e estou a fazê-los. Nasci em Portugal, no entanto, não sou um clássico português: a minha mãe é da Suíça e o lado do meu pai é holandês e alemão. Uma grande mistura, mas o meu coração é português. Estive até aos 4 ou 5 anos cá, e depois do divórcio dos meus pais, fui com a minha mãe para a Suíça. Fiz lá a escola e a tropa, depois fiz um curso técnico de 3 anos, em Viticultura e Enologia, na Universidade de Strickhof. No curso, alternavam-se as aulas com os estágios académicos, e este foi o meu primeiro contacto com a área, sem ser através do meu pai. Com o meu pai, o contacto com o vinho era diferente, e foi bom poder ter as duas perspectivas…
Sempre acompanhaste o teu pai nestas “andanças”, enquanto filho e curioso do vinho?
Quem conhece o meu pai sabe que a vida dele sempre foi a Niepoort. Quando eu era criança, nunca tinha as férias convencionais, de ir à praia e etc. Estava com ele a fazer lotes, jantares, viagens de vinho, visitas a produtores. Hoje é igual, porque trabalho na Niepoort e ele, além de meu pai, é o meu patrão, e acima de tudo, muito meu amigo. Mesmo durante os tempos que passei na Suíça, recorria muito ao meu pai, e felizmente os meus pais sempre se deram bem depois do divórcio, nunca foi difícil para mim.
O curso foi determinante para a tua vida profissional?
O curso técnico foi muito importante para aprender as bases, mas é um pouco frustrante o facto de, na escola, ser muito à base do “isto faz-se desta maneira, e pronto”. Do outro lado tinha o meu pai a dizer “mas eu faço assado”, e eu replicava isso na escola. Nesta altura, o meu pai não me ajudou nada com o curso, eu tinha mesmo de pesquisar e aprender por mim. Perguntava-lhe, triste, “‘Papi’, porque não me ajudas com isto?”, e ele respondia “tens de fazer as tuas coisas, por ti”. Escolhi depois alguns sítios na Suíça para estagiar, ainda durante o curso, e na maioria foi um desastre. Ligava ao meu pai a dizer o que tinha acontecido, e ele replicava “ainda bem, é assim que aprendes, a fazer”.
Acabei o curso, ainda fiz uma vindima na Suíça, e depois quis ir estagiar profissionalmente para alguns sítios, e o meu pai ajudou-me a ir para essas empresas, com contactos e nomes. Ele queria que eu saísse e não fosse logo para a Niepoort. Fui, então, para vários países: França, África do Sul, Austrália, Argentina, Espanha, Itália… ver como se fazia vinho em todo o lado. Ele sempre me disse, e também ao meu irmão, que também trabalha connosco: “Vocês têm de encontrar o vosso caminho, e se não gostarem de fazer vinho, não têm de fazer. Se quiserem, não digo que não”. Aqui, eu tive a minha fase “será que eu gosto mesmo de vinho, ou estou influenciado?, mas a decisão que tomei foi a melhor.
Foi, então, depois dos estágios profissionais que vieste para a Niepoort?
Ainda não. A seguir, fui para a Alemanha, região de Mosel, onde conseguia, pelo facto da vindima ser tarde, fazer vindima também em Portugal e França. Acabei por ser sócio do projecto alemão e fiquei lá 5 anos. Depois é que vim para Portugal, e já cá estou há 3 anos. Na verdade, não tinha muita vontade, não pelo país, mas porque ainda não queria assumir a responsabilidade de um projecto de tanto peso como a Niepoort. Além disso, a empresa estava a atravessar uma fase conturbada, com “guerras internas e familiares”. Eu não queria ter nada que ver com isso. Só que, para ser sincero, adorava a Niepoort, os vinhos do Porto… tive um clique, percebi que tinha de vir, e o meu pai aceitou.
Como foi, nessa altura, ingressar na Niepoort? O que fazias?
Comecei por tentar perceber o que era exactamente o trabalho do meu pai. E depois percebi que é difícil, e que requer trabalhar para uma coisa cujo resultado só dez anos depois. Uma das melhores coisas foi… as pessoas. Mas aprendi que também podem ser a pior. Nós, funcionários, crescemos na empresa. Há alguns que estão na Niepoort quase há 50 anos. São os trabalhadores que fazem a empresa, talvez por isso, ou pelo meu lado suíço [ri-se], não sou obcecado pela componente familiar da coisa. Para mim é mais importante a Família Niepoort. Somos todos Niepoort. Na altura, o meu pai disse-me que eu tinha um lugar na empresa. Perguntei-lhe “a fazer o quê?”, e ele respondeu-me “não sei, vens e logo se vê”. Na verdade, ele sempre teve esta filosofia de contratar as pessoas pelo seu carácter, e não tanto pelo currículo. Quando chegavam à Niepoort, faziam a função à qual se adaptavam melhor. Andei a fazer muitas coisas diferentes, no início. Entretanto, começou a pandemia de Covid-19, e isso, para mim, foi óptimo. Nunca tinha passado tanto tempo com o meu pai, desde que entrei na empresa, e aprendi muito durante essa fase.
E qual é a tua função actual na empresa?
A minha função é perceber o meu pai [ri-se]. Oficialmente, sou responsável de enologia. Mas é um “team work”, e eu trabalho ao lado do Luís Pedro [Cândido da Silva, enólogo na Niepoort]. Gosto muito de fazer o que faço. Mal cheguei, o meu pai abrandou um pouco e confiou mim, porque sabia que eu já tinha bons conhecimentos e que, de qualquer das formas, estava lá o Luís Pedro, que é muito bom enólogo. A empresa girava muito à volta do meu pai, e porque tinha de ser assim. Um dos meus trabalhos agora, de forma faseada, é “desfocar” a Niepoort do meu pai, sendo que isso não significa que vou focá-la em mim. Vou lá estar, no meu lugar, mas sem ser uma repetição dele. Tenho sorte por, em muitos aspectos, estar sintonizado com o meu pai, na filosofia e nas ideias.
O que queres para a Niepoort e para os vinhos Niepoort? Que conceito?
Continuar o que estamos a fazer, e melhorar. Não só fazer vinho, mas fazer algo pela região. Neste momento fazemos viticultura biológica e/ou biodinâmica em todas as nossas propriedades, a 100%, e eu gosto disso. Mas também compramos muita uva, que não é de produção bio, e não escondemos isso. Talvez pareça que faria mais sentido, ao invés disto, termos mais quintas em biológico, mas sem mão-de-obra teríamos, por exemplo, de mecanizar tudo, e não é esse o biológico que eu quero. Assim, temos quase 250 viticultores, que nos trazem as uvas, e isso é como um field blend. Se calhar, não fazem tudo como nós faríamos, mas em compensação, fazem algumas coisas melhores do que nós. Têm vinhas velhas em sítios especiais, por exemplo, que dão melhores uvas que algumas das nossas. E depois, como eu já disse, são pessoas. E eu adoro pessoas. Alguns só produzem para a Niepoort.
Quais os desafios e dificuldades que encontras agora, no teu trabalho?
Estão a perder-se vinhas e viticultores, e depois há as mudanças do clima e a necessidade de ter cada vez mais tecnologia. Não podemos fugir disto, mas temos de encontrar um equilíbrio. Além disso, é preciso mudarmos a maneira de pensar. Cada vez mais, o ser humano pensa só em si e as empresas querem crescer e ser muito grandes sem pensar num “todo”. Não podemos focar-nos apenas em cêntimos, custos, e “não podemos fazer isto e aquilo”, Já nem quero falar em sustentabilidade, por ser um termo tão usado para fazer marketing. Mas é um tema que me preocupa muito. O Douro, sem as oliveiras, amendoeiras, medronhos e todas as outras culturas, seria monocultura de vinho, e isso não seria bom. Se calcularmos os custos de fazer azeite das oliveiras tradicionais, não vale a pena fazê-lo. Mas se, em vez disso, pensarmos que é um produto que não precisa de tratamento, é apanhar e prensar, e que é tão utilizado na gastronomia portuguesa, culturalmente vale a pena produzi-lo. Os suíços não sabem quantos quilos de azeitona é necessário para gerar um litro de azeite. Mas eu, como sou, em parte, português, sei. E estou convicto de que vale a pena. Quero também trabalhar mais com animais na vinha, entre outras coisas.
Como é que propões que se tente solucionar a perda de vinhas no Douro e o facto de muitos viticultores não terem sucessão que pegue nelas?
Ainda não sei, mas tenho várias ideias. Primeiro, motivá-los, comprando toda a sua uva, quer seja de uma vinha mais nova ou mais velha. Já fazemos isto com muitos deles. Depois, mostrar-lhes que nós percebemos o que custa trabalhar na vinha. Também pagamos as uvas ao quilo, apesar de perdermos com isso. E nós, produtores de vinho, temos de cultivar mais a relação com as pessoas que produzem e nos entregam uva. Para mim isso surge fácil, porque eu sou “um gajo do campo”. Sou, infelizmente, “obrigado” a viver em Vila Nova de Gaia, na cidade, onde está a empresa.
Ao longo das últimas décadas, a própria Niepoort foi mudando, por exemplo, nos perfis de alguns vinhos. Como vez essas mudanças?
É importante adaptarmo-nos aos tempos, sermos flexíveis, sem radicalismos. Hoje posso estar a fazer um vinho com 10% de teor alcoólico, e amanhã um com 14%. Quando eu estava na tropa, e simulávamos situações, o meu patrão dizia-me “don’t fall in love with your plan” [não te apaixones pelo teu plano]. Porque não há só uma maneira de fazer as coisas. É muito isto.
Nós não fazemos os vinhos pelas modas. Pelo contrário, acho até que criámos algumas. No fim do dia, agimos consoante o que faz sentido para nós. E Portugal, com tanta diversidade de castas e terroirs, é um sonho para experimentar. O meu pai passou por tempos duros, houve alturas em que toda a gente queria arrancar as vinhas velhas. Hoje, as pessoas dão tudo para ter uma. Tudo muda, e nós também.
Podes afirmar, hoje, que fazes o vinho de que gostas?
Sim, sem dúvida. Sei que vou fazer coisas que agradam a umas pessoas e a outras não. Na escola, diziam-me que se devia fazer vinho para o consumidor. Mas qual deles? Há tantos… Por isso, nós fazemos os vinhos de que gostamos, e vamos encontrar as pessoas que também gostam deles. No entanto, não há ditaduras na Niepoort. Se alguém me sugere, ou ao meu pai, que devíamos fazer uma coisa de maneira diferente, nós dizemos tantas vezes “não”, como “sim”.
Quando era mais novo e ingénuo, dizia ao meu pai: “Porque é que fazes tanto vinho? Podias fazer menos e vender mais caro”. Hoje, penso de forma diferente. Tenho muito orgulho no nosso Diálogo, do qual produzimos 1,5 milhões de garrafas. É um vinho fantástico, e nem toda a gente tem possibilidade de comprar vinho caro.
Qual o vinho que mais gostas de beber, fora dos teus?
O vinho que ainda não provei. Bebo muitos desses. O estilo, não consigo dizer. Gosto de tudo, depende do momento. E, de vez em quando, também sabe bem uma cerveja…
Qual o conselho mais importante que o teu pai te deu, e que transportaste para o teu dia-a-dia?
Que tenho de ser sempre fiel a mim próprio. Parece simples mas, na verdade, na Niepoort e no mundo do vinho, todos querem que eu seja como o Dirk, e ao mesmo tempo, melhor ainda do que ele.
Tens algum conselho para um jovem que esteja a entrar no mundo do vinho?
Provar muito. E não só ler e estudar, mas sim ir ao terreno trabalhar, tocar, falar com as pessoas, questionar a razão das coisas. Isto não é só química. Também a tem, mas, acima de tudo, tem muito amor.
(Artigo publicado na edição de Janeiro de 2023)