Quinta dos Frades: Os segredos das vinhas velhas
Nunca me canso de percorrer a estrada que segue a margem esquerda do rio Douro entre o Pinhão e a Régua, mesmo nesta época do ano, a da vindima, em que há muito mais veículos na estrada e gente por terras do Douro. É difícil resistir a não parar para mais uma foto a uma […]
Nunca me canso de percorrer a estrada que segue a margem esquerda do rio Douro entre o Pinhão e a Régua, mesmo nesta época do ano, a da vindima, em que há muito mais veículos na estrada e gente por terras do Douro. É difícil resistir a não parar para mais uma foto a uma paisagem única que muda com as estações do ano, ainda por cima agora que há mais pessoas nas vinhas a fazer o seu maneio, e a colher as uvas porque estão no ponto certo de maturação e é preciso levá-las à adega.
A certo ponto da estrada, na margem esquerda, é difícil não notar a Quinta dos Frades. Pela sua extensão, pelo seu edificado histórico, sempre bem pintado e de ar sólido, e pelas suas vinhas, que acompanham as curvas do rio e da serra, aqui e ali entremeadas com jardins, pomares, hortas e áreas de bosque. As suas origens parecem remontar ao século 13, depois de as terras terem sido doadas aos monges do Mosteiro de Santa Maria de Salzedas. Depois de séculos de gestão monástica, a propriedade foi arrematada em hasta pública por Jerónimo Souza, 1º Barão de Folgosa, permanecendo na sua família durante mais um século até ser por Delfim Ferreira, um dos investidores e industriais mais importantes da economia portuguesa do século passado, que detinha, entre outras, a Companhia Hidroelétrica do Norte de Portugal, empresa que fornecia electricidade aos distritos de Braga, Bragança, Vila Real e Viseu. Foi, depois, encetado um processo de reabilitação e modernização das infraestruturas de produção e lazer da Quinta dos Frades.
Mas a propriedade era, sobretudo, uma quinta de fim de semana, onde os bisavós de Aquiles Ferreira do Brito, 53 anos, administrador delegado da Predial Ferreira & Filhos, empresa proprietária das Quintas dos Frades, em Folgosa, e do Castelo, em Santa Marta de Penaguião, vinham de tempos em tempos. “Naquela altura não se olhava muito para as despesas de manutenção”, diz o responsável, acrescentando que o início do segundo milénio e a estagnação do benefício, “que era aquilo que apoiava muito a agricultura no Douro, e com os custos a subir, entendeu-se que a empresa devia investir na criação de uma marca de vinhos de mesa”. Isso aconteceu quando foi convidado, por outro membro desta empresa familiar, para gerir a empresa e encetar esse novo caminho. A primeira colheita comercializada foi a de 2011, e todo o processo iniciado naquela altura contribuiu para colocar a empresa e a suas marcas no radar do mercado.
Os primeiros vinhos
Os primeiros vinhos foram produzidos com o apoio dos enólogos Anselmo Mendes e João Silva e Sousa e, mais tarde, apenas com o primeiro. Depois foi preciso começar a vendê-los e Aquiles de Brito entrou, no mercado, “inicialmente com o apoio de alguns distribuidores regionais, fazendo algumas provas e apresentações, procurando destacar que os nossos eram vinhos de valor acrescentado e não para vender em volume”, conta, acrescentando que as marcas foram surgindo, depois, no portefólio da Quinta dos Frades à medida que se iam conhecendo as vinhas e as características das suas parcelas. Algumas foram dando origem às referências que existem actualmente. Mas o processo aconteceu sem uma metodologia sustentada para a sua criação e construção. Por isso, marcas da empresa como a Vinha dos Deuses ou Vinha dos Santos não têm hoje nenhuma explicação ou ligação à casa, que permita, a quem compra os vinhos, fazer essa associação, revela Aquiles de Brito, salientando que está agora a desenvolver, com a sua equipa e o apoio de uma empresa especializada, um projecto de mudança de imagem. “Estamos agora a realizar um trabalho de marketing, imagem e comunicação que contribua para evidenciar a Quinta dos Frades como produtora dos seus vinhos, que não existia até agora”, explica.
Segundo Liliana Mendes, 43 anos, designer gráfica na Quinta dos Frades desde 2021, a ideia de mudar a imagem da quinta e das suas marcas de vinho teve, como objectivo, “criar uma unidade entre elas através da ligação de cada uma à quinta”. Assim, e quando o processo estiver concluído, em cada uma das referências de vinhos da empresa será evidenciada a marca umbrela, Quinta de Frades, em relação a cada uma das outras. Com esta integração, clientes e consumidores passarão a saber que todos os vinhos são produzidos pela Quinta dos Frades, o que não acontecia até agora. Como é evidente, o objectivo é promover e solidificar a imagem da empresa no mercado como produtora de vinhos do Douro e do Porto, para que possa continuar a crescer num mercado onde isso não é fácil para um produto como o vinho.
“Mas nós temos a vantagem de possuirmos uma história já longa por detrás e de termos construído, durante os últimos anos, uma identidade no mercado, lançando vinhos todos os anos, ou seja, estando presentes, o que tem contribuído para que os nossos já sejam conhecidos”. Hoje são colocados no mercado nacional pela Direct Wine, empresa do grupo Fladgate Parternship, principalmente para a restauração. Para além disso, só estão nos supermercados Apolónia, no Algarve, no El Corte Inglès, no E.Leclerc de Lamego, “uma referência onde toda a gente do Douro está, e mais um outro supermercado que me pede, pontualmente”, diz Aquiles de Brito, defendendo que não quer trabalhar com a grande distribuição. Para este responsável, ainda há muito muito trabalho a fazer em Portugal, o principal mercado da empresa, para cimentar a marca.
Quanto à exportação, que decorre apenas para o Brasil e pontualmente para outros mercados, “vai certamente lugar a isso, mas só depois de estar devidamente estruturado e cimentado no mercado nacional”, explica. Adepto de apostar na qualidade, na história por detrás da empresa e das suas marcas, para continuar a trilhar “um caminho que tem sido difícil, moroso, lento, com algum sucesso”, salienta “há que continuar a trabalhar e comunicar aquilo que fazemos bem e as nossas diferenças”.
Mais de 30 castas
A empresa tem, hoje, nas duas propriedades que a compõem, cerca de 240 hectares, dos quais 110 de vinha. Na Quinta dos Frades “há mais de 30 castas, de uma vinha onde as variedades predominantes são a Tinta Amarela, a Touriga Franca e, agora, a Touriga Nacional após a reconversão mais recente”, conta Diogo Lopes, 46 anos, enólogo da Quinta dos Frades, que tem um total de 75 ha de vinha. Uma parte significativa, de cerca de 20 hectares, é vinha velha. “A nossa é, na verdade, muito velha, pois uma parte significativa tem mais de 100 anos, o que faz dela a nossa jóia da coroa”, salienta.
Há mais 35 hectares na Quinta do Castelo, em Santa Marta, no Baixo Corgo, que estão a ser restruturados, porque a empresa quer apostar mais na produção de vinhos a partir de castas brancas. “Queremos puxar muito pela identidade dos tintos do Cima Corgo, na Quinta dos Frades e, na Quinta do Castelo, queremos apostar na frescura, nas castas brancas, no potencial que existe por explorar nos brancos do Baixo Corgo e duriense como um todo”, explica Diogo Lopes. Por isso, está a ser feita a reconversão de muitas variedades tintas para brancas, e “a multiplicação das castas mais enraizadas no Baixo Corgo, como a Códega do Larinho, o Avesso e o Arinto”. Para Diogo Lopes, “há espaço para fazer brancos com muito mais caracter, e é isso que queremos fazer”.
Vinha velha e muito velha
Trabalhar com vinha velha no Douro é sempre um grande desafio, e um trabalho pesado por ser manual, que obriga a um maior controlo e mais atenção durante o ciclo vegetativo das plantas, numa época em que há cada vez mais fenómenos extremos durante o verão, com picos de calor e outros fenómenos associados ao escaldão. “Temos tentado minimizá-los através de uma gestão mais equilibrada da forma como controlamos a vegetação, para protegermos os cachos dos fenómenos extremos, que têm sido cada vez mais constantes nos últimos anos e serão mais permanentes no futuro”, diz o enólogo, acrescentando que ainda há um longo trabalho a fazer, ao nível da viticultura, para conhecer e diferenciar todas as suas parcelas de vinha. A sua área extensa e as suas muitas exposições podem constituir uma mais-valia para o trabalho a realizar na adega, com uvas com características diferenciadas conforme as suas origens a poderem contribuir, após o estudo dos vinhos que originam, para originar vinhos diferenciados. O futuro o dirá.
Diogo Lopes conta que entrou na Quinta dos Frades há um ano, cheio de ideias. “Já apresentei um plano de trabalho ao Aquiles de Brito, que contém tudo aquilo que acredito que podemos fazer em conjunto nos próximos anos. Isso implica estudar tudo, ou seja, conhecer a Quinta dos Frades em todos os seus ambientes e recantos, porque acredito que ainda não se explorou todo o seu potencial”, conta. “É esse trabalho que a quinta merece”, afirma. Estudar para conhecer e individualizar as suas parcelas “irá também contribuir para podermos fazer a nossa própria multiplicação vegetal com o material genético que aqui existe, que é a nossa grande mais valia” explica.
Diogo Lopes acredita que, na Quinta dos Frades, há potencial, não só para produzir um vinho de Vinhas Velhas, mas também das suas parcelas mais especiais. Também pensa em apostar em alguns vinhos varietais, sobretudo das castas que se destacam mais na Quinta de Frades, como a Tinta Amarela, a que mais destaca na propriedade, “também por ser e espinha dorsal dos nossos vinhos, porque consegue manter uma acidez muito boa e resistir, melhor que outras, ao efeito do calor”. É ela que dá um caracter mais vegetal aos vinhos da quinta, enquanto o toque de lápis acabado de afiar é mais um carácter da vinha velha, como foi demonstrado na prova que fiz. “E queremos fazer vinhos do Douro, do cima Corgo, com este perfil puro e clássico, que identifica os vinhos da quinta”, diz ainda Diogo Lopes.
(Artigo publicado na edição de Outubro de 2024)
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Quinta dos Frades
Fortificado/ Licoroso - 2017 -
Comendador Delfim Ferreira Grande Reserva
Tinto - 2015 -
Dona Silvia
Tinto - 2017 -
Quinta dos Frades
Tinto - 2016 -
Vinha dos Deuses
Tinto - 2019 -
Vinha dos Santos Colheita
Tinto - 2020 -
Vinha dos Deuses
Rosé - 2023 -
Dona Silvia
Branco - 2020 -
Vinha dos Santos Colheita
Branco - 2022
Entrevista: Diogo Lopes, o enólogo de quem se fala
Aos 44 anos de idade, Diogo Lopes é hoje um dos nomes mais falados e unanimemente apreciados da “moderna” enologia portuguesa, emprestando o seu talento a sete distintos projectos vitivinícolas e com mais alguns em carteira. Para comemorar a sua 20ª vindima (na verdade, são 21, contando com a actual), encontrámo-nos à mesa para conversar […]
Aos 44 anos de idade, Diogo Lopes é hoje um dos nomes mais falados e unanimemente apreciados da “moderna” enologia portuguesa, emprestando o seu talento a sete distintos projectos vitivinícolas e com mais alguns em carteira. Para comemorar a sua 20ª vindima (na verdade, são 21, contando com a actual), encontrámo-nos à mesa para conversar e abrir algumas garrafas que espelham o seu trabalho e a sua visão do mundo do vinho.
Texto e Notas de Prova: Luís Lopes Fotos: D.R.
Lisboeta de nascimento (1978), foi o entanto o campo e não a urbe que o motivou para escolher a profissão. Entre 1999 e 2004 estudou Engenharia Agronómica no Instituto Superior de Agronomia com especialização em Viticultura e Enologia. E foi enquanto estudante que visitou o primeiro Encontro com o Vinho, então ainda realizado em Santa Apolónia, com o fito de conhecer “as pessoas do vinho” e em particular os que mais admirava, João Portugal Ramos e Anselmo Mendes. Com este último, acabaria depois por estabelecer uma estreita relação pessoal e profissional que se estende intocada até aos dias de hoje. Quando Diogo Lopes menciona o “Mestre” (assim, com maiúsculas), já toda a gente sabe a quem se refere. A primeira vindima como estagiário ocorreu em 2001, da adega dos Vinhos Borges, na Lixa. Nunca mais falhou uma: 2002 com Anselmo Mendes, em Monção; 2003 em Napa Valley, na Califórnia; 2004 na Quinta de Lourosa (propriedade do seu orientador final de curso, professor Rogério de Castro). No âmbito, precisamente, desse trabalho final de curso, passou o ano de 2004 entre a Bairrada e os Vinhos Verdes integrado no projecto Lusocastas, que visava estudar os diferentes sistemas de condução para as principais castas portuguesas nessas regiões. Rogério de Castro e Amândio Cruz foram os seus coordenadores e cimentou-se aí uma paixão pela terra, pela videira, que se desenvolveu nos anos seguinte e que marca claramente o seu trabalho enquanto enólogo. Na vertente enológica, os conhecimentos foram aprofundados com uma pós-graduação em Enologia na Escola Superior de Biotecnologia da Universidade Católica no Porto.
O percurso enquanto profissional “à séria” (ou seja, enólogo residente) iniciou-se em 2005, em Cabeção, na Sociedade Agrícola do Vale de Joana, onde Anselmo Mendes era consultor. Ficou em Cabeção até 2010, começando aí um percurso de consultorias em parceria com “o Mestre” que o levaram ao Couteiro-Mor e, mais tarde, à Adega Mãe, ainda hoje, porventura, o projecto que mais visibilidade lhe trouxe e continua a trazer. Vieram outros, entretanto, alguns de onde já se desligou (Morais Rocha, na Vidigueira e Herdade de Vale D’Évora, em Mértola) e outros onde se mantém em plena actividade e com máximo empenho: Vinhos Magma (na Terceira, Açores, com Anselmo Mendes), Cazas Novas (em Baião, na maior vinha de Avesso – 36 ha – onde trabalha em parceria empresarial com a família proprietária, Cunha Coutinho, e dois outros sócios), Herdade Grande, na Vidigueira, Kranemann Wine Estates, no Vale do Távora, Douro e Herdade do Freixo, Redondo.
Já muito com que se entreter, mas Diogo Lopes não vai ficar por aqui. O enólogo admite ter “em construção” três novos projectos: um, em Melides, “8 ha de uma vinha de sequeiro muito especial”; outro em Alvito, “20 ha de vinha numa das mais históricas propriedades do Alentejo”; e um outro na Beira Interior, “com o meu primo, no projecto Vale do Griz, 6 ha apenas com castas regionais”.
Mas quem é, na verdade, Diogo Lopes? Quais as suas referências, o que o motiva, que vinhos ainda quer fazer? Foi o que fiquei a saber após algumas horas de conversa e mais de uma dúzia de vinhos provados (e, em boa parte, bebidos…). Segue a entrevista.
O que o fez encarar a vinha e vinho como carreira profissional?
Nasci em Lisboa mas tive uma infância com uma base rural muito forte. Na verdade, férias para mim era ir ter com os meus avós à Beira e participar nas diversas actividades agrícolas. Eles eram agricultores, faziam um pouco de tudo, mas a vinha e o vinho eram o orgulho máximo do meu avô. Eu penso que a motivação deve ter vindo daí. Estudei no Colégio Militar, ainda fui para a Academia Naval para seguir o curso de oficial de Marinha, mas após um ano, a paixão pela Agronomia era muito maior. E então resolvi ingressar no ISA. Dentro do curso, foi só após ter travado conhecimento com o professor Rogério de Castro que a decisão de apontar baterias para a Viticultura e Enologia foi tomada. Foi ele quem me conduziu à conversa com o Anselmo Mendes para fazer o primeiro estágio de enologia em 2001. E a partir daí tudo se desencadeou.
Os primeiros anos na profissão, muitas vezes, definem o modo de estar de um profissional. Onde mais aprendeu, o que o surpreendeu, que influências teve?
O curso de Agronomia é fundamentalmente teórico. Os meus primeiros anos a “meter a mão na massa” serviram muito e foram fundamentais para ter contacto com os aspectos práticos do trabalho como enólogo. Na verdade, um enólogo faz muito mais coisas do que só a enologia pura… Há os aspectos burocráticos com as CVR, as encomendas de materiais para engarrafar, a própria manutenção dos equipamentos, gestão do pessoal. Nos primeiros anos creio que todas as semanas aconteciam coisas que eu nunca tinha feito. Desafios pequenos, mas onde é preciso encontrar soluções práticas e rápidas.
E agora entro na parte das influências. Tenho tido a sorte de me cruzar com muita gente e “beber” muitos ensinamentos, mas tenho de relevar um nome: Anselmo Mendes. O Anselmo Mendes sempre me ajudou a criar e a ter um método que seja desbloqueador e descomplicador de situações. Isso foi uma enorme ajuda. Mas o Mestre significou muito mais do que uma primeira oportunidade. Significou testemunhar os processos de experimentação que levava, em particular, em torno do Alvarinho. De um momento para o outro dei por mim a fazer estudos de fermentação em carvalho de diferentes florestas, com diferentes tostas, à procura das expressões mais genuínas das castas. E essa ideia da experimentação e da procura do que é mais genuíno ficou para sempre; acho que define muito do que continua a ser o meu trabalho. Agora dou por mim a fazer testes e mais testes e a descobrir o potencial do Avesso, ou do incrível Viosinho de Lisboa; o Vital em madeira e no ovo de cimento; os Pinot atlânticos; o Sousão e os Potes de Barro da Vidigueira, o carácter vulcânico dos Biscoitos.
Seja porque os anos e o clima mudam, seja porque a viticultura evoluiu, seja porque temos um património brutal de castas por potenciar em Portugal, a nossa atividade de enologia é dinâmica e uma descoberta permanente. E a minha descoberta começou com o Mestre! E depois achamos que fazemos um grande vinho, metemo-nos no avião, vamos à Borgonha e a Sancerre, ou vamos à Rioja, à África do Sul, ou mesmo ao novo mundo, Oregon, Napa, Mendoza… e somos surrados por novas influências, novas inspirações, que nos motivam sempre uma experiência… As viagens “vínicas” servem para apreender imenso.
Alentejo, Lisboa, Douro, Vinhos Verdes e Açores são as regiões onde Diogo Lopes espraia o seu talento.
Iniciou a carreira na vindima de 2001, um ano de boas memórias. O que mais o marcou nessa vindima?
Foi uma experiência incrível na Borges. Até ali, as minhas vindimas eram as feitas na Beira, nos lagares do meu avô. Na Borges tudo era enorme. Tudo muito mais mecânico e muito mais prático. Lembro-me que logo no meu primeiro dia, trabalhámos mais de 12 horas e adorei. O cheiro da fermentação do Loureiro é algo que nunca mais irei esquecer…
Ao longo de quase 21 vindimas feitas (contando com esta que vai a meio) quais as que lembra pela positiva e pela negativa e porquê?
2002 pela negativa. Aquilo foi chuva sem parar durante todo o setembro. 2014 também foi muito complicado, estava tudo no ponto mas depois começou a chover e estragou muita coisa. Pela positiva, 2012 e 2017. Anos perfeitos em equilíbrio. Nestes anos só é preciso não estragar, mesmo. Isso sim, é intervenção mínima!
Trabalha hoje em diversos produtores e distintas regiões (Alentejo, Lisboa, Douro, Vinhos Verdes e Açores) cada uma com suas características. Do ponto de vista de enólogo, o que destaca em cada região e quais os principais desafios/dificuldades?
É super-desafiante trabalhar em regiões tão diferentes. Cada uma tem o seu lado especial e temos de nos adaptar para sabermos tirar o melhor. Na região de Lisboa, a influência do Atlântico é talvez a característica mais diferenciadora e temos de saber aproveitá-la de modo a ter vinhos carregados de autenticidade. O maior desafio é a mentalidade dos viticultores locais que, por vezes, ainda estão muito vocacionados para produzirem volume em detrimento da qualidade. Mas essa mentalidade vai mudando aos poucos. Lisboa é, quanto a mim, a região do continente mais genuinamente atlântica e isso espelha-se na originalidade e qualidade dos seus vinhos, em particular nos brancos. Acredito que a região tem tudo para vir a afirmar-se a nível nacional (na exportação já é um sucesso, mas sobretudo com vinhos de entrada de gama) e para contribuir de forma muito consistente para a afirmação dos vinhos brancos portugueses no mundo. Assim consigamos confirmar todo o potencial existente e alavancar essa grande marca que é o próprio nome Lisboa.
No Douro, destaco a magia das vinhas velhas. As vinhas velhas são um legado que nos foi deixado pelos nossos antepassados e temos de o saber interpretar. A maior dificuldade na região, é a escassez de mão de obra. Todos os anos vejo o rancho das pessoas que vindimam connosco e vejo-o a envelhecer, não há renovação e isso é muito, muito preocupante. Trabalhar num Douro de altitude e virado a Norte (como é o caso da Kranemann) também é desafiante, temos sempre de gastar mais tempo a explicar os vinhos. São, na verdade, vinhos de um outro Douro…
O que gosto mais no Alentejo? A resposta pode chocar alguns, mas aí vai: a maturação das uvas. Contrariamente ao que se podia pensar, considero que o Alentejo tem um clima perfeito para o amadurecimento das uvas. Ficamos com vinhos com uma belíssima estrutura tânica e muito fáceis de beber. Uma das grandes ameaças, no entanto, é o aquecimento global, os fenómenos extremos são cada vez mais constantes e impactam directamente na qualidade final das uvas. A falta de água é outro desafio constante.
Na ilha Terceira e na região de Biscoitos, temos a originalidade dos vinhos vulcânicos. São vinhos verdadeiramente diferentes, com notas únicas e que nos transportam para a ilha. São os Açores em estado puro e sem qualquer tipo de máscara. Ali, a maior dificuldade tem sido a luta contra a pressão imobiliária, que nos Biscoitos é constante e tem levado a um grande abandono da vinha. A par de Carcavelos, os Biscoitos são, certamente, a DO mais ameaçada do país.
Finalmente, na região dos Vinho Verde, a revelação está no Avesso. Mais uma casta branca portuguesa de enorme potencial, que se tem mostrado sempre muito interessante nos diferentes processos de vinificação, com e sem madeira. E que expressa uma zona muito específica, Baião, que carece também de ser valorizada. A grande dificuldade está em explicar que este é um Vinho Verde diferente, longe do “gás e açúcar” com que muitos o identificam. Mudar essa percepção nem sempre é fácil.
Com tantos projectos, regiões, vinhos são muitas as variedades de uva que lhe passam pelas mãos. Quais as que mais gosta e porquê?
Nas brancas, o Arinto e o Viosinho. Na verdade, quase que destacava todas as castas brancas, pois é a minha convicção que temos o maior património de castas brancas do mundo, todas carregadas de originalidade. Mas adoro a versatilidade do Arinto, é uma casta que dá para fazer quase tudo e para melhorar quase tudo. Facilita imenso o meu trabalho.
O Viosinho é talvez a variedade branca com que mais trabalho e a uva que mais expressão tem ganho nos meus projectos. Quando vindimada no ponto óptimo, enriquece muito os vinhos, com estrutura e mineralidade.
Nas tintas, a Touriga Franca, do Douro ao Alentejo, entra sempre nos lotes dos melhores tintos que faço. É uma casta desafiante e que pode originar vinhos emblemáticos. Tenho de destacar também o Sousão, a casta que mais me surpreendeu nos últimos anos, com vinhos verdadeiramente originais.
Um enólogo consultor relaciona-se com vários produtores, com diferentes dimensões, objectivos, posicionamentos de mercado e, até, personalidades, pois as empresas são, sempre, as pessoas que as compõem. Como é lidar com tudo isto no dia a dia?
Creio que se construiu uma certa imagem do enólogo enquanto estrela do sector, uma espécie de tipo que vive apenas a parte mais glamourosa do trabalho, que não dá cavaco a ninguém, mas a realidade é outra: a nossa responsabilidade tem de ser transversal. Temos de ter a humildade de nos saber integrar nos desafios da gestão, da viticultura, da produção e das vendas, porque sem sustentabilidade no negócio não existe futuro. A competência do enólogo também se manifesta na capacidade de entender os projectos que abraça e as pessoas com que se relaciona. Superamos desafios todos os dias, partilhamos opiniões diferentes muitas vezes, mas é possível alinharmos as ideias e concretizar objetivos que realizem todas as partes. Eu tenho um certo privilégio que é poder trabalhar em equipas que funcionam muito bem. E aqui tenho de ressalvar um ponto: equipas de dezenas de pessoas (desde os que andam de enxada nas vinhas, ou de mala de viagem cheia de vinhos, perdidos em aeroportos) que estão nos bastidores, mas que são cruciais. E nós, enólogos, somos apenas mais um elemento na máquina.
Enquanto enólogo tem um estilo, um perfil de vinho que é o “seu”? E procura que esse perfil seja evidente nos vinhos que trabalha ou tem em linha de conta o terroir, o objectivo comercial (e até o gosto pessoal) do seu cliente produtor?
Eu tento sempre que os vinhos sejam uma expressão do local de onde vêm. Acho fundamental que o enólogo tente respeitar o terroir; quando trabalhamos com diversos produtores a última coisa que quero é que se diga que os vinhos são todos iguais. Mas também admito que possa haver pontos comuns, pois enquanto técnico privilégio sempre a acidez natural e o equilibro dos vinhos e tento tomar decisões que vão ao encontro disso mesmo. E naturalmente, as decisões são sempre coordenadas com os produtores com que trabalho, pois os vinhos têm de corresponder às expectativas que eles têm.
Que vinho (tipo/categoria/região) ainda não fez e gostaria de fazer?
Gostava muito de fazer um vinho em Colares, em chão de areia. São vinhos sempre inebriantes, salgados, com máxima expressão Atlântica. Espero um dia conseguir fazer um.
Mais tarde ou mais cedo, boa parte dos consultores acabam por tornar-se também produtores, em maior ou menor escala. A produção faz parte do seu plano?
Sempre tive o sonho de fazer um vinho na Beira Interior, na terra dos meus avós. Foi aí que tudo começou para mim e um dia destes haverei de lá chegar. A propriedade já existe e a realização desse sonho está para mais breve do que já esteve…
(Artigo publicado na edição de Outubro de 2022)
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#24 – Magma Verdelho branco 2018
vinho da casa #24 – Magma Verdelho branco 2018
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Primeira colheita Kranemann vai ser Vintage 2018
É uma boa estreia para a Kranemann Wine Estates, empresa recente no Douro, fundada há pouco mais de dois anos. A sua primeira colheita de Vinho do Porto, exactamente de 2018, foi aprovada como Vintage pelo IVDP. Este é um marco importante para a jovem empresa até porque o Vinho do Porto representa cerca de […]
É uma boa estreia para a Kranemann Wine Estates, empresa recente no Douro, fundada há pouco mais de dois anos. A sua primeira colheita de Vinho do Porto, exactamente de 2018, foi aprovada como Vintage pelo IVDP. Este é um marco importante para a jovem empresa até porque o Vinho do Porto representa cerca de 50% da produção total, sendo o restante dedicado a vinhos DOC Douro.
Este Vintage foi orientado enologicamente pelos enólogos Diogo Lopes (consultor) e Susete Melo (residente) e resultou, segundo Diogo Lopes, “de um ano muito especial, marcado pelo inverno seco, pelas chuvas primaveris e por um verão quente. Apesar das dificuldades na viticultura, que significaram uma produção menor, a maturação final longa proporcionou uvas de qualidade extraordinária”. Susete Melo complementa: “Este Vintage 2018 tem origem numa parcela mais baixa no Vale do Távora, junto ao rio, onde o xisto e a temperatura mais alta proporcionaram fruta muito madura, plena de raça, com taninos firmes. As uvas destacaram-se logo pela cor e pelo perfume que trouxeram aos lagares”.
A vindima ocorreu a dia 1 de Outubro. O lançamento no mercado ocorrerá em Novembro e apenas foram produzidas 3.215 garrafas. Uma boa parte irá certamente para o mercado canadiano, onde está radicado Christoph Kranemann, um cirurgião enófilo que se apaixonou pelo Douro, pelos seus vinhos e, em particular, pela Quinta do Convento de São Pedro das Águias, uma propriedade localizada em Tabuaço (na foto acima).