Factor X
Existem muitas definições para o chamado factor X. Aquela de que mais gosto explica-o desta forma: “Uma variável, numa dada situação, que pode vir a ter o impacto mais significativo no resultado final”. No caso do vinho, não tenho qualquer dúvida: a variável principal, o factor X, é o factor humano. TEXTO Luís Lopes O […]
Existem muitas definições para o chamado factor X. Aquela de que mais gosto explica-o desta forma: “Uma variável, numa dada situação, que pode vir a ter o impacto mais significativo no resultado final”. No caso do vinho, não tenho qualquer dúvida: a variável principal, o factor X, é o factor humano.
TEXTO Luís Lopes
O vinho é um produto da civilização. Ao contrário de outros bens que a natureza nos oferece, o vinho não pode existir sem a intervenção humana. Essa intervenção começa na própria videira, a vitis vinifera, resultado da domesticação da videira selvagem, e prolonga-se em todos os trabalhos de campo, sem os quais a videira não frutificaria. Diferentemente do que acontece com uma ameixeira ou macieira, por exemplo, uma vinha abandonada, passados alguns anos, deixa de dar frutos.
A progressiva banalização da palavra terroir pode levar-nos a pensar que a natureza tudo determina, e que o perfil de um determinado vinho é quase exclusivamente definido pelas características do local. Mas não é verdade.
A natureza é importantíssima na definição de um vinho, todos o sabemos. A mesma casta, trabalhada na adega da mesma forma, origina vinhos diferentes consoante o local onde nasceu, ou as condicionantes climáticas do ano vitícola. Mas a quantidade de variáveis introduzidas pela intervenção humana acaba sempre por sobrepor-se aos desígnios da natureza, com um impacto determinante no resultado final. Um exemplo, muito simples: perante um dado talhão de vinha, posso vindimar agora com 11% de álcool provável ou optar por colher as uvas mais tarde, com 14%. A decisão é minha, e desse exercício de livre arbítrio nascem vinhos completamente distintos. Multipliquemos isto por todo o tipo de variáveis aplicáveis na vinha e na adega decorrentes da intervenção humana e facilmente percebemos que cada decisão (mesmo a de não intervir) condiciona sempre o resultado final.
Nesta edição da Grandes Escolhas temos vários exemplos do poder do factor X na definição do perfil de um vinho. Desde logo, a grande prova de vinhos brancos de Monção e Melgaço. Em pouco mais de 30 vinhos provados, a diversidade de estilos patenteada é enorme. Estamos a falar da mesma casta (Alvarinho) e da mesma região, ainda que com diferenças de produtor para produtor ao nível de tipologia de solos, exposição solar ou altitude, que introduzem nuances distintas no aroma e sabor. Mas quando avaliamos dois vinhos produzidos em vinhas contíguas e nos deparamos com um deles exuberante, intenso e tropical, e outro, austero, citrino, mineral, percebemos então facilmente o efeito do factor humano no perfil de um vinho.
Veja-se, também nesta edição o caso de Cortes de Cima. Um produtor da Vidigueira resolve plantar vinha à beira mar, em Vila Nova de Milfontes. Podia ter dado mau resultado, pois não havia histórico vitivinícola no local. Dez anos depois, com muito trabalho para superar os exigentes desafios que a humidade atlântica traz, o novo terroir é uma aposta ganha. O mesmo se pode dizer de José Afonso, um médico que gosta (literalmente) de deitar as mãos à terra, em Souropires, Pinhel. Ali, a quase 700 metros de altitude, trabalha as vinhas antigas com as castas tradicionais, mas também faz belos vinhos das “imigrantes” Verdelho ou Chardonnay. Esses vinhos são, tal como os outros, produto daquele terroir. Um terroir do qual o Homem faz obrigatoriamente parte.
O factor X tem obviamente limites. Não é possível fazer um grande vinho num terroir que não está vocacionado para isso. Do mesmo modo, o ser humano é capaz, e demonstra-o com frequência, de desperdiçar um terroir de excelência fazendo vinhos vulgares. Ainda bem que assim é. É preferível tomar decisões, agir e aprender com os erros, até alcançar o máximo que um terroir pode dar, do que deixar um produto criado pelo Homem ao cuidado dos insondáveis desígnios da natureza. A natureza não faz vinho. Mas pode fazer um bom vinagre….
Edição n.º29, Setembro 2019
Ser sustentável
Vivemos numa sociedade de consumo o que implica, por um lado, delapidação de recursos naturais e, por outro, desperdício. A produção de bens alimentares (vinho incluído) não foge a esta regra. O que mudou, sobretudo na última década, foi a consciência ambiental, e hoje em dia a preocupação de muitos consumidores e produtores esclarecidos passa […]
Vivemos numa sociedade de consumo o que implica, por um lado, delapidação de recursos naturais e, por outro, desperdício. A produção de bens alimentares (vinho incluído) não foge a esta regra. O que mudou, sobretudo na última década, foi a consciência ambiental, e hoje em dia a preocupação de muitos consumidores e produtores esclarecidos passa por minimizar os efeitos da nossa pegada no planeta.
TEXTO Luís Lopes
Convenhamos, o conceito de sustentabilidade não é algo inteiramente claro aos olhos do apreciador de vinho. Para muitos, a sustentabilidade junta-se no mesmo saco a um vasto conjunto de sub-categorias, muitas das quais pouco ou nada têm a ver com sustentabilidade. O mais recente trabalho da Wine Intelligence (empresa de referência que realiza estudos de mercado um pouco por todo o mundo) define nada menos do que 13 categorias naquilo que baptizou de índice SOLA (acrónimo de “sustainable, organic and lower alcohol”). Listadas por ordem de interesse e oportunidade em 15 diferentes mercados (incluindo o português), são elas: vinho orgânico, vinho produzido de modo sustentável, vinho de comércio justo, vinho amigo do ambiente, vinho sem conservantes, vinho sem sulfitos, vinho de adega com neutralidade carbónica, vinho de baixo teor alcoólico, vinho “laranja”/curtimenta, vinho biodinâmico, vinho sem álcool, vinho vegan, vinho vegetariano. Por aqui se vê que pegada de carbono, orgânico, sulfitos, vegan (e ainda podíamos juntar aqui os chamados “vinhos naturais”, que ninguém sabe bem o que são) se misturam num caldeirão de conceitos que traduzem algo bastante vago e indefinido, mas que poderíamos resumir como “vinhos alternativos”.
Na verdade, é óptimo que as pessoas procurem coisas diferentes, que fujam do chamado “mainstream”. Mas seria ainda melhor que não se confundissem gostos, modas, ou tendências, com algo tão fundamental para a vida de todos nós quanto a sustentabilidade.
A começar, desde logo, pelos dois conceitos mais atractivos para os novos consumidores: sustentável e orgânico são coisas distintas. É possível ser-se orgânico sem se ser mais sustentável (sobretudo ao nível da pegada de carbono, além da polémica questão do cobre) e é possível ser-se mais sustentável sem aderir ao orgânico. O orgânico é um dos vários caminhos para a sustentabilidade e, tal como todos os outros, um caminho com desafios difíceis e buracos escondidos. Não existe um modelo perfeito, isento de danos colaterais. A sustentabilidade é, antes de mais, equilíbrio. E esse equilíbrio deve atravessar toda a fileira do vinho, desde a uva até ao copo do consumidor. Uma viticultura sustentável tem de estar associada a uma adega sustentável, a uma embalagem sustentável, a uma logística sustentável, a um comércio sustentável, no fundo, se quisermos, a um modo de vida sustentável.
Os vinhos “amigos do ambiente” são negócio de presente e de futuro. Mas mais do que estampar no rótulo da garrafa uma certificação ambiental que ajude a comunicar um produto diferente, é a consciência ambiental, ao nível do individuo, das empresas, da sociedade, que é realmente importante. Um cada vez maior número de produtores de vinho acredita, verdadeiramente, que não pode e não deve desenvolver o seu negócio prejudicando o meio ambiente, a sua sustentabilidade e, em última análise, o futuro das gerações vindouras. Ou seja, opta pela protecção ambiental por convicção, e não por ser “trendy” ou por ser um mercado em crescimento. Da mesma forma que cada vez mais consumidores optam por vinhos produzidos por empresas amigas do ambiente, não porque sejam melhores vinhos mas, sobretudo, porque se preocupam.
Os ganhos ao nível da sustentabilidade conseguem-se através da educação, promovendo uma consciencialização e uma cultura ambiental individual e colectiva. Nesse sentido, o sector do vinho, tendo embora muito para melhorar, tem também boas razões para se orgulhar do muito que já foi feito. Cabe-nos a nós, consumidores, fazer a nossa parte.
Edição n.º28, Agosto 2019
Reserva, mas não tanto
Os chamados “designativos de qualidade” fazem parte da vida de qualquer apreciador de vinho. Escolha, Reserva, Colheita Selecionada, são evidenciados na rotulagem e sugerem estarmos perante um produto de patamar vincadamente superior. Mas, olhando para o que está dentro da garrafa, o que é que o designativo de qualidade nos garante? Bom, na verdade, rigorosamente […]
Os chamados “designativos de qualidade” fazem parte da vida de qualquer apreciador de vinho. Escolha, Reserva, Colheita Selecionada, são evidenciados na rotulagem e sugerem estarmos perante um produto de patamar vincadamente superior. Mas, olhando para o que está dentro da garrafa, o que é que o designativo de qualidade nos garante? Bom, na verdade, rigorosamente nada.
TEXTO Luís Lopes
A Portaria 239/2012, do Ministério da Agricultura, define as “menções tradicionais”, entre elas os designativos Colheita Selecionada, Escolha, Reserva, Reserva Especial, Grande Reserva, Superior, etc. As diferenças entre eles são subtis, mas, basicamente, exige-se que estes vinhos tenham “características organoléticas destacadas” ou “muito destacadas”, ou seja, que a sua qualidade se demarque claramente da média. Em cima desta lei geral, cada CVR (organismo que gere a certificação em cada região) estabelece normas regionais que podendo ser mais restritivas que a lei geral, não podem nunca ser mais permissivas. Além disso, as CVR definem os critérios técnicos para aferir a “qualidade destacada”. Regra geral, passa por esses vinhos obterem mais alguns pontos na câmara de provadores que faz a certificação. Em teoria, tudo certo. O problema é a prática.
Se corrermos as prateleiras das lojas de retalho encontramos inúmeros exemplos de vinhos que ostentam orgulhosamente designativos de qualidade e que são vendidos a preços ridículos. Numa rápida pesquisa online de tintos Reserva até €3, deparei-me com vinhos que vão desde €1,99 (Dão e Tejo) a €2,99 (Alentejo), passando por valores intermédios, €2,29 (Lisboa) e €2,49 (Setúbal e Douro). Convenhamos: alguém acredita que vinhos vendidos a estes preços (IVA incluído!) possuem “qualidade destacada”? Geralmente são vinhos bem feitos, adequados ao valor que se pede por eles, mas, quase sempre, a única coisa que os diferencia de outro vinho do mesmo patamar qualitativo, é o sabor à madeira que lhes foi adicionada.
Os supermercados limitam-se a vender o que lhes é proposto, aos preços que conseguem negociar, os consumidores fazem as suas escolhas e mal nenhum viria ao mundo se tudo a isto se resumisse. Cada qual compra o vinho que quer (ou pode) e o que importa é que lhe saiba bem. O enorme problema são os efeitos colaterais destes Reservas “da treta”. O mais grave, é a banalização dos designativos de qualidade: se tudo merece “qualidade destacada”, então nada há que se destaque. Depois, a desinformação do consumidor: porquê comprar aquele vinho “colheita” por €5 se se pode comprar este “reserva” por €2,49? Acrescente-se a isto a autoviciação das câmaras de provadores: se para ser Reserva basta ter madeira, então só pode ser Grande Reserva um vinho que tiver muita (mesmo muita!) madeira. Finalmente, o descrédito internacional: um comprador que conhece o Reserva espanhol de 3 anos de idade e o Gran Reserva de 5 anos, olha para os Reserva portugueses como uma vigarice. Nos anos 80 estragámos, talvez para sempre, um excelente mercado, a Dinamarca, inundado com “Garrafeiras” miseráveis. É esta a imagem que queremos continuar a dar dos nossos vinhos?
Não há uma forma fácil de resolver isto, mas acredito não podem haver designativos de qualidade sem estágio obrigatório, que pode variar de região para região. Se um Reserva, por exemplo, só puder ser comercializado com dois ou três anos de idade, isso obriga o produtor a utilizar o designativo num vinho verdadeiramente bom, que não pode nunca ser vendido muito barato. Em paralelo, as câmaras de provadores regionais deverão melhorar e afinar o seu critério.
Nenhum produtor é obrigado a utilizar designativos de qualidade. Aliás, muitos dos mais caros e prestigiados vinhos portugueses não lhes fazem menção. Mas quando se envereda por este sistema de classificação, colocando a palavra Reserva (ou outra congénere) no rótulo, era bom que isso significasse alguma coisa.
Edição Nº22, Fevereiro 2019
O nome das uvas
Temos nomes diferentes para a mesma casta. Temos castas diferentes com o mesmo nome. Temos a mesma fonética para grafias e castas diferentes. Temos grafias diferentes para a mesma casta. Felizmente, só temos 250 castas nativas, se não, imagine-se a confusão que por aí andaria… TEXTO Luís Lopes Com frequência, ao longo dos últimos 15 […]
Temos nomes diferentes para a mesma casta. Temos castas diferentes com o mesmo nome. Temos a mesma fonética para grafias e castas diferentes. Temos grafias diferentes para a mesma casta. Felizmente, só temos 250 castas nativas, se não, imagine-se a confusão que por aí andaria…
TEXTO Luís Lopes
Com frequência, ao longo dos últimos 15 anos, tenho-me visto perante uma plateia de enófilos ou profissionais estrangeiros, incumbido de lhes apresentar e dar a provar um conjunto de vinhos portugueses. Confesso que é um trabalho que aprecio bastante. É entusiasmante poder transmitir a outros a minha paixão pelos vinhos de Portugal, revelando um território onde qualidade, diversidade e personalidade se conjugam de forma notável. E é com um certo “orgulho nacional” que assisto à surpresa deliciada daqueles que, pela primeira vez, se deparam com a grandeza vinícola escondida neste pequeno país.
Em todas estas sessões, há um momento que tenho como certo: quando alguém me pede, meio envergonhado pelo seu desconhecimento, que lhe explique melhor porque é que a casta X também se chama Y e por vezes (mas nem sempre) se escreve com Z. Regra geral, safo-me dizendo que os portugueses são um povo tão extraordinário e seguro de si que, se puderem fazer uma coisa de forma complicada, não vão fazer simples. Depois da risada geral, acrescento que os espanhóis ainda são mais tortuosos, dando como exemplo a ubíqua Tempranillo, que, consoante o local onde está plantada, se pode chamar Ull de Llebre, Tinta del Pais, Cencibel, Tinto Fino, Tinta de Toro, Vid de Aranda, Escobera e Chinchillana, para além de algumas variações sobre estes nomes. Ao pé disto, nós portugueses, com a Aragonez e a Tinta Roriz, somos uns meninos de coro…
Se o problema estivesse apenas nas sinonímias não seria um problema. Torna mais difícil de explicar a quem quer conhecer (seja estrangeiro ou português) mas é ultrapassável e até reforça as identidades regionais. Mas as confusões não estão apenas nas sinonímias. Na verdade, neste país de 250 castas conseguimos o assinalável feito de estabelecer quatro patamares de confusão, qual deles o mais rebuscado:
1. Temos nomes diferentes para a mesma casta. Citando apenas alguns dos mais de 50 sinónimos oficialmente admitidos: Arinto/Pedernã, Arinto dos Açores/Terrantez da Terceira, Bical/Borrado das Moscas, Fernão Pires/Maria Gomes, Malvasia Fina/Boal, Síria/Roupeiro/Códega, Alvarelhão/Brancelho, Aragonez/Tinta Roriz, Rufete/Tinta Pinheira, Trincadeira/Trincadeira Preta/Tinta Amarela.
2. Temos o mesmo nome para castas diferentes. Algo que é (ou deveria ser) ilegal, pois induz em erro o consumidor. Mas nem produtores nem organismos de controlo (CVR’s/IVV) se preocupam em repor a verdade, através do correcto cadastro do que efectivamente existe na vinha. Quando se sabe que muito do vinho vendido como Verdelho é, na realidade, Gouveio ou Verdejo, e se encolhe os ombros como se nada fosse…
3. Temos a mesma fonética para grafias diferentes e castas distintas. É o caso do Sercial (casta típica da Madeira – que também se chama Esgana-Cão no continente, já agora…), do Cercial (da Bairrada) e do Cerceal Branco (do Dão e do Douro), tudo uvas distintas que se pronunciam da mesma forma mas se escrevem de maneira diferente.
4. Temos grafias distintas para a mesma casta. Algumas reconhecidas oficialmente (Boal/Bual, Malvasia/Malvazia) outras nem tanto, como o Aragonez/Aragonês que, segundo a legislação, deveria ser sempre Aragonez mas cada qual escreve como lhe apetece.
Agora imaginem-me perante um grupo de sommeliers de Taiwan a tentar explicar tudo isto. É um pouco embaraçoso. Mas, acreditem, tremendamente divertido.
Setembro com Dirk
Para os profissionais do vinho, Setembro não é apenas mais um mês do calendário. É, acima de tudo, o início de um novo ciclo, marcado pela vindima enquanto apogeu de um ano vitícola (e bem difícil este, por sinal). A edição de Setembro da Grandes Escolhas assinala a “rentrée” com o destaque de capa para […]
Para os profissionais do vinho, Setembro não é apenas mais um mês do calendário. É, acima de tudo, o início de um novo ciclo, marcado pela vindima enquanto apogeu de um ano vitícola (e bem difícil este, por sinal). A edição de Setembro da Grandes Escolhas assinala a “rentrée” com o destaque de capa para Dirk Niepoort, figura incontornável do vinho português.
TEXTO Luís Lopes
A vindima já está aí e a equipa da Grandes Escolhas prepara-se para correr o país de norte a sul, acompanhando todo o bulício que a colheita dos tão aguardados frutos gera. Até ao lavar dos cestos, diz o ditado, muito poderá ainda acontecer, mas não restam dúvidas que este tem sido um ano de sofrimento para as videiras e para quem delas cuida. O granizo afectou diversas propriedades, os ataques de míldio foram devastadores em várias regiões, e o escaldão daquela primeira semana de Agosto marcou a ferro e fogo vinhas um pouco por todo o lado. São de esperar quantidades mais reduzidas na generalidade do território e muitos produtores de referência, sobretudo entre os mais pequenos e os que apostam tudo na viticultura orgânica (com menos opções preventivas e curativas), ficaram praticamente sem uvas para colher. Como um viticultor atingido por estes fenómenos da Natureza me dizia há poucos dias, “por mais vindimas que tenhamos no lombo, os anos nunca são iguais e este vai ficar na memória como o ano do míldio e do escaldão, ou então o ano dos mentirosos, aqueles a quem por milagre ou microclima nada acontece e as uvas e vinhos aparecem sempre…”
Mas deixemos, por enquanto, as vindimas, que mal começaram ainda, e passemos ao tema de capa que, desta vez, é uma pessoa, Dirk Niepoort, porventura a figura do vinho português mais conhecida e com mais influência junto dos líderes de opinião internacionais. Antes de prosseguir, porém, uma declaração de interesse: o Dirk é um dos meus mais antigos amigos no mundo do vinho. É por isso que, na entrevista que publicamos nestas páginas, uso a segunda pessoa do singular, o “tu”, repudiando o que tradicionalmente os jornalistas fazem nas entrevistas para esconder a sua intimidade com o entrevistado. Eu não tenho nada a esconder. Sou amigo do Dirk, e admiro-o enquanto amigo e enquanto profissional. Isso não me impede de discordar dele em muitas coisas. Aliás, ao longo da entrevista tive por diversas vezes a enorme tentação de questionar e rebater os seus conceitos e teorias, de contra-argumentar, de iniciar uma das intermináveis discussões que sempre fizeram parte das nossas conversas. Mas uma entrevista não é um debate, enquanto jornalista cabe-me expor a sua visão do vinho, não apresentar a minha. E foi isso que procurei colocar nas páginas: o vinho, segundo Dirk.
Dirk Niepoort é único e arrebatador, complexo, polémico, desafiante, criativo, mentor de vinhos grandiosos e de (alguns) vinhos falhados, um pouco incoerente também (e isso em nada o preocupa) como acontece com muitos visionários e descobridores de novos caminhos. Ao longo das últimas três décadas, revolucionou uma empresa familiar e antecipou modas e tendências. A sua casa no Porto, autêntico viveiro de talentos (uma espécie de The Factory de Andy Warhol) acolheu, incentivou e impulsionou muitos produtores e projectos de sucesso. Dirk teve (e tem) um papel determinante na transformação da região do Douro e, com o tempo, tornou-se uma bandeira do Portugal do vinho, do Portugal da diferença, do Portugal capaz de surpreender aqueles que, lá fora, pensam que sabem e conhecem tudo. Acho que já merecia uma capa, não acham?
A nova revolução dos Verdes
Desde a sua criação em 1908, a região dos Vinhos Verdes passou por diversos impulsos de rotura com o passado que possibilitaram saltos importantes no seu desenvolvimento. Actualmente, um conjunto de produtores, grandes e pequenos, está a liderar um desses momentos, criando condições para mudar a forma como olhamos o Vinho Verde. TEXTO Luís Lopes […]
Desde a sua criação em 1908, a região dos Vinhos Verdes passou por diversos impulsos de rotura com o passado que possibilitaram saltos importantes no seu desenvolvimento. Actualmente, um conjunto de produtores, grandes e pequenos, está a liderar um desses momentos, criando condições para mudar a forma como olhamos o Vinho Verde.
TEXTO Luís Lopes
Comecei a escrever sobre vinhos em 1989, no início do movimento dos chamados “Verdes de Quinta”. Foi uma verdadeira revolução na região, uma revolução romântica, se quisermos, protagonizada por proprietários de casas e solares minhotos (alguns com muitos séculos de história) que queriam evidenciar a sua singularidade e, ao mesmo tempo, dar um cunho mais pessoal a um vinho assente quase exclusivamente em grandes marcas “sem rosto”.
Solar das Bouças, Casa de Sezim, Paço d’Anha, Casa de Cabanelas, Casa de Compostela, Casa da Senra, Casa de Vila Boa, Casa de Vilaverde, Quinta de S. Cláudio, Quinta do Tamariz ou Quinta de Azevedo foram alguns dos mais de 20 produtores que decidiram romper com o paradigma tradicional do Vinho Verde – vinhos simples, baratos, com gás e doçura – e ambicionar ir mais além, com vinhos secos e mais sérios, que transportavam uma identidade e o conceito de “produtor-engarrafador”. A vaga dos vinhos de quinta, que alastrou depois ao resto do país, teve na região dos Vinhos Verdes a sua locomotiva e hoje poucos se lembram disso. Mas o mercado dos Verdes não estava ainda suficiente maduro para acolher a ousadia e vários destes pioneiros ou desapareceram ou, a dada altura, tiveram que se adaptar a um estilo mais comercial para se manterem no activo. O conceito e o propósito, porém, ficaram.
Hoje, os tempos são outros, o consumidor também e, não menos importante, a viticultura da região está muito melhor preparada para responder aos desafios qualitativos. Ou seja, ao contrário do que a revolução das quintas pensava, para fazer um Verde mais ambicioso na qualidade e no preço não basta tirar o gás e o açúcar, é preciso que esse vinho exprima o melhor das mais nobres castas regionais (Loureiro, Avesso, Arinto e, cada vez mais, Alvarinho) e do carácter da terra que o viu nascer.
Quem estiver minimamente atento terá percebido que o processo de mudança já se iniciou, com o Vinho Verde a assumir, a pouco e pouco, dois estilos bem distintos: o perfil “clássico”, com álcool baixo, gás, leve doçura, e preço a rondar os €3 (acima da média nacional, vale a pena mencionar…); e o perfil “moderno”, elegante, intenso, encorpado, vendido por valores entre os €6 e os €10 a um segmento de apreciadores mais exigente. São duas realidades absolutamente compatíveis e com o seu espaço muito próprio no mercado.
Porém, na construção deste Verde moderno e ambicioso existem caminhos que, em minha opinião, deverão ser evitados. Um deles passa pelo abuso da tecnologia: um vinho branco é tudo menos um sumo de maracujá. O outro, não menos preocupante, é o excesso de álcool (por vezes acima dos 13%), ao qual por vezes se associa a perda de acidez, desvirtuando o carácter da região. Não esqueçamos que o Vinho Verde tem a vantagem de ser, ao mesmo tempo, uma denominação de origem e uma categoria de produto. Um pouco como o Champagne, salvaguardadas as devidas distâncias. Por isso, o principal desafio dos modernos Verdes passa por mostrar que é possível fazer vinhos brancos de superior categoria com álcool moderado e elegante frescura, preservando a sua singularidade. O que é o mesmo que dizer, grandes vinhos brancos que não deixem de ser… Verdes!
Edição Nº15, Julho 2018
Misteriosa Bairrada
A Bairrada é uma extraordinária e complexa região, porventura a mais desafiante na sua relação com o consumidor. Enorme diversidade e forte carácter conjugam-se em vinhos que estão longe de ser imediatos ou consensuais. São vinhos misteriosos, que se revelam a pouco e pouco, até a sua grandeza nos conquistar por inteiro. Esta é uma […]
A Bairrada é uma extraordinária e complexa região, porventura a mais desafiante na sua relação com o consumidor. Enorme diversidade e forte carácter conjugam-se em vinhos que estão longe de ser imediatos ou consensuais. São vinhos misteriosos, que se revelam a pouco e pouco, até a sua grandeza nos conquistar por inteiro.
Esta é uma região de contrastes, uma região com várias faces. Desde logo, pela forma como os seus vinhos se posicionam no mercado. Se entrarmos numa grande loja de retalho alimentar, entre centenas de referências do Alentejo, Setúbal, Douro ou Dão, será muito pouco provável encontrar mais do que um vinho oriundo da Bairrada. Aparentemente, o “consumidor comum” está de costas voltadas para os vinhos da região ou, no mínimo, os responsáveis de compras dessas lojas não vêem nos brancos e tintos da Bairrada as características ideais para cativar os seus clientes. E, no entanto, vários produtores bairradinos estão, indiscutivelmente, entre os mais prestigiados de Portugal, e há cada vez mais vinhos da região a assumir lugar de destaque nas listas de conceituados restaurantes, nas prateleiras das lojas especializadas e nas preferências dos apreciadores mais esclarecidos e exigentes.
O próprio modelo fundiário da Bairrada explica esta bipolaridade: com uma dimensão média de vinha que não ultrapassa o meio hectare, parcelas dispersas e elevados custos de produção, esta não é, claramente, uma região de volumes, capaz de fazer bom e barato, mas sim uma região de nicho, vocacionada para produzir vinhos especiais a preços condizentes.
Não quer isto dizer que não se encontre excelente relação qualidade-preço, como o demonstra a grande prova de tintos Bairrada publicada nesta edição. Só que esses “best buy” estão na faixa dos 7 a 12 euros, não custam 3 ou 4… Paralelamente, temos os vinhos de topo, posicionados acima dos 25 ou 35 euros, que aliam a sua enorme categoria a um tom vibrante e fresco, denominador comum da região.
Os contrastes bairradinos não terminam aqui. Desde a reformulação legislativa de 2002, um DOC Bairrada pode ser feito com uma ou mais de 11 castas brancas e 17 tintas, entre as quais se encontram, castas exógenas como Chardonnay, Pinot Blanc, Verdelho, Sauvignon, Viognier, Cabernet, Merlot, Petit Verdot, Pinot Noir, Syrah, Tinta Barroca, Touriga Franca e Touriga Nacional, ao lado de uvas mais “tradicionais” como Maria Gomes, Bical, Cercial, Baga ou Castelão. Se cruzarmos este número de castas com os dois tipos de solos principais (areias e argila-calcário) e, sobretudo, as diferentes abordagens de adega por parte de enólogos e produtores, facilmente se imagina a gigantesca diversidade de estilos e perfis de vinho que a Bairrada coloca hoje no mercado. Se isso se revelou positivo ou negativo para a região, o balanço está ainda por fazer. Certo é que, por um lado, os vinhos tintos e espumantes elaborados com a “clássica” Baga voltam a estar, literalmente, nas bocas do mundo e assumem-se como uma categoria à parte; e, não menos certo, seja qual for o lote de uvas utilizado, o terroir da região deixa sempre a sua marca, em vinhos com qualidade, personalidade, vivacidade e longevidade. Misteriosa Bairrada…
Edição Nº14, Junho 2018
O vinho tem muitas cores
Edição nº12, Abril 2018 Nunca apreciei extremismos – na política, no futebol, na vida. O vinho faz parte da vida (pelo menos da minha) e é com preocupação que assisto ao veicular de uma certa radicalização do gosto por parte de uma franja de consumidores/comunicadores supostamente exigentes. Tenho duas boas razões para não gostar de […]
Edição nº12, Abril 2018
Nunca apreciei extremismos – na política, no futebol, na vida. O vinho faz parte da vida (pelo menos da minha) e é com preocupação que assisto ao veicular de uma certa radicalização do gosto por parte de uma franja de consumidores/comunicadores supostamente exigentes.
Tenho duas boas razões para não gostar de radicalismos. A primeira, é que os radicais tendem a ver as coisas de forma simplista, a preto e branco, sem outras cores ou tonalidades. Ora, o mundo, a vida, o vinho, são muito mais complexos do que isso. A segunda, é que quem defende uma posição radical não tem, normalmente, qualquer tipo de abertura para acolher a opinião do outro. Para um extremista, existe uma verdade (que é, obviamente, a sua) e um lado certo (que é, naturalmente, o seu), e a mentira e o erro estão com todos os outros que não concordam consigo. Esta predisposição mental aplicada ao vinho é ainda mais difícil de sustentar. Como se existisse o vinho “verdadeiro”, por oposição ao “falso”…
Tendências (modas, se quisermos) sempre as houve no mercado de vinho. Mas nunca, até hoje, se assistiu à diabolização de determinados estilos de vinho ou práticas enológicas, e à censura pública dos seus produtores ou apreciadores. O discurso do vinho “politicamente correcto” é, sobretudo, veiculado por alguns bloggers e produtores e, por muito que me custe enquanto profissional da área, também comunicadores/jornalistas. Os efeitos sentem-se num mercado de nicho, muito longe do país real, mas não são por isso menos preocupantes.
Há poucas semanas, no final de mais um curso da Academia Grandes Escolhas, um dos participantes abordou-me para uns minutos de conversa. A dada altura, arranjou coragem para dizer o que lhe ia na alma: “Sabe, eu bebo vinhos de qualidade há muitos anos e gosto especialmente de tintos encorpados, vigorosos, vinhos com 14 graus e aquele toque da madeira. Mas agora na internet e nos jornais dizem que isso é mau, que os vinhos devem ter pouco álcool e nenhum sabor a madeira, e eu começo a sentir-me deslocado. Sou eu que estou errado e já não sei o que é bom?” Confesso que quase me obriguei a pedir-lhe desculpa pelo comportamento dos outros. Mas, ao invés, disse-lhe que não há vinho “certo” e vinho “errado” e que cada um deve beber o que verdadeiramente lhe dá prazer, sem prejuízo de ir experimentando propostas diferentes, porque a diversidade é uma das mais fascinantes características do mundo do vinho.
Há gente armada em polícia de costumes, a exercer “wine bullying” sobre produtores e consumidores
Ao que isto chegou! Na ânsia de se mostrar muito conhecedora, muito “fora da caixa” e “alternativa”, há gente armada em polícia de costumes e dedicada a exercer “wine bullying” sobre os produtores e consumidores que ainda não “viram a luz”. Esquecendo-se que, se atingirem os seus propósitos e todos começarem a pensar e a beber o mesmo, um dia os vinhos verdadeiramente alternativos serão os que têm 17% de álcool e 36 meses de barrica nova!
Equilíbrio. Numa única palavra, esta é para mim a qualidade mais importante de um vinho. Equilíbrio entre exuberância e contenção, entre corpo e leveza, entre garra e elegância, entre pureza e carácter. E o equilíbrio encontra-se (e encontro-o) em vinhos muito distintos entre si, distintos na origem, no conceito, no estilo. O vinho é uma paleta multicolorida. Não o queiramos reduzir a uma cor só. E, sobretudo, não aceitemos que nos digam que só o amarelo tem nobreza e virtude. O que seria do vermelho, do verde, do azul…