Apologia do esclarecimento

Saber o que se come, perceber o que se bebe, percorrer as muitas veredas das harmonizações de comidas com bebidas torna claro sobretudo que depois do muito que já se sabe, está quase tudo por fazer. Há que abraçar sempre o inteiramente novo. TEXTO Fernando Melo Cena 1. Reunião do I Capítulo da Confraria do […]

Saber o que se come, perceber o que se bebe, percorrer as muitas veredas das harmonizações de comidas com bebidas torna claro sobretudo que depois do muito que já se sabe, está quase tudo por fazer. Há que abraçar sempre o inteiramente novo.

TEXTO Fernando Melo

Cena 1. Reunião do I Capítulo da Confraria do Arroz Carolino das Lezírias Ribatejanas. Melhor, criação da dita confraria, em Benavente, com honras de desfile, apadrinhamento formal pelas muitas confrarias enogastronómicas presentes e almoço com uma notável demonstração das muitas possibilidades culinárias da gramínea. O biónico José Maria Lino metido na mesma luta desde que o conheço, já vai para uma década, de pugnar por que a centelha criativa de quem cozinha não se extinga, antes ganhe força e fogo redobrados, sempre com o arroz carolino de permeio. Notável a sua paixão, comovente a forma como se empenha na pedagogia em contínuo, sem esmorecimento.
Cena 2. Visita à fábrica do bacalhau Giraldo, em Bilbau. É pouco conhecido do grande público, pois não tem venda a retalho, mas bem conhecido dos cozinheiros nacionais, representado pela Qualhouse, conhecida pela excelência dos produtos do seu portfólio. Já visitei alguns outros produtores de bacalhau e as diferenças não eram muitas, no domínio da transformação do pescado, mas os detalhes foram chamando a atitude e em vez de resistir, com uma atitude do tipo o que é que eu estou aqui a fazer, decidi acompanhar e vestir a pele do aluno diligente. Foi imediato o contacto com uma realidade verdadeiramente orientada para o negócio, pontos de sal afinados a gosto, cortes diversos das diversas partes do bacalhau, lombos altos e baixos, bacalhau preparado para tempura, dezenas de soluções ali apresentadas, tudo orientado para a produtividade e qualidade. Completamente fora da minha zona de conforto, assisti à excelência de produto e serviço, de superação difícil.
Cena 3. Jantar da Confraria da Cerveja no Hotel Intercontinental Cascais-Estoril, organizado pela À Mesa Com, o mesmo é dizer Fátima Moura e Teresa Santos, a primeira autora de reconhecidos pergaminhos a segunda conhecedora e cultora de cerveja e do produto português. O tema do jantar era o mar, e o chef Miguel Laffan foi o autor e executante de um menu extravagante a todos os níveis, sobretudo pela proposta da harmonização com cervejas, actividade complexa e com mais interrogações que certezas. A questão principal está na forma como o nosso palato percebe os amargos, a acidez e os polifenóis de uma cerveja, termos que também se aplicam ao vinho mas que na verdade não têm muitos pontos de contacto. É certo que no vinho se usa e abusa do termo acidez, mas existe uma terminologia estabelecida que nos permite contar um vinho a alguém, em poucas palavras, pelos vis¬tos na cerveja também. Ficou na memória umas maravilhosas migas de berbigão harmonizadas com total eficácia com uma witbier – cerveja branca. Total disparo de sabor, experiência totalmente inédita para mim, serenou-me a proficiência do chef Laffan no assunto, tudo explicado por ele e entendido por mim.
As três situações relatadas têm e denominador comum da novidade, e indicam o mais que óbvio colorido da vida de quem frequenta o edifício da comunicação sem preconceitos. No confortável universo da harmonização de vinhos com comida, sem querer deixamo-nos cair na vulgaridade e dizemos quase sempre o que se espera ouvir. O caso do arroz não enfrenta adamastores menores, está instalada a noção de bondade do arroz agulha porque o carolino tem tendência para empapar. Ora empapar to¬dos empapam, há que saber trabalhá-lo e levá-lo ao ponto certo. Fazemos isso na carne, no peixe, nos legumes e nos ovos, por que não fazê-lo também com o arroz? Grosso modo, vamos na terceira geração de chefs inovadores nas nossas cozinhas e estão a forçar um desenvolvimento inédito na nossa história, que é levar o conhecimento até ao limite e sujeitá-lo ao paradigma das raízes e proximidade. Temos de ser simples, e ao mesmo tempo temos de estar em constante aprendizagem, com espírito aberto. Ainda há bem pouco tempo, o arranque de cada campanha de arroz era feito com grãos lançados por uma avioneta, de¬pois por competição desenvolvia-se a planta, o conhecimento da variedade que se estava a semear era inexistente, a nossa expectativa mudou e tornámo-nos mais exigentes; agora queremos e podemos saber tudo. Seja em que domínio for, estamos obrigados a cultivar-nos e a saber mais, procurar esclarecimento em todas as frentes. A extraordinária obra “Peixes de Portugal”, de Maria José Costa (Edições Afrontamento, Julho 2018) elenca praticamente todas as espécies portuguesas com que nos relacionamos e uma boa forma de o usar é estudar uma delas por semana. Pode acontecer por curiosidade querermos estudar com mais pormenor um certo peixe, ainda há dois meses quis saber mais sobre o ruivo e fui dar com um manancial considerável de informação sobre o simpático e cabeçudo peixe. Daí podemos saltar para outras variedades e de repente estamos na espiral ascendente do conhecimento, só temos de nos sentir bem por isso. Penso que mesmo os fãs de bacalhau conhecem o formato triangular da versão seca e salgada, e que o peixe propriamente dito é pouco ou nada conhecido. Mas isso é outra conversa.

Diz-me a quem compras

Mais de metade do valor de qualquer empresa está na sua rede de fornecedores e um restaurante é visceralmente dependente dela. As etiquetas das toalhas de mesa, as marcas dos copos, os talheres e a parafernália de alfaias e utensílios têm marca. Tarda a hora da transparência sobre o que se processa na cozinha. Fazia […]

Mais de metade do valor de qualquer empresa está na sua rede de fornecedores e um restaurante é visceralmente dependente dela. As etiquetas das toalhas de mesa, as marcas dos copos, os talheres e a parafernália de alfaias e utensílios têm marca. Tarda a hora da transparência sobre o que se processa na cozinha. Fazia toda a diferença.

TEXTO Fernando Melo

Começo por onde devia terminar, por outro lado sei que assim o texto termina bem. Numa mesma casa de sushi, felizmente encerrada por falência há mais de três anos e de que também felizmente nunca mais se ouviu falar, deram-me vieiras estragadas a comer, na forma de sashimi. Duas vezes, em dias diferentes. Não fiz queixa a ninguém, confrontei-os apenas na segunda vez, e na resposta mais cândida recebi ali mesmo a explicação. Para eliminar a parte amarela – palavras deles – tinham uma escova muito forte e mesmo assim às vezes aparava a com a faca, mas que não me preocupasse porque eram fresquíssimas. Abençoado lança-chamas que mentalmente levo sempre na mala do carro para tratar destes assuntos! Além de tresandar a podre a da derradeira vez, estava viscosa e em decomposição, deitei fora logo no primeiro contacto com a língua. Caso perdido, resolvido e ultrapassado, mas era muito mais fácil se me mostrassem o que pedi, a quem compraram aquelas vieiras. Solução mais simples não há, e de facto a maravilhosa arte da cozedura pela lâmina que é o sashimi transforma-se rapidamente em pesadelo. Devo ao chef Paulo Morais – actualmente no Kanazawa – a primeiríssima chamada de atenção para o aspecto crucial do fornecimento de peixe e marisco para diferenciar as ofertas de sushi. Foi há vários anos, na sequência de uma lista dos melhores do ano que fiz com um amigo correlegionário. Disse-lhe então que duvidava que nos dessem essa informação, mas ele respondeu da melhor forma, se não derem, isso mesmo é já uma resposta. Toda a razão. Quando há cerca de cinco anos publicámos o grande guia de restaurantes, já só atribuímos a pontuação máxima aos restaurantes que nos revelassem os seus fornecedores principais, independentemente da categoria. Alguns caíram pela base, outros recusaram-se a dar a informação pedida, outros ainda mereceram mais uma visita, pela excelência e transparência demonstradas e acabaram por subir no quadro geral. A excelência deve ser premiada e não há melhor restaurante do que aquele que exige excelência a quem o fornece.

Arnaldo Lopes gere no Porto juntamente com o seu sogro o talho Europa que à excelência que sempre teve juntou agora uma das mais excepcionais ofertas algumas vez montadas no serviço carniceiro em todo o país. A partir de cortes menos nobres, por exemplo, produz material excelente para a grelha, de suculência que ele próprio explica às casas com quem trabalha. É por aqui que se avança em conhecimento, comunicação íntima entre quem todos os dias tem clientes exigentes para satisfazer e quem vive concentrado em seleccionar o melhor. A excelência, no fundo, está na cadeia de valor, desde a criação ao prato. O célebre e aclamado leitão assado à Bairrada vive do cruzamento de raças na criação, alimentação adequada e abate no momento certo. De nada adianta estar a levar nos famosos espetos o requinho à assadura se essa primeira etapa não for cumprida. Sem véus nem disfarces, foi pela mão de Vidal Agostinho Ferreira que eu próprio vi e dei conta nestas páginas a criação entre bísaro e duroc que perto do lugar sacrificial do fogo acontece. Ele e o irmão são ambos filhos do famoso Vidal que originou o restaurante do mesmo nome, permanecendo sócios e empenha¬dos cada um da sua forma na excelência no processamento e serviço do leitão assado. Na Marisqueira de Matosinhos, no Relento em Algés e na Nunes Real Marisqueira em Belém tenho momentos de grande bondade e mesmo emoção, pelo produto extraordinário que nos é proposto. Quando pergunto donde vem nem pestanejam, é com orgulho nos seus fornecedores que os revelam. Hoje em dia não há segredo que dure mais de um dia, por isso transparência é tudo. É que depois de garantir bons produtos na cozinha, ainda há toda a arte culinária da preparação e transformação. Cada um de sua forma e salva-guardadas as diferenças entre si, os que se relacionam com a peixaria Veloso, no Mercado 31 de Janeiro, em Lisboa fazem parte da prodigiosa cadeia de excelência gerada pela pequenina gigante Açucena Veloso, que nos deixou há um ano mas deixa descendência real e espiritual e continua a atrair os melhores ao mercado junto ao Saldanha. Quando há muito tempo o sushi começou a conhecer declinações de grande talante. Açucena quis saber mais sobre aquilo de que precisavam os mestres para o seu ofício. Aprendeu a preparar os peixes como queriam e pediam, cada um com o seu preceito e feitio. Excelência, mesmo num campo totalmente virgem e para que não tinha sido treinada. O mesmo vale para o serviço clássico de peixe de bitolas maiores para os restaurantes de primeira linha, quando indagamos e tomamos nota, ressoa o nome Veloso como marca e garantia de qualidade. A data de 31 de Janeiro, que dá nome ao mercado lisboeta é importante no calendário revolucionário e marca uma das primeiras, se¬não a primeira, revolta anti-regime, e aconteceu no Porto. No Porto, sim, não em Lisboa. Aquele mercado do Saldanha é o mercado da Açucena Veloso e é esse o nome que devia ter. Não se trata de alterar toponímia alguma, as ruas de Lisboa têm a sua organização própria. A melhor homenagem que se pode fazer é rebaptizar o templo peixeiro com o nome de Açucena Veloso, a maior revolucionária de sempre, sem ela a nossa vida era infinitamente mais pobre. Mas isso já disse muitas vezes.

O fumo da paixão

Envergonha qualquer jornalista o levantamento feito pelo chef Nuno Diniz do fumeiro nacional. Em década e meia de trabalho, tão discreto quanto intenso, anotou, visitou e provou mais de uma vez o que se faz de norte a sul do país. De forma simples, devolveu os louros aos produtores. TEXTO Fernando Melo Vamos tentar ser […]

Envergonha qualquer jornalista o levantamento feito pelo chef Nuno Diniz do fumeiro nacional. Em década e meia de trabalho, tão discreto quanto intenso, anotou, visitou e provou mais de uma vez o que se faz de norte a sul do país. De forma simples, devolveu os louros aos produtores.

TEXTO Fernando Melo

Vamos tentar ser pragmáticos e honestos para com o termo artesanal, pelo menos para admitir que continuamos a querer que tudo nos apareça feito e pronto à frente. Nesta altura do ano, grassam as feiras de queijos e enchidos nas grandes superfícies e supermercados, a oferta copiosa de uns e outros dá-nos a impressão de riqueza e qualidade e claro que nos aproximamos para ver mais de perto e cumprir o desígnio herdado dos romanos, manter uma despensa bem fornecida. Tudo certo, tirando a profusão e confusão de nomes, denominações de origem e certificações DOP ou IGP, que insistem em não significar necessariamente qualidade. Vamos a uma feira local de presuntos e enchidos e apetece-nos comprar tudo, ao passo que numa gôndola de um qualquer hipermercado a relação com cada peça é anódina e desprovida de história, remetendo-nos para o ardil do preço ou para o aspecto da marca. Está certo e compreende-se que tenha de ser assim, resulta directamente do comércio por que nós próprios puxámos e pelo quanto nos arredámos do contacto directo com os produtores. O chef Nuno Diniz, que conheci oficiante em casas de gabarito e junto de veneráveis, foi ao longo de anos – 14, diz ele – puxando o fio do fumeiro através das gastronomias regionais que temos. Movido pela função pedagógica, para que tem inegável talento, ligou-se à Escola de Hotelaria de Lisboa e ao longo dos últimos anos ancorou conhecimento precioso naquela casa, deixando nos corações dos criadores de amanhã a centelha do bom produto. E para gaúdio de alguns de nós, os normais, promoveu de tempos a tempos experiências de cozidos, espaço de experimentação da bateria de enchidos e fumeiro diverso que foi desbravando. Eu assistia à torrente com alguma circunspecção, confesso, mas como pessoa intelectualmente orientada que Nuno Diniz é, confiei que todo o comboio de informação iria um dia ter a uma estação feliz. Entre Ventos e Fumos, chama-se o livro que, com a chancela da Bertrand, dá conta de tudo. Eu vivia constrangido com a evolução da lista dos produtos DOP que mostrava, vaga e pouco esclarecedora, limitando-se a listar e relatar, em vez de descrever. Na mais recente edição do cozido, servido num almoço memorável na escola de Lisboa, rondava os 80 o número de enchidos e carnes servidos. Cada um com a sua história, cada história com a sua peça.
Mas tudo isto é ainda quase nada; importante é a criação de relações – networking no seu melhor – entre as diversas comunidades que orlam o artesanato do fumo, e aqui surgem algumas perplexidades, todas positivas. Primeiro, a comunidade da cozinha erudita comparece e responde à chamada de Nuno Diniz, que nem sempre foi devidamente considerado um dos pares. Depois, o país inteiro, continente e ilhas, está atento e segue de perto os movimentos do chef Diniz, reconhecendo-lhe, só com isso, o que até agora tem sido impossível, que é representar a classe, independentemente de estilos e estatutos. José Avillez tem o dom da liderança, sem dúvida, mas Nuno Diniz tem a neutralidade imperativa para a exercer. Espero vê-lo em funções muito em breve, precisamos muito de alguém como ele.
O assunto dos cozidos, a começar pelo famoso “à portuguesa”, que ninguém sabe bem o que é mas que todos mesmo assim o chamam ao peito, está no capítulo da cozinha de proximidade, um dos grandes redutos da cozinha portuguesa. Isso tem o imperativo imediato da geografia. Não tem sentido comprar um enchido de cada canto, atirar tudo para a panela e no fim chamar-lhe um cozido. Não é. Há por toda a Europa cozidos notáveis, destaco especialmente os do norte da Alemanha, sudoeste francês e Noruega, pela matriz forte de sabor e pela expressão de terroir e autenticidade que comunicam. E é qualquer coisa que vive nos lares e se executa em festa, com sentido de partilha. Nós também a temos, note-se, a nossa mesa é toda ela de festa, mas tenho algum medo que se perca a essência dessa mesma festa e que o registo regional desapareça de vez. Os lineares dos hipermercados a isso nos conduzem, e era tão importante que utilizassem a força comercial para nos orientar! Temos bons enchidos, muito bons até, mas não podemos perder de vista os legumes e as carnes, nem podemos desistir de chegar à transformação da água em ouro, desde que se começa a cozer as diferentes partes até ao momento derradeiro em que cozemos as couves. Vejo as pessoas muito perdidas por ali, uma farinheira da Beira Alta, um chouriço de carne de Barrancos, uma morcela de arroz de Leiria, e não devia acontecer assim. Fundador o trabalho de Nuno Diniz também por isso, põe-nos a todos mais perto dos produtores, e devolve a estes o que é deles. E nós podemos começar a dormir descansados, temos líder!

 

Edição Nº23, Março 2019

A importância de ser trufa

Vivemos imersos num contínuo de recordes e campeonatos e no que toca a alimentos raros e caros nós, humanos, somos exímios. Itália, Sérvia e Croácia produzem “tuber magnatum pico” de excelsa categoria que podem custar 7 mil euros por quilo no tamanho é o normal ou muito mais quando são grandes. A famosa trufa branca […]

Vivemos imersos num contínuo de recordes e campeonatos e no que toca a alimentos raros e caros nós, humanos, somos exímios. Itália, Sérvia e Croácia produzem “tuber magnatum pico” de excelsa categoria que podem custar 7 mil euros por quilo no tamanho é o normal ou muito mais quando são grandes. A famosa trufa branca é mesmo um regalo e a preta não lhe fica atrás.

TEXTO Fernando Melo

Uma trufa não é um fungo, mas o fruto de um fungo. Melhor ainda, é uma excrescência da raíz de algumas árvores. Encolhem os ombros os que acham que se trata de um preciosismo de linguagem e escandalizam-se quando se lhes pergunta se uma maçã é uma árvore. Claro que não. Temos o caviar e o foie gras em boa conta e pagamos valores chorudos por ambos mas também pouco sabemos sobre eles, menos ainda o que queremos saber. O luxo tem essa ambivalência em quase todas as frentes, deseja-se mas abandona-se depois da estaca da conquista. A fina e delicada rede de microfilamentos que vive no mundo subterrâneo das raízes alimenta vagarosamente e de forma sustentada alguns fungos e a esmagadora maioria frutifica à superfície, na forma de cogumelos. Alguns – muito poucos – frutificam debaixo de terra e é aí que temos as trufas. Pretas – tuber melanosporum – ou brancas – tuber magnatum pico -, os antigos reconheciam-lhes poderes sobrenaturais e inebriantes, para os romanos eram um afrodisíaco, depois da introdução da batata na alimentação chegaram a ser conhecidas como batatas malcheirosas e de há um século para cá são alimento muito desejado e apreciado pela élite gourmet. O conhecido cheiro a gás enlouquece os animais, outrora as porcas hoje os cães treinados dão com elas só pelo aroma. Onde apontam, escava-se um pouco e lá estão os pequenos ou grandes frutos, em jeito de recompensa. Em Alba, no Piemonte, Itália, há no final de Outubro um festival que o país elevou a símbolo universal da trufa branca, com honras de estado e leilão global. Isso não quer, contudo, dizer que só naquele pedaço de território há trufas brancas, na verdade existem em todo o mundo. Os aborígenes australianos, por exemplo, consumiam-nas avidamente e eram extraídas das raízes dos eucaliptos. Sérvia e Croácia são palco tanto ou mais importante da trufa branca do que Itália, de resto muitas trufas que entram no mercado pela porta grande provêm dali, o receituário desses países nos capítulos da caça e fundos de cozinha não deixa margem para dúvidas; há séculos que a trufa existe e é apreciada. As razões de mercado naturalmente asfixiam outras denominações que não Alba, mas nalgum ponto o assunto há-de passar a público. Para já a DO Alba permite a certificação de trufas brancas oriundas da Croácia e não são melhores nem piores, são apenas diferentes.
Para nós a trufa preta já faz maravilhas e devemos-lhe glórias diversas, a que só não acrescentamos porque o torpor intelectual não permite. E se temos boa trufa preta! Sei que estou sempre a marrar na mesma tábua, mas a trufa preta laminada introduzida entre a pele e a carne de um capão põe-nos em estado de graça e faz do galaró mudo um rei. A preparação da polémica perdiz à convento de Alcântara assenta na trufa preta e no foie gras logo desde o início da marinada de dois dias em vinho do Porto. Ovos mexidos com trufa preta são mais saborosos do que o clássico ovo escalfado com trufa branca, que de qualquer forma adoro. E um consomé de aves e trufa preta é o melhor amigo de um Madeira sercial. O assunto da trufa branca é eminentemente aromático, é inútil utilizá-la para cozeduras longas. É por isso que compramos azeites ou óleos vegetais trufados, directa ou indirectamente, já que um risoto anunciado por um restaurante com trufas não tem mais do que umas gotas desses concentrados de aromas, mas isso é outra conversa. A luta pela autenticidade não tem tréguas, mas nem sempre temos a arma da informação para a combater. Vamo-nos regalando com o que vai acontecendo pela mão de alguns chefs e vamos fazendo as nossas próprias descobertas. Troou recentemente a notícia da trufa branca de mais de um quilo comprada pelo chef e empresário Tanka Sapkota, no Come Prima, em Lisboa. Fui vê-la e prová-la, nos pratos standard do ovo estrelado e linguini, laminada na hora. Dimensão impressionante, tinha de se segurar com as duas mãos. Uma boa trufa branca pesa algumas dezenas de gramas apenas e custa entre 4 e 7 mil euros o quilo. Daquele fruto gigante não chegou a ser revelado o preço, mas barato não foi. A minha primeira refeição formal de trufas brancas em Portugal aconteceu pela mão do chef Franco Luise no Cipriani, restaurante do Lapa Palace em Lisboa, em meados dos anos 90. A primeira experiência em termos absolutos foi em Florença, no triestrelado Enoteca Pinchiorri, não deixou grande memória, ao passo que a experiência com Franco Luise foi a melhor de todas até hoje. Ficou-nos a 25 contos – 25 mil escudos, lembram-se? – a cada um, um valor elevado, especialmente naquela altura, mas que nunca lamentei. Achei na altura (o que se veio a confirmar) uma experiência irrepetível. No JNcQUOI, em Lisboa, o chef António Bóia subiu a fasquia no jantar de trufas brancas da sua lavra, talante culinário de enorme nível. Senti particular conforto por um homem do produto português que sabemos que ele é dar trono por uns dias a um clássico mundial e universal da alimentação. Trufa é trufa!