Fita Preta: Os (muitos) Alentejos de António Maçanita

Fita Preta

É costume dizer-se que o Alentejo é uma região vitivinícola recente. Mas, na realidade, existem zonas nesta região onde a produção de vinho se iniciou há muitos séculos, que entraram nos anais da história como os melhores à época. No fundo, “no Alentejo o local onde se plantava a vinha não era diferente do local […]

É costume dizer-se que o Alentejo é uma região vitivinícola recente. Mas, na realidade, existem zonas nesta região onde a produção de vinho se iniciou há muitos séculos, que entraram nos anais da história como os melhores à época. No fundo, “no Alentejo o local onde se plantava a vinha não era diferente do local onde se vivia – tinha de haver água” – constata o enólogo e produtor António Maçanita, baseando-se nas referências que se encontram nos registos históricos relativos à ribeira da Peramanca e a Enxarrama (do rio Xarrama), nas proximidades de Évora.

 

Fita Preta

 

Pesquisas históricas revelaram que as terras do Paço Morgado de Oliveira incluíam a zona vinícola do Louredo, onde se produzia vinho desde finais do século XIII

 

Regresso às origens

 

O seu primeiro contacto com o Alentejo foi em 2004, quando fundou a Fitapreta Vinhos com David Booth. “Cheguei ao Alentejo contemporâneo, com proliferação de Aragonez, Alicante Bouschet, Syrah, Cabernet Sauvignon, Touriga Nacional… E os primeiros vinhos reflectiram isto. Em 2008 excomunguei o Cabernet Sauvignon e, em 2011, a Touriga Nacional”, conta o produtor. Em 2018 descobriu a vinha Chão dos Eremitas no sopé sul da Serra d’Ossa, plantada nos anos 1969-70 numa espécie de field-blend organizado, ou seja, com várias castas, mas não misturadas. A disponibilidade de água neste sítio é assegurada pelos dois riachos, que trazem as águas das chuvas da Serra D’Ossa, mantendo o nível freático alto e permitindo viticultura de sequeiro.

 

Nesta vinha, António surpreendeu-se com as castas quase desaparecidas hoje, mas que em tempos dominaram a região: Tinta Carvalha, Moreto, Alicante Branco e Trincadeira das Pratas (conhecida no Alentejo como Tamarez), entre outras. Iniciou-se o regresso às origens, ao Alentejo perdido, com pureza, potência e frescura. O branco Os Paulistas do Chão dos Eremitas, um blend de Alicante Branco, Roupeiro, Tamarez e Rabo de Ovelha e os monovarietais tintos provenientes da mesma vinha transparecem este Alentejo genuíno e multifacetado.  

 

Em 2016, com a aquisição do Paço do Morgado de Oliveira, propriedade medieval do século XIV situada a 10 km a sul de Évora, a mente exploradora de António Maçanita encontrou novos estímulos para um levantamento aprofundado das suas origens. Em paralelo com os trabalhos de recuperação do edifício, o produtor envolveu cinco historiadores para investigar o contexto e o desenvolvimento histórico  deste que é o maior paço rural gótico ainda preservado no país. À medida que se iam despindo várias camadas das paredes, revelavam-se verdadeiros tesouros do passado, como uma pintura mural de São Cristóvão na capela-mor, datada de 1567, além de portas e janelas medievais escondidas sob reconstruções e “embelezamentos” de outras épocas.

 

Em 2018 António Naçanita descobriu a vinha Chão dos Eremitas no sopé sul da Serra d’Ossa, plantada nos anos 1969-70 numa espécie de field-blend organizado.

 

Recriando o Enxarrama

 

É preciso ser António Maçanita para conseguir meter uma adega com cubas e barricas dentro desta estrutura monumental. Mas a ideia não foi assim tão disparatada, afinal aqui já se fazia vinho, e era bom! Na actual sala de barricas existe uma antiga lagareta vinária de pedra, com o chamado calcatorium, onde as uvas eram esmagadas com os pés.

 

Pesquisas históricas revelaram que as terras do Paço Morgado de Oliveira incluíam uma zona vinícola do Louredo, outrora muito afamada, onde se produzia vinho desde finais do século XIII. O mais procurado era o Enxarrama, das vinhas plantadas perto do rio chamado hoje Xarrama. Até os mercadores de fora do país vinham comprar este vinho a Évora. Em 1485, D. João II teve de estabelecer um decreto para que a população local não molestasse os mercadores franceses e bretões. Em 1816, o negociante, enólogo e escritor francês, André Jullien, que viajou pelo mundo para elaborar a sua obra “Topografia de todas as vinhas conhecidas”, escreveu, em relação a Enxarrama, que “os vinhos são de muita fama, sabe-se da sua qualidade, mas mal dão para abastecer a população”, citou António Maçanita. Mais tarde, em 1867, o agrónomo e investigador Ferreira Lapa escreveu: De todos os vinhos de Évora, o Enxarrama é o mais apreciado e obtém o melhor preço em Lisboa (…) ele é, mais que nenhum outro de Évora, procurado para a venda a retalho nos armazéns de Lisboa.”

 

Todo este contexto foi mais do que suficiente para António interiorizar a ideia, aliando-a ao vinho que tinha guardado dos anos anteriores. “Entendi que podia ser qualquer coisa acima do que eu tenho feito até agora”. Aqui temos dominante o Alicante Bouschet, com 85%, e também Aragonez, Trincadeira, Castelão e Moreto. O estágio, que soma 10 anos no total, decorreu em barricas de 228 litros durante 36 meses, mais 12 meses em cubas de 500 litros e, por fim, seis anos em garrafa.

 

Não sabendo como era o Enxarrama de antigamente em termos de castas e vinificação, a nota de prova feita, por Ferreira Lapa, em 1867, serviu de pedra basilar para assegurar o perfil. “O vinho do Enxarrama é bastante tinto e encorpado, crystallino, cheiro tartoso, e não suave, de sabor quente e macio, com travo (…) bem pronunciado. Não é um vinho alcoólico, nem aromático, é um vinho forte e bastão, que bem por causa do seu tanino pode tolerar o seu volume em álcool.” É praticamente o que encontrámos no copo. Assim nasceu o primeiro Enxarrama da actualidade. Foram produzidas 1218 garrafas.

 

Ao mesmo tempo foi apresentado um grande branco, feito 100% de Arinto de produção biológica, plantado em 2017 em sequeiro na vinha do Morgado de Oliveira. De vindima manual nocturna, com prensagem direta sem esmagamento, fermentação alcoólica e maloláctica espontâneas em barricas. Estágio 15 meses em borra fina, sem battonage, em barricas de carvalho francês. Foram produzidas 1919 garrafas.

Assim são as diferentes faces do Alentejo, interpretadas por António Maçanita. Os vinhos Chão dos Eremitas são de vinha, “vinhos arqueológicos” como o produtor os apelidou, precisos e genuínos. O Morgado de Oliveira é o vinho de casta, que eleva o Arinto (que é uma grande casta portuguesa, sem dúvida alguma) a um patamar excepcional. Por sua vez, o Enxarrama é um vinho de conceito, inspirado pela história do lugar, sendo praticamente uma homenagem à região.

(Artigo publicado na edição de janeiro de 2025)

Entre Profetas e Villões

profetas villões

Talvez não fosse fácil imaginar que, em território português, ainda existisse terroir vitivinícola para explorar como se quase da primeira vez se tratasse. Mas aconteceu. Na ilha do Porto Santo (imagine-se), onde juntamente com Nuno Faria, produziu 3 brancos surpreendentes e de grande qualidade. Quem? António Maçanita, “who else”? Texto: Nuno de Oliveira Garcia Notas […]

Talvez não fosse fácil imaginar que, em território português, ainda existisse terroir vitivinícola para explorar como se quase da primeira vez se tratasse. Mas aconteceu. Na ilha do Porto Santo (imagine-se), onde juntamente com Nuno Faria, produziu 3 brancos surpreendentes e de grande qualidade. Quem? António Maçanita, “who else”?

Texto: Nuno de Oliveira Garcia
Notas de prova: João Paulo Martins e Nuno de Oliveira Garcia
Fotos: Fita Preta Vinhos

 A hora e o local estavam marcados, ainda que sem muita antecedência pois António Maçanita parece gozar de uma inquietação e entusiasmo permanentes que conduzem ao improviso feliz. Chegados ao restaurante, esperava-nos o próprio e Nuno Faria, parceiro no recém-criado projecto Profetas e Villões, propositadamente constituído e desenhado para albergar a produção de vinho na mais antiga ilha dos arquipélagos portugueses. O nome é uma referência expressa às alcunhas entre as gentes do arquipélago da Madeira: Profetas é como os madeirenses chamam aos porto santenses e Villões (lê-se Vilhões) o que os habitantes de Porto Santo chamam aos madeirenses. António e Nuno começam por nos lembrar que são amigos há mais de década e meia, que iniciaram a sua colaboração na criação de cartas de vinhos com chef Fausto Airoldi (no saudoso restaurante Pragma), entendimento que se seguiu nos restaurantes 100 Maneiras de Ljubomir Stanisic onde Nuno é sócio já há vários anos.

Os acontecimentos por detrás da génese do projecto que se apresentou são curiosos e António comunica-os com a habilidade de quem não o faz pela primeira vez. Assim começa: o seu amigo madeirense Nuno Faria habituou-se, desde pequeno, a passar férias no Porto Santo e, por isso, não hesitou em “refugiar-se” na ilha durante a pior fase do confinamento. Esse período levou-o a conhecer melhor a cultura de vinho de Porto Santo, e é o próprio Nuno a confirmar como ficou maravilhado com as vinhas velhas de estóica vivência praticamente sem água. Um dia, ao ligar a António a relatar o seu dia-a-dia na ilha (que incluía provas regulares de alguns vinhos locais…), o enólogo disparou: “vamos fazer aí um vinho!” Talvez António tenha proclamado a afirmação sem se recordar que a cultura de vinho em Porto Santo é deveras particular, sem proximidades com o arquipélago dos Açores (onde António é sócio da Azores Wine Company) e quase nada em comum com o Continente. Mas agora é o próprio a explicar-nos que se trata de um clima sem chuva, com bastante vento, e castas incomuns – Caracol e Listrão (Palomino, conhecida pela produção de Xerez). As vinhas estão assentes em solos calcários básicos (arenitos calcários decorrentes de acumulação de areia e moluscos) protegidas por pequenos muros de canas. Ao olhar para as imagens que nos são projectadas numa tela de computador só conseguimos identificar referências às Canárias (até por proximidade geográfica), a alguns dos solos de areia pobre de Santorini, mas sobretudo às vinhas velhas de Colares, também elas rasteiras e ladeadas por canas. Mas mais que tudo, a verdade é que pouco ou nada se sabe da viticultura no Porto Santo. As linhas de água que permitem as vinhas sobreviver, os antecedentes das castas, o arquétipo de vinho aí produzido durante séculos, tudo isso é desconhecido.  Mas o que poderia ser um inconveniente foi antes o desafio para a dupla produtora. Nuno e António provaram todos os vinhos locais, mais os produzidos por produtores madeirenses ao estilo Madeira com uvas do Porto Santo, e procuraram estudar as poucas referências históricas. A experiência do enólogo na “recuperação” de castas antigas fez o resto. Porém, do ímpeto de António até produzir ali um vinho muita coisa aconteceu. Foi necessário convencer produtores locais a avançar nesta aventura (as uvas provêm de vinhas de 80 anos de um produtor: o Sr. Cardina), depois combinar a data da vindima (sem qualquer referência histórica e mais cedo do que os restantes produtores locais, que são todos artesanais). Por fim, transportar as uvas por barco até à ilha da Madeira para aí iniciar a fermentação numa adega, sempre sem hesitar, mesmo quando as primeiras análises indicavam Ph entre 8,5-10…

Na apresentação, António e Nuno trouxeram uma garrafa do produtor local artesanal de que mais gostam para afinar o nosso palato e introduzirem-nos no universo dos vinhos do Porto Santo, e deram-nos ainda a provar um tinto cuja cuba se perdeu num acidente. No fim do almoço, voltam a fazê-lo, mas agora em despedida, com um velho e interessante Listrão Branco do produtor madeirense Artur de Barros e Sousa e um magnífico Listrão de 1977 da Blandy’s que está em comercialização. Mas foram, e são, aqueles três vinhos brancos apresentados – Caracol dos Profetas, Listrão dos Profetas, e Listrão dos Profetas Vinho da Corda – que mais nos ficaram na cabeça nos dias a seguir à prova. Pela originalidade e singularidade, mas sobretudo pela excelência da qualidade logo em ano de estreia num terroir quase desconhecido. Demos a volta à nossa memória para ver quando tinha sido a última vez que isso nos tinha acontecido. Ainda hoje não temos a resposta.

(Artigo publicado na edição de Janeiro de 2022)

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