À mesa do Tejo, de copo na mão

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Com trabalho, dedicação e muita qualidade, os vinhos do Tejo continuam a dar os passos que precisam para recuperar a grandeza e o prestígio de outrora. Com um aliado de peso nas boas mesas que vão surgindo um pouco por toda a região. À boleia dos prémios anuais da CVR local, este é um roteiro […]

Com trabalho, dedicação e muita qualidade, os vinhos do Tejo continuam a dar os passos que precisam para recuperar a grandeza e o prestígio de outrora. Com um aliado de peso nas boas mesas que vão surgindo um pouco por toda a região. À boleia dos prémios anuais da CVR local, este é um roteiro do que de melhor se come e bebe pelas margens do grande rio.

A marca de Luis santos está nos vinhos da Quinta do Casal Monteiro, quase todos destinados ao mercado externo.

Texto: Luís Francisco
Fotos:  Ricardo Palma Veiga

mesa tejo copoHá muitos séculos que se produz vinho no vale do Tejo, onde, aliás, muitos historiadores situam o epicentro da expansão desta cultura trazida pelos povos que nos visitavam vindos do Mediterrâneo. Deste caldo de influências nasceu também uma cozinha rica e intensa, alimentada pelo mar, pela água doce, pela fertilidade dos terrenos agrícolas e pelas coutadas de caça que a fidalguia de outros tempos instituiu. Mas a última metade do século XX pareceu trazer uma nuvem cinzenta sobre este panorama, com muitos vinhos a apontarem para a quantidade em detrimento da qualidade e as mesas a perderem alma. Fica a boa notícia: esses tempos já são passado.

“O grande problema da região é a percepção de qualidade que existe no público – e que é errada. Muitos produtores ainda insistem em colocar os seus vinhos nas prateleiras dos preços mais baixos… Acho que muitos dos nossos vinhos batem-se com outros, de outras regiões, dois ou três euros mais caros.” O diagnóstico é traçado por Luís Santos, distinguido este ano pela Comissão Vitivinícola do Tejo como Enólogo do Ano. E é também ele quem destaca a metade cheia do copo: “O rio é o grande normalizador climático desta região. É quente, mas as noites são frescas – no Verão chegamos a ter amplitudes térmicas de 30 graus! E isso é muito bom para o vinho. Outro factor positivo é haver muita gente com qualidade e saber.”

“Temos potencialidade para fazer volume e vinhos de nicho, com concentrações brutais ou grande delicadeza”, continua o enólogo. “Temos castas de qualidade reconhecida e somos uma região aberta. Por isso, temos de deixar de trabalhar pelo preço e ganhar a confiança de procurar maior valorização.” Um bom sinal desse processo é o crescente entusiasmo dos críticos e Luís, à semelhança do que acontecerá ao longo do nosso périplo com outros interlocutores, dá como exemplo os 94+ pontos Robert Parker conseguidos por um vinho da região, o Vinha do Convento Reserva tinto 2017, produzido pela Falua. “Ajuda a puxar a região para cima.”

Muito e bom

Luís fala-nos na adega da Quinta do Casal Monteiro, perto de Almeirim e local de nascimento de vinhos que a esmagadora maioria dos portugueses desconhece, porque “99 por cento vão para a exportação”. Lá fora, “Tejo” não tem estigma. Ao sabor da conversa, provamos três vinhos deste produtor. O Quinta do Casal Monteiro Chardonnay e Arinto é um branco fino, não muito exuberante no nariz, mas untuoso e comprido na boca.

A seguir apreciamos um tinto, o Clavis Aurea 2018, um field blend maioritariamente de castas portuguesas (tourigas Nacional e Franca, Tinta Roriz) que o enólogo cria, não directamente de uma vinha misturada, mas selecionando as uvas e juntando-as na adega. Muito equilíbrio, taninos ainda a mostrar juventude, temos vinho para durar no tempo. Finalmente, encerramos com o Quinta do Casal Monteiro Grande Reserva 2008, fruto das melhores parcelas de Touriga Nacional, Cabernet Sauvignon e Syrah da quinta, com produção controlada – 4 a 5 toneladas por hectare, “o que nesta região é mesmo muito controlado”, explica o enólogo. Redondo, complexo, taninos domados e nítida vocação gastronómica.

São belos exemplos do trabalho deste enólogo nascido na Mealhada e formado em Agropecuária na Universidade de Coimbra, que já trabalhou no Dão, na Bairrada, em Itália, e que “chegou” ao Tejo em 2015. Para, aos 37 anos, ser reconhecido pelos seus pares com a distinção de Enólogo do Ano 2021. “Ainda sou demasiado novo para estes prémios”, desabafa.

Pousamos os copos e saímos para uma volta pelas vinhas, uma imensidão de 70 hectares em terreno plano, de aluvião, onde a extrema fertilidade desmente outras ideias feitas. “A Fernão Pires pode atingir aqui produções de 30 a 40 toneladas por hectare e isso não potencia a qualidade, claro. Mas há castas brancas que, mesmo perto das 20 toneladas por hectare, têm muita qualidade”, explica Luís Santos. Ou seja, “as pessoas podem mesmo viver da viticultura”. Há séculos que o fazem, a bem da verdade. E nós vamos partir à descoberta do que de bom por aqui se faz. Mas à mesa, que se está melhor.

Abrantes

Começamos por Abrantes, mais exactamente em Alferrarede, juntando a mestria gastronómica do chef Vítor Felisberto à longa tradição de qualidade dos vinhos Casal da Coelheira. A empatia é total – e também explica que restaurante e produtor tenham criado um vinho juntos, o Raízes, cuja primeira versão tinto (1500 garrafas) esgotou em seis meses. Vai regressar, agora acompanhado de um branco.

A Casa Chef Vítor Felisberto (distinguida pela CVR Tejo com o prémio Melhor Harmonização) cumpriu três anos de existência no Verão passado. Na cozinha, um homem que aos 18 anos já lavava pratos em Andorra, depois estagiou em França e rumou a Londres para oficiar em restaurantes de prestígio, alguns com estrela Michelin. “Muito stress, muita pressão dos proprietários… Aqui soltei-me mais!”, explica. Virou-se para os pratos tradicionais – o forno a lenha e os recipientes de barro são as imagens de marca da casa. “Mantêm a comida quente mais tempo, o que permite conversar à mesa, sem pressas.”

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Vitor Felisberto e Nuno Falcão Rodrigues: a cumplicidade já deu origem a um vinho de parceria.

Começamos com umas molejas (pedacinhos de uma glândula, o timo) fritas em pedacinhos estaladiços. No copo, o Casal da Coelheira Private Colection branco, um 100% Verdelho – “Numa casa de blends, este é uma das excepções”, explica Nuno Falcão Rodrigues, representante da terceira geração à frente desta casa do Tramagal (do outro lado do rio) com 64 hectares de vinha própria e que este ano foi distinguida pela CVR Tejo com o Prémio Excelência.

O vinho seguinte, o Raízes tinto 2017, também é um varietal, este de Alicante Bouschet e a sua força bem domada acompanha a preceito um cachaço de porco cozinhado durante longas horas e com toque final no forno de lenha. Envolvida pelo molho (cuja acidez é surpreendente) e, entre outras maravilhas, castanhas, favas e dois tipos de batata-doce, a carne desfaz-se em suculência.

A fechar, uma rica sobremesa (fondant, doce de ovos, sorvete de frutos vermelhos, também presentes ao vivo) e um copo de Mythos, o topo de gama do Casal da Coelheira. Feito com Touriga Nacional, Cabernet Sauvignon e “um pouquinho” de Touriga Franca, é o ponto final perfeito para uma refeição que aliou uma mesa onde é crescente “a aposta em produtos locais” a um produtor que representa a tradição e a excelência dos vinhos do Tejo.

Torres Novas

Hugo Antunes tinha um bar em Torres Novas, mas o espaço deixou de estar disponível ganhou força e a ideia de criar um restaurante moderno e de qualidade. No próximo dia 26 de Dezembro cumpre-se o sexto aniversário do De’Gustar, um espaço onde o próprio Hugo lidera a cozinha. Assume-se como autodidacta – “aprendi ali dentro, a sofrer” – e conta com a ajuda da companheira, Carla Rosa, que trata das sobremesas. Desta vez, têm a companhia dos vinhos da Enoport, uma das maiores empresas privadas da região, trazidos em mão por Maria José Viana, a quem a CVR Tejo atribuiu o prémio Carreira.

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Maria José Viana, Hugo Antunes e Carla Rosa: o vinho da Enoport à mesa no De’Gustar.

Actualmente, Maria José está na direcção de Marketing e Relações Públicas, mas ao longo de 30 anos já fez um pouco de tudo, da enologia à gestão, da viticultura à representação institucional. “A única coisa que nunca fiz foi a parte comercial pura e dura”, ri-se. Advoga que os vinhos do Tejo “têm de conquistar notoriedade” e tem em Hugo Antunes um aliado: “A nossa carta terá uns 90% de vinhos do Tejo. As pessoas tendem a pedir o que já conhecem, mas nós gostamos de sugerir o vinho, se não gostarem, trocamos.”

À mesa chega, entretanto, um carabineiro, sobre uma pequena cama de algas e com molho espesso a preencher o prato. Recebe-o um copo de Cabeça de Toiro Grande Reserva branco 2019 (Fernão Pires, Chardonnay e Sauvignon Blanc). A seguir, um prato complexo, que Hugo apresenta como “o porco que se apaixonou pela perdiz” e que junta a bochecha do primeiro à perna da segunda, tudo cozinhado a baixa temperatura. O Quinta S. João Batista Grande Reserva tinto 2014 (Cabernet Sauvignon, Touriga Nacional, Touriga Franca e Alicante Bouschet) faz as honras no copo. Nasceu aqui bem ao lado, no concelho de Torres Novas.

O De’Gustar foi distinguido com o prémio Melhor Apresentação e os primeiros pratos já se tinham mostrado à altura, mas a sobremesa parece uma composição artística. Explode cor e sabores no prato (bavaroise de maracujá, disco laranja, chocolate, caramelo, manga, sorbet de baunilha…) e a sua incrível persistência e complexidade no palato serve para acolher o Quinta S. João Batista Reserva tinto 2016 (Touriga Franca e Alicante Bouschet) numa despedida em grande estilo.

Tomar

O restaurante Manjar dos Templários, que venceu o prémio Prova Teórica, uma iniciativa da CVR Tejo, fica a poucos quilómetros de Tomar. À nossa espera, uma casa que serve leitão assado (entre outras preciosidades, claro) e um produtor com muitas histórias para contar. José Vidal, trouxe da Quinta Casal das Freiras três vinhos, entre os quais um com 14 anos que há-de revelar-se um portento. Lá iremos.

Em 2015, Silvano Vaz sucedeu aos pais na gestão de um restaurante com 30 anos, que ganhou novo fôlego mas manteve a tradição. Do leitão, para começar. “O meu pai começou em França e o cozinheiro era da Mealhada… Aprendeu a assar leitões e quando veio para Portugal continuou a fazê-lo. Na altura era dos poucos sítios fora da Bairrada onde se servia leitão assado no forno!”

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Silvano Vaz e José Vidal: tradição familiar e belas histórias por terras de Tomar.

A história do Casal das Freiras, cujas vinhas, em linha recta, não ficam a mais de dois quilómetros da mesa onde nos sentamos, remonta a 1882, quando o avô de José Vidal, natural de Ovar, se instalou junto a Tomar. O primeiro vinho que abrimos, o Casal das Freiras Reserva 2007 é, acima de tudo, uma homenagem à neta, que nasceu nesse ano. “Achei que tinha de fazer alguma coisa de especial…” E como o fez! Rico, fresco e muito equilibrado, este vinho prova a capacidade do Tejo para trabalhar a longevidade. Acaba por nos acompanhar ao longo de toda a refeição.

Avançamos com o bacalhau na broa, esta é feita no restaurante com milho amarelo e chega à mesa inteira, com couve salteada e lascas do fiel amigo no interior. Ainda passamos pelo polvo assado antes de aterrarmos no leitão – comprado a produtores locais – e percebermos que a pele estaladiça, a carne suculenta e a apresentação em pequenos nacos homenageiam a tradição da Bairrada. Com uma novidade: o molho tem pimenta branca, não preta.

Desta vez, e porque o “ancião” de 2007 teima em não nos deixar o copo, não há um vinho para cada prato, mas todos se dão muito bem. Provamos um branco, o Casal das Freiras Reserva 2019 Vinhas Velhas, e um varietal tinto, o Casal das Freiras Syrah 2015, este nascido por inspiração de um vinho provado numa feira em França. “Fomos os primeiros da região a plantar Syrah!”, orgulha-se José Vidal, distinguido pela CVR Tejo com o prémio Carreira. Finalizamos com uma sobremesa típica, as fatias de Tomar.

Santarém

Desde as décadas de 1960 e 70 que o avô de Manuel Vargas servia petiscos aos amigos num espaço informal junto a Santarém. Consta que assava leitões muito bem, mas só nos anos 1980 o Oh Vargas se assumiu como restaurante e ganhou nova vida em 2019, quando, após profundas obras de remodelação, Manuel Vargas reabriu em grande estilo uma casa que é já uma referência na região – foi considerado pela CVR Tejo o Melhor Restaurante e arrecadou nada menos do que outros cinco prémios.

“Gostamos de nos considerar um restaurante tradicional, com grande âncora nas carnes grelhadas”, explica Manuel Vargas. Mas há muito mais. A carta de vinhos abriu com umas 200 referências – sempre a apontar para as gamas mais altas, como facilmente se percebe pela estante que enche uma das paredes – e agora já serão mais do dobro. Cerca de um quarto da lista (uns 100 vinhos) são do Tejo. Com destaque evidente para um vizinho, a Falua, instalada do outro lado do rio.

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Nicolas Gianonne e António Montenegro (diretores comerciais da Falua) e o chef Rui Santos Lima (Oh Vargas): o Tejo une-os.

 

Adquirida pelo grupo francês Roullier em 2017, a empresa foi criada em 1994 e, a par do foco na qualidade dos vinhos, sempre teve muita atenção às questões da sustentabilidade. “A adega construída em 2004 deu o sinal disso mesmo, em 2010/11 instalámos painéis solares, fomos os primeiros a ter uma ETAR própria…”, enumera Antonina Barbosa, directora-geral e de enologia da Falua. O que justifica plenamente o prémio Sustentabilidade atribuído pela CVR Tejo. “Está no nosso ADN e faz parte dos nossos objectivos anuais.” As próximas novidades surgirão nas poupanças com o vidro.

Na mesa, começa por brilhar estratosfericamente uma rica canja de robalo, acompanhada pelo Falua Reserva Unoaked 2019 branco, um 100% Fernão Pires sem madeira, como o nome indica. A seguir, uma costeleta maturada de carne barrosã divide a atenção com a versão tinta 2018 do Unoaked (varietal de Touriga Nacional) e o Conde Vimioso Reserva tinto do mesmo ano (percentagens semelhantes de Castelão, Cabernet Sauvignon, Aragonês e Touriga Nacional). No final, aproveitando o balanço e à boleia de uma tábua de queijos, ainda se prova o “tal” vinho que está a assumir-se como “ponta de lança” da região, o Vinha do Convento Reserva tinto 2017. Sublime.

Aveiras de Cima

Em Aveiras há uma marisqueira de referência, mas que está longe de servir apenas frutos do mar. Luís Rodrigues pegou no negócio do pai, que abriu portas há 37 anos, e transformou-o numa casa moderna e funcional, sem cortar na tradição, mas com a preocupação de se mostrar mais ao exterior. Nos últimos anos, ganhou estatuto de referência sem perder o ambiente familiar – ganhou o prémio para Melhor Atendimento. No final da refeição, a mãe de Luís ainda nos brinda com uma prova das suas compotas, uma das quais (de romã) ainda a apurar na panela…

Para acompanhar a comida, a Adega Cooperativa de Almeirim (prémio Empresa Dinamismo) traz-nos três vinhos, que mostram a sua capacidade para fazer vinhos brancos de grande circulação sem comprometer a qualidade. “Fazemos 15 milhões de litros de vinho anualmente, dos quais 12 milhões vão para garrafa. Somos das maiores adegas cooperativas do país”, resume Romeu Herculano, enólogo residente. Há pouco mais de uma década, o granel representava a fatia de leão, mas agora vale apenas 20% do total.

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Luis Rodrigues e Romeu Herculano: ambiente familiar e vinhos conviviais à mesa em Aveiras.

A Adega tem 190 sócios, 1200 hectares de vinha, equipas profissionalizadas em todos os sectores e continua a investir para acompanhar as exigências do mercado. Um bom exemplo disso são os 200 mil euros que custou o equipamento que permite injectar uma bolha mais fina e elegante no frisante Cacho Fresco, que abre as hostilidades no copo, ao lado de uma travessa de marisco.

Segue-se o Varandas branco 2020, um 100% Fernão Pires, oriundo da região da Charneca – genericamente, o Tejo divide-se em três grandes zonas: Campo (zona contígua ao rio), Bairro (nos terrenos mais montanhosos da margem direita) e Charneca (margem direita, terrenos mais arenosos). Acompanha a preceito o bacalhau com torricado e lapardana (pão e batata) de beldroegas. A seguir, uma costoleta Tomahawk Black Angus – “Esta é pequena, só tem 900g…”, explica Luís Rodrigues – espaldada por cogumelos, bata frita e grelos, a justificar um vinho mais volumoso e personalizado. Como a Adega de Almeirim é uma casa de brancos, venha então o Varandas Chardonnay/Arinto 2020, que se mostra à altura.

O Tejo esconde muitas surpresas…

(Artigo publicado na edição de Dezembro de 2021)

 

GPS: Chegou ao seu destino

O mundo está mais pequeno e as modernas tecnologias aproximam gentes e paragens até ao ponto em que se desconfia que a aventura é um conceito fora de moda. Nada disso! Façamo-nos à estrada e enfrentemos o desafio de procurar o país profundo. Mesmo que isso implique um braço-de ferro com o seu quê de […]

O mundo está mais pequeno e as modernas tecnologias aproximam gentes e paragens até ao ponto em que se desconfia que a aventura é um conceito fora de moda. Nada disso! Façamo-nos à estrada e enfrentemos o desafio de procurar o país profundo. Mesmo que isso implique um braço-de ferro com o seu quê de irritante entre os que os olhos vêem e o que as máquinas nos dizem. O material nem sempre tem razão.

Luís Francisco

Não sei se é uma tendência universal ou apenas mais uma das minhas manias. Considero-me uma pessoa de bom feitio, mas assumo a solene embirração que cultivo com as vozes dos aparelhos de GPS. Todas. De todos os aparelhos. Embirro tanto que evito ao máximo utilizar a tecnologia que – dizem – nos leva a todo o lado sem desnecessárias perdas de tempo, seja a decifrar pistas na desconcertante sinalética das nossas estradas, seja no contacto verbal com os locais que, as mais das vezes, muito falam e nada explicam.

Infelizmente, não nasci com capacidades de navegação nem sentido de orientação apurado que me permitam abdicar sem prejuízo das ajudas à navegação. E, portanto, de vez em quando lá tenho mesmo de escutar as directivas deterministas de quem me aconselha, “por favor”, a “abandonar a rotunda na segunda saída” – leia-se: é para seguir em frente – ou a, “dentro de 600 metros, seguir pela esquerda” na auto-estrada – que é, adivinharam, como quem diz para continuar na mesma via.

Para espiar o pecado capital de ceder à tentação da papinha feita em termos de adivinhar o caminho do ponto “a” ao ponto “b” sem passar pela casa da dúvida, obrigo-me a uma série de penitências. Primeiro, colecciono todas as histórias que me chegam ao conhecimento de gente que se perdeu ou se meteu em sarilhos por seguir cegamente o GPS, sem se dar ao trabalho de abrir os olhos para o que está à sua frente. Acreditem, não são assim tão poucas como isso e algumas com consequências desastrosas. Por outro lado, anoto fervorosamente todos os erros que detecto nas infernais maquinetas. Se a 950 metros de altitude o sistema de navegação indica 976, isso quer dizer que, umas dezenas de quilómetros antes, quando a indicação era de 14 metros de altitude, na verdade estávamos abaixo do nível do mar? Não quero ser alarmista, mas com isto do aquecimento global e da subida dos oceanos, dá para desconfiar…

Mas então, perguntará o leitor que teve a paciência de me acompanhar até este quarto parágrafo, se este tipo abomina assim tanto os sistemas de navegação, por que motivo foi dar o nome “GPS” a estas crónicas? Bom, a explicação é simples. Quando surgiu a ideia de recordar histórias passadas por esse país profundo em busca dos vinhos e dos enoturismos que nos encantam, a primeira história que me veio a cabeça foi a que se passou à chegada à Fundação Eça de Queiroz, ali para as bandas de Baião. Nessa breve, mas intensa, experiência congregaram-se os dois pecados originais da “gpsdependência” humana nos dias que correm: erros da máquina e cérebro humano desligado. Isso e um motorista de autocarro com sonos atrasados. Mas já lá vamos.

Tão perto e tão longe

“Chegou ao seu destino.” A voz do sistema de navegação – não sei se já vos disse que embirro com elas todas… Já? OK, adiante – soou calma, impessoal e autoconfiante como sempre. Mas estava tudo errado. Primeiro, não tínhamos chegado a lado algum. Segundo, aquilo onde estávamos não era um destino. Nem sequer um meio. Parecia mais um fim. Do mundo. A estrada de terra batida desaparecera e a vegetação dava-nos pela altura da janela. Se isto era a Fundação Eça de Queiroz, então o Parque Nacional da Peneda-Gerês seria a Biblioteca Nacional…

Paramos o carro e respiramos fundo. Como é que deixámos esta coisa guiar-nos até ao mato profundo sem desconfiarmos de que algo estava errado? A primeira tentação foi apontar a culpa ao sono desbragado do motorista do autocarro estacionado lá em baixo na estrada nacional, mas convenhamos que nenhum dos dois ocupantes da viatura tinha idade para se agarrar a desculpas infantis… Prometo que não me esquecerei de explicar esta cena do motorista, mas primeiro convém assumir que durante um breve período a evolução da espécie homo sapiens para homo sapiens sapiens se tornou uma falácia quando confrontada com os dois espécimes que ali coçavam a cabeça no meio de uma paisagem belíssima, mas completamente destituída de qualquer sinal de civilização.

“Chegou ao seu destino” em que aspecto? Seria o nosso destino regressar às origens primitivas e tornarmo-nos caçadores-recolectores naquele prado viçoso rodeado de grandes montanhas? A Fundação Eça de Queiroz, afinal, não existia e tínhamos feito centenas de quilómetros atrás de um embuste? Ou – hipótese igualmente válida naquele momento de estupor – não estávamos a ler bem a paisagem e havia mesmo ali uma casa, vinhas e muitas histórias para descobrir? Na dúvida, o melhor era sair do carro e descobrir.

Saímos. E logo percebemos que, à nossa frente, para lá da estrada nacional que de repente voltamos a descobrir, havia um desvio que descia para um vetusto conjunto de edificações em pedra, coberta por heras e rodeada de vinhas e árvores. À nossa frente, mas uns 20 metros abaixo do local onde nos encontrávamos… O erro do GPS tinha sido minúsculo, mas a barreira vertical era intransponível. Há pouco tínhamos passado naquela mesma estrada, lá ao fundo, e falhado o desvio. Seguiu-se uma bem-intencionada tentativa do GPS para nos fazer dar a volta, enviando-nos por uma estrada secundária, primeiro, depois por ruas estreitas numa aldeia deserta e, finalmente, por picadas cada vez mais residuais até ao esquecimento total do mato.

O sono dos justos

Após uma audaz inversão de marcha, regressámos à estrada e entrámos então no desvio para a Casa de Tormes, onde Eça de Queiroz remoeu saudades dos salões de Paris e escreveu algumas das melhores prosas da sua obra imortal. O caminho era óbvio e até estava sinalizado. Como fôra possível falhá-lo na primeira passagem? E então lembrámo-nos do motorista do autocarro.

Menos de 500 metros antes do desvio, à saída de uma curva do caminho, estava um autocarro estacionado na berma, o compartimento das bagagens aberto. De lá saíam as pernas de alguém que ali encontrara uma sombra para repousar. Tudo bem, quem somos nós para recusar a alguém o direito inalienável de passar pelas brasas? O problema é que, com o tronco metido dentro do compartimento, aquela alma sofredora acabara por estender as pernas, que agora invadiam o asfalto. A guinada do nosso carro terá sido silenciosa, ou então o sono era muito pesado, porque quando olhámos pelo retrovisor ele não se mexera, ignorando completamente o facto de que, instantes antes, poderia ter ficado umas dezenas de centímetros mais baixo…

Comentámos o incidente entre o divertido e o alarmado, debatemos brevemente a hipótese de voltarmos para trás para avisar o homem, fizemos piadas sobre a eventual graduação dos vinhos de Tormes. Enfim, distraímo-nos por completo, falhámos o desvio e confiamos cegamente nas indicações do GPS. E lá fomos parar ao fim do mundo. Sem podermos sequer invocar a desculpa de termos passado pelas brasas no processo.

Artigo da edição nº37, Maio 2020

Alentejo meu

O mundo está mais pequeno e as modernas tecnologias aproximam gentes e paragens até ao ponto em que se desconfia que a aventura é um conceito fora de moda. Nada disso! Façamo-nos à estrada e enfrentemos o desafio de procurar o país profundo. Por terra, na água e também pelo ar, já agora. Sem medos. […]

O mundo está mais pequeno e as modernas tecnologias aproximam gentes e paragens até ao ponto em que se desconfia que a aventura é um conceito fora de moda. Nada disso! Façamo-nos à estrada e enfrentemos o desafio de procurar o país profundo. Por terra, na água e também pelo ar, já agora. Sem medos. Sem barreiras.

Luís Francisco

O saca-rolhas cumpre a sua função e os copos estendem-se para a garrafa acabada de abrir. O vinho corre e a conversa anima-se, ao ritmo da paisagem que desfila por baixo de nós, a linha sinuosa do rio brilhando aos primeiros raios do sol, prados, vinhas e montado numa sucessão de cores e texturas. De vez em quando, uma casa. E animais, muitos animais. Domésticos e selvagens, vagueando pela terra alheios à presença silenciosa do balão de ar quente e da meia-dúzia de seres humanos que nele se aninham.
Sim, quem nunca saboreou um copo de vinho branco bem fresquinho às sete da manhã a bordo de um balão de ar quente não sabe o que perde. Lá em cima não há medos nem sustos, só um constante maravilhamento. O balão progride suavemente ao sabor da leve brisa do amanhecer, que, por caprichos da meteorologia, sopra exactamente na direcção contrária ao que estava planeado: em vez de nos levar a sobrevoar a reserva de caça da Herdade do Sobroso na serra do Mendro, num safari aéreo que prometia emoções fortes, transporta-nos na sua almofada de sossego para Sul.
Não há tempo nem disposição para desilusões. Os sentidos estão demasiado ocupados na tarefa de tentar absorver tudo o que nos rodeia. O piloto do balão capricha numa travessia rasante sobre o espelho de água do Guadiana, elevando depois o aparelho para evitar as árvores da margem oposta. O ruído dos queimadores é, por agora, o único som que quebra o mar de silêncio em que navegamos. Bom, isso e a ocasional exclamação de espanto de algum dos presentes. E, claro, há alguns minutos, o murmúrio arrastado da rolha que saltou da garrafa de vinho…

Vida selvagem

A serra fica para trás – e, com ela, a promessa de vermos de cima o que na véspera tínhamos adivinhado num passeio de jipe: a vida selvagem pujante desta zona. Centenas de hectares da serra do Mendro albergam animais de grande porte, como gamos, muflões, javalis ou veados. E nós vimo-los todos: um enorme veado trotando pelas curvas da estrada à nossa frente, um grupo de javalis avistado ao longe junto a uma charca, um gamo espreitando pelo meio dos arbustos lá mais em cima, perto do cabeço panorâmico onde armámos um piquenique, meia-dúzia de muflões atravessando o caminho assim que deixaram de ouvir o ruído do motor.
Mas soube a pouco e hoje havia a promessa de podermos olhar de cima, pairando nos ares sem que a bicharada se apercebesse, sequer, da nossa presença… A expectativa era grande e o mini-pequeno-almoço é engolido à pressa para não perdermos tempo. Ainda deitado em terra, o tamanho do balão impressiona. A pouco e pouco, os queimadores aquecem o ar no interior e a cúpula vai subindo. Não tarda nada estamos a bordo e a aventura vai começar!
A brisa é que não está de feição e, num balão, contra isso não há engenho humano que nos valha. Aproveitemos, portanto, para gozar as emoções do voo por si só e tentar reter todos os detalhes desta viagem pelos céus de copo na mão. Pode não ser um safari, mas é uma experiência única.
E, no entanto, aquilo que ali se mexe, espantosamente a apenas algumas dezenas de metros de uma casa, parece ser… isso mesmo, é um veado! E depois outro, e mais uns quantos. Imperturbável pelos sinais de ocupação humana, a grande fauna vagueia também na margem oposta do Guadiana. Há javalis que trotam por carreiros que levam a uma pequena barragem – onde, por sinal, uma raposa caça por entre a vegetação rasteira – e parece quase surreal a visão de um veado que “estacionou” junto ao reboque de tractor parado debaixo de um grande sobreiro.

Regressar à terra

Lá se vai a teoria de que o abandono dos terrenos agrícolas é a mais forte explicação para o regresso dos grandes mamíferos selvagens… Aqui há agricultura e vida selvagem, lado a lado. Talvez a melhor explicação seja mesmo a política de gestão sustentável da reserva de caça do outro lado do rio. Mas quem vai perder tempo com estas elucubrações quando o mundo desfila aos nossos pés?
De vez em quando, o ruído dos queimadores desperta os animais do seu sossego, mas eles não conseguem perceber de onde veio o som e não lhes passa pela cabeça olhar para cima. Se o fizessem, dariam de caras com seis pares de olhos humanos que os fitam em embevecido espanto, por momentos o copo de vinho esquecido na mão. E assim se passam os minutos, ou serão horas, que nestas ocasiões o tempo é uma entidade sinuosa.
Só que a silhueta distante de casario e cabeços torna-se cada vez mais nítida e isso é uma clara indicação de que o dia já avança – o sol está mais alto e com o aumento da temperatura começam a gerar-se correntes térmicas que podem complicar a vida ao piloto do balão. O que é bom depressa se acaba, diz o povo. Está na altura de descer.
No solo, uma viatura acompanha o nosso trajecto, para nos recolher (e ao balão) assim que tocarmos o solo. O ritmo das comunicações intensifica-se. É preciso procurar um local plano, sem árvores nem linhas eléctricas, com acesso à estrada. Mesmo no Alentejo, isto nem sempre é fácil. E é preciso que o vento nos leve na direcção correcta. Aterrar um balão, portanto, não é pensar e fazer.
Ao fim de algum tempo, a bonomia do piloto acalmando as ansiedades de quem viaja a bordo, lá surge um belo prado e é lá que pousamos. Já vivemos uma eternidade neste dia e ainda nem são dez da manhã! Abre-se mais uma garrafa de vinho, enquanto se revivem as visões exaltantes da bicharada à solta na imensa paisagem alentejana. Não estamos em África, mas a comparação é inevitável. Com uma vantagem: o vinho por aqui é muito melhor!

Edição nº 34, Fevereiro 2020

O frio é uma coisa relativa

O mundo está mais pequeno e as modernas tecnologias aproximam gentes e paragens até ao ponto em que se desconfia que a aventura é um conceito fora de moda. Nada disso! Façamo-nos à estrada e enfrentemos o desafio de procurar o país profundo. Contra tudo e contra todos. Mesmo contra os elementos, por mais adversos […]

O mundo está mais pequeno e as modernas tecnologias aproximam gentes e paragens até ao ponto em que se desconfia que a aventura é um conceito fora de moda. Nada disso! Façamo-nos à estrada e enfrentemos o desafio de procurar o país profundo. Contra tudo e contra todos. Mesmo contra os elementos, por mais adversos que eles teimem em mostrar-se.

Luís Francisco

Há quem continue a achar que o vinho é uma coisa que dá trabalho, sim, mas apenas em algumas ocasiões bem definidas no calendário. Na vindima, claro, quando as uvas se precipitam para a adega e toda a gente anda numa correria, mostos para aqui, mostos para ali, depósitos a encher e a esvaziar, fermentações e decisões enológicas, mão-de-obra intensiva e o nervoso miudinho de ver todos os sonhos e planos de um ano a ganharem forma. Claro, também há aquela coisa da poda, no Inverno, mas isso é o menos. Basta visitar uma adega em outra altura do ano que não na vindima e percebe-se logo o sossego de quem dá o litro (metáfora irresistível) em Setembro e Outubro e depois descansa durante 300 dias…
E, no entanto, não é nada assim. Na vinha ou na adega, há sempre trabalho para fazer. E foi para falar nisso que um dia saímos em reportagem. Escolhemos o destino – no caso, a Quinta do Gradil, região de Lisboa – e lá fomos, decididos a recolher e partilhar informação sobre tudo o que se passa numa exploração vitivinícola nos meses que medeiam entre uma vindima e a outra. É claro que, num acesso de masoquismo ou consciência profissional (prefiro a segunda, mas, como hão-de ver a seguir, há indícios de que o primeiro não esteve totalmente ausente do cenário…), não embarcámos em facilidades. Se era para mostrar trabalho, então que fosse na altura mais improvável, o Inverno.
Escusava era de ser o dia mais frio do ano. A suspeita começou a ganhar forma com os primeiros arrepios da madrugada, a nortada gélida a fatiar sadicamente as résteas de conforto térmico oferecido pela roupa. E foi então que vimos um post no Facebook. De saída para o Alentejo, onde a empresa estava a preparar terrenos para plantar novas vinhas, o viticólogo do Gradil, Bento Rogado, registara a temperatura que se fazia sentir às 6h30 da manhã no sopé da Serra de Montejunto. O termómetro do carro anunciava uns inquietantes -7º centígrados…
Ler esta indicação nas férias, sentados junto à lareira num chalet de montanha até pode ser giro, mas garanto que não tem graça nenhuma quando nos preparamos para andar pelas vinhas, de máquina fotográfica em punho ou de bloco e esferográfica na mão para tomar notas… E, naturalmente, as duas inocentes alminhas que viajam para o Gradil nessa madrugada esqueceram-se de levar luvas. Provavelmente não dariam jeito nenhum quando chegasse a hora de trabalhar, mas, caramba, para algum momento haviam de servir…

Uma cave… quentinha

Chegamos, depois de deixarmos a estrada numa viragem perpendicular que nos aponta à linha amarela dos edifícios para lá do vale coberto de vinhas. O vento vai soprando. Mas, ansiamos, o termómetro há-de ter agora melhores notícias para nós – diz-se que a última hora da noite é a mais negra e a mais fria, mas o Sol já nasceu. Envergonhado, tímido, lá vai espreitando num tom esbranquiçado por entre as nuvens do amanhecer. Os cientistas juram que esta gigantesca fornalha celestial que queima hidrogénio e o transforma em hélio funciona ininterruptamente a uma temperatura que atinge os 5500 graus centígrados, mas esta manhã, desculpem lá, não há ciência que nos salve… Está tanto frio que até a ameaça do aquecimento global soa a música para os nossos enregelados ouvidos.
São 8h30 da manhã e ainda estão dois graus negativos. Daí a duas horas, o termómetro chegará finalmente ao zero. E, pela hora do almoço, a água que tapa o fundo do tanque situado no terreiro central da quinta, junto ao restaurante, continua sólida. Atiramos uma pedrinha, outra. E sempre o som cavo do gelo, austero e definitivo. Valha a verdade, por essa altura o pior já passou: andámos pelas vinhas para saber mais sobre a poda e a orientação das videiras, conversando com gente que maneja a tesoura com mestria (perdoem-me a insistência, mas eles tinham luvas!), visitámos a adega para conversar sobre operações de filtragem e estabilização, perceber trasfegas e limpezas, conhecer os muitos pequenos passos que nos permitem abrir uma garrafa e beber com prazer.
Quando nos convidam para descer à cave das barricas, que fica uns bons metros abaixo do solo, a primeira sensação é de arrepio. Se em dias quentes às vezes é complicado visitar estes sítios de manga curta, como será hoje… O elevador transporta-nos para o subsolo e, de repente, está quentinho! Longa vida às maravilhas do isolamento térmico: aqui a temperatura mantém-se estável à volta dos 15/16ºC, um verdadeiro paraíso tropical quando comparado com a manhã siberiana que nos aguarda lá em cima, no regresso à superfície. O elevador sobe e o bafo da respiração diz-nos que nestes últimos minutos o cenário térmico não mudou.
Felizmente, a reportagem aproxima-se do seu fim e a última parte será feita à mesa, onde vamos conversar com os responsáveis do Gradil. Lá fora, o tanque continua gelado e as vinhas, despidas, parecem encolher-se para resistirem à nortada. Até os passarinhos estão mudos que nem pedras. Uma breve mirada às notas no bloco confirma que a manhã não foi fácil: gatafunhos quase imperceptíveis, palavras cortadas a meio, frases que se perdem em linhas mal amanhadas… não vai ser fácil decifrar isto.
Mas agora temos vinho no copo. As mãos e a alma começam a aquecer. Lá fora, a silhueta da serra ganha luz e cor. De repente, tudo parece bonito e acolhedor. A mente humana tem a espantosa capacidade de obliterar impiedosamente as más memorias. Sim, porque isto do frio é uma coisa muito relativa.

Edição n.º33, Janeiro 2020

A barragem invisível

O mundo está mais pequeno e as modernas tecnologias aproximam gentes e paragens até ao ponto em que se desconfia que a aventura é um conceito fora de moda. Nada disso! Façamo-nos à estrada e enfrentemos o desafio de procurar o país profundo. Contra tudo e contra todos. Nem que seja para descobrir que as […]

O mundo está mais pequeno e as modernas tecnologias aproximam gentes e paragens até ao ponto em que se desconfia que a aventura é um conceito fora de moda. Nada disso! Façamo-nos à estrada e enfrentemos o desafio de procurar o país profundo. Contra tudo e contra todos. Nem que seja para descobrir que as nossas memórias não estão garantidas para sempre.

Luís Francisco

Estranha miragem esta, no calor alentejano: em vez de nos iludir com a visão turva de água onde ela não está, antes nos oferece um desolador espaço vazio onde outrora o azul do céu se reflectia. Mais um olhar para o ecrã de navegação do carro e, lá está, as máquinas não sofrem ilusões de óptica. Para elas, na sua monolítica competência, tal coisa não existe, e o mesmo vale para as memórias mal calibradas pela erosão do tempo. A imagem de uma mancha azul de um e outro lado da ponte que atravessamos é óbvia e inquestionável. Devíamos estar a ver água. E nada.

Encostamos à berma. Não é uma questão de estarmos perdidos. Acabámos de passar por Avis a caminho de Benavila, o GPS está correcto, as memórias das férias de infância estão vivas, a paisagem em redor só varia na presença agora maciça de olivais super-intensivos, respira-se o mesmo ar quente e quieto do estio, ouve-se o roçagar das cigarras nas árvores e os moscardos zumbem, desorientados. Bate tudo certo, menos a água. Não há água na barragem!

E as memórias voltam à tona. Como fotos desfocadas, meia dúzia de “chips” de dados arquivados sem contexto, mas, ainda assim, indesmentíveis na solidez palpável das impressões que vincaram.  O túnel da barragem de Maranhão, um vórtice hipnótico que parecia puxar-nos lá para dentro, num inquietante canto de sereia geométrico. Porque estava assim exposto? De quem foi a ideia de vir até aqui, a este pontão vertiginoso que assusta e inquieta, para contemplar o olho ciclópico que a tranquilidade das águas devia esconder?

As águas que vão e vêm

Foi há muitos anos, tantos que a explicação paira sem certezas à volta de uma só imagem: um paredão imenso, a espiral do túnel, a ausência da água. As obras da barragem ficaram concluídas em 1957, já estaria, portanto, em funcionamento há uns valentes anos quando, de repente, ficou vazia. Obras. Isso: foi preciso fazer uma reparação na infra-estrutura e isso implicou o esvaziamento da albufeira. Quanta água não terá rugido por aqui na implosão líquida que deixou à vista esta cicatriz arrepiante…

Depois, a chuva voltou a cair, a ribeira de Seda continuou a correr por entre fragas e mato e os vales encheram-se de novo. Os peixes cresceram e multiplicaram-se, os pescadores voltaram a trocar anedotas e comentários de circunstância enquanto tentavam iludir as carpas e os achigãs, as pontes modernas voltaram a fazer sentido e abaixo do paredão os campos continuaram a ser regados. As décadas passaram e a imagem de um gigantesco sorvedouro à vista turvou-se e fez-se miragem. Estava tudo como devia estar.

Até ao dia em que um novo problema nas comportas – este, sim, mais recente e bem documentado na memória – voltou a tirar quase toda a água desta paisagem grandiosa. Reapareceram as velhas estradas serpenteando pelas encostas, as ruínas das casas submersas, a velha ponte de arcos lá em baixo, tão estreita que nem parece real. Um rio corre pelo fundo do vale, como terá acontecido durante milénios antes de os homens bloquearem a passagem uns quilómetros mais abaixo. E, depois, novamente a água a cobrir tudo, a encher-se de vida, uma sucessão de slides de Verão, desses tempos da juventude em que os anos parecem não passar e tudo ainda está por acontecer.

Um Verão que não acaba

A vida leva muitas voltas. Estamos agora parados, a contemplar o imenso vazio do leito de uma barragem ausente. Outubro de 2017 e ainda parece Verão. Está calor, nem uma nuvem no céu. E nem uma gota de água na barragem. Desta vez não é a visão assustadora de um vórtice de betão, nem a curiosidade passageira de uma viagem ao passado que em breve ficará de novo submerso. Nada disso. Desta vez é a consciência absoluta de que algo está profundamente errado.

Não choveu este ano. Talvez também não tenha chovido o que devia nos anos anteriores. Mas como explicar o desaparecimento catastrófico de uma massa de água que, no seu pleno, pode atingir os 205 milhões de metros cúbicos? Esta é a oitava maior barragem do país em capacidade. E morre assim, de um ano para o outro?

Esforçando o olhar aqui da ponte podemos, talvez, adivinhar a linha onde a água resistiu até ao último momento, denunciada pelas difusas manchas esverdeadas de erva rasteira que ainda subsistem. Mas os braços laterais da albufeira estão transformados em ermos de pedra solta, as ruínas submersas durante décadas torram agora ao sol de um Verão que já passou o prazo de validade no calendário mas recusa ir-se embora. Descemos ao vale e pisamos as planuras erodidas por décadas de submersão, tão belas na suavidade dos seus contornos como inquietantes na sua despudorada exposição.

Havemos de fazer ainda muitos quilómetros pela zona, para conhecer as propostas enoturísticas de produtores de Avis, Benavila e Crato. A imensidão da barragem que já não existe continuará a rodear-nos ao longo de boa parte do caminho. Do outro lado da estrada, os olivais super-intensivos e os seus exigentes sistemas de rega levantam suspeitas. Mas o que fica realmente é a certeza de que nada está garantido para sempre. Nem mesmo as memórias da juventude, quando tudo era possível para lá de qualquer dúvida.

 

Edição n.º32, Dezembro 2019