Salvador Guedes, Senhor do Vinho (1957-2022)
TEXTO: Luís Lopes Após uma década de luta contra uma das mais insidiosas doenças neurodegenerativas, a Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA), deixou-nos ontem Salvador da Cunha Guedes. Tive, ao longo da sua e da minha vida, o privilégio de com ele privar inúmeras vezes. E em todas elas valorizei a sua cultura, o seu conhecimento, o […]
TEXTO: Luís Lopes
Após uma década de luta contra uma das mais insidiosas doenças neurodegenerativas, a Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA), deixou-nos ontem Salvador da Cunha Guedes. Tive, ao longo da sua e da minha vida, o privilégio de com ele privar inúmeras vezes. E em todas elas valorizei a sua cultura, o seu conhecimento, o seu entusiasmo, a sua forma de estar; e fiquei eu próprio mais valorizado pela troca de ideias e experiências.
Conheci-o em 1990, quando Salvador Guedes era director de marketing e presidente da Sogrape Distribuição. O “patrão” era seu pai, Fernando Guedes (falecido em 2018), pessoa encantadora e extraordinário empresário, de quem Salvador herdou o fino trato, os dotes de conversador, o talento e a paixão pelo negócio do vinho. Dez anos depois, em 2000, coube-lhe a ele assumir a liderança da Sogrape. Mas já antes tivera oportunidade de dirigir pessoalmente algumas das negociações mais importantes da empresa, como a entrada no sector do vinho do Porto com a aquisição da Ferreira, em 1987, a compra da Offley, em 1996 ou a aquisição da Finca Flichman, na Argentina, em 1997. Já ao leme da casa mãe, acabaria por adquirir a Sandeman, em 2002, a Framingham, na Nova Zelândia, em 2007, e Viña Los Boldos, no Chile, em 2008 e a Bodegas Lan, em Espanha (Rioja) em 2012.
Foi precisamente em 2012, já diagnosticada a doença e perceptíveis os primeiros sintomas, que enquanto jornalista lhe fiz aquela que seria, provavelmente, a sua última grande entrevista. Se a minha admiração por ele já era grande, tornou-se enorme depois de nos despedirmos. Ao longo de quase quatro horas de conversa encontrei um Salvador um pouco diferente, menos preocupado com o “politicamente correcto” e com a reserva institucional. Percebendo a sua abertura, “apertei-o” com as perguntas mais difíceis, enumerando um conjunto de casos, produtos, negócios menos sucedidos numa Sogrape que é, inquestionavelmente, um caso de enorme sucesso empresarial e de visão estratégica. A todas as questões respondeu com uma frontalidade e clareza impressionantes, sem nada esconder ou disfarçar, assumindo os erros de julgamento, as dúvidas, as apostas que não resultaram. Como se dissesse (na verdade, disse-o) que não há empresas nem pessoas perfeitas, que não se pode acudir a tudo ao mesmo tempo, que, por vezes, temos de recuar para depois avançar mais fortes, que nem sempre as coisas correm como queremos, introduzindo uma dimensão muito humana e realista numa conversa profissional. Depois, almoçámos como sempre, falando de tudo um pouco, o vinho apenas abordado para comentar o conteúdo do copo.
Não é a última imagem que guardo dele, longe disso. Várias vezes o encontrei depois na Sogrape onde, mesmo muito debilitado ao nível da fala e da locomoção, e já depois de ter deixado a presidência do grupo (entregue ao seu irmão Fernando da Cunha Guedes em 2015), continuava a ir para se inteirar de tudo e para intervir nas decisões estratégicas do grupo empresarial familiar. Mas nem só os destinos da Sogrape o preocupavam: em 2015 lançou a iniciativa “Todos Contra ELA”, criada para ajudar e encaminhar os que são diagnosticados com esta doença.
Em 2018, a Grandes Escolhas atribuiu-lhe o seu mais ambicionado prémio, Senhor do Vinho. Salvador Guedes, já sem voz e sem mobilidade, fez questão de o ir receber, pessoalmente, ao velódromo de Sangalhos, acompanhado por toda a família. Envolveu-se e participou nas mais de três horas que durou o evento, recebeu com um sorriso largo muitas dezenas de abraços e felicitações e foi levado ao palco pelo seu irmão Fernando, que leu o discurso que Salvador escreveu com a ajuda da tecnologia que lhe permitia comunicar. E ouviu, emocionado, o prolongado aplauso, de pé, que mais de um milhar de profissionais do sector do vinho, também eles emocionados, lhe proporcionaram.
Essa sim, é a última imagem que dele tenho: lutador, resistente, empenhado, participativo, capaz de gestos de enorme significado, que ficam para a vida. O abraço que então lhe dei, agradecendo-lhe o sacrifício que fez para ali estar presente, ainda hoje o sinto. E o seu sorriso aberto, como que a dizer “nada disso, o prémio é meu, vim recebê-lo”, permanece para sempre na minha memória. Adeus, Salvador, descansa em paz.