No Médoc foi assim

Se não há amor como o primeiro, não há VINEXPO como a primeira. Foi então que me passeei pelo Médoc e visitei o inimaginável, um mundo de fantasia e sedução que só conhecia dos livros. TEXTO João Paulo Martins No ano em que comecei a trabalhar nos vinhos, com o José Salvador, soube da sua […]
Se não há amor como o primeiro, não há VINEXPO como a primeira. Foi então que me passeei pelo Médoc e visitei o inimaginável, um mundo de fantasia e sedução que só conhecia dos livros.
TEXTO João Paulo Martins
No ano em que comecei a trabalhar nos vinhos, com o José Salvador, soube da sua ida à VINEXPO de Bordéus, feira que se realiza de dois em dois anos. Corria o ano de 1989 e como estava há tão pouco tempo no ambiente dos vinhos e sem grandes fundos de maneio, entendi que não era ainda altura de ir “mergulhar” naquele mundo alucinante.
Quando digo alucinante não estou a exagerar e comprovei em 1991, na primeira visita: o pavilhão tem 900 metros de comprido e lá dentro – quase sempre sem ar condicionado decente a trabalhar – tínhamos cinco corredores com stands de todas as partes do mundo. Assim sendo, só para uma primeira visita de prospecção, havia que contar com quase 5 quilómetros a pé, em andamento de passeio, o que demorava umas duas horas. Depois, se calhávamos a ficar interessados em dois ou três stands, podíamos ter o azar de cada um deles ficar “fora de mão” e lá andávamos nós para trás e para a frente. À hora de almoço já estávamos de rastos.
Mas voltemos à tal de 1989 a que não fui. Quando regressou, o Salvador vinha empolgado e muitíssimo entusiasmado com o que tinha visto e provado. Ele, sempre muito dado a tiradas radicais e sem papas na língua, confessou-me que ficou deslumbrado com a visita ao Château Pichon-Longueville Comtesse de Lalande e com o vinho tinto que lá tinha provado. Não foi de modas e disse: “Os nossos melhores tintos comparados com aquilo são água de lavar pratos!” É evidente que não escreveu isto nem nunca o afirmou em público, mas disse-me na redacção de “O Jornal”.
Fiquei chocado. É verdade que não conhecia aquele château nem os seus vinhos, mas conhecia os bons vinhos portugueses – na época em número muito reduzido – e não me parecia que tal comparação fosse possível e que os nossos fossem assim tão maus. É claro que não eram e eu acho que a reacção dele foi aquilo que se pode chamar a “tentação irresistível do Cabernet Sauvignon”, sobretudo se originário do Médoc, onde se mostra bem melhor do que noutras regiões. As feiras tinham, à época, um efeito desmoralizador para os portugueses: provavam-se coisas tão boas, tão bem feitas e tão sedutoras que nos ficava a ideia de que nunca lá chegaríamos. É nesse sentido que se pode perceber a reacção do Salvador.
Estávamos então em Portugal no período de renovação dos vinhedos e adegas, dos novos plantios, da chegada às adegas de técnicos com formação académica. Tudo no princípio, portanto. Mas ele não vinha só entusiasmado com os vinhos do Médoc, tinha ficado maravilhado com alguns brancos italianos de Friuli e a Malvasia de Lipari, só para registar alguns de que me lembro. Fiquei preocupado, mas cheio de vontade de lá ir ver com os meus olhos.
]Um banho de vinho
A minha vez chegou em 1991. Fui com ele e com o produtor Luís Pato e preparámos bem a nossa viagem: visitas marcadas em châteaux, para as quais reservávamos as tardes, recepções, jantares, tudo acertado, programa completo. No pavilhão, como era de esperar, foi uma estafadeira: para lá e para cá, anda ver isto que não podes perder, prova aquele vinho ali que é espectacular, encontrei um tipo porreiro que devias conhecer, etc, etc. Diga-se que o dia começava muito bem, no stand outdoor da Roederer, onde João Nicolau de Almeida nos recebia com champagne Cristal, logo pelas 9 da manhã. Não estou bem a ver melhor maneira de começar um dia em que se perspectivavam muitas provas em stands de vinho, confesso.
Os passeios começaram no Médoc e incluíram, entre outros, o château Mouton Rothschild. Com visita marcada e com cartão profissional de imprensa tínhamos portas abertas e acesso a provas mais alargadas do que os habituais visitantes. Fiz então a minha estreia de “barrel tasting” num château que integrava os 5 magníficos, onde se incluíam Latour, Margaux, Lafite e Haut-Brion – todos, a seu tempo, também visitados. Provei vinho da colheita anterior – por sorte a magnífica safra de 1990 – e fiquei desarmado por duas razões: a primeira porque não percebi porque é que aquele vinho – para mim perfeito e pronto a beber – ainda tinha que ter mais um ano de estágio em barrica antes de ser engarrafado; a segunda, alguma incredulidade quanto à tão propalada longevidade daqueles vinhos. Engano de principiante, erro que a história e o futuro sempre desmentiram, uma vez que estes são vinhos para meio século, não são vinhos de uma década. Mas num assunto não houve engano: foi tudo cuspido para dentro, com mandam as regras de boa educação quando se prova Mouton Rothschild!
O fascínio continuou com um almoço e prova vertical em Cos d’Estournel, com Bruno Prats ainda à frente dos destinos do château, prolongou-se por Saint-Émilion e os momentos de descoberta não pararam, alguns deles dentro do pavilhão, como os Alsácia de Paul Banck ou os moscatéis de Rivesaltes, do Domaine Cazes.
No final percebi melhor o que o Salvador dizia a propósito dos tintos do Médoc. Não subscrevi a tirada radical, mas fiquei a saber que o polimento, a elegância, a estrutura e a longevidade não são obra do acaso. Ali há muita história, muito saber, muita experiência e muita experimentação. Fundamentalmente era por isso que não podíamos então concorrer. À época estávamos a descobrir os tintos estagiados em madeira, os brancos fermentados em barrica e as novas castas que hoje são o espelho do país estavam ainda dar os primeiros passos.
Aprendi então uma máxima que procuro sempre lembrar: quanto mais vinhos de fora pudermos provar, melhor. Para valorizar os nossos, para ter balizas, para saber do que falamos quando dizemos que “este” é um vinho do outro mundo. É verdade que o “outro mundo” é muito, muito grande, mas há que não desanimar.
Edição Nº 19, Novembro 2018
Bacalhau feito em bolinhos

O papel social do pastel de bacalhau é mais pertinente do que se possa pensar. Nos tempos modernos, não há quem não tenha sido salvo por um, ou da fome, ou do tédio. Texto: Mariana Lopes O incomparável José Quitério, pai da crónica gastronómica em Portugal, conta-nos no seu “Livro de Bem Comer”, de 1987, […]
O papel social do pastel de bacalhau é mais pertinente do que se possa pensar. Nos tempos modernos, não há quem não tenha sido salvo por um, ou da fome, ou do tédio.
Texto: Mariana Lopes
O incomparável José Quitério, pai da crónica gastronómica em Portugal, conta-nos no seu “Livro de Bem Comer”, de 1987, que a primeira menção ao dito é feita com a expressão plasmada no título deste texto. O bacalhau, que nem sempre foi peixe fidalgo, fez ele próprio a sua ascensão social, desde o momento em que começou a ser pescado pelos portugueses na Terra Nova, no século XVI. Peixe popular por defeito, chegou às mesas abastadas lá para os finais do século XVIII, conseguindo superar a aura negativa que o médico de D. João V, Francisco da Fonseca Henriques (1665-1731), tinha sobre ele lançado, numa afirmação que tanto José Quitério como eu vemos com grande potencial humorístico: “O bacalhao, que he uma especie de pescada, mais duro, e de peior alimento que ella, coze-se dificultosamente, gera humores melancólicos, e mal depurados das suas partes excrementícias. He o alimento dos pobres e dos rusticos; e proprio pera pessoas que trabalhão, e se exercitão muito. Não se deve usar em pessoas delicadas, nem nas que passão vida sedentária”. Ora, não sei que tipo de condimentos é que o doutor Francisco punha no seu bacalhau, mas desconfio que a melancolia que lhe dava não tinha nada que ver com o peixe. Se esta depressão era, por sua vez, problema de D. João V, então podemos imaginar uma consulta com estes dois, lá para 1710: “Doutor Francisco, tenho-me sentido tétrico, abúlico e meditabundo depois do almoço…”, “Isso é do bacalhau, Sua Majestade.”, “Pois, a Maria Ana comprou uma Bimby que veio com um livro de receitas de bacalhau e agora só faz disso.”, “Faz sentido, a culpa é sempre das mulheres”. Nem de propósito, consta na Wikipedia, sobre a saúde e morte do rei, que “Em 1711 convalesceu de uma queixa de flatos. Em 1716 foi restabelecer-se em Vila Viçosa de doença de cariz melancólico”. Só não diz lá nada sobre bacalhau.
Bem, voltando ao tema principal, o pastel de bacalhau é nomeado pela primeira vez em 1841, mas só em 1904 apareceu escrita a sua primeira e consensual receita, no Tratado de Cozinha e de Copa, de Carlos Bento da Maia, ou, como aparece na capa do folheto publicitário de divulgação prévia, O Livro das Donas de Casa – A Mais Útil das Publicações. Cá para mim, não é coincidência que o Benfica e o Tratado tenham surgido no mesmo ano, deve ser lá que vem a fórmula da sandes de courato, apesar de eu ser benfiquista e mesmo assim preferir o bolinho de bacalhau. Como Quitério teve o cuidado de transcrever, “Toma-se bacalhau cozido, limpa-se de peles e de espinhas, mistura-se com batatas cozidas e bastante salsa cortada em pedaços, e passa-se tudo pela máquina de picar. O polme resultante liga-se com leite e gemas de ovos e tempera-se com um pouco de sal fino e pimenta em pó. Bate-se a massa, à qual se juntam as claras de ovos, previamente batidas em castelo, liga-se tudo rapidamente, tira-se a massa às colheradas, fazendo-se passar de uma colher para a outra e, seguida e sucessivamente, põem-se a frigir. O azeite deve ser abundante, para que os bolos mergulhem nele sem tocar no fundo. Tiram-se do azeite com uma colher crivada e põem-se a escorrer”.
Apesar da decadência actual da qualidade da iguaria, como já indicava José Quitério em 1987, a verdade é que o pastel de bacalhau é uma coisa muito portuguesa e que nos acompanha durante a vida toda. Lembro-me de, quando era criança, os levar para as visitas de estudo. De me deliciar com eles na praia e nas viagens de férias. Não há casamento que não os tenha, nem catering que não os faça. E nos eventos de maior dimensão, profissionais ou sociais, aqueles marcados para as 19h30 em que nos sentamos à mesa às 22h00, não há quem não tenha sido salvo por um (ou por vários…). E por isso faço minhas as palavras do grande Quitério: “(…) Salvemos o pastel de bacalhau! Mais importante do que o lince da serra da Malcata, criação genial da inventiva popular, ex-líbris do nosso património gustativo. Disse. Se necessário, repito”.
Quando os avós mandavam na adega

Saberes antigos, tradições preservadas, ensinamentos transmitidos. Era isso que se esperava dos avós. Há umas décadas, quando as adegas eram santuários e os produtores alquimistas. TEXTO João Paulo Martins A fechadura da porta da adega metia respeito e a chave era quase uma arma de arremesso. A porta, encarquilhada pelo tempo, já tinha frestas por […]
Saberes antigos, tradições preservadas, ensinamentos transmitidos. Era isso que se esperava dos avós. Há umas décadas, quando as adegas eram santuários e os produtores alquimistas.
TEXTO João Paulo Martins
A fechadura da porta da adega metia respeito e a chave era quase uma arma de arremesso. A porta, encarquilhada pelo tempo, já tinha frestas por todo o lado, buracos por onde entravam gatos caçadores e, por vezes, ratos esquivos que na escuridão procuravam esconderijo. O “dono” da chave era o meu avô, qual guardião do templo, sempre atento a qualquer tentativa de entrada. Ali só com razões muito bem explicadinhas, e superiormente aceites, é que se poderia ter autorização para entrar. Lá dentro, numa penumbra carregada, dormiam vinhos em tonéis de média dimensão; dois maiores que se destinavam a branco e tinto e outros mais pequenos, também dois, um deles destinado à água-pé e o outro ao vinho que era distribuído aos trabalhadores rurais. A bem dizer, este pipo era de boa dimensão já que cada trabalhador levava para seu consumo exclusivo e diário um garrafão de três litros. E à tarde, na entrega das alfaias, lá iam mas dois ou três copos. O pipo dos trabalhadores era, mas eles não sabiam, bastante “baptizado” para que o grau não chegasse a ponto de impedir o trabalho agrícola, todo ele feito à custa de enxada e força braçal. Na mesma adega havia também um lagar de pequena dimensão onde todas as uvas eram pisadas a pé, fossem brancas ou tintas, com engaço total, que desengaçador era maquineta desconhecida. O lagar, situado a um metro do chão, permitia um escoamento fácil do mosto para uma enorme dorna de madeira; à boca do lagar sempre vi um cesto de verga (por sinal feito por um cesteiro que vinha uma vez por ano renovar o stock) por onde escorria o mosto, deixando ali não só as grainhas como algumas películas. Era então a altura de medir o potencial alcoólico do mosto e baixar a graduação com adição de água. Todos os anos, sem excepção, se manteve esta prática; não só permitia mais quantidade final como tornava o vinho mais consensual, mais “democrático” já que todos podiam beber. A pisa era, como se imagina, uma actividade familiar que todos estavam autorizados a praticar: pés lavados e lá se ia para a pisa até que o avô desse o assunto por terminado. A parte radical em que a criançada não era suposto presenciar era, por razões de segurança, a prensagem. A prensa era uma verdadeira engenhoca: um buraco largo na parede (uns 20 cm acima do topo do muro do lagar) onde entrava um longo tronco de árvore; na extremidade oposta um cesto (seguramente teria um nome específico mas não recordo) pendurado no tronco e onde se iam colocando pedras bem pesadas, poucas de início e muitas para o final. Para o efeito os engaços e películas eram juntos no centro do lagar formando um cilindro que ia sendo atado à volta com cordas. No topo, uma prancha de madeira redonda, algumas pedras em cima, onde assentava o tal tronco e depois era extrair tudo o que houvesse de mosto até mais não haver. Mosto de lágrima? Primeira e segunda prensagem? Isso ninguém sabia o que era, mas lágrimas haveria por certo se se desperdiçasse algum mosto. A economia rural assente no auto-consumo não se compadece com desperdícios.
Ele é que sabe
O “ele” aqui é o vinho. Esta era a resposta mais habitual que o meu avô tinha para responder à nossa curiosidade. Após a colocação do mosto no tonel (medido em almudes que se usavam para tirar o mosto da dorna), deixado o conveniente espaço e colocada a mecha de enxofre (com toda a gente a ser posta fora da adega por causa do cheiro…) o vinho estava por sua conta. Avô, quanto tempo fica aqui? Avô, daqui a quanto tempo temos vinho? A estas e a todas as outras perguntas o meu avô respondia com o “ele é que sabe” sugerindo que o tempo de duração da fermentação era uma incógnita e que nada mais haveria a fazer se não esperar. Pela água-pé é que se esperava menos, uma vez que em Novembro estava pronta a consumir e onde íamos às escondidas encher um pequeno copo para acompanhar os figos que estavam a secar ao sol em grandes tabuleiros. Não chegava a ser uma travessura, a água-pé era realmente um vinho fraquinho que todos bebiam. Mesmo o meu pai, que nunca vi beber fora da refeição, também era capaz de comer uns figos e tirar um copinho do pipo ainda antes do jantar.
Este vinho dos avós acabava engarrafado no Verão (à custa de muita martelada na peça de madeira usada para colocar as rolhas…), por forma a permitir que todo o vasilhame fosse usado para a próxima vindima. A ninguém ouvi então falar do vinho da colheita tal e se era melhor ou pior do que a do ano x: o conceito era facilmente assimilado; o vinho era para beber no ano, apenas e só enquanto a nova colheita não surgia. Conceito simples, desobrigado de filosofias ou teses complicadas. O que é que ia para dentro do lagar? Nada mais fácil de responder: tudo! E neste tudo tanto podemos incluir uvas de mesa, alguma uva americana tirada da enorme parreira que fazia sombra no quintal, mais alguma uva comprada fora e outra que vinha das hortas onde não raramente as cepas faziam de separador das várias leiras. Que castas seriam é uma incógnita mas, até pela localização (perto de Tomar), havia sempre Fernão Pires nos brancos e, creio, Castelão nos tintos. Não detectei no meu avô qualquer intenção de alteração nas técnicas que tinha herdado; não soube do meu pai qualquer atitude de mudança no saber adquirido. A adega era para continuar escura, a abertura na parede para a circulação de ar estava estrategicamente colocada na parede norte, as dornas e os pipos iriam servir até ser possível. E não se provava, bebia-se! Mas, e disso guardo memória, sempre vi cuidados especiais na temperatura de serviço do vinho ao jantar. Como, em terra sem electricidade? Da forma mais simples: pano bem encharcado à volta da garrafa e a botelha colocada onde mais se fizesse sentir o vento norte que, à noite, era bem fresco. E, se bem me lembro, funcionava. E o meu avô seria pessoa para (hoje) apreciar vinho em copos Riedel? Não sei, mas aposto que sim…
Edição Nº15, Julho 2018
Nós e os outros
Não há como fugir. De tempos a tempos somos confrontados com vinhos que vêm de fora e ficamos sempre naquela posição ingrata de tentar fazer comparações entre eles e nós. Válidas? Sim senhor! Úteis? Nem por isso… TEXTO João Paulo Martins O jantar foi há poucas semanas. O grupo presente para o festim já tem […]
Não há como fugir. De tempos a tempos somos confrontados com vinhos que vêm de fora e ficamos sempre naquela posição ingrata de tentar fazer comparações entre eles e nós. Válidas? Sim senhor! Úteis? Nem por isso…
TEXTO João Paulo Martins
O jantar foi há poucas semanas. O grupo presente para o festim já tem algum historial de sessões vínicas de alto gabarito. O modelo é pouco habitual nestas coisas: os vinhos são trazidos sempre pelo mesmo conviva, que gosta de partilhar as coisas boas que tem, e por isso não se repete aqui a forma mais usual que é cada um trazer o seu vinho, brincar nas provas às cegas e depois deixar correr a conversa e o marfim, esperando que os disparates sejam em quantidade suficiente para alegrar a noite. Confesso-me grande adepto deste modelo e nada me incomoda com as tontices vínicas que possa dizer, uma vez que esse é um dos prazeres destes encontros: descobrir, pôr a base de dados mental a funcionar, juntar peças de um puzzle, procurando acertar na mouche. É claro que acertar tem piada, mas não é esse o motivo que deve levar os amigos a este tipo de encontros.
Mas o meu encontro que acima referi não é destes. Ali os vinhos chegam às claras, muitas vezes são comunicados antecipadamente aos convivas e por isso não é de um jogo que se trata, é puro prazer de conviver com grandes vinhos à frente.Eles chegam de várias origens: predominam os Bordéus, sobretudo em tintos, mas também em colheitas tardias (vários Sauternes já vieram à liça, desde o consagrado Yquem até ao Château Gillette, por exemplo); do Rhône chegam sempres brancos e tintos, do vale do Loire há também brancos e, de fora de França, é habitual chegarem vinhos da Austrália, da Califórnia, Nova Zelândia, sempre topos de gama, daqueles que por vezes apenas ouvimos falar mas nem a garrafa tínhamos visto.
Como se vê pelo que atrás disse, as jornadas são sempre muito motivadoras e geram imensa discussão. Quais os melhores, quais as desilusões, quais os narizes de cera, quais os underdogs que se mostram melhor do que se esperava, etc, etc.
Chuva de estrelas
A simples listagem do que se bebeu no mês passado já é de cortar a respiração, sobretudo nos blockbusters de Bordéus, com Pétrus 89 à cabeça, mas bem assessorado por Ausone 2005 (este em double magnum), Clinet 89, Hosanna 2005; noutros encontros tivemos Mouton, Lafite, Margaux, Cheval Blanc, Haut-Brion, Pichon Contesse de Lalande e por aí fora. Nos brancos ficámos com um velho conhecido – o Condrieu La Doriane de Guigal, um Beaucastel que é um clássico de Châteauneuf-du-Pape, e tivemos duas incursões de down under: um branco da Nova Zelândia e outro da Austrália, ambos de Chardonnay. A particularidade do neozelandês é que tinha cápsula em vez de rolha e isso, passados 11 anos, não lhe trouxe qualquer prejuízo excepto a natural redução (para uns defeito, para outros virtude…); do Loire (Vouvray) chegou também um habitué – a Cuvée Constance 2003 do Domaine Huet, um 100 pontos Parker que, este sim, os merece sem rebuço. Vários dos tintos eram também vinhos de 100 pontos.
Passada esta apresentação/listagem, vamos ao ponto central: por muito que o tentemos evitar, somos normalmente levados a pensar que, caso estivessem por ali vinhos portugueses e se a prova fosse cega, algo de complicado poderia acontecer. Inevitavelmente vêm sempre à memória outras situações – como o célebre julgamento de Paris – em que, numa prova organizada em 1976, os vinhos de Bordéus foram confrontados com outros da Califórnia e… perderam.
Já por várias vezes escrevi que este tipo de provas comparativas não faz qualquer sentido. Ou pode fazer todo o sentido, depende do ponto de vista. Comecemos então pelo fim. Se estivessem ali à prova vinhos portugueses e não se soubesse o que se estava a provar, é provável que os vinhos nacionais, sobretudo tintos, tivessem grande prestação. Não seria favor nenhum, uma vez que temos vinhos excelentes, mas que pecam por mal conhecidos junto dos grandes opinion makers internacionais, os mesmos que levam os chineses a querem agora comprar Lafite, seja lá a que preço for. Este tipo de provas comparativas é complicado de montar. O mais correcto seria comparar anos semelhantes, mas, por exemplo, Douro e Bordéus costumam andar de candeias às avessas (como se sabe, em virtude do anticiclone dos Açores) e os anos bons numa região não são os mesmos na outra; sem ser tão rigoroso já me parece que seria correcto juntar anos próximos que possam ser bons nos dois territórios. E então o que aconteceria se um tinto do Douro ficasse à frente do Lafite ou do Pétrus? Pois é, não aconteceria rigorosamente nada, para além de um “bruá” inicial. No dia seguinte os compradores iriam na mesma comprar o Pétrus, apesar de o tinto português custar 20 vezes menos.
Por isso reafirmo que este tipo de provas não faz qualquer sentido. Não são elas que dão indicações de compra para o mercado, não são elas que definem quem merece e quem não merece ser comprado. Foi por isso que, no jantar do meu amigo, e embora este tipo de pensamento me tenha ocorrido, me quedei calado porque o que eu estava ali a provar eram vinhos quem têm séculos de história para contar, que passaram guerras mundiais, que vêm de propriedades ocupadas por nazis, que têm histórias familiares fantásticas e dramáticas e é nisso que quero pensar quando provo um Ausone ou um Pétrus. E pouco me rala que há 50 anos o Pétrus custasse 20 e agora custe 3000; com o Barca Velha passa-se o mesmo, com os Porto Vintage também e com os Madeiras idem, idem. Vamos lá comparar o que é suposto ser comparado e deixar para os incautos a despesa da verborreia vínica.
Edição Nº14, Junho 2018
O Tempo e o Modo (do vinho e da rolha)

Edição nº11, Março 2018 Macroscópio Não vou falar da célebre revista, o que seria muito intelectual mas a despropósito. O assunto aqui é mais vinho e rolhas. Sempre o mesmo? Afinal, pensando bem, adianto qualquer coisa. A revista “O Tempo e o Modo” era de leitura obrigatória pelos intelectuais da nossa praça nos idos de […]
Edição nº11, Março 2018
Macroscópio
Não vou falar da célebre revista, o que seria muito intelectual mas a despropósito. O assunto aqui é mais vinho e rolhas. Sempre o mesmo?
Afinal, pensando bem, adianto qualquer coisa. A revista “O Tempo e o Modo” era de leitura obrigatória pelos intelectuais da nossa praça nos idos de 60 e começou a publicar-se em 1963. Por lá passaram quase todos os anti-fascistas encartados que se reuniam no café Monte Carlo (por baixo do cinema Monumental), local onde se entretinham em conspiração suave. Tão suave que, com eles, a PIDE não perdia tempo: eram os “do contra” ou “do reviralho”, mas não faziam mossa a ninguém.
Como eu frequentava o mesmo café, via-os quase todas as tardes na converseta. Com um deles, António Alçada Baptista – que era intelectual e escritor, mais do que anti-fascista militante – acabei por conviver bastante já depois do 25 de Abril, quando, sentindo ventos da História mais adversos, se remeteu a uma existência eremita, algures na serra de Sintra, em casa emprestada por amigos. Acabou ou seus escritos na revista “Máxima”, onde manteve uma coluna carregada de reflexões e receios sobre a morte e onde eu tinha uma coluna que tratava da associação dos vinhos e das comidas. Mas não voltámos a falar nem a conviver. Dos restantes “modistas” li alguns dos livros, coisa que caía muito bem à época.
O tempo dos vinhos
Mas o tempo também é assunto dos vinhos, como sabemos. E é assunto controverso, não exclusivo dos tintos ou generosos; é tema genérico que até a rosés pode dizer respeito. O vinho precisa de tempo. Antigamente dizia-se, e alguns escribas de hoje ainda usam o termo, que o vinho ia “envelhecer” para os cascos, como que à espera que o tempo fizesse o seu papel.
O termo é, quanto a mim, totalmente desapropriado. Os vinhos “amadurecem” em casco; só “envelhecem” quando lhe deixámos passar o momento óptimo de consumo e iniciam a inexorável descida para a morte. Essa descida é vertiginosa nos vinhos vulgares, e muito lenta nos grandes vinhos. Assim se percebe que eu tenha bebido um Quinta da Aguieira branco de 1945 que era um monumento, independentemente dos padrões de análise. Era um branco a quem o tempo não incomodou nada e fez bem.
A pressa acaba por nos derrotar e muitas vezes não conseguimos dar ao vinho o Tempo que ele requer e necessita para amadurecer. Os meus amigos mais chegados em termos de idade, receosos que o seu tempo e final estejam mais próximos do que desejariam, entram no delírio do “para velho basto eu, toca a beber os vinhos jovens, quanto mais jovens melhor”, tese que aplicam a vinhos em geral e a Porto Vintage em particular. O disparate está à vista.
Há uns anos (poucos) tive a sorte de participar num almoço no restaurante Tavares (à data oficiava por lá o José Avillez) e o motivo do mesmo foi a prova de quatro garrafas do Domaine de la Romanée-Conti (DRC), incluindo o propriamente dito. Todas as garrafas eram de 2005. Ora bem, o que ali aconteceu foi um assassinato vínico. Porquê? Porque, de tão novos, os vinhos não se distinguiam entre si de forma evidente, ou seja, o Romanée Saint-Vivant e o La Tâche pareciam-se em demasia e no meio deles o Romanée-Conti não sobressaía. Foi giro, mas foi um erro crasso, porque não demos aos vinhos o tempo que precisavam e ficámos com a sensação de que as diferenças até nem eram assim tão grandes e os preços altíssimos de alguns deles não teriam razão de ser.
Como estes, muitos outros casos poderiam ser aqui chamados. A questão pode ser colocada assim: não vale a pena estar a beber antes do tempo! Se não houver vida que chegue, outros mais tarde beberão as garrafas. No fundo é o que fazemos quando bebemos vinhos velhos, os tais que alguém não bebeu e entendeu deixar repousar na garrafeira. Resta a pergunta final: de quanto tempo estamos a falar? Ou como se atribui a cada garrafa o tempo que precisa? Como ninguém sabe a resposta, o melhor é mesmo ter mais do que uma garrafa dos vinhos que se querem guardar e ir bebendo com intervalos largos. Só tem uma? Azar, lance a moeda ao ar e decida…
O Modo da rolha
O problema dos vinhos com rolha permanece, sobretudo nos que têm uma rolha de cortiça natural. A ciência tem avançado, as empresas estão a gastar muito dinheiro em investigação, mas o certo é que problema não está resolvido. E não me refiro apenas ao clássico TCA (tri-cloroanisol, composto responsável pelo cheiro a rolha) mas também às modificações dos aromas dos vinhos, motivados pela rolha mas que não são facilmente identificáveis. Apenas conseguimos detectar que os vinhos não estão bem mas, convenhamos, é preciso muita prática para perceber que “é da rolha mas não é TCA”. Alguns produtores estão a optar por rolhas técnicas, rolhas de aglomerado de cortiça, totalmente isentas de TCA. Existe, ainda assim, algum preconceito em usar esse tipo de rolhas para vinhos de topo porque ah e tal, o consumidor bla, bla, exige, gosta mais, etc, etc.
Ao que me apercebi, alguns produtores mandaram os preconceitos às urtigas. A mais recente prova foi-me dada por um vinho que comprei e consumi há umas três semanas. Tratava-se de um Chablis do produtor Droin, mas atenção, não era um Chablis qualquer mas um Grand Cru Grenouilles. Ora, como sabemos, a região de Chablis é bem mais moderada na atribuição daquela categoria máxima do que, por exemplo, sua vizinha Alsácia, onde os Grand Cru aumentam desmesuradamente todos os anos. Em Chablis apenas existem sete parcelas de vinha classificadas como Grand Cru: Les Clos (a maior parcela e também o Chablis mais famoso), Grenouilles, Blanchot, Bougros, Les Preuses, Valmur e Vaudésir. Todas lado a lado, numa encosta com boa exposição e onde apenas se planta Chardonnay. Confesso que inicialmente fiquei admirado pelo facto de a rolha ser técnica e não de cortiça natural, mas rapidamente me apercebi de que o produtor optou pelo lado seguro do negócio, em detrimento do lado tradicional, sem preconceitos e sem medos. A rolha talvez não aguente 50 anos, mas provavelmente o produtor Droin não aponta os seus vinhos para uma longevidade tão larga.
É preocupante a incerteza que grassa e o desespero que presenciamos nos produtores ao verem os seus melhores vinhos com problemas de rolha. É desprestigiante para Portugal, é mau para a indústria e é mau também para a percepção de qualidade dos vinhos porque, caso se tenha menos hábito de prova, vamos opinar negativamente sobre um vinho quando ele tem problemas de rolha, ainda que não sejam TCA. Quando vai estar o assunto resolvido não sei. Mas o produtor de Chablis já resolveu o problema dele. E na mesma região, outros vinhos que não são Grand Cru já optaram pela rolha de rosca. Futuro incerto, digo eu…