Harmonias: Delícias (muito) doces disponíveis para casar

Harmonias

Tarte de maçã Deve ser o bolo que faço há mais tempo, desde que me comecei a aventurar de forma sistemática na cozinha. Representa, além disso, o produto culinário mais “dás-me a receita” de todos. Não sei que magia vêem as pessoas nas receitas, quando o que mais conta é a volta que se dá, […]

Tarte de maçã
Deve ser o bolo que faço há mais tempo, desde que me comecei a aventurar de forma sistemática na cozinha. Representa, além disso, o produto culinário mais “dás-me a receita” de todos. Não sei que magia vêem as pessoas nas receitas, quando o que mais conta é a volta que se dá, e tem mil variáveis. Agora toda a gente faz a receita da Bimby – que é boa e funciona – como se fosse um salvo conduto para apresentar perante os pares, em jeito de competição. Eu nunca fui competitivo quanto a culinária. É um total desperdício de tempo. Exceptuando a maravilhosa tarte de maçã em massa folhada que se fazia na incrível Machado, em Caldas da Rainha, trata-se de uma tarte com maçã laminada no topo e base massuda de composição variável. Após algumas investidas no assunto harmonização, aponto com alguma segurança o branco de curtimenta – vulgo orange – como campeão. A maçã está muito exposta e a fruta secundária e oxidativa do vinho adora brincar com ela. A melhor experiência foi com Avesso de Baião, corpo e conteúdo a mostrar muito boa adequação.

Pastel de nata
Se a vida dá muitas voltas, a história não faz sequer intervalos. Em 1834, como é sabido, foi decretada a extinção das ordens religiosas, seguindo-se a expropriação e expulsão de religiosos e religiosas. Nos Jerónimos, a pequena ventura que ali grassava e que era a venda dos pequenos pastéis de nata inspirados nos pastéis de leite da Infanta Dona Maria, tornou-se rapidamente sustento da comunidade monástica. Em 1837 viria a nascer a Real Fábrica dos Pastéis de Belém, aproximadamente no mesmo local onde a encontramos hoje. Aspectos técnicos e um concurso de contornos difusos impedem-me de opinar sobre se serão ou não verazes e conforme a receita de então. Mas certo é que se trata de um bolo que perdurou até aos nossos dias. Representa hoje um ícone da diáspora portuguesa em todo o mundo. Sendo a massa folhada da taça que suporta a custarda feita com manteiga e levada a mais de 380ºC, o resultado tem destino marcado com um moscatel de Setúbal com mais de vinte anos. Copioso em açúcar e com uma acidez pronunciada, consegue a um tempo corte e harmonia. Madeira Malvasia poderá ser também hipótese a considerar.

Pão de ló
O pão de ló é um caso muito sério e, tal como o pastel de nata, o original, o primeiro de todos, perde-se nas brumas do tempo. As variantes hoje já incluem o de chocolate e quase todos levam doce ovos ou outra espécie de recheio. O meu padrão é aquele sobre o qual me debruço e é seco, fofo e foi feito em forno de lenha, exactamente como o de Margaride. De receita secular, configura standard forte do grande “sponge cake” português. Desde muito novo é o meu favorito, e com os anos fui fazendo experiências de harmonização com vinho e outras bebidas. Antes de avançar para a maridagem, há que identificar alguns aspectos determinantes para a bondade da ligação entre vinho e comida. O forno de lenha confere complexidade ao bolo pelas notas fumadas e de caruma seca que introduz, e os ovos fazem-se sentir. Além disso, existe um fundo de manteiga neste e na maioria das variantes da receita, o que lhe dá um gosto especial. Não hesito em recomendar a ligação com um estreme novo da casta Chardonnay, pelo património de pastelaria e notas amanteigadas que a casta oferece. Comece as suas experiências com vinhos pouco elaborados e depois vá “complicando”. Esperam-no anos de boas surpresas.

Duchesse
Também conhecido entre nós como duchese, é um bolo que está na linha do famoso Paris-Brest e consta de massa choux recheada com chantilly, decorado com maior ou menor intensidade com fios de ovos. Nas pastelarias tradicionais tem invejável procura e são raros os apreciadores que não os coloquem no topo das suas preferências. Tem tudo para ser comido à mão mas, na verdade, é mais indicado para comer com um garfo, pelos imprevistos que podem surgir. Confesso que é dos bolos que mais me intriga pela popularidade. Os portugueses não são muito dados a lanchar longamente numa pastelaria e vejo muitas vezes um duchese ao lado de um expresso, tanto na mesa como ao balcão. Curiosamente, o café é belíssima companhia, pelo óbvio contraste de texturas e pelo equilíbrio da doçura com os amargos do café. Excelente fica também com um rosé estruturado da região dos vinhos verdes ou de outra região que lhe garanta mineralidade e frescura. A minha melhor experiência aconteceu há pouco tempo, com o transmontano Valle Pradinhos, um rosé pronto para muitos desafios e o duchese é um deles.

Macarron
Estamos na zona da alta pastelaria quando falamos destas delícias de duas metades e recheios diversos. Tudo o que pensava saber sobre o assunto, com experiências diversas em pastelarias famosas pela Europa fora, fui forçado a rever com severidade quando conheci a Marbela, em Esposende. O grande chef pasteleiro Rui Costa tem ali o seu quartel e é de uma criatividade a toda a prova. Passar uma manhã com ele é uma grande instrução, pois trabalha com a maior naturalidade as soluções mais complexas que se possa imaginar e os macarrons são de antologia. Conheci-o há cerca de 15 anos e nunca mais perdi o contacto. Inesquecível a vez em que o assunto foi macarrons. Comparei com muitos outros e os dele tinham duas particularidades: duração e sabor. A massa de amêndoa de que as metades são feitas bate, em resultados, todas as outras e no seu caso coloca o recheio e aromáticos em primeiro plano sempre com crocância irrepreensível. Um Colheita Tardia do Tejo – do Casal Branco – faz uma ligação maravilhosa.

Pudim do Abade de Priscos
Começo pelo detalhe do presunto que, segundo a receita original, tem de ser “gordo, do de Chaves”. O dito presunto difere de todos os outros pelo facto de ser curado enguitado e não pendurado, ficando por isso com gordura entremeada mais rica e forte. Cinquenta gramas dessa gordura é tudo o que o pudim exige, além de 15 gemas de ovo, 500 gramas de açúcar amarelo, vidrado de um limão, pau de canela, um cálice de vinho do Porto e a arte culinária para o fazer na forma perfeita. A proteína animal é determinante e tem o incrível efeito temperador e integrador dos restantes ingredientes. É surpreendente a força e, ao mesmo tempo, a sublimidade do pudim. Quem o provou bem feito nunca mais esquece a experiência feliz. Experimentei com vários tipos de vinho do Porto e a minha preferência vai para o branco velho, o mesmo que gosto de utilizar para fazer o pudim. A ligação é sublime e a recombinação de sabores e aromas é surpreendente à medida que vamos explorando a sobremesa. Apesar de ser tido como altamente calórico, quando é bem feito fica equilibrado e aprecia-se-lhe o recorte elegante, sem excessos.

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Pavlova de morango
A pavlova nasceu na Nova Zelândia há cerca de cem anos, criação do chef pasteleiro do hotel onde ficou hospedada a bailarina russa Ana Pavlova. Em jeito de homenagem à sua leveza, como se perfumasse o ar que graciosamente agitava ao dançar, assim nasceu esta sobremesa, hoje replicada no mundo inteiro e declinada das mais diversas formas. A estrutura merengada de suspiro, associada a frutos frescos, foi a imagem que surgiu na mente do chef de que nunca saberemos o nome. Sobretudo quando a canícula se faz sentir, a dicotomia doce-fruta tem um efeito particularmente refrescante. O suspiro e o morango reagem bem um com o outro e quase se podia dizer que uma outra sobremesa se cria no palato. O resultado é surpreendente pela forte textura sentida. Por outro lado, a acidez dos morangos pronuncia-se e pede complemento copioso. A harmonização correcta passa por um rosé igualmente copioso. Das diversas experiências feitas, a mais clara e acertada foi com o rosé da Quinta do Monte d’Oiro, produzido a partir de uvas da casta Syrah. Equilíbrio perfeito, aniquilação recíproca.

Crista de galo
Os livros de receitas dos conventos estão repletos de notas e mão de obra de pessoas que estavam em funções durante o dia e de tarde e de noite estavam em suas casas. São por isso repositórios de conhecimentos, detalhes e saberes que viviam tanto fora como dentro do complexo monacal. O corolário bom desta itinerância foi a secularização crescente do receituário, o que é em si mesmo já uma explicação para a disseminação rápida das delícias fora de portas. A Casa Lapão em Vila Real tem uma longa história e tem origem no convento de Santa Clara de Vila Real. No início do séc. XX, Miquelina Cramez, amassadeira, casa com Francisco Delfim, de alcunha Lapão por ser atarracado e bochechudo como os naturais da Lapónia. Criaram juntos a padaria Lapão. A costureira que os visitava tinha uma irmã no convento e, extinto este, conservou os segredos da doçaria que ali se praticava. Miquelina dedica-se desde logo à produção das verdadeiras Cristas de Galo e outras delícias que ainda hoje se fazem. A ferramenta com que se cortam tem mais de duzentos anos, e o melhor vinho para as comer é um bom moscatel de Favaios. Excelente acidez e perfil único, especialmente os que a Adega de Favaios está a fazer.

Marron glacé
Pode parecer capricho, mas não é. Somos terra de soutos, o mesmo é dizer de castanheiros e até tonéis e pipas para fazer e armazenar vinho outrora se faziam em castanho. A castanha é, além disso, primordial na nossa alimentação. Há que não esquecer que a batata é assunto recente no Velho Mundo. Tanto assim é que muitos pratos da grande tradição são ainda acompanhados por castanha e batata no mesmo tacho. O marron glacé – castanha glaceada – é a maior homenagem que se pode fazer a essa pérola antiga e ainda continua a ser francamente popular em França e até se vende em caixas como se de bombons se tratasse. Por cá a história é mais tímida, mas não é por isso que deixo de lhe fazer as loas. Há que escolher a variedade certa. É importante que tenham dureza e corpo para aguentar a cozedura ligeira e o tratamento posterior. Nunca consegui fazer de forma satisfatória, mas conheço mãos que as fazem com a maior naturalidade. Podem levar vários banhos em calda de açúcar, em dias sucessivos e o resultado é sublime. Maridagem competente oferece o abafado Five Years da Quinta da Alorna. Impossível comer apenas um.

Torrão real de Portalegre
O convento de São Bernardo em Portalegre foi fundado no início do séc. XVI, pelo Bispo da Guarda, para albergar “jovens sem dote” mas de muita virtude. Desenvolveu-se ali muito receituário, algum ainda por desbravar mesmo após a conversão em monumento nacional, em 1910, e com os livros de receitas devidamente salvaguardados. Conheci Ana Tomás numa hora feliz em pleno estúdio da RTP. Ela havia sido contemplada com um prémio pelo desempenho com os rebuçados de ovo de Portalegre, autêntico trabalho de chinês que aparentemente conseguia fazer na perfeição às centenas. Conheci melhor o seu trabalho em encontros diversos e dei com o seu torrão real, autêntica obra de arte, resultado do talento e de muito estudo e experimentação. Gemas, natas, amêndoa e açúcar estão no coração do torrão real de Portalegre e são vários os que tentam a sorte na produção do dito, mas o melhor para mim permanece o que sai das mãos de Ana Tomás. Pede harmonização valente e viril, e confirma toda a sua glória com um vinho Madeira Bual de 40 Anos.

Manjar branco
Termino o elenco doceiro à procura de casamento feliz com a delícia mais delicada: manjar branco. Juntamente com outra doçaria típica de Portalegre, não leva ovos e a história funde-se com a prática secular da mantença sustentável. O nome não podia estar mais correcto, pois é feito a partir de galinha e respectivo caldo, portanto sobras de cozinhados que em vez de ir para o lixo ganham glória e atingem pináculos de sabor. Entre os ingredientes estão ainda arroz ou farinha de arroz, leite e açúcar. As aparas de galinha são brevemente cozidas para depois se passar por água fria e desfiar fininho. Em lume muito brando, leva-se tudo a cozer mexendo sempre e quando começa a engrossar apaga-se o lume e continua a mexer-se até arrefecer. Coloca-se e serve-se em tacinhas esta maravilha e na hora de servir polvilha-se com açúcar. A versão mais feliz desta receita foi-me proporcionada pela mãe do chef José Júlio Vintém, de enorme talento culinário. Um doce feito a partir de proteína animal que nos leva ao céu. Como ligação vínica, proponho um Arinto de Portalegre com mais de três anos.

(Artigo publicado na edição de Julho de 2024)

Heranças gastronómicas: de Portugal, vê-se todo o Mundo

É impossível andar seguro para a frente olhando apenas para trás, é certo, mas anda-se bem mais seguro quando se sabe donde se vem. A esmagadora maioria do património culinário português está impregnado das muitas influências que ganhou e deixou pelo Mundo. E temos vinhos para todas. TEXTO Fernando Melo África lusófona Angola, Cabo Verde, […]

É impossível andar seguro para a frente olhando apenas para trás, é certo, mas anda-se bem mais seguro quando se sabe donde se vem. A esmagadora maioria do património culinário português está impregnado das muitas influências que ganhou e deixou pelo Mundo. E temos vinhos para todas.

TEXTO Fernando Melo

África lusófona

Angola, Cabo Verde, Guiné, Moçambique, S. Tomé e Príncipe, partilham entre si várias itinerâncias gastronómicas e as raízes do que se come estão nos produtos e costumes locais. Os portugueses foram sempre para ficar, ao contrário dos espanhóis, ingleses, franceses e holandeses, que quase sempre viveram apartados dos povos que encontraram ou subjugaram. Há um missionário e um grande amigo em cada português e excepção feita aos óbvios e históricos conflitos, os portugueses são assim lembrados. Além disso, todos os que ousaram partir tornaram-se eles próprios também, de certa forma, portugueses diferentes, no sotaque, nos hábitos e… na mesa. O continente foi-se instituindo como plataforma de fusão e hoje são diversas as delícias provenientes de cada parte. Deliciamo-nos com a muamba de galinha que nos chega de Angola, alquimia sofisticada de texturas e sabores. Óleo de palma, quiabos, malagueta e funge são os quatro pontos cardeais de um prato de cariz popular que nos leva ao céu. De Cabo Verde preenche-nos a fantasia a cachupa de carne, a que também se chama rica – injusto para a de peixe, a pobre – e é alquimia culinária pura. Um estufado de base de milho, feijão e enchidos que pacientemente vai construindo uma catedral. É um dos mais belos edifícios da lusofonia gastronómica e só se faz para muitos convivas. Não se faz cachupa para dois ou quatro à mesa. A Guiné tem o caldo de mancarra, relativamente pouco difundido entre nós, continentais mimados, mas faz-se muito nos lares de guineenses na diáspora portuguesa. Mancarra quer dizer amendoim em guineense e solta na fervura lenta sucos e texturas em que rapidamente nos viciamos. Faz-se normalmente com frango cozido, coberto com uma pasta que resulta de pisar a mancarra juntamente com tomate fresco e piri-piri. Não há quem não fique impressionado pela diferença deste prato único e preso nos seus sabores inefáveis. Moçambique tem caris incríveis, malaguetas muito picantes, e fixou pratos de influências múltiplas, todos sápidos e intensos. A cafriela de frango – cafriela vem de cáfila e de cafres, outrora marginais enjeitados pela sociedade – é a mais perfeita receita de frango que existe. A ave aberta e espalmada, primeiro é marinada em sal, manteiga, piri-piri, limão e azeite ou óleo, depois grelhada, e finalmente estufada. Três processamentos que elevam a mais simples ave de criação a prato glorioso. Praticada em Moçambique, absorveu influências da Guiné, Zambézia e Angola e está na base da profusão de churrasqueiras que encontramos incrustadas nos prédios das cidades portuguesas, receita obviamente simplificada. Quase todas foram fundadas por retornados das ex-colónias e viram que a todos apetecia. S. Tomé e Príncipe tem o incrível e maravilhoso reduto que é o calulu, de peixe ou carne. É pobre na sua génese e o ponto de partida é sempre a demolha da proteína principal, peixe seco ou carne seca. Depois é enriquecido por uma profusão de ingredientes e especiarias, para um resultado fantástico que é pena não estar mais vezes disponível nos nossos restaurantes. É normalmente muito picante.

EXPERIMENTE: Tinto da Bairrada, com muamba de galinha. Branco do Alentejo fermentado em barrica, com cachupa. Branco de Palmela com caldo de mancarra. Alvarinho Monção e Melgaço, com cafriela de frango. Alfrocheiro do Dão com calulu.

Japão

Levámos muitas delícias valiosas para a ilha longínqua a oriente. Figueira, pereira, pessegueiro, marmeleiro, oliveira e até mesmo videira. Também fomos nós que lá pusemos criação, por exemplo galinha, pato e coelho, com a correspondente parafernália culinária. A tempura com que convivemos tanto e tão bem quando comemos com pauzinhos nos restaurantes japoneses, tem uma dupla paternidade. Nasceu a partir dos peixinhos da horta, mas também a partir do acto de temperar. É atribuída aos portugueses também a namban karashi, ou seja mostarda, que conduziu a uma generalização de alguns pratos como sendo nanbam, quando na verdade eles eram originários da região Nanba, em Osaka. Tudo o que fosse animal de criação e levasse alho passou a ter chancela namban. Peixes marinados em vinagre passou a costume integrado pelos japoneses, e tem matriz óbvia nos nossos escabeches. Por lá é bem mais picante do que por cá, ainda hoje, refira-se. O açúcar refinado, inovação de enorme impacto na doçaria japonesa, de que é grande exemplo o bolo castela – pão-de-ló -, que em japonês se diz kasutera, corruptela do termo português. Os fios de ovos enfeitiçaram totalmente os japoneses, pela semelhança com a massa de cabelos de anjo e pela grande recompensa que eram a sua farta doçura e poder nutritivo. A doçaria e a arte da confeitaria receberam também baptismo com um neologismo, o kompeito. Vem de confeito, ou confeitaria e refere-se à fabulosa arte de confitar o açúcar nos frutos e legumes, e todo o trabalho dos pontos de açúcar desenvolvido empiricamente nas cozinhas dos nossos conventos. A alta pastelaria japonesa é uma das mais requintadas do mundo.

EXPERIMENTE: Rosé da região dos Vinhos Verdes com tempura. Branco do Alentejo sem madeira com sushi. Chardonnay novo com kasutera/pão-de-ló.

Índia

Goa é a representação principal da Índia no nosso imaginário e é também o território indiano que mais influência portuguesa recebeu. Portugal foi, de resto, potência administrante até 1961, sente-se bem e claramente em cada pequeno detalhe culinário. Ao mesmo tempo, é porventura o maior exemplo de fusão em todo o mundo, tanto pelo estendimento no tempo como pelo contínuo de influências recíprocas. A carne em vinha d’alhos, por exemplo, preparação típica do norte alentejano e de latitudes mais acima, deu no vindaloo. O vinho tinto foi contudo cedendo terreno ao vinagre, resultando na miscigenação quase perfeita, já que o vinagre também entrou nos hábitos dos portugueses. Inequivocamente alentejano é o sarapatel, mais propriamente de Portalegre, onde ainda se processa como sempre. Em rigor é um cozido de carne e partes moles de porco, na Índia ganhou temperos exóticos como cardamomo, cominhos, malaguetas – estas juntamente com quiabos levadas por nós – gerando um prato universalmente reconhecido e aceite sem reservas como sarapatel. Inefável o caril, de camarão ou galinha, com o competente arroz basmati aromatizado ao lado. A base de leite de coco do caril goês é muito importante, além de registo de proximidade em relação a outras ex-colónias, especialmente Moçambique. Aspecto curioso e digno de registo é a introdução dos caldos e sopas nas muitas dietas de toda a Índia. Foi mesmo um costume levando por nós mediterrâneos, para quem sopa, caldo e ensopado significam a mesma coisa. A arte doceira conventual também chegou longe, a bebinca é forte exemplo do trabalho dos ovos e do açúcar, ao mesmo tempo que incorpora a paciência e a perfeição da mesa indiana ancestral.

EXPERIMENTE: Tinto do Douro com vindaloo. Branco de Lisboa com caril. Moscatel de Setúbal com bebinca.

Edição nº 34, Fevereiro de 2020