Quinta do Vale Meão: 20 anos e 2 séculos mais tarde
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É difícil de imaginar outra propriedade no Douro com uma história tão rica e gloriosa. Idealizada e construída de raíz por Dona Antónia, mais tarde gerida pela Casa Ferreirinha, dando origem ao mítico Barca Velha, a Quinta do Vale Meão tem o brilho e mérito próprio nas mãos dos descendentes da sua primeira genial proprietária.
TEXTO Valéria Zeferino
FOTOS Anabela Trindade
Este ano a empresa F. Olazabal e Filhos comemorou 20 anos desde a sua criação em 1999, sendo este também o ano que assinalou os primeiros vinhos com o nome da Quinta do Vale Meão. Francisco Xavier de Olazabal (conhecido no meio como Vito) e os seus filhos Francisco (Xito), Jaime e Luísa unem esforços neste projecto familiar, contribuindo cada um com conhecimento e paixão.
Quando felicitei Xito pelos 20 anos, ele modestamente respondeu que isto não é nada, comparativamente com as empresas que fazem 200 anos… Sim, é verdade, a história mais recente desta casa tem apenas duas décadas, mas é justo recordar que a história da Quinta começou no século XIX com a decisão visionária de Dona Antónia Adelaide Ferreira de adquirir um terreno e plantar vinha naquela zona mais agreste e afastada do Douro Superior.
O século XIX – Património de Dona Antónia
O monte Meão sempre foi uma zona com muita arborização, tipicamente mediterrânica. Os habitantes de Vila Nova de Foz Côa e de Seixo de Ansiães iam lá buscar azinheiras para lenha, dividindo o monte a meias, o que, talvez, tenha originado o seu nome.
À procura de terras livres de filoxera, não olhando o afastamento geográfico e dificuldades logísticas da altura, Dona Antónia adquiriu 300 hectares de terreno em 1877. Nem todos acreditavam que este empreendimento seria proveitoso, mas Dona Antónia avançou, sempre firme e confiante. A primeira vinha foi plantada em 1888. Uma barca velha que por perto fazia travessia entre as margens, deu nome a esta vinha, à primeira adega, concluída em 1892 e, mais tarde, ao vinho mítico do Douro.
Como uma adega só não chegava para o volume de produção, em 1895 foi construída outra maior, chamada Adega dos Novos, que é utilizada, com algumas modificações, até à data. O conceito de gravidade, popular nas adegas modernas, foi aplicado naquela altura para facilitar o trabalho face à falta de electricidade.
Na pequena capela junto à casa, ainda hoje vêem-se as paredes salpicadas com mosto nas missas para dar graças – testemunhas das primeiras vindimas na Quinta.
O Século XX – o Barca Velha
Nos meados do século XX, Fernando Nicolau de Almeida, o enólogo da Casa Ferreirinha e o futuro sogro de Vito, alocou todo o seu esforço para produzir um inédito vinho de mesa na região do Vinho do Porto. Escolheu as melhores vinhas do Vale Meão e algumas da zona mais alta de Mêda para conseguir o perfil idealizado. Em 1956 foi lançado o primeiro vinho da colheita de 1952 que teve um grande reconhecimento. Não adoptou o nome da Quinta porque as uvas não eram desta na totalidade, mas batizou o seu vinho como “Barca Velha” para marcar a ligação ao local.
Francisco Javier de Olazabal entrou na Casa Ferreirinha em 1966 e em 1982 sucedeu ao seu pai como Presidente do Conselho de Administração da empresa. Mesmo, quando em 1987, a Sogrape adquiriu a Casa Ferreirinha, manteve a sua posição e mais tarde integrou o Concelho de Administração da Sogrape.
Entretanto, o apego que sentiu à Quinta do Vale Meão, juntamente com os seus filhos, e a vulnerabilidade da posição minoritária na sua posse, motivou-o a reunir as partes indivisas pertencentes aos seus 16 parentes (8 do ramo Olazabal e 8 do ramo Sequeira). Neste processo, contou com ajuda dos primos, que em 1994 venderam as suas partes aos três filhos de Vito.
Na realidade, das mais de 20 quintas pertencentes a Dona Antónia, apenas duas se mantêm inteiramente na posse e sob gestão dos seus descententes – a Quinta do Vale Meão e a Quinta do Vallado.
Assegurando a propriedade total da Quinta, com a qualidade comprovada das vinhas, e sendo o filho Francisco formado em enologia, reuniram-se as condições para construir uma nova história na Quinta do Vale Meão.
O Século XXI – a fazer história
O facto de serem descendentes de uma figura lendária na região, não é um mérito por si só. O legado familiar até pode ajudar no arranque, mas não garante o futuro. O verdadeiro mérito da nova geração está no resultado do seu trabalho sem cair na tentação de imitar o que foi feito antes. Uma nova história escreve-se com vinhos de personalidade própria feitos ao longo dos últimos 20 anos.
O impulcionador do projecto foi Xito. Licenciado em Enologia pela UTAD em 1992, inicialmente trabalhou como enólogo na Quinta do Vallado, mas ambicionava fazer algo mais. Tinha as suas ideias claras e uma determinação em avançar com o projecto familiar.
O pai, eticamente, não podia conciliar dois projectos de natureza idêntica. Embora a decisão não tenha sido fácil, ao atingir os 60 anos, optou por apostar na Quinta do Vale Meão e em 1998 rescindir a sua relação profissional com a Sogrape. Abdicou de posição prestigiante numa grande e estável empresa, onde criou muitos laços de amizade, para se tornar num pequeno e desconhecido (no início) produtor de vinhos com todos os riscos associados. Apesar das dúvidas, aceitou o desafio, inspirado pela confiança do filho.
Lembra-se hoje que nem perguntou quais eram as vinhas usadas para o Barca Velha. Mas também não havia um objectivo em perseguir a sua fama, o que se pretendia era produzir vinhos com carácter da Quinta.
Optou-se pelo modelo bordalês, onde o primeiro vinho ostenta o nome da propriedade e o segundo remete para uma marca com ligação forte à sua origem. Assim, do meandro do rio Douro nasceu o segundo vinho da casa. A semelhança fonética entre o Meandro e o Vale Meão é evidente e a sua situação geográfica transparece no mapa.
As uvas da primeira vindima em 1999 foram vinificadas na Quinta do Vallado, porque a Casa Ferreirinha ainda não tinha finalizado a construção de uma nova adega na Quinta da Leda e teve que utilizar a adega da Quinta do Vale Meão. Na vindima de 2000 a Adega dos Novos também foi partilhada: numa parte vinificava a Casa Ferreirinha e noutra a Quinta do Vale Meão.
O ano 2001 tornou-se o momento crucial, pois o mercado aguardava as primeiras colheitas (1999) do Vale Meão e do Meandro. A ansiedade de Vito era grande. Confessa que acordava à noite sem sono e ia provar as amostras, que claro, nestas condições, não lhe sabiam bem e apresentavam todos os defeitos imagináveis. Xito, pelo contrário, manteve-se calmo e confiante.
Os dois vinhos foram lançados na mesma altura. Foi um êxito. A excelente aceitação pela crítica nacional e internacional foi entusiasmante e deu a necessária visibilidade ao projecto.
O grande ano de 2000 no Douro, ajudou a fixar o nível de qualidade no lançamento seguinte. Este também foi o ano do primeiro Vinho do Porto Vintage do Vale Meão.
Naqueles tempos ainda não havia muitos vinhos de mesa no Douro. Tirando o Barca Velha, já existiam os da Quinta do Côtto, Duas Quintas (Ramos Pinto), Quinta da Gaivosa, Niepoort, Quinta do Crasto e pouco mais. Por um lado, era mais fácil destacar-se, por outro, o próprio conceito dos vinhos Douro DOC ainda não tinha muita notoriedade.
Também por isto, em 2002 com base na amizade juntaram-se 5 produtores – Niepoort, Quinta do Crasto, Quinta do Vallado, Quinta Vale D. Maria e Quinta do Vale Meão – e criaram uma união com o descontraído nome de “Douro Boys”, aliando os esforços na promoção da região e dos seus vinhos a nível internacional.
Em 2003 e depois novamente em 2013 os rótulos sofreram uma alteração de imagem. Também em 2013 juntaram ao portefólio o Meandro branco (13 mil garrafas actualmente), feito de Arinto e Rabigato, que veio fazer companhia ao Meandro tinto (207 mil garrafas) e o ícone Quinta do Vale Meão (27 mil garrafas).
Em 2005, Luísa juntou-se ao projecto familiar. Formada em Relações internacionais já tinha trabalhado no Grupo Vranken-Pommery (do qual Rozès e Quinta do Grifo também fazem parte) e foi uma mais valia para a empresa.
Jaime, que trabalhou na banca, juntou-se aos irmãos há 2 anos para abraçar o mercado nacional e enoturismo. A razão principal é a sensação gratificante, em vez de criar um valor momentâneo, de estar a construir algo realmente bom, intemporal, da terra e da família, que fique para gerações vindouras.
Este ano a Quinta do Vale Meão abriu as portas ao enoturismo. Apesar de não ser o core buisiness da quinta, permitiu proporcionar uma experiência única aos enófilos que procuram conhecer melhor a sua impressionante história.
Nos dias de hoje, a casa de traço antigo e muitas memórias, continua a ter vida. No verão enche-se de netos que adoram cá vir; no outono sente-se a azáfama das vindimas. No inverno a lareira espalha o calor para infrentar o frio do clima continental do Douro Superior. A família junta-se à volta da mesa e do vinho. Conversa-se sobre vivências e experiências, onde o vinho está quase sempre presente, a par de histórias, curiosidades e troca de opiniões.
O futuro da quinta e da empresa estará nas mãos dos netos e deverá dar muita satisfação à família e ao Xito, particularmente, ver a sua filha Leonor a estudar engenharia agrónoma no ISA.
As vinhas e os vinhos
A plena confiança de Xito nas suas capacidades como enólogo e produtor não tem nada a ver com a arrogância. Tem a humildade de assumir que ao fim de 20 anos ainda continua a aprender sobre as castas e os terroirs da própria quinta. Experimenta, tira as conclusões e avança. Replanta quando acha que outra casta no mesmo sítio daria melhor fruto; rega, quando é necessário; substitui barricas novas pelas usadas se gosta mais do resultado final. Defende as suas convicções e não se deixa influenciar pela opinião dos outros. É determinado e movido pela busca da perfeição, tal como fazia a sua tetravó.
Francisco aponta três factores que mudaram muito nas últimas duas décadas: viticultura, condições de engarrafamento e de armazenamento. No início, não tendo a própria linha de enchimento, tinham de alugar uma. Os erros nesta fase podem comprometer a evolução de um grande vinho, tal como durante o seu armazenamento. Isto também explica uma certa variabilidade de garrafas das primeiras colheitas.
A vinha, sem dúvida, é um dos alicerces do sucesso. A primeira replantação começou no início dos anos 70. As novas vinhas foram plantadas em talhões por casta com enfoque na Touriga Nacional pelas suas qualidades enológicas e pela boa adaptação aos verões secos e ao stress hídrico do Douro Superior. Mais tarde, entre 1989 e 1994 Xito geriu a replantação de algumas vinhas da Quinta e posteriormente plantações novas em 2007, 2008 e 2011. Com isto e através da aquisição de um terreno adjacente à quinta com cerca de 10 ha, a área de vinha cresceu de 62 para 100 hectares ocupados na sua maioria pelas das duas Tourigas e Tinta Roriz, mas também com Tinta Amarela, Tinta Barroca, Tinto Cão, Alicante Bouschet, Sousão e até castas antigas menos conhecidas e estudadas, como Tinta Francisca e Cornifesto.
Exploraram-se áreas novas, como por exemplo, vinhas viradas a norte ou de altitude, onde se preserva mais a frescura. É o caso da Vinha da Salgueira, de castas misturadas numa cota de 300 metros, plantadas à maneira antiga com densidade de 8 mil pés/ha numa ilha de xisto rodeada de granito. Como se vê, a conquista do Monte Meão, iniciada por Ferreirinha, continua até hoje.
A composição de solos na Quinta do Vale Meão é influenciada pela sua topografia. A falha de Vilariça divide o terreno em duas partes: granito nas encostas do Monte Meão e xisto à nascente, enquanto junto ao rio existem zonas aluviais e de calhau rolado.
Não há dois sítios da vinha com condições iguais e Francisco está convencido que as generalizações no Douro, e mesmo no Douro Superior, são limitativas e não correspondem à realidade. Diferentes exposições e altitudes, multiplicadas pela diversidade de solos e castas plantadas, podem originar combinações quase infinitas. Por isto as vinhas no Vale Meão são vistas mais na óptica de parcelas e não tanto de castas.
Vinifica-se tudo em separado: casta por casta, talhão por talhão. As dezenas de cubas de tamanhos a variar de 3, a 10,5 mil litros permitem fazer vinificações de precisão, estudar cada faceta do seu terroir. Cada vindima origina mais de 100 lotes e foi assim que nasceram vinhos monovarietais das vinhas mais expressivas, os Monte Meão.
O primeiro Monte Meão foi feito em 2009. Touriga Nacional com 25 anos de 3 hectares da Vinha dos Novos plantada no granito, marcava sempre muito o lote. Decidiram dar-lhe maior protagonismo. No início com metade dos bagos inteiros e metade esmagados fica em lagar, onde é pisada a pé para permitir uma extração suave antes de formação de alcóol. As colheitas de 2013 e 2014 fermentaram em barricas, as de 2016 e 2017 em balseiros. Todas depois estagiam em barricas usadas de 225 litros entre 15 e 18 meses. Originam uma Touriga de grande estilo e finesse de que se fazem 8 mil garrafas.
A Tinta Roriz da vinha do Cabeço Vermelho destacava-se sempre de outras parcelas pela maior presença da fruta. É uma vinha com mais de 50 anos plantada nas terraças de aluvião junto ao rio. Desde 2011 tem a possibilidade de se expressar num vinho monovarietal. Este não passa por lagar para evitar demasiada rusticidade, fermenta em cubas de madeira usada e depois estágia cerca de um ano e meio em barricas usadas de 225 litros para amaciar o tanino robusto. Fazem-se 4 mil garrafas/ano.
Em 2013 fizeram o primeiro (e até agora único no Douro) monovarietal de Baga que por cá chama-se Tinta da Bairrada. Da Bairrada não tem quase nada, assumindo um perfil diferente e que lhe fica bem. Sendo uma casta de maturação tardia, plantada num solo de granito do clima mais continental apresenta um comportamento diferente e amadurece muito mais cedo – final de Agosto, início de Setembro e sem ganhar muito grau. Em 2013 foi desengaçada, mas a partir de 2015 fermenta com 50% de bagos inteiros (para extrair menos e suavizar o sabor) e 50% de engaço (para dar estrutura) com pouca maceração e posterior estágio cerca de um ano em barricas usadas de 500 litros. Resulta em vinhos suculentos, elegantes, plenos de sabor e frescura de que enchem apenas 2 mil garrafas por edição.
O Vinho do Porto é uma grande aposta da casa, já pensada em tempos. Há 10 anos deixaram de vender o Vinho do Porto a granel e actualmente dispõem de 450 mil litros de stock a envelhecer na adega da Barca Velha. O Porto representa já quase 10% das vendas anuais. Para o próximo ano preparam-se duas novidades: um Colheita de 1999 e um tawny 10 anos. E nada resume melhor um capítulo de duas décadas do que um brinde com os vinhos da primeira colheita. O Meandro 1999 está ainda muito vivo ao fim de 20 anos, com frescura e tanino ainda bem presente (17); o Vale Meão 1999 em magnum é um autêntico tigre domesticado. Afinação de nariz e largura de boca impressionante, potência com delicadeza aristocrática, tanino ajuizado pelo tempo e uma frescura fantástica (19). A Quinta do Vale Meão é assim.
Uma vertical de Monte Meão
Tive oportunidade de fazer uma prova vertical da marca mais recente da casa, os monovarietais Monte Meão. O resultado mostra bem a diversidade de parcelas e castas (terroirs), no fundo, da quinta. Começando pelo Monte Meão Baga, da Vinha da Cantina: o 2013 revela cor aberta e aroma intenso, macio, suculento e muito fresco (17); mais maduro e pouco falador o 2015, denso e de tanino duro, seco e sério (16,5); no 2016 evidencia-se a fruta doce e sumarenta, também pimenta e chá preto, suculento e longo (17,5). A Vinha dos Novos é a “casa” do Touriga Nacional. Muito bem o 2013, com esteva, mentol, acidez presente e tanino firme, longo e saboroso (17,5); mais austero no nariz e mais fresco na boca o 2014, com tanino mais rebelde muito carácter (17,5); bem distinto o 2016, muito aromático, delicado e elegante, chá preto com bergamota, violetas e fruta carnuda, sedoso, suculento, muito sedutor (18). Finalmente, a Vinha do Cabeço vermelho, onde nasce a Tinta Roriz. Gostei muito do 2013, um tinto em tons de outono, notas de carne, vegetal seco, tanino poderoso envolto em textura aveludada (17,5); mais amigável o 2014, fruta vermelha escondida, toque de especiaria e algo terroso (17); o 2015 está robusto e estruturado, com tanino bruto e esmagador a necessitar polimento pelo tempo (16,5).
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Edição nº 33, Janeiro 2020
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