Ramos Pinto: a vinha na ponta dos dedos

Carlos Peixoto com Alberto Baptista

(na foto,  Carlos Peixoto com Alberto Baptista, da viticultura da Ramos Pinto) Director de viticultura na Ramos Pinto desde 1982, Carlos Peixoto conhece o Douro como poucos. Nesta região emblemática, os desafios colocados a quem trata da vinha são muitos e diversos, e nem todos têm a ver com o solo, as plantas ou o […]

(na foto,  Carlos Peixoto com Alberto Baptista, da viticultura da Ramos Pinto)

Director de viticultura na Ramos Pinto desde 1982, Carlos Peixoto conhece o Douro como poucos. Nesta região emblemática, os desafios colocados a quem trata da vinha são muitos e diversos, e nem todos têm a ver com o solo, as plantas ou o clima: a economia ou as relações laborais são igualmente importantes. Na empresa, que aboliu os herbicidas em 2010, o objectivo está fixado à partida: obter a cada ano que passa uvas mais equilibradas, mais sãs e que expressem melhor o terroir onde nasceram.

TEXTO E FOTOS Luís Lopes

A Ramos Pinto possui três quintas na região do Douro. A Quinta do Bom Retiro situada na sub-região de Cima Corgo possui 45 hectares de vinha. As castas predominantes são a Touriga Nacional, a Touriga Franca e vinhas antigas com mistura de variedades. As exposições e altitudes variam entre os 90 e os 420 metros.

A Quinta dos Bons Ares, com uma área plantada de 25 hectares, está situada a 600 metros de altitude, no Douro Superior, e as suas uvas estão orientadas para a produção de DOC Douro e Regional Duriense. Os solos são de origem granítica e com texturas arenosas. Predominam as castas brancas, como o Rabigato, Viosinho e algum Sauvignon Blanc. Nos tintos, a Touriga Nacional, a Touriga Franca e Cabernet Sauvignon.

A emblemática Quinta de Ervamoira tem uma área plantada de 150 hectares, com altitudes que variam entre os 130 e os 350 metros. Em solos francos e franco-arenosos estão 20 hectares de uvas brancas com predomínio do Rabigato, Viosinho e Arinto. As uvas tintas, largamente maioritárias, incluem sobretudo Touriga Nacional, alguma Touriga Franca e, em menor percentagem, Tinta Barroca, Tinta Roriz, Tinta da Barca e Tinto Cão.

Quando Carlos Peixoto começou a sua actividade na Ramos Pinto, ainda como estagiário, em 1979, a empresa era proprietária de 65 ha de vinha, dos quais 30 em Ervamoira e 35 no Bom Retiro. Foi entre 1979 e 1981 que colaborou no fundamental estudo das castas do Douro, orientado por José António Rosas e João Nicolau de Almeida, e que resultou na produção de vasta informação vitícola e enológica de 10 variedades durienses. Em 1985, a Ramos Pinto adquiriu a Quinta dos Bons Ares que foi integralmente replantada. Actualmente, a empresa possui 220 hectares de área útil de vinha, distribuídos pelas três quintas. Mais de 150 hectares foram já instalados sob a responsabilidade de Carlos Peixoto, director de viticultura desde 1982.

O “homem da vinha”, na Ramos Pinto, na realidade, não sabe só de vinha. Com o tempo, Carlos Peixoto apercebeu-se que a viticultura duriense não pode ser entendida sem se conhecer a realidade social, económica e laboral da região. Talvez por isso, depois de se graduar em engenharia agrícola, na UTAD, e viticultura e enologia, em Charles Sturt (Austrália), Carlos Peixoto resolveu fazer a licenciatura em direito, no Porto, estando neste momento a finalizar o mestrado na mesma área, com uma tese de dissertação intitulada “O contrato de trabalho intermitente” que está directamente ligada às questões do trabalho e da escassez de mão de obra agrícola. O futuro da vinha, no Douro e noutras regiões, não está apenas ligado às condicionantes do terroir. Variáveis como as alterações climáticas estão já há algum tempo na mente dos produtores. Mais recentemente, a falta de mão de obra tem sido preocupação acrescida.

Vinha plantada na Ramos Pinto

A vinha da Urtiga

Mas é sobretudo na vinha que Carlos Peixoto se sente “em casa”. E entre as muitas vinhas e parcelas espalhadas pelas quintas da Ramos Pinto, a vinha da Urtiga, na Quinta do Bom Retiro, merece-lhe especial atenção e, diria mesmo, respeito. Há óbvias razões para isso, é uma vinha impressionante. A Urtiga está instalada em terraços pré-filoxéricos construídos há mais de 200 anos. A idade média da vinha é superior a 100 anos, com as normais replantações devido às videiras que vão morrendo. No total, são 3,4 hectares com 12.500 cepas.

Se o estudo pioneiro de José Rosas e João Nicolau de Almeida visava incentivar o Douro a focar-se em meia dúzia de variedades emblemáticas, criando massa crítica, duas décadas e meia depois, num contexto temporal diferente, a preocupação foi no sentido oposto: identificar e preservar as variedades diferenciadoras. A Urtiga era perfeita para isso e, em 2008, a equipa de viticultura da Ramos Pinto identificou ali 32 variedades. Mais tarde, e com o advento da geolocalização, ajudou a desenvolver com a empresa Geodouro uma aplicação auxiliada por GPS (chamada Gestão de Plantas) que localiza e monitoriza cada uma das cepas. Com esta aplicação é possível controlar os estados fenológicos, o número de cachos, o peso das varas, a resistência à secura, à podridão, ao calor.

Actualmente, existem da vinha da Urtiga 55 variedades, mas a empresa espera atingir em 2020 um total de 63, pretendendo fazer desta parcela mais do que centenária uma reserva genética de variedades pouco divulgadas. Assim, para além das clássicas Tinta Amarela, Touriga Franca, Tinta Roriz e Tinta Barroca (que, no conjunto, representam 46% do total), encontramos ali Malvasia Preta, Rufete, Touriga Nacional, Baga, Barreto, Alicante-Bouschet, Bastardo, Casculho, Cornifesto, Donzelinho, Jaen, Mourisco da Semente, Nevoeira, Patorra, Sarigo, Tinta Aguiar, Tinta Carvalha, Tinta Fontes, Tinta Mesquita, Touriga Fêmea, Valdosa, entre outras. Nota-se a predominância da Tinta Amarela e a relativa insignificância da Touriga Nacional como acontece em muitas vinhas antigas. A parcela encontra-se entre os 320 e os 370 metros de altitude e está em modo de produção biológico, ao qual se adicionam desde 2017, algumas práticas biodinâmicas. Os vinhos aqui nascidos destacam-se pela sua qualidade e personalidade, podendo vir a dar origem, num futuro próximo, a um engarrafamento em separado.

O efeito do solo e dos nutrientes

Para Carlos Peixoto, o solo determina muito do que se pode e deve fazer na vinha, e o seu estudo é essencial para obter uma uniformização de produção, de vigor e sobretudo de melhoria qualitativa pela correção de desequilíbrios. A partir de 2008, a Ramos Pinto desenvolveu estudos bastante detalhados sobre a textura, estrutura, nutrição e economia de água dos solos das suas múltiplas parcelas. Os resultados foram muito importantes para entender a distribuição das raízes, a existência de impermes, a capacidade de infiltração e retenção de água, bem como a distribuição dos nutrientes. Em 2014 a empresa iniciou um ciclo de aplicação de matéria orgânica em doses elevadas e prescindiu quase totalmente dos adubos minerais. Hoje em dia, 99% dos nutrientes que alimentam as videiras espalhadas pelas três quintas da empresa são provenientes de matéria orgânica. Segundo Carlos Peixoto “os resultados desta aplicação têm sido muito bons, proporcionando um vigor equilibrado e um aumento moderado, mas qualitativo, das produções, assim como um efeito extraordinário na resistência das videiras à seca”. Mas ressalva: “Claro que nunca podemos atribuir determinado efeito a uma só causa. Penso que a melhoria da estrutura, da capacidade de infiltração e de retenção de água no solo, tem aqui um papel determinante”.

Vinha na Ramos Pinto

Herbicida Zero

Nas vinhas da Ramos Pinto, desde 2010 que não há herbicidas. “Na nossa opinião os herbicidas já tiveram a sua época”, diz Carlos Peixoto. E está à vontade (e com conhecimento de causa) para o dizer, porque em 1983 a Ramos Pinto foi uma das empresas pioneiras na introdução do herbicida no Douro. Os tempos, porém, eram outros. O agrónomo explica: “A introdução de herbicida constituiu uma grande mudança quer estrutural quer económica. É preciso perceber o cenário que antecedeu essa época: a viticultura era sustentada por salários baixos e péssimas condições de trabalho, não se pagava férias, subsídios de férias e de natal, e não havia trabalhadores permanentes. Com a fuga de mão-de-obra para as cidades assistiu-se a uma subida rápida dos salários. No início dos anos 80, a introdução de herbicidas no Douro foi, para além de uma solução, uma verdadeira revolução silenciosa. Existiam muitas matérias activas e todas eram eficazes desde que a aplicação fosse correcta”.

Mas os tempos mudaram, mais uma vez. Actualmente, os herbicidas têm todos os constrangimentos ambientais que se conhecem e deixaram de ser eficazes devido às resistências que geraram nas infestantes. Com uma agravante, diz Carlos Peixoto: “Nota-se igualmente um grande desinvestimento das empresas fitofarmacêuticas na procura de novas moléculas menos ofensivas do ambiente e mais eficazes no controlo das infestantes”.

Assim, após muita reflexão e discussão, a viticultura e a administração da Ramos Pinto entenderam em 2010 que o caminho mais adequado seria não aplicar herbicidas. Com os desafios estruturais inerentes, porventura ainda mais difíceis que os encontrados em 1983. É que não aplicar herbicida significa, entre outras coisas, aumentar o investimento em máquinas e, num quadro de escassez de mão de obra, procurar conciliar o combate aos infestantes com todos os outros trabalhos de vinha que ocorrem na mesma época do ano (de Maio a Julho), desde a espampa aos tratamentos fitossanitários.

Haja ovelhas

“Os dois primeiros anos sem herbicida são muito complicados, sobretudo em propriedades grandes”, confessa Carlos Peixoto. E acrescenta: “O enrelvamento quer natural, quer de sementeira foi para nós uma má experiência, na medida em que gera muita competição pela água e nutrientes originando uma quebra acentuada de vigor nas videiras. Por outro lado, o mulching com casca de pinheiro, palha, não nos parece uma solução adequada devido ao perigo de incêndio, ao vento e aos custos de instalação. E a utilização de roçadeiras mecânicas traz problemas com a mão-de-obra e com os ferimentos nas cepas causados pelo fio de corte”.

Mas existem outras soluções. Com a ajuda do Prof. Nuno Moreira da UTAD, a Ramos Pinto tem feito ensaios com trevos subterrâneos. Esta planta tem a particularidade de cobrir o solo com um rendilhado que impede o desenvolvimento de outras infestantes, é uma leguminosa que fixa o azoto, termina o ciclo por meados de junho e renasce com as primeiras chuvas.

Para evitar a roçadeira mecânica, utilizam-se…ovelhas. Diz Carlos Peixoto: “As ovelhas para além de controlarem as ervas infestantes deixam os dejectos no solo que servem de fertilizante”. E como evitar que as ovelhas comam o que não devem? é a pergunta que se impõe. A resposta surge, desconcertante: “Começámos por utilizar ovelhas anãs e posteriormente participámos no desenvolvimento de uma coleira electrónica que controla a postura das ovelhas e impede o levantamento da cabeça para a videira. Este sistema permite a utilização das ovelhas durante a primavera e verão. O dispositivo foi desenvolvido por um consórcio constituído pela Ramos Pinto, Globaltronic, Instituto de Telecomunicações da Universidade de Aveiro e Escola Agrária de Viseu”. Ovelhas com telecomando, quem diria…

De qualquer modo, abdicar dos herbicidas tem sempre custos adicionais. Carlos Peixoto admite: “Nas vinhas não mecanizadas acarreta um aumento de custos da ordem dos 30%, mas assiste-se a uma tendência de diminuição face a um melhor conhecimento da flora e dos locais. Nas vinhas onde podem entrar máquinas, o trabalho na linha feito com intercepas é eficaz, embora com baixo rendimento. Normalmente uma volta e meia permite um controlo adequado das infestantes. Os custos directos ao fim do 3º ano, não são significativamente diferentes, mas têm amortizações maiores devido ao aumento do parque de máquinas”. Quem pensa que viticultura não é economia, desiluda-se.

 

Muros de suporte da vinha na Ramos Pinto

A viticultura orgânica e a mão de obra

E por falar em economia, que balanço fazer da viticultura biológica/orgânica, que a Ramos Pinto pratica em 25 hectares? “Uma viticultura biológica acarreta sempre um aumento de custos e um acréscimo de riscos”, refere Carlos Peixoto. “No Douro é ainda uma prática residual e não acredito numa evolução muito rápida a não ser que o mercado o exija e esteja preparado para pagar preços mais elevados”, acrescenta.
Na Ramos Pinto, da área de vinha em modo de produção biológico, cerca de 10% (2,5 hectares) estão em produção biodinâmica. A transição da viticultura convencional para a biológica até foi fácil. “Uma vez que terminámos com o herbicida há vários anos, grande parte do caminho está feito. No entanto a nossa opção vai no sentido de ir aumentando as práticas biológicas de uma forma gradual, não pensando para já na venda de um vinho rotulado como biológico”. Mais difícil foi a introdução da biodinâmica: “A biodinâmica é uma prática iniciada há dois anos e exige alguma preparação e aprendizagem. Implica também uma mudança de hábitos e rotinas e, face às condições do Douro, parece-me pouco adequada a grandes áreas. A principal vantagem advirá das mudanças que opera no solo. Estamos a acompanhar essa evolução para tirarmos conclusões”, conclui Carlos Peixoto. Os 90% de área que não estão em biológico/biodinâmico encontram-se naquele que será, talvez, o melhor compromisso entre racionalidade e preocupação ambiental, o modo de produção integrada.

Alterações climáticas e rega

A palavra clima está na ordem do dia e a pergunta não pode ser evitada: na viticultura duriense sente-se uma alteração no padrão climático? E, em caso afirmativo, o que é possível fazer para minimizar os seus efeitos num médio e longo prazo? Carlos Peixoto não foge às respostas: “No Douro, o que se nota mais são os fenómenos extremos e repentinos. Granizos, trovoadas, chuvas abundantes, secas prolongadas, noites tropicais, temperaturas extremas com mudanças bruscas.”

Na Ramos Pinto, procura-se mitigar estes fenómenos com algumas mudanças na cultura da vinha: as aplicações de matéria orgânica têm gerado videiras mais equilibradas no vigor e na nutrição; com a modificação da estrutura do solo, da capacidade de infiltração e de retenção de água, há melhoria assinalável em vinhas que perdiam folhas precocemente; alterações na esponta visam aproveitar a emissão de novos lançamentos para proteger os cachos; fazem-se ensaios na gestão da altura da parede de vegetação; e, finalmente, dá-se mais atenção àquelas castas minoritárias que conciliam qualidade enológica com a capacidade de resistir melhor a estes fenómenos.

E quanto a rega? Carlos Peixoto não tem tabus: “A rega acaba por ser uma falsa questão, uma vez que grande parte da região tem dificuldade no acesso à água. A polémica advém do facto de se entender a rega como um modo de aumentar a produção, quando devia ser encarada como uma maneira de melhorar a qualidade”. Para o viticólogo, “no Douro, a única sub-região em que a presença ou ausência da água é factor limitador, é o Douro Superior. Nas outras sub-regiões, há casos pontuais onde também seria adequada”.

Na Ramos Pinto, só a Quinta de Ervamoira possui instalação de rega. “A irrigação sempre foi encarada por nós como uma ferramenta para melhorar a qualidade, sobretudo o final da maturação”, adianta. “Gastamos mais dinheiro com os métodos que permitem não fazer regas desnecessárias, do que a regar. Recorremos ao balanço hídrico, à medição do stress hídrico, aos tensiómetros de solo, ao termómetro de infravermelhos e a observação visual das plantas”.

E conclui: “As alterações climáticas são sentidas por todo o lado. Não sou dos que pensam que o mundo vai acabar amanhã, mas temos necessariamente de mudar comportamentos e, pelo menos, não aumentar os problemas”.

Edição nº33, Janeiro de 2020