Henri Giraud Ay + Pinot + barrica = grande Champagne
Robert Parker classificou, um dia, os vinhos da casa Henri Giraud como “o maior Champagne de que nunca ouviu falar”. O elogio vale o que vale, mas a verdade é que os Champagnes desta empresa familiar merecem (e muito) ser falados e, sobretudo, apreciados. Algo agora mais fácil de conseguir neste cantinho ocidental da Europa, […]
Robert Parker classificou, um dia, os vinhos da casa Henri Giraud como “o maior Champagne de que nunca ouviu falar”. O elogio vale o que vale, mas a verdade é que os Champagnes desta empresa familiar merecem (e muito) ser falados e, sobretudo, apreciados. Algo agora mais fácil de conseguir neste cantinho ocidental da Europa, uma vez que são importados e distribuídos em Portugal pela Disalto.
A casa Henri Giraud é relativamente recente, pois foi registada enquanto “Negociant-Manipulant” apenas em 1975, o que significa que cria as suas próprias uvas e compra uvas a terceiros. As suas raízes, porém, remontam 1625, quando François Hémart e sua família se instalaram em Ay, onde o Champagne nasceu no século XVIII e uma das 17 Grand Cru entre as 323 “villages” que compõem a região. A família Hémart produziu uvas e vinhos ao longo de muitas gerações, até que a filoxera, primeiro, e a Primeira Guerra Mundial, depois, arruinaram o seu principal sustento.
No princípio do século XX, Léon Giraud casou com Madeleine Hémart e dedicou-se a reconstruir todo o património vitivinícola familiar, que viria a ser desenvolvido e ampliado pelos seus descendentes, o filho Henri Giraud e o neto Claude Giraud, membro da 12ª geração.
Reputação e estilo
Foi Claude que desenvolveu a reputação e o estilo Henri Giraud, assentando-o em três pilares: vinhos Grand Cru Ay; uvas Pinot Noir; e barricas de carvalho de Argonne. Este último é hoje absolutamente definidor do estilo da casa. Claude reintroduziu progressivamente a fermentação em barrica a partir de 1993, algo que, com poucas excepções (Krug, Bollinger…) foi abandonado pelas casas de Champagne desde os anos 50. Mas, para Claude, não bastava fermentar todos os seus vinhos em barrica, objectivo atingido em 2016. Era fundamental fazê-lo em barricas construídas a partir de carvalhos da histórica floresta de Argonne, plantada no século XIV a 60 km de Reims, onde tiveram origem as clássicas barricas de Champagne. Convencido de que “não existem grandes vinhos que não estejam associados a uma grande floresta”, Claude levou mais de duas décadas estudando e selecionando carvalhos muito antigos (de grão super fino e alta densidade), encarregando-se de tostar directamente as madeiras, depois levadas à Tonnelerie de Champagne para o fabrico das barricas cuja certificação oficial Argonne alcançou. Ao mesmo tempo, lançou-se na recuperação da floresta de Argonne, abandonada a partir dos anos 60 do século XX, assumindo, perante a organização florestal do estado francês, a sua gestão. Como resultado, a casa Henri Giraud patrocinou a replantação em Argonne de 50.000 árvores nos últimos 10 anos.
A empresa orgulha-se de ser a única casa de Champagne a utilizar exclusivamente barricas da floresta de Argonne. E não são poucas. Na cave alinham-se cerca de 2000 barricas, usadas durante apenas 8 a 10 anos, para fermentar e estagiar os vinhos base que irão ser espumantizados, contribuindo decisivamente para a cremosidade, complexidade e carácter “boisé” dos champanhes Henri Giraud. Para algumas cuvées mais singulares, a empresa usa igualmente pequenas ânforas de grés (arenito com terracota e caulino), no sentido de potenciar a micro-oxigenação e interacção do vinho base com as borras finas. Outro factor distintivo é a baixa pressão dos seus Champagnes, a rondar os 3,6 bar (o mínimo legal é 3,5 bar e a média em Champagne anda pelos 5,5 bar), o que acentua a voluptuosidade e sensação de volume dos vinhos.
Expulso da fermentação, na Henri Giraud o inox mantém, no entanto, uma função: conservar intocada aquela que é um dos grandes ex libris da casa, a chamada “reserva perpétua”, constituída a partir de 1990 e considerada como um “segredo de família”. Consiste em 28 tanques quadrangulares, de 10 mil litros cada um, enterrados no solo, contendo vinhos velhos sem sulfuroso e com dezenas de anos de idade. A uma temperatura constante de 10,5ºC, estes vinhos não “mexem”, envelhecendo com enorme lentidão. Em cada ano, 20% do vinho velho é retirado para o blend, sendo atestado com vinho novo.
No entanto, o carácter dos champanhes Henri Giraud não começa na cave, mas sim na vinha e, em particular, no terroir de Ay. A quase totalidade é Pinot Noir de encosta (nada de Pinot Meunier) com uma pequena quantidade de Chardonnay de zonas mais baixas do vale do Marne. Toda a uva utilizada tem origem no Grand Cru, com uma camada superficial (por vezes 20 centímetros) de terra arável sobre a rocha de giz, profundamente calcária. Cerca de 10 hectares pertencem à empresa, trabalhando 30 hectares de outros proprietários, mas com o seu próprio pessoal.
Cuidado com o detalhe
Este cuidado com o detalhe associado a uma identidade muito própria é algo que tem sido possível manter graças à pequena dimensão (entre 300 e 350 mil garrafas/ano) e ao carácter intrinsecamente familiar: para além de Claude Giraud, os outros pilares da empresa são sua filha Emmanuele Giraud, na gestão, e o seu genro Sébastien Le Golvet, enólogo principal.
“Ne s’interdire à rien, ne s’obliger à rien, faire du bom vin naturellement” (não se proibir de nada, não se obrigar a nada, fazer o bom vinho naturalmente) era o lema de Henri Giraud, que os seus descendentes têm procurado seguir. A tradição e a inovação coexistem bem neste conceito, como o demonstram os vinhos que Stephane Barlerin, director comercial da casa, nos apresentou recentemente e onde se incluem, para além de champanhes de primeiríssima linha, uma Ratafia Champenoise, ou seja, uma irreverente e imprevista…jeropiga, criada por Claude para acompanhar o seu charuto. “Fazemos vinhos complexos, mas não complicados”, diz Stephane. Para Portugal estão alocadas 3000 garrafas de Champagne Henri Giraud. É aproveitar.
(Artigo publicado na edição de Outubro de 2024)
Romaneira: A diversidade do Douro numa só quinta
Aparentemente e ao longe, a região do Douro é marcada por uma forte unidade geográfica, social, económica e cultural, na qual a vinha e o vinho são os elementos comuns e agregadores. No entanto, à medida que nos aproximamos dos seus meandros, socalcos e patamares, descobrimos que o território é bastante heterogéneo. As realidades sub-regionais […]
Aparentemente e ao longe, a região do Douro é marcada por uma forte unidade geográfica, social, económica e cultural, na qual a vinha e o vinho são os elementos comuns e agregadores. No entanto, à medida que nos aproximamos dos seus meandros, socalcos e patamares, descobrimos que o território é bastante heterogéneo. As realidades sub-regionais mostram-se bastante díspares relativamente ao clima, relevo, paisagem, povoamento, modos de produção e, acima de tudo, nas dimensões dos vinhedos.
No ano de 2023, segundo as estatísticas do Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto (IVDP), a região demarcada era composta por 95851 parcelas de vinha, de geometria muito variável, perfazendo um total de 43813 hectares que, por sua vez, foram explorados por 18655 entidades registadas. Numa primeira aproximação estatística, cada parcela seria composta por uma média que rondaria cerca de meio hectare. Do mesmo modo percebemos que cada entidade explorou aproximadamente cinco parcelas perfazendo um pouco mais de dois hectares. O que corresponde a dois campos de futebol com as medidas oficiais, aproximadamente.
Numa análise mais fina e articulada percebemos claramente uma realidade muito mais complexa e variável. Os números publicados na página on-line do IVDP, referentes ao ano de 2023, revelam que as parcelas entre meio e um décimo de hectare perfazem cerca de 20,5% do total da área da região.
No entanto, a maioria das parcelas, 37412, que correspondem a 39% do total, apresentam uma área inferior ou igual a um décimo de hectare, ou seja, uma grande parte das frações de vinha apresentam uma área menor ou igual, e em alguns casos muito menor, a uma grande área de um campo de futebol. Ainda assim, estas parcelas apenas representam cerca de 4% do total geral de hectares de vinha. Do outro lado do espectro da análise encontramos apenas 26 parcelas com uma área igual ou superior a 20 hectares, o que corresponde a 0,02% das parcelas e a 1,6% do total de hectares.
Nos antípodas do Douro
Nos antípodas da fragmentação do território e bem no coração do Cima Corgo encontramos a Quinta da Romaneira, uma das maiores propriedades da região, com um total de 412 hectares dispondo de três quilómetros de frente no rio Douro.
As vinhas, totalizando 86 hectares, estão plantadas em socalcos nas escarpadas encostas da propriedade. Tal como referiu Carlos Agrellos, o enólogo consultor, “esta imensa vastidão de vinhedo, pelos parâmetros durienses, encontra-se dispersa por muitos vales e promontórios, o que origina diversos microclimas em função das inúmeras variações de altitude e exposições solares”.
No entanto, a Quinta da Romaneira nem sempre teve estas dimensões, lembra Carlos Agrellos: “na altura das demarcações Pombalinas, já existiam parcelas de vinhas, bem como algumas das Quintas que passariam a fazer parte da Romaneira. No entanto, foi apenas na década de 40 do século passado que ocorreu a grande aquisição de várias quintas vizinhas, o que fez da Romaneira uma propriedade extremamente grande e rara pelos padrões do Douro”. Curiosamente, muitas das parcelas de vinha continuam a ostentar o nome das anteriores propriedades, adquiridas para criar o projeto tal como ele existe hoje: Liceiras, Carrapata, Malhadal, Barca, Bairral e Pulga, são alguns dos exemplos.
Desde 2004, data em que Christian Seely reuniu um grupo de investidores para concretizar a aquisição da Quinta da Romaneira, tem beneficiado de uma renovação, reconstrução e replantação muito extensa. Ainda assim, como referiu Carlos Agrellos, “só oito anos mais tarde, após André Esteves se ter tornado o acionista principal, é que a Quinta consolidou a sua posição entre os produtores de elite de vinhos e revelou todo o potencial de grandeza do seu terroir histórico”.
Os novos vinhos do Douro e Porto
Os diversos vinhos da Quinta da Romaneira são muito específicos e provêm de pequenas parcelas individuais ou de várias localizações particulares da Quinta. Esta opção, “reflete a complexidade e diversidade de toda a vinha. Todos os nossos vinhos são feitos exclusivamente de uvas das nossas vinhas, uma característica distintiva dos vinhos da Quinta da Romaneira”, disse Carlos Agrellos.
Um dos pontos de interesse desta apresentação também esteve ligado à reformulação gráfica levada a cabo. Assim, diversas gamas de vinhos foram repensadas e redesenhados os rótulos, refletindo a precisão quanto às origens individuais de cada vinho. Nas palavras de Carlos Agrellos, “cada vinho produzido na Romaneira tem agora um rótulo com uma imagem gravada que reflete a identidade do vinho e o local de proveniência das uvas que o fazem”.
A apresentação dos novos vinhos brancos e do rosé decorreu sob a batuta do ano 2023 que, nas palavras de Carlos Agrellos “ficou marcado por uma mudança significativa em relação aos quatro anos anteriores caracterizados por temperaturas elevadas e escassas produções, estes fatores garantiram que as vinhas cresceram sem as limitações da carência de água e por isso obtivemos uvas de alta qualidade, permitindo a criação de vinhos excecionais”.
Estes vinhos, para além de apresentarem uma nova roupagem, revelam os distintos microclimas da Quinta e as técnicas enológicas utilizadas nas diferentes castas brancas (Gouveio, Viosinho, Boal e Rabigato) e tintas (Touriga Nacional, Touriga Francesa, Tinta Roriz e Tinto Cão).
Por fim, foram apresentadas as novidades relacionadas com o vinho do Porto, a primeira um Tawny 20 anos envelhecido durante duas décadas em pequenas barricas de carvalho com 640 litros de capacidade. Este, nas palavras de Carlos Agrellos, “incorpora todas as características de um clássico Tawny premium”. A segunda novidade foi um vinho do Porto Vintage vinificado em lagares de inox, que “além de todas as vantagens tradicionais da pisa a pé para o vinho do Porto, também beneficia da capacidade técnica de os aquecer e arrefecer”, referiu ainda Carlos Agrellos.
Nota: O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico.
(Artigo publicado na edição de Outubro de 2024)
Quinta do Perdigão: Uma família, uma vinha e alguns segredos
A aventura do arquitecto começou em 1997. À época, José Perdigão desenhava projectos, mas de uvas e vinho pouco entendia. Isso não o impediu de se apaixonar por esta propriedade, que estava como uma folha em branco onde é suposto desenhar um projecto. Hectares eram 10 e casa era uma, em ruínas. Foi verdadeiramente começar […]
A aventura do arquitecto começou em 1997. À época, José Perdigão desenhava projectos, mas de uvas e vinho pouco entendia. Isso não o impediu de se apaixonar por esta propriedade, que estava como uma folha em branco onde é suposto desenhar um projecto. Hectares eram 10 e casa era uma, em ruínas. Foi verdadeiramente começar do zero: na reconstrução, no plantio e na aquisição de conhecimentos. Diz-nos que “como de vinho não sabia nada de nada, fui para Bordéus aprender, mas, de início, tivemos aqui apoio e conselhos de técnicos locais, como Ari di Mari, Carlos Silva e Paulo Nunes. Agora sou eu e a minha filha Mafalda que orientamos os trabalhos da vinha e adega”.
Mas José não esquece a tese, que abraça sem rebuço, que “é o meu paladar e o meu gosto que devem presidir aos vinhos. O apoio dos técnicos é fundamental do ponto de vista analítico, mas a sensibilidade para saber qual é o caminho a seguir, essa cabe ao produtor”. Fica a dúvida sobre qual será o método mais eficaz para que a sensibilidade se expresse, mas José tem receita própria: “levanto-me de manhã, antes de tomar banho ou sequer lavar dos dentes, sento-me aqui a provar os vinhos e a tentar encontrar os descritores que melhor expressam os aromas e características da prova de boca”. O resultado dessa “meditação matinal” vem depois expresso nos contrarrótulos, onde dá conta dos aromas e sabores que descobriu no vinho.
“De manhã, antes de tomar banho ou sequer lavar dos dentes, sento-me aqui a provar os vinhos e a tentar encontrar os descritores que melhor expressam aromas e sabores”
TOURIGA PRIMEIRO, ENCRUZADO DEPOIS
Nesta zona de Silgueiros não faltam vinhas e produtores conhecidos. Uma verdadeira comunidade onde entra uma propriedade com 120 hectares de vinha da família Santos Lima (mas que apenas vende as uvas) e, mais à frente, a Quinta de Lemos. Embora hoje o branco de Encruzado seja uma das bandeiras da casa, a verdade é que, de início, a intenção era apenas fazer vinho tinto, não aceitando o conselho do Centro de Estudos Vitivinícolas do Dão (Nelas), que apontava para que o plantio devesse recair apenas nos brancos. “Nem um pé!”, disse José que, quando um jornalista inglês o visitou e perguntou se não tinha branco ele afirmou, “tenho sim senhor é white wine, a cadela”. Mais tarde percebeu que era um erro, tal como percebeu que aqui não é terra de Tinta Roriz e as cepas desta casta foram re-enxertadas em Encruzado. Para felicidade de “bichos” diversos, já que, em tempos, José Perdigão teve aqui alguns cavalos, mas agora só uma égua que, conta-nos, “adora os bagaços de Encruzado e não sai da porta da adega enquanto não lhos dermos”.
Começaram por plantar Touriga Nacional com dois porta-enxertos e uma vinha também em pé-franco, material vegetativo fornecido pelo Centro de Estudos. Ao lado da Touriga veio a Jaen e depois o Alfrocheiro. Passados estes anos, existe a convicção que a Touriga Nacional é a casta que melhor se expressa nesta zona. “Com ela já ganhámos todos os prémios”. As uvas da vinha de pé-franco são usadas para o espumante. Porquê só para espumante, atendendo a que são tão poucos os vinhos de pé-franco no país? A resposta parece ter as mesmas reticências que em tempos houve em relação ao Encruzado: “já temos um portefólio alargado, era mais um vinho, mais rótulos, mais caixas e achamos que, em espumante, o facto de ser pé-franco é um factor diferenciador”. Estamos em crer que é uma questão de tempo até porque, diz o arquitecto, “a filoxera não anda por aqui, ainda que a produtividade da vinha de pé-franco seja baixa”.
O primeiro branco só surgiu em 2009 e o “teimoso” Encruzado em 2010. A filha Mafalda também teve os mesmos receios quanto ao branco. “Inicialmente fui contra, porque tive medo que o branco acabasse por ser um tiro no pé, pois não tínhamos uvas nossas que pudéssemos controlar. Só quando plantámos e pudemos estar perto é que avançámos”, seguindo assim a política da casa, ou seja, temos de ter tudo aqui à nossa frente. O que não vemos não nos interessa e, por isso, não plantámos mais vinha”. Por aqui também se percebeu que é fundamental saber escolher o local próprio para cada casta. A Alfrocheiro, por exemplo, “se não estiver boa exposição que a livre da humidade, pode ser um desastre”. A orientação da vinha no sentido norte/sul ajuda ao bom arejamento e saúde dos cachos (o que pudemos constatar in loco.) O produtor é peremptório: no Dão o vinho é sempre excelente ou muito bom; abaixo desse patamar é erro do produtor!
VINHOS QUE DESAFIAM O TEMPO
Visitámos a quinta nas vésperas do início da vindima, ainda sem a natural confusão que ela proporciona. “O mais trabalhoso é o rosé, que não permite qualquer erro. Quer na vindima quer na adega, há que ter uma atenção constante”, diz-nos, e é preciso ter paciência para saber esperar porque, por exemplo, “quer a Touriga Nacional quer a Encruzado, se forem vindimadas demasiado cedo perdem toda a expressão varietal. Por isso não ligamos nenhuma ao alarido que aqui na terra se levanta assim que surgem as primeiras chuvas e desata tudo a vindimar à pressa. Nós procuramos provar as uvas para determinar a vindima. Se chove ou não chove, logo se vê.”
A vinha apresentava, este ano, uma carga normal. Mas em anos muito produtivos faz-se uma primeira monda para rosé. A primeira edição remonta a 1999 e essa colheita foi aqui também objecto de prova, ao almoço, mostrando estar numa forma surpreendente. Nessa refeição provámos vários vinhos de colheitas anteriores e a conclusão é fácil, pois são vinhos que aguentam muito bem a prova do tempo, conservando vigor, estrutura e frescura. A vinha está em produção bio e isso obriga a uma atenção constante, por vezes com pulverizações duas vezes por semana. Mafalda está optimista quanto à resposta que a ciência está a dar no sentido de trazer para o mercado produtos que são amigos do ambiente e que evitam o uso de químicos agressivos para a vinha e para o solo. Mas para isso, relembra, “é preciso estar sempre aqui”.
Na adega procura-se intervir quando necessário mas, recorda Mafalda, “as primeiras fermentações são muito stressantes porque, à conta da limpeza, higienização da adega e da não inoculação de leveduras, essas fermentações demoram muito a arrancar, às vezes quatro a cinco dias. Felizmente não temos tido problemas”. São fermentações em inox e estágios em barrica, essencialmente usada, mas também alguma barrica nova, nomeadamente para a Touriga Nacional.
Também por aqui se contraria tendência, que é também uma moda, de vender os vinhos excessivamente caros. Perdigão não alinha nessa correria aos preços altos: “sou contra os vinhos muito caros, porque o vinho não deve ser um produto de luxo. As pessoas têm de procurar perceber e poder usufruir de um vinho. Somos vignerons, só vendemos o que produzimos das nossas uvas e temos sido amplamente reconhecidos pela qualidade dos nossos vinhos”. Assim deveria ser sempre, dizemos nós.
(Artigo publicado na edição de Outubro de 2024)
Quinta dos Frades: Os segredos das vinhas velhas
Nunca me canso de percorrer a estrada que segue a margem esquerda do rio Douro entre o Pinhão e a Régua, mesmo nesta época do ano, a da vindima, em que há muito mais veículos na estrada e gente por terras do Douro. É difícil resistir a não parar para mais uma foto a uma […]
Nunca me canso de percorrer a estrada que segue a margem esquerda do rio Douro entre o Pinhão e a Régua, mesmo nesta época do ano, a da vindima, em que há muito mais veículos na estrada e gente por terras do Douro. É difícil resistir a não parar para mais uma foto a uma paisagem única que muda com as estações do ano, ainda por cima agora que há mais pessoas nas vinhas a fazer o seu maneio, e a colher as uvas porque estão no ponto certo de maturação e é preciso levá-las à adega.
A certo ponto da estrada, na margem esquerda, é difícil não notar a Quinta dos Frades. Pela sua extensão, pelo seu edificado histórico, sempre bem pintado e de ar sólido, e pelas suas vinhas, que acompanham as curvas do rio e da serra, aqui e ali entremeadas com jardins, pomares, hortas e áreas de bosque. As suas origens parecem remontar ao século 13, depois de as terras terem sido doadas aos monges do Mosteiro de Santa Maria de Salzedas. Depois de séculos de gestão monástica, a propriedade foi arrematada em hasta pública por Jerónimo Souza, 1º Barão de Folgosa, permanecendo na sua família durante mais um século até ser por Delfim Ferreira, um dos investidores e industriais mais importantes da economia portuguesa do século passado, que detinha, entre outras, a Companhia Hidroelétrica do Norte de Portugal, empresa que fornecia electricidade aos distritos de Braga, Bragança, Vila Real e Viseu. Foi, depois, encetado um processo de reabilitação e modernização das infraestruturas de produção e lazer da Quinta dos Frades.
Mas a propriedade era, sobretudo, uma quinta de fim de semana, onde os bisavós de Aquiles Ferreira do Brito, 53 anos, administrador delegado da Predial Ferreira & Filhos, empresa proprietária das Quintas dos Frades, em Folgosa, e do Castelo, em Santa Marta de Penaguião, vinham de tempos em tempos. “Naquela altura não se olhava muito para as despesas de manutenção”, diz o responsável, acrescentando que o início do segundo milénio e a estagnação do benefício, “que era aquilo que apoiava muito a agricultura no Douro, e com os custos a subir, entendeu-se que a empresa devia investir na criação de uma marca de vinhos de mesa”. Isso aconteceu quando foi convidado, por outro membro desta empresa familiar, para gerir a empresa e encetar esse novo caminho. A primeira colheita comercializada foi a de 2011, e todo o processo iniciado naquela altura contribuiu para colocar a empresa e a suas marcas no radar do mercado.
Os primeiros vinhos
Os primeiros vinhos foram produzidos com o apoio dos enólogos Anselmo Mendes e João Silva e Sousa e, mais tarde, apenas com o primeiro. Depois foi preciso começar a vendê-los e Aquiles de Brito entrou, no mercado, “inicialmente com o apoio de alguns distribuidores regionais, fazendo algumas provas e apresentações, procurando destacar que os nossos eram vinhos de valor acrescentado e não para vender em volume”, conta, acrescentando que as marcas foram surgindo, depois, no portefólio da Quinta dos Frades à medida que se iam conhecendo as vinhas e as características das suas parcelas. Algumas foram dando origem às referências que existem actualmente. Mas o processo aconteceu sem uma metodologia sustentada para a sua criação e construção. Por isso, marcas da empresa como a Vinha dos Deuses ou Vinha dos Santos não têm hoje nenhuma explicação ou ligação à casa, que permita, a quem compra os vinhos, fazer essa associação, revela Aquiles de Brito, salientando que está agora a desenvolver, com a sua equipa e o apoio de uma empresa especializada, um projecto de mudança de imagem. “Estamos agora a realizar um trabalho de marketing, imagem e comunicação que contribua para evidenciar a Quinta dos Frades como produtora dos seus vinhos, que não existia até agora”, explica.
Segundo Liliana Mendes, 43 anos, designer gráfica na Quinta dos Frades desde 2021, a ideia de mudar a imagem da quinta e das suas marcas de vinho teve, como objectivo, “criar uma unidade entre elas através da ligação de cada uma à quinta”. Assim, e quando o processo estiver concluído, em cada uma das referências de vinhos da empresa será evidenciada a marca umbrela, Quinta de Frades, em relação a cada uma das outras. Com esta integração, clientes e consumidores passarão a saber que todos os vinhos são produzidos pela Quinta dos Frades, o que não acontecia até agora. Como é evidente, o objectivo é promover e solidificar a imagem da empresa no mercado como produtora de vinhos do Douro e do Porto, para que possa continuar a crescer num mercado onde isso não é fácil para um produto como o vinho.
“Mas nós temos a vantagem de possuirmos uma história já longa por detrás e de termos construído, durante os últimos anos, uma identidade no mercado, lançando vinhos todos os anos, ou seja, estando presentes, o que tem contribuído para que os nossos já sejam conhecidos”. Hoje são colocados no mercado nacional pela Direct Wine, empresa do grupo Fladgate Parternship, principalmente para a restauração. Para além disso, só estão nos supermercados Apolónia, no Algarve, no El Corte Inglès, no E.Leclerc de Lamego, “uma referência onde toda a gente do Douro está, e mais um outro supermercado que me pede, pontualmente”, diz Aquiles de Brito, defendendo que não quer trabalhar com a grande distribuição. Para este responsável, ainda há muito muito trabalho a fazer em Portugal, o principal mercado da empresa, para cimentar a marca.
Quanto à exportação, que decorre apenas para o Brasil e pontualmente para outros mercados, “vai certamente lugar a isso, mas só depois de estar devidamente estruturado e cimentado no mercado nacional”, explica. Adepto de apostar na qualidade, na história por detrás da empresa e das suas marcas, para continuar a trilhar “um caminho que tem sido difícil, moroso, lento, com algum sucesso”, salienta “há que continuar a trabalhar e comunicar aquilo que fazemos bem e as nossas diferenças”.
Mais de 30 castas
A empresa tem, hoje, nas duas propriedades que a compõem, cerca de 240 hectares, dos quais 110 de vinha. Na Quinta dos Frades “há mais de 30 castas, de uma vinha onde as variedades predominantes são a Tinta Amarela, a Touriga Franca e, agora, a Touriga Nacional após a reconversão mais recente”, conta Diogo Lopes, 46 anos, enólogo da Quinta dos Frades, que tem um total de 75 ha de vinha. Uma parte significativa, de cerca de 20 hectares, é vinha velha. “A nossa é, na verdade, muito velha, pois uma parte significativa tem mais de 100 anos, o que faz dela a nossa jóia da coroa”, salienta.
Há mais 35 hectares na Quinta do Castelo, em Santa Marta, no Baixo Corgo, que estão a ser restruturados, porque a empresa quer apostar mais na produção de vinhos a partir de castas brancas. “Queremos puxar muito pela identidade dos tintos do Cima Corgo, na Quinta dos Frades e, na Quinta do Castelo, queremos apostar na frescura, nas castas brancas, no potencial que existe por explorar nos brancos do Baixo Corgo e duriense como um todo”, explica Diogo Lopes. Por isso, está a ser feita a reconversão de muitas variedades tintas para brancas, e “a multiplicação das castas mais enraizadas no Baixo Corgo, como a Códega do Larinho, o Avesso e o Arinto”. Para Diogo Lopes, “há espaço para fazer brancos com muito mais caracter, e é isso que queremos fazer”.
Vinha velha e muito velha
Trabalhar com vinha velha no Douro é sempre um grande desafio, e um trabalho pesado por ser manual, que obriga a um maior controlo e mais atenção durante o ciclo vegetativo das plantas, numa época em que há cada vez mais fenómenos extremos durante o verão, com picos de calor e outros fenómenos associados ao escaldão. “Temos tentado minimizá-los através de uma gestão mais equilibrada da forma como controlamos a vegetação, para protegermos os cachos dos fenómenos extremos, que têm sido cada vez mais constantes nos últimos anos e serão mais permanentes no futuro”, diz o enólogo, acrescentando que ainda há um longo trabalho a fazer, ao nível da viticultura, para conhecer e diferenciar todas as suas parcelas de vinha. A sua área extensa e as suas muitas exposições podem constituir uma mais-valia para o trabalho a realizar na adega, com uvas com características diferenciadas conforme as suas origens a poderem contribuir, após o estudo dos vinhos que originam, para originar vinhos diferenciados. O futuro o dirá.
Diogo Lopes conta que entrou na Quinta dos Frades há um ano, cheio de ideias. “Já apresentei um plano de trabalho ao Aquiles de Brito, que contém tudo aquilo que acredito que podemos fazer em conjunto nos próximos anos. Isso implica estudar tudo, ou seja, conhecer a Quinta dos Frades em todos os seus ambientes e recantos, porque acredito que ainda não se explorou todo o seu potencial”, conta. “É esse trabalho que a quinta merece”, afirma. Estudar para conhecer e individualizar as suas parcelas “irá também contribuir para podermos fazer a nossa própria multiplicação vegetal com o material genético que aqui existe, que é a nossa grande mais valia” explica.
Diogo Lopes acredita que, na Quinta dos Frades, há potencial, não só para produzir um vinho de Vinhas Velhas, mas também das suas parcelas mais especiais. Também pensa em apostar em alguns vinhos varietais, sobretudo das castas que se destacam mais na Quinta de Frades, como a Tinta Amarela, a que mais destaca na propriedade, “também por ser e espinha dorsal dos nossos vinhos, porque consegue manter uma acidez muito boa e resistir, melhor que outras, ao efeito do calor”. É ela que dá um caracter mais vegetal aos vinhos da quinta, enquanto o toque de lápis acabado de afiar é mais um carácter da vinha velha, como foi demonstrado na prova que fiz. “E queremos fazer vinhos do Douro, do cima Corgo, com este perfil puro e clássico, que identifica os vinhos da quinta”, diz ainda Diogo Lopes.
(Artigo publicado na edição de Outubro de 2024)
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Quinta dos Frades
Fortificado/ Licoroso - 2017 -
Comendador Delfim Ferreira Grande Reserva
Tinto - 2015 -
Dona Silvia
Tinto - 2017 -
Quinta dos Frades
Tinto - 2016 -
Vinha dos Deuses
Tinto - 2019 -
Vinha dos Santos Colheita
Tinto - 2020 -
Vinha dos Deuses
Rosé - 2023 -
Dona Silvia
Branco - 2020 -
Vinha dos Santos Colheita
Branco - 2022
Periquita: Muito mais do que uma marca
No ano em que a José Maria da Fonseca celebra os 190 anos de casa, sua marca mais emblemática – Periquita – foi objecto de um rebranding sob o mote “Moderno desde 1850”. É apresentada agora com uma imagem renovada e bem conseguida, que alia um estilo moderno com um toque de classicismo, resultando numa […]
No ano em que a José Maria da Fonseca celebra os 190 anos de casa, sua marca mais emblemática – Periquita – foi objecto de um rebranding sob o mote “Moderno desde 1850”. É apresentada agora com uma imagem renovada e bem conseguida, que alia um estilo moderno com um toque de classicismo, resultando numa estética tradicional refinada.
Conta a história que o fundador da casa mais antiga da Península de Setúbal (1834), José Maria da Fonseca, adquiriu a propriedade em Azeitão chamada Cova da Periquita, na década de 1840, onde plantou varas de Castelão que havia trazido muito provavelmente do Ribatejo.
Embora a data exata da primeira colheita não possa ser confirmada, sabe-se com certeza que em 1850 o Periquita já era produzido. Prova disso é uma carta desse ano, na qual José Maria da Fonseca escreve a um amigo: “Gostava que provasses o meu Periquita.”
Foi o primeiro vinho engarrafado em Portugal, e com ele nasceu o conceito que hoje chamamos de “marca” (e que foi oficialmente registada em 1941). O nome que corresponde à identidade de um vinho e desperta as expectativas do consumidor.
As garrafas vieram da Inglaterra, a concepção dos primeiros rótulos do Periquita foi da autoria de um artista parisense e as rolhas eram seleccionadas por um técnico catalão. Foi um passo visionário. O vinho engarrafado que ostenta um rótulo, ao invés do vinho vendido a granel, para além de chegar ao destino mais protegido da adulteração, serve de embaixador da casa que o produziu, da região e do país.
Em 1881 deram-se as primeiras exportações de Periquita para o Brasil. A colheita de 1886 recebeu a medalha de ouro na Exposição de Vinhos de Berlim em 1888.
Na década de 1940 surge o conceito de Reserva, “que não tem nada a ver com os Reservas de hoje” – explica Domingos Soares Franco, o vice-presidente da empresa e a 6ª geração da família. “Nos anos bons guardava-se uma parte em cave e lançava-se mais tarde”, com 5-7 anos de estágio. “Reservavam-se cerca de 1000 caixas de 12 e, nesta altura, estaremos a falar da produção do Periquita de mais de 100.000 caixas, ou seja cerca de 1 milhão e meio de garrafas”. O Periquita e o Periquita Reserva, originalmente, eram o mesmo vinho. O Reserva de hoje é um vinho completamente diferente do Periquita “colheita”.
Embora o Periquita tenha nascido como Castelão, a força da marca era tal que se tornou na sinonimia da própria casta na região (hoje permitida apenas para a Península de Setubal). Nos anos 40-50 do século passado deixou de ser Castelão a 100%, juntando a Trincadeira que o pai de Domingos Soares Franco, Fernando Soares Franco, gostava muito, e Aragonez. Décadas depois deixa de ser blend, sobretudo porque ambas as castas mostram grande susceptívidade às doenças da vinha, e a Trincadeira ainda por cima “é uma casta muito aneira e desidrata de um dia para outro”. Na viragem do século volta a ser um blend, para o qual a Trincadeira e Aragonez vêm de uma vinha plantada no início dos anos 90. Na colheita de 2022, o Aragonez foi substituído por Alicante Bouschet (14%), a acompanhar Castelão (47%) e Trincadeira (39%). Deste vinho produzem-se actualmente cerca de 450 000 garrafas.
Acompanhando a evolução e as exigências dos mercados, a família do Periquita cresceu. Em 2004 foi lançado o Periquita branco, inicialmente para o mercado sueco. A nova época do Reserva começou com vindima de 2004, lançado em 2007 também com foco no mercado sueco. Como o tempo, o sucesso estendeu-se para o Brasil e a Noruega. Na sua composição, o Reserva tem 54% de Castelão, 28% de Touriga Nacional e 18% de Touriga Francesa; estagia mais tempo (oito meses) do que o Periquita original em madeira de carvalho francês (usada) e americano (nova). Deste vinho fazem-se cerca de 600 000 garrafas.
Em 2007 surgiu o Periquita rosé e, em 2008, foi criado o Periquita Superyor, lançado em 2012 como um topo de gama da família dos Periquita.
Regresso ao Clássico
Os tempos mudam, a tecnologia evolui e a abordagem enológica adapta-se. Hoje em dia, as uvas são desengaçadas, as fermentações ocorrem em cubas de inox e não em lagares e o estágio passa a ser em barricas de carvalho francês e americano em vez de tonéis grandes de madeira usada. Neste contexto, é natural que mais cedo ou mais tarde surja a vontade de regressar às origens sem intromissão na evolução natural das coisas.
O regresso ao passado sucedeu pela primeira vez na colheita de 1992, quando Domingos Soares Franco fez um lote de vinho “como antigamente: em cubas de cimento com engaço, sem controlo de temperatura e com estágio em tonéis” com o intuito de ser lançado anos mais tarde, por volta de 1998-1999. Entretanto, o vinho acabou por ser apresentado ao importador nos Estados Unidos em 1995, demasiado cedo para mostrar todo o seu potencial. Obviamente, não teve o sucesso esperado. “Foi o jantar mais caro da minha vida”, lembra-se com risos Domingos Soares Francos, que fez uma viagem de ida e volta a Califórnia sem vender uma única garrafa. O Periquita Clássico teve várias colheitas, incluindo as de 1994, 1995, 1999, 2001 e 2004, ano em que decidiram descontinuá-lo. No entanto, nas suas viagens aos mercados de exportação, sobretudo no Canadá e nos Estados Unidos, Domingos Soares Franco sentiu que havia interesse crescente por este conceito. Assim, em 2014 voltaram a fazer o Periquita Clássico, que está ainda disponível no mercado. O 2015 será lançado em breve, permanecendo o 2017 em estágio. A identidade do perfil também é assegurada pelas uvas provenientes de uma vinha com quase 40 anos, implantada em solos argilo-calcários numa vale da Serra da Arrábida. Do Clássico produz-se entre 8 e 9 mil garrafas.
O Castelão das areias e do argilo-calcário
Voltando à Periquita, neste caso, à casta Castelão, um cruzamento natural da casta tinta Portuguesa Alfrocheiro com a casta branca, chamada Sarigo em Portugal e Cayetana Blanca em Espanha.
Graças a José Maria da Fonseca, a casta não só ganhou popularidade na região, como se tornou identitária, embora tenha perdido terreno a favor de outras castas. Quanto aos dados estatísticos, Domingos Soares Franco referiu que, de acordo com a CVR da Península de Setúbal, na região existem 7100 ha de vinha, dos quais 60% castas tintas, o que corresponde a 5050 há, com 3015 ha de Castelão, sendo cerca de 80-100 ha de vinhas velhas com mais de 40 anos.
Domingos Soares Franco explica que o perfil dos vinhos varia consoante o solo: do argilo-calcário os vinhos apresentam “fruto mais exuberante quando jovens, menos álcool, mais acidez e corpo mais fino”, enquanto das areias revelam “fruto mais concentrado, notas de eucalipto, mais álcool e maior estrutura”. Nos anos 40-50, as uvas vinham predominantemente do argilo-calcário e algumas das areias, nos anos 60-70, o argilo-calcário deminui e hoje quase tudo é de areia. Na sua opinião, o lote ideal seria de Castelão com 65% do argilo-calcário e 35% das areias.
Uma prova histórica
Uma prova destas, como a que tive oportunidade de fazer nunca aconteceu antes e dificilmente será repetida. Provámos 14 vinhos a atravessar décadas desde 1940 até 2022, contextualizados pelo grande mestre e figura carismática Domingos Soares Franco, com presença do seu irmão e presidente da empresa, António Soares Franco, António Maria e Sofia Soares Franco da 7ª geração e Paulo Hortas, director de Enologia e Viticultura.
“Se fizermos uma viagem no tempo, é provável que encontremos uma viagem de Periquita” – dizem na José Maria da Fonseca, pois com 174 anos de história, o Periquita acompanhou grandes mudanças e acontecimentos no mundo. Assim, durante a prova, fizemos uma retrospectiva dos últimos 84 anos.
Em termos globais, o ano 1940 foi marcado pela invasão da Alemanha na Europa Ocidental. O Periquita de 1940, marcado na gargantilha como Reserva no seu conceito antigo, apresentou uma cor ainda intensa a lembrar mogno, muito alinhado e vivo no aroma com compotas, marmelada, especiaria, passas acompanhadas por notas de cogumelos, terra húmida e musgo a evidenciar a evolução. Carnudo, com boca bem composta e cheia de frescura, onde o tanino já se tornou sedoso pelo tempo mas assegurou a vida do vinho. Com mais de 80 anos este vinho é uma bela surpresa (17,5)!
Em 1954 aconteceu o Golpe Militar no Paraguai e foi inaugurado o Estádio da Luz. O Periquita de 1954, também marcado como Reserva, mostrou-se mais acastanhado na cor e amadeirado no aroma, com sugestões de tâmaras, alcarávia, madeiras envernizadas e molho de soja; com corpo mais magro do que o vinho anterior e o tanino consumido pelo tempo, mas ainda com frescura e um certo carácter (16,5).
Em 1959, Fidel Castro tomou posse em Cuba e, em Portugal, foi inaugurado o Cristo Rei em Almada. E também foi um grande ano, quer em Portugal, quer em Bordéus. Deste ano provámos dois vinhos. Um deles marcado com letras “J” e “P”. Segundo Domingos Soares Franco, as garrafas eram exactamente iguais, mas numa com as letras que mal se vêm estava assinalado “JMF” e noutra “ACP”. Eram dois lotes diferentes e calcula-se que um era proveniente das vinhas da José Maria da Fonseca, do argilo-calcário e outro dos solos arenosos da Adega Cooperativa da Palmela, onde na altura se comprava vinho. Isto confirma-se pelo estilos diferentes dos vinhos.
O 1959P com muita cor e laivos mogno, com fruta ainda de grande definição a lembrar framboesas e amoras, especiaria, nuances florais, um vinho intenso, elegante com tanino presente que promove a longevidade, e frescura fantástica (18). O 1959PJ com fruta mais delicada, notas de cogumelo, musgo, pão de centeio, alcarávia, fumo e folha de louro, revelou menos corpo, acidez espevitada, tanino mais tenaz envolto numa textura de veludo (17,5).
Em 1961 John Fitzgerald Kennedy tomou posse como presidente dos EUA e Iuri Gagarin foi o primeiro cosmonauta no espaço. O Periquita 1961 revela a cor mogno intenso, com bastante fruta a lembrar ameixa e cereja desidratada, especiaria, flores secas a lembrar lavanda, cogumelos e eucalipto, muito balsâmico. Denso, com amplitude e frescura, longo e bem persistente no sabor (17,5).
Em 1965, os Estados Unidos entraram na Guerra do Vietname e o cosmonauta soviético Alexei Leonov realizou a primeira caminhada espacial. Em 1966, Indira Gandhi foi eleita a primeira-ministra da Índia, sendo a primeira mulher indiana a assumir o cargo e os Beatles lançaram o seu álbum icónico “Revolver”. Nesta altura Portugal encontrava-se em plena Guerra Colonial.O Periquita 1965 infelizmente tinha TCA. O Periquita 1966, de cor mogno atijolado, mostrou-se denso e cheio, intenso com notas iodadas, tinta da China, castanhas, molho de soja, fruta discreta e mais evidente no retronasal (16,5).
O ano de 1970 marcou o início de uma série de crises económicas globais e, em, Portugal morreu António Salazar. O Periquita 1970, com uma cor atijolada, balsâmico com fruta compotada, especiaria, alcarávia, bastante directo, mantendo o foco, ligeiramente metálico, com boa frescura e leve amargo no final (16,5).
Em 1976 teve início a ditadura na Argentina, Steve Jobs lançou a Apple e Jimmy Carter foi eleito presidente dos Estados Unidos. O Periquita 1976 revelou muita fruta compotada, marmelada, especiaria doce, framboesa, algum cogumelo também. Parece-se com o 1970, mas é mais cheio, mais redondo e macio, com boa estrutura de tanino polido, e muito guloso (17).
Em 1985 foi assinado o Tratado de Adesão de Portugal às Comunidades Europeias e Mikhail Gorbachev assumiu o cargo de Secretário-Geral da União Soviética. O Periquita 1985, também marcado como Reserva, apresentou um ligeiro toque de rolha.
Em 1990 deu-se a reunificação da Alemanha, o fim do Apartheid na África do Sul e Tim Berners-Lee propôs a criação da World Wide Web. O Periquita 1990 marcou pela fruta presente e notas caramelizadas, cogumelos, especiaria, fumo, madeiras exóticas, pimenta preta, doce de amora, com bastante volume, ambiente escuro, cheio, guloso e aveludado por tanino maduro e redondo (17).
Em 2007, a Apple lançou o primeiro iPhone e ocorreu o colapso do mercado imobiliário dos EUA. O Periquita 2007 representa um lote de Castelão (75%), Trincadeira (15%) e Aragonez (10%). A maior parte das uvas provém do solo arenoso e 5% do argilo-calcário. De cor granada, revela muita amora e pimenta preta, figo maduro, alguma canela, alcarávia, leve musgo e eucalipto. Alinhado e elegante, muito bonito e em grande forma. Tanino fino e tudo muito polido. (16,5). Deste vinho foram produzidas mais de 1 milhão de garrafas.
Em 2011 acabou a Guerra do Iraque, Bin Laden foi assassinado e Portugal tornou-se membro não permanente do Conselho de Segurança da ONU. O Periquita 2011 foi o último feito por Domingos Soares Franco, que continua como o enólogo inspirador mas, segundo ele próprio, não intervém nas decisões da equipa de enologia. É um lote de Castelão (50%), Trincadeira (40%) e Aragonez (10%), também maioritariamente do solo arenoso. De cor granada, fruta doce e compota, no fundo folhas de louro, algum tomilho e orégãos. Está numa fase ascendente, com tudo interiorizado, mas ainda com muita força, parece mais novo. Chá, bergamota, acidez não tão pronunciada como no 2007 (16,5). Foram produzidas 375 000 garrafas.
Em 2022 começou a guerra da Ucrânia e ocorreu a morte da Rainha Isabel II. No Periquita 2022 o Alicante Bouschet substituiu Aragonez no lote com Castelão e Trincadeira.
(Artigo publicado na edição de Outubro de 2024)
Tiago Cabaço Winery: Alentejo de primeira grandeza
O epíteto de “Cidade Branca” deve-se, para além da cor do casario, às jazidas de mármore branco, o célebre “Mármore de Estremoz”, que tornou a cidade conhecida a nível internacional. Não podia, pois, ser de outra cor que não branca, a adega curvilínea de Tiago Cabaço, mesmo à entrada de Estremoz, para quem vem pela […]
O epíteto de “Cidade Branca” deve-se, para além da cor do casario, às jazidas de mármore branco, o célebre “Mármore de Estremoz”, que tornou a cidade conhecida a nível internacional. Não podia, pois, ser de outra cor que não branca, a adega curvilínea de Tiago Cabaço, mesmo à entrada de Estremoz, para quem vem pela EN 4, ladeada por uma vinha de Alicante Bouschet, a casta favorita do produtor e referência obrigatória do Alentejo. Sensibilidade estética e integração paisagística são o mote.
“Há pessoas que transformam o Sol numa simples mancha amarela. Mas há aquelas que fazem de uma simples mancha amarela o próprio sol”, disse um dia Picasso.
A história familiar de Tiago Cabaço é conhecida. Nascido e criado em Estremoz, no coração do Alentejo vinhateiro, desde muito cedo se habituou a partilhar o campo e a trabalhar nas vinhas e na adega com os pais, aprendendo com os mais velhos os pequenos e grandes segredos da vinha, as manias e os truques, as castas e os melhores solos e climas para cada uma delas. Enfim, cedo se habituou a tratar a vinha por tu, e cedo também quis começar a fazer o seu próprio sol.
Tudo começou há 20 anos. Em 2004 criou a marca Tiago Cabaço Winery, foi adquirindo terras e vinhas, que totalizam 123 ha actualmente, construiu a sua adega própria, por si pensada, desenhada e delineada, cresceu de 40000 garrafas para 1400000, e tem uma equipa de cerca de 50 funcionários. Entre pessoal de campo, administrativo, contabilidade, marketing e publicidade, tudo é feito dentro de casa.
Pelo caminho tem obtido respeito e atenção por parte do sector, somando diversos prémios e distinções nacionais e internacionais.
A família de vinhos, sedutores e sérios, modernos no estilo e na forma, mas profundamente alentejanos no carácter, divide-se entre os “.com” de perfil enérgico e jovial, os monovarietais sérios e poderosos, os “Vinhas Velhas” que conjugam a excelência do terroir e as vinhas com mais de 30 anos, o espumante, pensado para momentos especiais, e os “Blog”, simultaneamente vigorosos, subtis e frescos que, juntamente com o “Gerações M”, se reclamam como topos de gama dos vinhos de Tiago Cabaço, e, porque não, do próprio Alentejo.
Há, no entanto, um prémio que Tiago Cabaço mantém bem vivo na sua memória: o “Best in Show” do ano de 2017, com o seu vinho Blog 13 Rótulo Castanho, da revista internacional Decanter, nos seus World Wine Awards, concurso cujo júri é maioritariamente composto por Masters of Wine. Foi a primeira vez que um vinho português alcançou tal feito, e apenas um outro lhe seguiu as pisadas até aos dias de hoje. Impressionante, certo?
Susana Esteban abraçou o projecto Tiago Cabaço como enóloga consultora desde 2007, ano da sua primeira vindima, tendo logo participado na elaboração dos lotes dos vinhos de 2006, ano em que saiu da Quinta do Crasto. “Tem sido um processo de aprendizagem mútuo”, refere Tiago, e assim se tem mantido esta parceria de sucesso até aos dias de hoje.
Um ano de castas
Quem hoje se desloca a Estremoz depara-se com uma enorme extensão de vinhedos, vinhas modernas, bem implantadas e que dão sentido à frase “um mar de vinhas”. Todavia, o potencial da zona para a produção vitícola e a consequente presença de muitas vinhas em Estremoz não é coisa recente. A verdade é que, desde o séc. XIX que são muitas as referências a Estremoz como zona vitícola, onde as vinhas conviviam com oliveiras, num mesmo terreno e numa disposição bem pensada e melhor executada. A presença destas duas culturas juntas é prática antiga, sendo hoje apenas autorizada para vinhas velhas.
A zona de Estremoz beneficia de um micro-clima muito próprio que, em muito, ajuda à produção das uvas. Mesmo no Verão, apesar do intenso calor que se faz sentir, as noites são frescas, há uma grande amplitude térmica dia/noite e isso é excelente para a maturação das uvas. Ao clima acresce a riqueza geológica onde estão plantadas as vinhas de Tiago Cabaço, com muita diversidade de perfis de solo, por vezes à distância de escassos metros, muito quartzo, que contribui para uma mineralidade muito característica, xisto inteiro, negro, barros vermelhos e franco-argilosos.
Fomos recebidos em pleno arranque da vindima de 2024, tudo ainda bastante tranquilo, já com os brancos a entrarem aos poucos. Mas já se sentia no ar aquela electricidade, antecipação e ansiedade próprias desta altura do ano para todos os produtores de vinho.
“Vai ser um ano de castas, ao invés do anterior, em que todas as castas foram boas” refere Tiago Cabaço, explicitando depois: “Vai ser ano de Alicante, Syrah, Tinta Miúda e não vai ser ano de Aragonez. Este ano faz-me lembrar o 2002. A Primavera foi muito boa, com alguma chuva, o que é óptimo para vinhas de sequeiro. Foi fresco até Maio, com temperaturas amenas, alguns escaldões em finais de Junho porque a planta não teve tempo de se adaptar gradualmente à chegada do calor. É um ano heterogéneo, com as uvas nos cachos com diferentes graus de acidez, mas a globalidade da parcela trará o equilíbrio final. Talvez os vinhos não estejam tão prontos de início, mas vão certamente compensar em longevidade.”
Entretanto o almoço esperava-nos, num dos restaurantes emblemáticos de Estremoz, “O Alecrim”, só brancos, porque os tintos “castigam mais” e ainda temos muito que provar no resto do dia.
Curioso como os hábitos de consumo vão mudando com a qualidade cada vez maior dos brancos portugueses. De Norte a Sul do País, o seu consumo veio, sem dúvida, para ficar! Destaque para o Verdelho 2023, da casta madeirense, fresco, estruturado e com alguma complexidade, com um final de boca vibrante e persistente, um caso muito sério à mesa. Boa prova do Vinhas Velhas branco 2016, demonstrando o bom potencial de envelhecimento deste vinho, inserido num segmento de preço médio (€12,99). Belíssimo desempenho, a emparelhar com umas suculentas costelinhas de borrego panadas, dos dois blog Special Edition Arinto 2021 e Arinto/Encruzado 2022, dois brancos de curtimenta parcial provenientes de três barricas e de parcelas identificadas. Mas a(s) Píèce de Résistance estavam programadas para o final de tarde e manhã do dia seguinte, uma Vertical de blog Rótulo Preto, de 2011 a 2021, e outra de blog Rótulo Castanho, um bi-varietal de Alicante Bouschet e Syrah.
Duas verticais inesquecíveis
O blog Rótulo Preto é um vinho de terroir, feito na vinha e escolhido entre as melhores parcelas de baixa produção; é um blend de Alicante Bouschet, Syrah com uma percentagem de Touriga-Nacional, que passa 18 meses em Carvalho Francês, metade novo, metade de segundo ano. Depois de todos os vinhos decantados, como mereciam, começámos pelo mais recente. O 2021 ainda não saiu para o mercado, continuando a afinar em garrafa em cave, muito jovem mas com muito boa prova desde já, com imenso brilho e potencial, fruta de enorme precisão, taninos de luxo e perfeita acidez. Promete imenso.
O blog 2020 evidenciou aromas agradáveis de cerejas vermelhas, groselhas e ameixas, suave e intenso em boca, profundamente mineral, elegante e fresco (18); o 2019 está ligeiramente fechado e austero no palato, mas com taninos muito bem domados, aromas de fruta silvestre e sabores de chocolate negro e pimenta preta (17,5); o 2018 revelou-se muito pronto a beber, com boa prova de boca, e taninos e acidez no ponto certos (17,5); 2017 foi um ano quente mas o vinho não se ressentiu disso, com bela complexidade aromática e boa densidade e presença em boca (17,5); o 2016 revelou-se atractivo, directo e harmonioso com leves notas mentoladas no final (17,5); 2015 estava mais fechado e austero da prova, deixando no entanto antever uma longa vida em garrafa tal a classe de taninos e acidez perfeita (18); em 2014 não existiu blog; o 2013 tem “qualquer coisa” de especial, enorme prova com tremenda pujança aromática, notável juventude, fruta de primeira qualidade, taninos poderosos mas envolvidos em veludo, frescura, tensão e mineralidade, soberbo (18,5); 2012 foi talvez o menos impactante, não deixando todavia de revelar bom equilíbrio de boca, num registo elegante e fresco (17); dizer que 2011 foi grande ano já parece lugar comum, mas a verdade é que é incontornável e este blog demonstrou isso mesmo, num registo muito sério, com alma, tensão e grande frescura, com muito para durar ainda em garrafa, enorme (18,5)!
Por seu lado o blog Rótulo Castanho é um vinho bi-varietal de Alicante Bouschet e Syrah, também um vinho de terroir, feito na vinha e escolhido das melhores parcelas de baixa produção, com 18 meses de estágio em barricas novas de carvalho francês para 50% lote e o restante em barricas de segundo ano.
Foram provadas oito colheitas, começando também por ordem crescente de idade, o 2021 exibiu-se tenso e fechado, mas muito focado na fruta de primeiríssima qualidade, complexo e elegante e com grande potencial de guarda (18,5); 2019 também se revelou muito jovem, primário, mas sedoso e aveludado na textura, estruturado, vigoroso mas não agressivo, com notas terrosas e de chocolate negro no final (18,5); o 2017 exibiu-se em grande nível, ano quente, fruta madura mas com acidez viva e equilibrada prolongando o final distinto e requintado (18,5); 2016 deu boa prova de boca, com bom balanço, provavelmente já num bom momento de prova mas com muita vida pela frente (18); o 2015 revelou-se muito contido no nariz, e algo austero também em boca, mas sempre denotando imensa classe, taninos maduros e sedosos, acidez perfeita e enorme elegância (18), chegados ao 2013, o tal “Best in Show”, a verdade é que não deu hipótese, um portento de vinho, confirmando que, de facto, tem algo especial, um verdadeiro luxo para os sentidos (19); o 2012 revelou um bom equilíbrio, num registo elegante e fresco, com taninos polidos e muito boa acidez (18), finalmente, o 2011 apresentou-se cheio de carácter, muita saúde, belíssima harmonia entre barrica, fruta e acidez, taninos de luxo e final interminável (18,5).
“Corre o tempo velozmente
Como a água da corrente
Nós também da mesma sorte
Correndo vamos à morte”
Esta é a inscrição que pode ler-se sob o plinto onde assenta a estátua do “Gadanha” de Estremoz. Representando, primitivamente, o deus Saturno, símbolo da fartura e da abundância, passou a ser conhecido como o é hoje, “Gadanha”, assim baptizado pelas gentes de Estremoz em virtude da enorme foice que segura numa das mãos. Na outra, uma ampulheta simbolizando a celeridade do Tempo e a fugacidade da vida, não deixando de ser irónico que, ao representar a fugacidade do Tempo, tenha acabado por se tornar eterno, permanecendo na memória colectiva da cidade.
Não sei se os vinhos de Tiago Cabaço serão eternos. Provavelmente não. Mas que recebem a passagem do tempo com suprema elegância e carácter, disso não tenhamos dúvida alguma.
Reza ainda a lenda que quem beber a água da fonte do “Gadanha” fica irremediavelmente preso ao sortilégio do encantamento enfeitiçado de Estremoz e das suas gentes. Pois devo confessar que não bebi água da fonte, mas que Estremoz e as suas gentes têm algo de especial, disso fiquei com a certeza!
(Artigo publicado na edição de Outubro de 2024)
Caves São João: Serena é a mudança
A inovação e criatividade sempre foram uma forma de estar das Caves São João. As influências do melhor que se fazia lá fora eram trazidas pelos seus fundadores, homens viajados e cosmopolitas. Na segunda metade do século XX, todo o país conhecia e reconhecia as referências “Frei João” e “Porta dos Cavaleiros”, rótulos que encimavam […]
A inovação e criatividade sempre foram uma forma de estar das Caves São João. As influências do melhor que se fazia lá fora eram trazidas pelos seus fundadores, homens viajados e cosmopolitas. Na segunda metade do século XX, todo o país conhecia e reconhecia as referências “Frei João” e “Porta dos Cavaleiros”, rótulos que encimavam todas as mesas da restauração portuguesa. Em 1971, antevendo as mudanças do paradigma de consumo de vinhos e espumantes e o surgimento de consumidores que procuravam maior identidade nos vinhos, é adquirida a Quinta do Poço do Lobo, no concelho de Cantanhede e, a partir dali, nasce a marca homónima, passando as caves a possuir vinhos de Quinta.
Como empresa familiar, a Sociedade dos Irmãos Unidos, designação social da mesma, sofreu os reveses das querelas internas. No final da segunda década deste século entrou num período mais conturbado, acabando, por vicissitudes várias, a ser alienada a quase totalidade do capital social a um conjunto de investidores em 2022. A partir daí, aguardavam-se as mudanças que os novos sócios, da área imobiliária e financeira, iriam imprimir à empresa centenária e que é a mais antiga em atividade na Bairrada. Fernando Sapinho, Enrique Castiblanques, Mário Vigário, Nuno Ramos, Paulo Morgado e Mário Mateus, são empresários em diversos ramos de atividade. O vinho surge-lhes como uma paixão racional de quem olha para as Caves São João como um diamante a lapidar.
No centro destas mudanças, ficou Célia Alves, ela que em tempo de marés violentas e tormentas várias, não largou o leme de uma marca secular e histórica, não permitindo que, em momento algum, ficasse à deriva.
Serenamente, os últimos anos foram de restruturação, dando uma nova luz à empresa que, com os seus fundadores, esteve no passado ligada à criação da região demarcada da Bairrada e à Confraria dos Enófilos da Bairrada, que, curiosamente, teve na sua liderança nos últimos anos Célia Alves, que mantém a gerência das Caves conjuntamente com os ativos sócios Fernando Sapinho e Enrique Castiblanques
No passado dia 24 de Junho, Dia de São João, as Caves São João destaparam o véu da revolução tranquila que têm operado, celebrando o seu 104º aniversário com várias novidades. A maior, e porque o palco escolhido para os festejos foi a Quinta do Poço do Lobo, revelou-se na expansão que aquela propriedade teve com esta nova estrutura societária. Ao longo dos últimos dois anos, entre reconversão de área de floresta em vinha e aquisição de parcelas contíguas, houve um aumento da área de vinha em 10 hectares, que se somam aos 30 já existentes. Com o aumento da produção de espumante no horizonte, nascem ali novas plantações das castas brancas Bical, Arinto e Maria Gomes (Fernão Pires).
Do Poço do Lobo ao Porta dos Cavaleiros
A casa, que mantém o classicismo que sempre a caracterizou, não descura o arrojo e ousadia e, na apresentação dos novos vinhos, mostrou que segue de perto as tendências e, para isso, não deixou de surpreender. O Baga Novo Natcool, um tinto da colheita de 2022, mostra toda a irreverência da casta, num vinho disruptivo mas totalmente assertivo. Nascido de uma parceria com a Niepoort, empresa familiar que possui relações comerciais com a empresa bairradina que remontam a meados do século XX, rompe com estigmas e mostra o quanto a Baga em jovem é capaz de criar vinhos absolutamente emocionantes. Nos espumantes, deu-se a conhecer a nova edição do Quinta do Poço do Lobo, na sua versão rosé, da colheita de 2021 e já com mais de 24 meses de estágio. Aqui reinam, num blend que casa com sucesso, a Baga e o Pinot Noir.
Os Porta dos Cavaleiros, marca criada nos anos 60 do século passado, consagrando a investida da empresa bairradina na região do Dão, surgem agora totalmente renovados, impondo, na rotulagem, um maior sentido histórico e arquitetónico, onde o monumento representativo – Porta dos Cavaleiros, como uma das medievais portas da cidade de Viseu – ganha um maior rigor e sentido iconográfico. Nos vinhos, a tradição mantém-se. As Caves adquirem os melhores lotes de tintos e brancos produzidos no Dão e, à maneira antiga, procedem à sua “afinação”, lançando-os no mercado. As duas propostas apresentadas foram o Porta dos Cavaleiros tinto 2022, e o Porta dos Cavaleiros Reserva Especial branco, este uma categoria rara no Dão, apenas ao alcance dos vinhos que se destacam em enorme qualidade na câmara de provadores.
Crescer, solidificar mercados, impor-se como marca de prestígio, aumentar área de vinha e ser um verdadeiro referencial da Bairrada do futuro. Este é o caminho que as Caves São João tão bem está a trilhar para este segundo século de vida que se segue.
Nota: O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico.
(Artigo publicado na edição de Setembro de 2024)
A Sucessão de António Saramago
A vida de António Saramago, enquanto enólogo, – as regiões por onde passou, as experiências que adquiriu, as técnicas que desenvolveu – dava para escrever um livro. Mas não teve tempo para isto, pois estava sempre ocupado a produzir vinho, com grande entrega e paixão. Começou a trabalhar em 1962, quando foi admitido na José […]
A vida de António Saramago, enquanto enólogo, – as regiões por onde passou, as experiências que adquiriu, as técnicas que desenvolveu – dava para escrever um livro. Mas não teve tempo para isto, pois estava sempre ocupado a produzir vinho, com grande entrega e paixão.
Começou a trabalhar em 1962, quando foi admitido na José Maria da Fonseca. Na altura tinha apenas 14 anos. Mais tarde estudou enologia em Bordéus e é num dos enólogos mais antigos de Portugal. A partir dos anos 80 fazia consultadoria enológica em várias regiões do nosso país e foi responsável por alguns dos vinhos bem aclamados, como o Terras do Suão ou Tapada de Coelheiros, já sem falar no seu trabalho diário integrado na equipa de enologia de José Maria da Fonseca.
“Há um vinho que todos bem conhecem, mas o meu nome não está lá. Estava sempre escondido” – explica António Saramago. Sempre discreto, procurando rigor no seu trabalho, nunca perseguiu a fama. “A visibilidade, para mim, existe quando as pessoas provam os meus vinhos e dizem que são bons”, diz o enólogo com um ar calmo, mas convicto.
Outra convicção profissional consiste na dedicação. Estar presente, para António Saramago, é imprescindível, mesmo que isso implique viagens e deslocações. “Não faço vinhos por telefone. E, na vindima, estou sempre na adega, sejam sábados, domingos ou feriados.”
A discrição na postura não impediu que a ambição, vinda da alma, levasse à criação do seu próprio projecto. Com 40 anos de experiência, fundou, em 2002, a empresa familiar, com a sua esposa e filhos, a António Saramago Vinhos. “Queria fazer vinhos que tivessem o meu cunho e o meu nome no rótulo.” E sempre se manteve fiel ao seu estilo, assente na concentração, estrutura, estágios prolongados e uso de boas barricas.
Reconhece que os tempos podem mudar, mas nunca deixou que modas e tendências lhe desvirtuassem o caminho. “As regiões não podem ser estanques, nem os produtores, mas têm de ter uma identidade. Eu sou conhecido pelo quê?”, pergunta, deixando uma pausa no ar porque a resposta é óbvia, o estilo e o carácter dos vinhos de António Saramago são evidentes.
Por muitos vinhos que tenha feito em Portugal e no sul de Brasil, onde também tem trabalhado desde há 14 anos, o seu nome estará sempre ligado à casta Castelão. E nesta prova tivemos o privilégio de reviver alguns dos seus vinhos emblemáticos.
O enólogo, fundou, em 2002, já com 40 anos de experiência, a empresa familiar com a sua esposa e filhos, a António Saramago Vinhos.
Castelão e não só
O António Saramago Superior 2016 é proveniente de uma vinha muito antiga, não regada. Cada cepa traz dois a três cachos muito concentrados. Passou 18 meses em barrica nova e dois anos em garrafa. Hoje em dia é raro um produtor esperar pelo vinho. Tem fruta macerada e ervas aromáticas esmagadas, especiaria abundante, leve farmácia e notas balsâmicas e compotadas, para além de vegetal seco. Boca compacta, tanino apertado e bem presente, projectando, no palato, pó de mostarda, pimenta preta, louro, café e notas de soja.
A seguir foi o 2013, em magnum, da mesma vinha, mas de um ano mais quente. Ambiente de fruta escura, muito concentração no nariz, vegetal quase a lembrar pimenta verde. Bonito nesta sua austeridade, com muito estilo e carácter a revelar cerejas, amoras, mentolado e balsâmico, sous bois e musgo. Envolvente, logo no início agarra bem com tanino. Certa rusticidade não escondida dá-lhe carácter.
O AS 2015 é a segunda edição (depois do 2009). Provém de uma vinha jovem com muita potência. Lote com Touriga Nacional, Alicante Bouschet e um pouco de Cabernet Sauvignon. Muita especiaria no nariz, chocolate negro, balsâmico, eucalipto e alfarroba. Mastigável, tanino potente e muito aveludado na textura. Boca ampla, menos rugoso do que os Castelão puros. Final especiado e longo.
Estes vinhos já foram provados pela Grandes Escolhas em alturas diferentes e as respectivas notas de prova podem ser consultadas no site ou na aplicação. O momento alto da prova foi claramente o Sucessão Reserva Especial 2014.
“Tenho 76 anos. Não me considero velho, mas quando caminhamos para uma certa idade, pensamos noutras coisas da vida. A minha mãe morreu sem conhecer os netos. Eu tenho a felicidade de ter quatro: António, Maria, Filipe e Guilherme”, disse com ternura na voz.
É aos netos que quer dedicar o seu tempo a partir de agora e a eles dedicou o seu grande vinho, que foi pensado já há muito tempo e lançado só agora. “Para mim este é um dos melhores vinhos que bebi na minha vida” – resume sem falsas modéstias.
Feito de Castelão e Alicante Bouschet dos solos arenosos da Península de Setúbal, teve estágio prolongado, de 72 meses, em barricas de carvalho francês e mais 24 meses em garrafa. Foram produzidas apenas 900 unidades.
A seguir foi também apresentado o Moscatel Roxo de Setúbal 10 Anos que estagiou em barricas recuperadas do vinho tinto. Foi tudo raspado, mas não queimado para não conferir tosta ao vinho. Foram produzidas apenas 1000 garrafas. E, por fim, apetece citar António Saramago a declarar que “vinho é das melhores coisas que a natureza nos deu”. Quem dirá o contrário, depois de uma prova destas?
(Artigo publicado na edição de Setembro de 2024)