Geórgia: Onde tudo começou
Parece que os primeiros viticultores no nosso planeta eram os povos que habitavam o território da Geórgia há mais de 8000 anos. Durante diferentes escavações arqueológicas foram descobertas as sementes fossilizadas de videira e os fragmentos de vasos de barro com sedimento (sais) de ácido tartárico que remontam à era neolítica. As evidências arqueológicas sugerem […]
Parece que os primeiros viticultores no nosso planeta eram os povos que habitavam o território da Geórgia há mais de 8000 anos. Durante diferentes escavações arqueológicas foram descobertas as sementes fossilizadas de videira e os fragmentos de vasos de barro com sedimento (sais) de ácido tartárico que remontam à era neolítica. As evidências arqueológicas sugerem que as práticas de vinificação naquela região datam de 6000 a.C., ou seja, 3000 anos antes da invenção da escrita e 5000 anos antes do início da Idade do Ferro. As palavras ocidentais como “vinho”, “vino”, “vin” e outras, muito provavelmente provêm da palavra Geórgiana “ghvino”.
Em termos vitivinícolas Geórgia é um paradoxo. Por um lado, alega ser um “berço” de vitivinicultura na face da terra, por outro, é um player muito recente no âmbito mundial vínico. O seu principal mercado até há bem pouco tempo era a Rússia, para onde ainda em 2021 se exportava mais de metade de vinhos georgianos (Comtrade, Geostat). Eram de qualidade medíocre, com bastante açúcar – um tributo ao gosto do consumidor da União Soviética. Os hoje famosos vinhos feitos em qvevri – ânforas de barro – não eram conhecidos naqueles tempos. E mesmo actualmente, o vinho que representa o grande orgulho e identidade da indústria vitivinícola georgiana, corresponde apenas a 10% de produção nacional. É um nicho de inestimável importância, que trouxe uma grande projecção internacional aos vinhos georgianos, para além das descobertas arqueológicas, implementação de denominações de origem, regulamentos e controlo interno, bem conseguidos acordos internacionais, investimentos oportunos, e uma inteligente campanhia de marketing junto dos mercados estratégicos.
A geografia, o clima e as principais regiões
Situada entre Europa, Ásia e Médio Oriente, a Geórgia é ladeada pela Turquia, Arménia e Azerbaijão a sul. A norte, as montanhas do Cáucaso fazem fronteira com a Rússia, oferecendo protecção natural dos ventos frios, enquanto as planícies costeiras a oeste são abertas aos movimentos do ar húmido e quente do Mar Negro. O clima da Geórgia é diversificado, devido à sua topografia complexa. Na parte leste é seco e continental, com verões quentes e invernos amenos; a humidade e a precipitação são baixas, e a nebulosidade e as amplitudes térmicas são grandes. No oeste, o país possui um clima subtropical húmido, com pequena variação de temperaturas e precipitação alta.
A região vitivinícola mais importante da Geórgia, em termos quantitativos, qualitativos e históricos é Kakheti, na parte mais oriental do país, onde são cultivadas aproximadamente 65-70% de vinhas, situadas entre 400 e 700 metros de altitude. Em 2023, das 221 mil toneladas de uva processada em todo o país, 204 mil toneladas foram da região de Kakheti.
Imereti é uma das regiões mais diversificadas da Geórgia, quer pelas condições climáticas, quer pela composição do solo, o que se reflecte na grande variedade dos vinhos. Kartli é mais uma região vinícola notável, conhecida pelo seu estilo mais moderno e pelos espumantes de alta qualidade. Racha-Lechkhumi distingue-se de outras regiões pela sua beleza paisagística e escassez de vinhas (cerca de 1600 ha), devido ao clima mais agreste, associado a maior altitude, e castas raras. Meskheti, no sul do país, é uma das regiões vitivinícolas mais altas no mundo: as vinhas encontram-se a 900-1700 metros acima do nível do mar. Outras quatro regiões situadas ao longo do Mar Negro – Guria, Samegrelo, Abkhazeti e Adjaria – partilham um clima húmido tropical.
Castas autóctones
De acordo com o Cadastro de Vinhas da Geórgia, a área de vinha compreende 48.700 hectares. Embora a Geórgia tenha mais de 500 castas indígenas, apenas quatro dezenas são utilizadas com sucesso comercial e só algumas delas são conhecidas fora do país. A maioria dos vinhos exportados trazem nos rótulos nomes Saperavi, Rkatsiteli, Mtsvane, Kisi e pouco mais. Algumas castas internacionais também são cultivadas no país.
Saperavi é casta tinta muito antiga e mais identitária da Geórgia, responsável por 10% de plantações (cerca de 4.000 ha) e disseminada por todas as regiões. É uma casta tintureira, cujo nome significa “tingir”, “manchar”, com todas as características em alta – cor, tanino e acidez. É capaz de produzir boa qualidade mesmo quando o rendimento é alto, sendo usada desde os vinhos de entrada até os exemplos mais expressivos, cheios de carácter e com potencial de guarda.
Rkatsiteli é a casta branca nativa de Kakheti, que predomina nas plantações do país, com 43% (cerca de 20.000 ha). Sendo pouco exigente em termos de local, é amiga do viticultor. Mesmo quando chega ao teor de açúcar elevado, consegue preservar a acidez. Quando vinificada no estilo moderno (internamente chamado de “europeu”), a Rkatsiteli oferece aromas florais subtis com notas cítrinas, marmelo e maçã. Se vinificado em qvevri, o vinho mostra-se mais poderoso, moderadamente tânico, com acidez nítida. No estágio oxidativo desenvolve aromas de mel, casca de laranja seca, especiarias, damasco e outras frutas de caroço.
Mtsvane Kakhuri é outra variedade muito antiga, significa “Kakheti verde” e é comummente referida apenas como “Mtsvane” (não confundir com Goruli Mtsvane). Facilmente acumula açúcar, mantendo elevados níveis de acidez. Daí a sua capacidade de produzir vinhos doces e fortificados. Quando vinificado num estilo convencional, o vinho branco jovem apresenta frequentemente um tom palha esverdeado e transmite aromas frescos de pêssego, florais, cítrinos e tropicais, com leve tom mineral. Fica bastante escuro e apresenta mais carácter de damasco e frutas de caroço quando vinificada em qvevri. Oxida com facilidade e, a menos que seja vinificada em qvevri, requer um manuseamento com protecção do oxigénio. Alternativamente, pode ser loteada com outras castas.
A casta Khikhvi foi salva de extinção. Em 2004 havia apenas um único hectare desta variedade registado em todo o país. As plantações aumentaram consideravelmente desde meados da década de 2010 e a casta está a ganhar popularidade entre os produtores e os consumidores. A sua assinatura aromática é distinta: notas florais de buxo e flores silvestres, frutos amarelos maduros e damasco. Os vinhos são produzidos de acordo com técnicas europeias e em qvevri. Nestes últimos acentua-se o carácter de frutos secos e flores. Com níveis moderados de álcool e acidez suave, Khikhvi pode ser interessante também em lotes.
A Vaziani
A Vaziani, localizada em Kakheti, foi fundada em 1982. O ponto de viragem foi em 2012, com investimento em modernização da adega e aquisição das vinhas próprias. A gama de vinhos feitos em qvevri sai sob o nome Makashvili Wine Cellar, relacionada com a propriedade Makashvili datada do século XV. Os vinhos são importados e destribuidos em Portugal pela Atlantikdynamic, que já há muitos anos distribui vinhos da Moldova no nosso país.
O famoso Qvevri
Qvevri é o nome mais popularmente conhecido. Mas existem muitos outros nomes dados aos recipientes de barro para armazenamento de vinho, em função dos tamanhos e formas diferentes: churi, dergi, lagvini, lagvani, lagvinari, kvibari, kubari, lakhuti, chasavali, khalani e kotso.
A forma de qvevri Georgiano que existe hoje remonta ao III milénio a.C. Antes deste período, eram comuns principalmente os pequenos qvevris, de 1-1,5 m de altura, que tinham uma base plana e uma barriga larga. Qvevri em forma de ovo é actualmente o mais comum.
A capacidade varia de algumas centenas de quilos de uva a várias toneladas, sendo a capacidade mais comum de uma a duas toneladas. A região Kakheti distingue-se pelos grandes qvevris, com seis a oito mil litros.
O qvevri fica enterrado no solo, o que garante uma temperatura ideal e estável para o envelhecimento e armazenamento do vinho. No século III a.C., os produtores começaram a enterrá-los na terra, primeiro até aos ombros, e por volta do século quarto d.C., até ao pescoço.
A qualidade do vinho feito em qvevri é altamente influenciada pela qualidade da sua limpeza, que deve ser feita todos os anos. O recipiente é lavado com limpadores de ervas e água e depois desinfectado com enxofre. A superfície interna às vezes é forrada com cera de abelha e a superfície externa é tradicionalmente coberta com cal. Em 2013, a UNESCO introduziu o Tradicional Método de Vinificação em Qvevri na lista de Património Cultural Imaterial da Humanidade.
O vinho feito em qvevri envolve geralmente a vinificação e o estágio com certa quantidade de películas e engaço, chamado “chacha” (o mesmo nome também é dado a uma aguardente bagaceira, tradicional na Geórgia). A quantidade de bagaço e o tempo de estágio têm uma variação regional. Por exemplo, na região de Kakheti usa-se chacha na totalidade, enquanto na região de Imereti corresponde no máximo a um terço de mosto em qvevri. A casta, a duração da fermentação alcoólica, as condições ambientais, etc., são factores que determinam o período que o mosto permanece com chacha. A duração do vinho tinto em qvevri pode ser igual ao período de fermentação alcoólica, ou de sete a 10 dias, ou ser prolongada até duas semanas depois da fermentação. No caso das uvas brancas, o vinho é guardado com a chacha até a primavera.
Os vinhos georgianos feitos em qvevri precisam de conversa. Talvez não seja por acaso que existem os famosos longos brindes georgianos que permitem aos vinhos, sobretudo brancos, abrir no copo. A temperatura de consumo destes vinhos ronda os 14 e os 18˚C, também para desfrutá-los na sua plenitude.
(Artigo publicado na edição de Junho de 2024)
Adega de Redondo – Esclarecimento
“Na edição de abril da revista Grandes Escolhas foi apresentada uma reportagem efetuada na Adega de Redondo, sob o título ‘Aqui nasce o Porta da Ravessa’ onde, além de provados vários vinhos, foram comentados diversos temas desta que é uma das mais antigas adegas cooperativas do Alentejo. Ao ler a reportagem publicada, deparei-me com um […]
“Na edição de abril da revista Grandes Escolhas foi apresentada uma reportagem efetuada na Adega de Redondo, sob o título ‘Aqui nasce o Porta da Ravessa’ onde, além de provados vários vinhos, foram comentados diversos temas desta que é uma das mais antigas adegas cooperativas do Alentejo. Ao ler a reportagem publicada, deparei-me com um excerto de uma frase minha que, da forma como foi publicada ou lida fora de todo o contexto, pode levar a uma interpretação errada das palavras utilizadas, situação que me levou a pedir junto da revista uma retificação ao artigo. Nesse artigo, João Paulo Martins faz um enquadramento da Adega de Redondo que se rege pelo Código Cooperativo, que determina que, em Assembleia Geral, cada associado representa um voto, independentemente da área de vinha que tem na sua exploração. Refere ainda que, atendendo a que na Adega Cooperativa de Redondo cerca de 20 associados entregam 70% de toda a produção e que alguns têm perto de 100 ha de vinhas, poder-se-ia considerar que há alguma injustiça nesta regra, indicando que eu concordava afirmando ‘não está certo, mas é algo que não podemos mudar’.
De forma a que não haja nenhum mal entendido, é importante referir que o contexto apresentado, quando se falou na questão dos associados, foi especificamente no caso em que se estivéssemos a analisar ou a comparar com uma empresa comercial privada. Numa ótica empresarial não estaria certo, pois nestas empresas os poderes de decisão, ou de voto, são de acordo com as quotas de cada um, mas sendo uma adega cooperativa e que se rege pelo código cooperativo, nada podemos alterar. É assim que funciona e quem se propõe para associado de uma adega cooperativa já sabe que, independentemente da sua área de vinha, apenas tem direito a um voto.
Não nos podemos esquecer do importante papel que as adegas cooperativas tiveram, e ainda têm, no sector vitivinícola não só no Alentejo, onde conta com cinco adegas cooperativas em atividade, como em todo o país. Convém também recordar o não menos importante papel económico e social nas regiões onde as adegas cooperativas se encontram, com os diversos postos de trabalho gerados, quer de forma direta, quer indireta. O associativismo, que muito valorizo, através das adegas cooperativas, é a forma de muitos viticultores poderem estar presentes num sector cada vez mais competitivo, em que, por vezes, parece continuar a existir algum estigma das adegas cooperativas razão pela qual, da forma como o excerto da frase publicada, poderia levar a interpretações contrárias àquilo que defendo e que foi comentado.” Nuno Pinheiro de Almeida
Vidigal Wines: Quando a sorte bate à Porta 6
Quem conhece Manuel Bio, CEO do grupo Abegoaria (na fotografia de abertura), já percebeu que é feliz a fazer negócios, quer seja vender ou comprar, de pequena ou grande escala. Com olho para potencial e oportunidades, grande visão estratégica e racionalidade financeira, já salvou empresas da falência e, até hoje, expandiu a Abegoaria às regiões […]
Quem conhece Manuel Bio, CEO do grupo Abegoaria (na fotografia de abertura), já percebeu que é feliz a fazer negócios, quer seja vender ou comprar, de pequena ou grande escala. Com olho para potencial e oportunidades, grande visão estratégica e racionalidade financeira, já salvou empresas da falência e, até hoje, expandiu a Abegoaria às regiões do Alentejo, Douro, Lisboa, Tejo, Dão e Vinhos Verdes, conquistando as casas dos consumidores portugueses com vinhos de enorme sucesso, sobretudo nos supermercados. A ambição, contudo, é também internacional, e, para isso, a Abegoaria concretizou recentemente um dos seus projectos mais arrojados, com a compra da totalidade da Vidigal Wines — sediada em Cortes, Leiria — que antes pertencia a António Mendes Lopes e a capital norueguês. A Vidigal tem origem ainda no início do século XX, numa quinta fundada por um cónego e, no início dos anos 90, alguns proprietários depois, passa para as mãos de António Mendes Lopes que, conjugando as suas vivências no estrangeiro com bastante criatividade e uma (boa) dose de loucura, levou a Vidigal Wines a ser uma das empresas de vinho portuguesas com mais sucesso na exportação, apoiada no fenómeno Porta 6, com milhões de garrafas vendidas lá fora, números que nunca pararam de crescer. A marca nasceu em 2012 e, neste momento, é o tinto português que mais vende fora de Portugal, e o segundo vinho europeu mais vendido no mercado inglês, com quase 5 milhões de garrafas comercializadas no Reino Unido. A seguir, vêm os mercados do Brasil, Israel e Canadá. A produção total anual do Porta 6 tinto supera os 8 milhões de garrafas. António Mendes Lopes não tinha, no entanto, intenções de continuar ligado à empresa após a aquisição, mas acabou por ficar como consultor, “porque o convenceram de que ali fazia falta”. Manuel Bio, e a restante equipa administrativa do grupo, conheceram António em pleno início de pandemia de Covid-19, com as primeiras conversas sobre um possível negócio em 2020. A concretização do acordo deu-se em 2022, mas em 2021 estava tudo quase fechado, e já trabalhavam em algumas coisas em conjunto.
Porta 6 é o tinto português que mais vende fora de portugal. E segundo vinho europeu mais vendido no mercado inglês, com quase 5 milhões de garrafas comercializadas no Reino Unido.
“Para nós era talvez a única empresa que, nesta fase mais recente, ‘jogava’ connosco, porque éramos muito fortes no mercado interno, com uma posição bastante privilegiada na grande distribuição e consumo em casa. Estávamos a começar a olhar para o consumo fora de casa e a desenhar uma divisão de ‘fine wines’, mas ainda não era estratégia para o grupo, queríamos fazê-lo com tempo. Estávamos a tentar a exportação, sendo que começar na exportação com vinhos portugueses é difícil e o sucesso demora a chegar. Surgiu assim esta empresa, que não tinha nada do que nós tínhamos, e tinha tudo o que estávamos à procura. No fundo, a Vidigal veio antecipar 10 anos a nossa estratégia de exportação. É um grande investimento, mas ganhámos 10 anos lá fora, e também alguns vinhos muito interessantes para o consumo fora de casa e para a tal divisão ‘fine wines’, como o Brutalis”, explica Manuel Bio. Luís Bio, director de internacionalização da Abegoaria, acrescenta, “podemo-nos orgulhar, como grupo, de sermos hoje praticamente nº1 em off trade (supermercados); nº1 em Inglaterra, também nos supermercados; top 5 no Brasil; nº1 em Israel… ou seja, conseguimos consolidar nesta aquisição uma “value story” e um vinho como o Porta 6, que faz com que, hoje, sejamos produtores de dois terços do vinho português vendido nos supermercados em Inglaterra”. António Mendes Lopes interrompe: “Não é o vinho Porta 6, é a marca”. E continua, explicando que “o Porta 6 é todo imagem. O vinho é bom, mas isso não chega. O Porta 6 tem de ser como é porque a imagem está na cabeça das pessoas, é muito mais do que a qualidade do vinho.
O ex-proprietário da Vidigal Wines, que sempre defendeu aquilo a que chama um modelo horizontal de trabalho, acredita que é esta a fórmula que serve uma marca. “Cada um faz o seu papel e as pessoas não sabem nem se metem no dos outros. Porque temos de perceber que as pessoas não fazem bem tudo, nem é possível que assim seja. Há um enólogo melhor para transformar as uvas em vinho, outro melhor para finalizar o vinho e os lotes… Eu deito-me a pensar num rótulo e numa marca, no final de uma viagem tenho um texto feito… não me tirem isto, que é o que eu gosto de fazer! Mas não me falem em uvas e vinhas, porque eu não gosto. Só gosto de uvas quando já estão no tegão”, exemplifica António Mendes Lopes, convicto de que “é preciso cercarmo-nos de pessoas teimosas e criativas, pessoas capazes de dizer ‘não’ na nossa cara. Pessoas que conseguem pensar juntas. A inteligência colectiva funciona”, remata. Neste sentido, criou um departamento chamado Brand Defender, onde os accionistas não participam, para defesa das marcas e da qualidade das mesmas. “Quem tiver interesse em poupar, e não em gastar, não pode entrar neste departamento”, sublinha António Mendes Lopes, que advoga não haver ciência exacta para o sucesso, mas acredita em alguns princípios: “Começa-se por fazer as coisas com qualidade e por manter qualidade e o estilo teimosamente, aconteça o que acontecer. Não se pode comprometer a qualidade ou o estilo. E depois espera-se… espera-se que a sorte chegue. Por definição, a sorte não pode ser planeada. É por isso que se chama sorte”. E por falar em estilo, insere-se aqui uma das componentes mais importantes da marca Porta 6, a imagem. O rótulo icónico é a reprodução de uma pintura que estava a ser vendida a turistas nas ruas de Lisboa pelo próprio autor, o artista alemão Hauke Vagt, que residia no bairro de Alfama, perto do castelo de São Jorge. A pintura do famoso eléctrico amarelo chegou às mãos de António Mendes Lopes, que decidiu negociar com o autor e fazer dela o rótulo do Porta 6. “Qualquer pessoa poderia ter comprado aquela pintura e transformá-la num rótulo, mas fomos nós que o fizemos”, afirma, também numa alusão à sorte de que tanto fala.
Os enólogos António Ventura, Rafael Neuparth (à esquerda) e Arnaldo Simões (último à direita) com Luís Bio, Manuel Bio e António Mendes Lopes.
Já António Ventura e Rafael Neuparth são os enólogos responsáveis pelos vinhos da Vidigal Wines, e Arnaldo Simões dedica-se à finalização dos lotes, estando residente na empresa. Como se faz um vinho de 8 milhões de garrafas, como o Porta 6 tinto, mantendo a qualidade e consistência? Perguntamos. “Acabou por ser fácil, porque tudo isto foi crescendo ano após ano, não começámos com 8 milhões, foi mais com duas paletes…”, diz António Ventura, entre risos. O que mudou tudo foi, na verdade, o “momento James Martin”, o chef-celebridade inglês que se lembrou de afirmar, no programa BBC Saturday Kitchen, que o Porta 6 era um dos melhores tintos que tinha provado em dez anos. Nessa altura, a única distribuidora da marca no Reino Unido era a Majestic que, depois do programa ir para o ar, viu o seu site “ir abaixo” com tanta solicitação. “Foi aqui que a sorte nos bateu à porta. Coube-nos recebê-la, acarinhá-la e trabalhar com ela”, lembra António Mendes Lopes. Nessa altura, foi difícil ter vinho para tanta procura, e um incremento revelou-se obrigatório. “Estavam a pedir-nos dez contentores, e tivemos de fazer esse trabalho. No ano seguinte já estávamos preparados. Nesse ano não tínhamos vinificação, o vinho era adquirido a terceiros, mas em 2014 nasce a adega das Encostas do Atlântico [empresa junto a Caldas da Rainha que é 70% da Vidigal Wines e que detém também as vinhas do projecto] e passámos a ter a nossa vinificação, o que nos facilitou muito e nos permitiu criar volume com qualidade. Temos uma equipa de enologia lá, liderada pelo Mauro Azóia, e outra na Vidigal, onde se faz apenas a finalização, mas cruzamos muito a informação e estamos sempre a provar juntos”, desvenda António Ventura. A Vidigal Wines explora, através da Encostas do Atlântico, cerca de 350 hectares de vinha, que se situam maioritariamente nas regiões de Alenquer e das Caldas da Rainha.
Para algo completamente diferente…
Embora o porta-bandeira da empresa (passe-se a expressão) seja o Porta 6, há outro elemento no portefólio com conceito e posicionamento totalmente distintos, o topo de gama Brutalis. Fazendo jus ao nome, é um tinto de potência, desaconselhado aos fracos de coração (ou, por outra perspectiva, talvez funcione como desfibrilhador), com Alicante Bouschet na base do lote e 20% de Cabernet Sauvignon. António Mendes Lopes, que viveu na Dinamarca, chamou Brutalis ao vinho inspirando-se num rinoceronte com o mesmo nome, que se encontrava num jardim zoológico daquele país. “Era meio louco, levava tudo à frente”, descreve. Mesmo os mercados mais fortes para o Brutalis são, na sua maioria, completamente diferentes dos do Porta 6, passando sobretudo por Portugal, Alemanha, Brasil, China e Macau. Uma prova vertical de oito colheitas deste tinto, do mais antigo para o que está actualmente no mercado, revelou algumas surpresas, com algumas edições a chocar pela juventude e vivacidade, e outras até mais elegantes, que resultaram um pouco menos “Brutalis” do que a equipa da Vidigal pretendia. O primeiro, de 2005 (ainda Regional Estremadura), foi o único feito com uvas da Quinta da Cortesia, na Merceana, mas rapidamente se percebeu que não era a vinha ideal para o perfil que se procurava. Apresenta um perfume exótico de fruta negra, especiarias, sândalo e cera de abelha. Na boca é mais leve do que se esperava, bem vegetal e maduro na fruta, chão de bosque e leve balsâmico no final (16,5 valores).
A partir do 2008 e até ao 2013, entram as uvas da “vinha do cemitério” (precisamente por ser perto de um), também na zona da Merceana. O 2008 foi uma das surpresas positivas, bastante vivo no nariz de fruta silvestre madura, muita pimenta branca, um leve lado resinoso, e outro mais lácteo e fumado. Na boca tem o tanino ainda aguerrido, muito novo, quase infante. Agradavelmente adstringente, largo e longo (17,5). O 2009 entra no mesmo registo do anterior mas mais vegetal, com uma gordura fumada bem presente. Na boca é um pouco mais magro, choveu cedo nesse ano e António Ventura diz ser a causa (17). O 2012 é, curiosamente, talvez o menos Brutalis de todos mas o que mais impressiona ao nível da qualidade absoluta. Nariz muito elegante e fino no perfume, onde balsâmicos encontram chão de bosque, eucalipto, mirtilo e arando. Na boca é vivo no lado especiado e balsâmico, potente e com muito carácter mas extremamente elegante em simultâneo, longo e sedoso no final (18). Já o 2013 é talvez o mais especiado de todos, com muita pimenta preta, cardamomo, levíssimo açafrão e agulha de pinheiro. Na boca está muito novo, imponente, tanino adstringente e final de potência. Para esperar em garrafa (17). O 2015 muda totalmente de cenário, passando a ter origem numa vinha perto do Cadaval, no lado Norte da Serra de Montejunto. Mais balsâmico no nariz do que os outros, com nota vegetal e bagas silvestres. Na boca tem uma juventude pornográfica, muito intenso e vegetal, tanino bruto e por limar. Longe do momento certo (17,5). No 2017, os balsâmicos juntam-se a fruta silvestre e cera de abelha no aroma. Bem adstringente, mas com volume a suportar, tem a particularidade de fazer sentir o álcool no final um pouco quente e medicinal (17). No mercado está o 2018, que se revela bem diferente das anteriores colheitas, a denotar mais as notas típicas do Cabernet Sauvignon. Ganhou equilíbrio e frescura balsâmica, mantendo a intensidade dos taninos. Promete crescer em garrafa (17,5).
Em apenas três anos, desde a aquisição, a Abegoaria duplicou as vendas globais da Vidigal Wines. “Sempre fomos uma empresa comercialmente muito agressiva, o que ajudou muito a que isso acontecesse. Aproveitámos, claro, o momento óptimo em que a Vidigal estava, sobretudo ao nível do produto e da imagem. Depois, foi abrir os canais, aproveitando clientes que já tínhamos na Abegoaria, nacionais e internacionais, e fazendo o mesmo com os vinhos da Abegoaria nos clientes da Vidigal”, adianta Manuel Bio. Um dos grandes objectivos do grupo é aproveitar as suas valências comerciais no mercado nacional, para levar a marca Porta 6 a ter, em Portugal, o mesmo sucesso que tem no mercado internacional. Para isso, a Abegoaria conta com a sinergia que já tinha com a distribuidora Vinalda, que assumiu a tarefa de trabalhar a marca no canal on trade (a sua especialidade) e continuar a alavancá-la no off trade. A tarefa é difícil, como reconhece Manuel Bio, mas não impossível, e os resultados, atesta, têm sido muito positivos…
(Artigo publicado na edição de Outubro de 2023)
Douro Superior: Uma viagem por três produtores
O que leva alguém no seu perfeito juízo a investir as suas poupanças numa região de agricultura muito pobre e, pior ainda, de clima quase a roçar o “desértico”? Na verdade, a terra de onde somos originários é – e continua a ser – um factor importante. Mas tem de haver muito mais, porque senão […]
O que leva alguém no seu perfeito juízo a investir as suas poupanças numa região de agricultura muito pobre e, pior ainda, de clima quase a roçar o “desértico”? Na verdade, a terra de onde somos originários é – e continua a ser – um factor importante. Mas tem de haver muito mais, porque senão teríamos as vilas e aldeias da sub-região cheias de vitalidade. Na verdade, estão a diminuir de população todos os anos, como acontece, aliás, com praticamente todo o interior. Um factor igualmente importante é a qualidade das uvas que daqui saem. E, claro, do vinho que com elas é feito. Não se estranha assim que a actividade vitivinícola seja das mais importantes nos concelhos pertencentes à sub-região do Douro Superior e em especial em Vila Nova de Foz Côa.
Quinta da Vineadouro
A história desta casa de Numão tem mais de 250 anos. O seu actual proprietário, Carlos Lacerda, pertence à sétima geração e quase foi por causa dele que se teria interrompido o ciclo familiar. De facto, a vida de executivo de topo levou-o a abraçar cargos muito exigentes em Portugal e, mais recentemente, na Malásia. Ou seja, não tinha de todo tempo para explorar o património familiar, composto por floresta, olival e vinha, num total de 140 hectares. Triste, mas pragmático, decide vender.
Numa das últimas visitas — já com agência imobiliária e tudo — a mulher, Teresa, convence-o a não vender. “Eu aligeiro a minha carga horária [Teresa é professora universitária de Gestão] e consigo gerir a propriedade”. Carlos aceita e começa em 2015 o nascimento de um dos mais promissores projectos da região. Aconselham-se com quem sabe, lêem muito, e decidem duas coisas: instalar fibra óptica e começar a recuperar a vinha, parte dela com mais de 120 anos. Mas, ao invés de arrancarem, reenxertam com as mesmas castas que lá existiam antes, planta a planta.
O património inclui as típicas “actuais” do Douro (brancas e tintas) mas também outras como Casculho, Bastardo, Rufete ou Marufo. Há ainda vinha nova, já com rega, apenas para ajudar as plantas jovens. Todas as plantas estão georreferenciadas, pelo que a vindima por castas é tarefa muito facilitada. Uma parte das uvas vai para a cooperativa local, mas o restante passou a ser vinificada em casa. Enquanto a adega da quinta não é recuperada, os vinhos são feitos numa adega vizinha, com o auxílio de dois nomes grandes do ensino da enologia: Manuel Malfeito Ferreira e Virgílio Loureiro. A filosofia de base é, diz-nos Teresa, minimalista, “para deixar falar o lugar”.
Todos os vinhos são da marca Vineadouro, neste momento com referências de brancos, tintos e um Clarete, este numa homenagem aos métodos antigos, onde todas as uvas eram vinificadas em conjunto. Dois dos vinhos são exclusivamente feitos das uvas das parcelas com mais de um século, e ambos têm a designação “Vinhas Velhas”. Na calha está um Marufo (de 2021) e um vinho do Porto, um Tawny 20 Anos. Todos os vinhos estão à venda no site da empresa (vineadouro.com) e Carlos garante que faz entregar em menos de 24 horas.
O casal Lacerda não vai ficar por aqui. A fibra óptica não está aqui por mero capricho de Carlos ou Teresa. Na quinta está a nascer um wine hotel, que Carlos afirma ser “o primeiro EcoTech Resort sustentável do Douro”. Será constituído por pequenas casas, num registo de decoração moderna e muito confortável. Uma das casas já está pronta e, pelo que vimos, o resultado é fenomenal.
Este será, sem dúvida, um dos projectos nacionais a seguir atentamente nos próximos anos. Os vinhos actuais mostram já uma seriedade impressionante, mas apostamos que muita e boas coisas estão ainda por acontecer aqui.
Quinta do Gravançal
Chegar às vinhas deste produtor não é tarefa rápida. Se vier de Foz Côa, tem que atravessar a parede da barragem do Pocinho, sobre o Douro, e virar imediatamente à direita. Depois é seguir uma estrada estreita e muito sinuosa, montanha acima. Nada de novo no Douro, e menos mal que o trânsito é residual. A meio de nada, esperam-nos dois irmãos, Armindo e João Rodrigues. São eles os proprietários das vinhas em encosta que vemos do outro lado do vale, por onde corre o ribeiro do Arroio, um pequeno afluente do Douro. Ao fundo, Vila Nova de Foz Côa.
As vinhas começaram a surgir pela mão do pai, Armindo Rodrigues, que as plantou desde o final da década de 80. Antes, aconselhou-se com amigos, procurando por castas e exposições, entre outras coisas. As primeiras vinhas — com castas misturadas — nasceram assim com exposição predominante a Norte, entre as cotas 150 e 300 metros. Aqui há uma mistura de patamares, nas zonas mais escarpadas, com vinha ao alto, instalada em zonas onde há argila, que segura melhor o solo e assim previne erosões. Com o falecimento do pai, os irmãos continuaram o sonho, mas optaram, em novas plantações, pela separação das castas em talhões.
A restante vinha fica ali próximo e mais acima, em Peredo dos Castelhanos, uma aldeia trasmontana do concelho de Torre de Moncorvo. Aqui há uma mistura de encosta com zonas de planalto, a mais próxima da adega, nascida em 2018. Parte desta área estava, aliás, em preparação do terreno para nova plantação. No total, a exploração tem assim plantas de Touriga Nacional, Touriga Francesa, Tinta Roriz e Tinta Barroca. Nas castas brancas predomina Rabigato, Viosinho e Malvasia-Fina. Ao todo são perto de 12 hectares de vinha, cuidados especialmente por João, que habita em Torre de Moncorvo.
Armindo, residente no Porto, passa por aqui com menos frequência, mais ao fim-de-semana. Apesar de pequena, a adega está bem equipada, não lhe faltando o frio, especialmente usado nas uvas brancas. Só uma parte das uvas é aqui vinificada. No total, entre 15 a 20 mil garrafas por ano. “Mas podemos crescer até às 50 mil”, diz-nos Armindo. A casa estava, à data da visita, à procura de um enólogo residente, que irá receber ajuda do consultor Rui Cunha. No entanto, Armindo tem conhecimentos de enologia, graças a uma formação ministrada na Universidade Católica do Porto.
A marca principal da casa chama-se Mimus, que tem duplo significado: é o nome de um pássaro da região (Mimus Polyglottos) e, ao mesmo tempo, pretende retractar o cuidado colocado nas uvas, na altura da vindima. A marca de topo, contudo, é a Quinta do Gravançal, que alberga dois Grande Reserva de 2019 (branco e tinto). Além do retalho, os vinhos são vendidos no site da empresa, em quintadogravancal.com, e os preços oscilam entre os 8 e os 24 euros. O negócio está a crescer e já existe mesmo uma casa anexa, com três quartos e piscina, onde se faz enoturismo. Tudo muito bem arranjado, com muito mimo.
Mapa
Dentro dos 3 projectos aqui abordados, o dos vinhos Mapa será certamente o mais conhecido. Não que tenha muitos anos, nada disso. Mas sobretudo porque desde cedo atingiu boa notoriedade sobretudo pela qualidade e consistência dos seus vinhos.
No início da história está Pedro Garcias, irrequieto jornalista e cronista no jornal Público. Desde sempre se mostrou amante da boa mesa e do bom vinho, paixão que partilha com a mulher, Cristina, e com alguns amigos, enófilos militantes. Já datam de há muito os famosos jantares de prova de vinhos, em que cada participante levava as suas garrafas. Pedro chegou mesmo a ter um restaurante.
Corria o ano de 1999 e o casal descobria uma quinta à venda junto a Vila Nova de Foz Côa, com cerca de 7 hectares de terra. O preço não era exorbitante e decidiram comprar. Juntaram todos os tostões que possuíam, recorreram a crédito e lançaram-se na aventura. No entanto, os primeiros vinhos só nasceram dez anos depois, em 2009. Os vinhos ganharam o nome Mapa e rapidamente começaram a ter notoriedade. Pedro vai rapidamente ganhando conhecimentos e experiência, especialmente na viticultura. Uma das suas vinhas, uma parcela com cerca de 1 hectare, ao pé de Foz Côa, tem largas décadas de idade. Na parte de cima, uma nova plantação: “Estou a plantar Rabigato no cimo desta vinha… Tinha esta casta noutra vinha, mais alta e virada a Norte, mas o Rabigato, que gosta de calor, tinha dificuldade em amadurecer”.
Já com três filhas, o casal vende a quinta original para adquirir uma nova e maior, em Muxagata. A área de vinha aumentou (e muito), mas a aventura está longe de acabar aqui. Mais recentemente vendeu parte das suas vinhas no Douro Superior e usou o dinheiro para adquirir a Quinta de São Bento, na região de Alijó, de onde Pedro é natural. Com um sorriso nos lábios conta-nos: “Estou a preparar-me para as alterações climáticas”. É aqui que está a sua adega e onde trabalha o seu enólogo, Sérgio Mendes. Pedro não lança novas colheitas para o mercado sem estas passarem, pelo menos, 2 a 3 anos em casa. “Dois Invernos ajudam a estabilizar os vinhos”, garante ele.
A produção de vinho sobe, entretanto, bem acima das 50 mil garrafas, entre branco, tinto, rosé e vinho do Porto. Além dos vinhos, Cristina e Pedro produzem azeite de olivais próprios em modo biológico, em Muxagata. Os vinhos sempre se mostraram sérios, mas os cumes têm sido ocupados pelas edições especiais, com designações como Vinha dos Pais, Vinha Clara ou Vinha dos Altos. Com o alargamento da produção e do portefólio, Cristina e Pedro decidem fazer contracto com um distribuidor. A escolha recaiu na conhecida empresa Garcias, uma feliz coincidência de nomes.
(Artigo publicado na edição de Julho de 2023)
Costa Boal Family Estates: Família com nome de casta
A história da Costa Boal mostra como uma abordagem clássica aos vinhos e à vinha, herdada por gerações anteriores, pode ser combinada com a modernização do negócio e das técnicas, para produzir vinhos de qualidade excepcional. António Boal iniciou a actividade vitivinícola no Douro, no planalto de Alijó, onde a sua família já trabalhava vinhas […]
A história da Costa Boal mostra como uma abordagem clássica aos vinhos e à vinha, herdada por gerações anteriores, pode ser combinada com a modernização do negócio e das técnicas, para produzir vinhos de qualidade excepcional.
António Boal iniciou a actividade vitivinícola no Douro, no planalto de Alijó, onde a sua família já trabalhava vinhas para empresas exportadoras desde 1857. No entanto, foi na cidade de Mirandela, na região de Trás-os-Montes, onde cresceu e constituiu família, que decidiu comprar um terreno em 2011, que incluía uma vinha bastante antiga. Boal tinha a intenção de replantar a vinha, mas foi aconselhado por um amigo a experimentar as uvas da vinha velha em barricas novas, o que levou, para sua surpresa, à produção do seu primeiro vinho, lançado em 2013, o Flor do Tua Grande Reserva 2011. Nascia assim um (novo) projecto familiar com DNA verdadeiramente transmontano, Costa Boal Family Estates, que, desde então, tem surpreendido pela qualidade crescente dos seus vinhos — hoje com assinatura enológica de Paulo Nunes — num portfólio variado em perfis, regiões e castas.
Entretanto, com a aquisição de mais vinhas, a Costa Boal produziu, em 2014, um Porto Vintage e o primeiro Palácio dos Távoras, marca para os vinhos D.O.C. Trás-os-Montes, a par de Flor do Tua e Quinta dos Távoras. Nesta região, o produtor tem 14 hectares de vinha com 67 anos, e um hectare de vinha centenária, em Sendim, mesmo junto à fronteira com Espanha. O enólogo consultor Paulo Nunes, actualmente um dos mais expressivos da cena vínica nacional, confessa que foram as vinhas velhas da Costa Boal que o convenceram a aceitar o convite para liderar a equipa de enologia residente. A adega, por sua vez, é mesmo na zona urbana de Mirandela, uma unidade descomplicada e pragmática que serve perfeitamente o seu propósito: fazer vinho de qualidade.
Já no Douro, a Costa Boal detém cerca de 40 hectares, entre Alijó, Murça e Vila Nova de Foz Côa. É também em Alijó, a 400m de altitude, que se encontra a adega antiga da família, com mais de 150 anos de idade, um edifício muito bonito erguido em lâminas de xisto. Esta adega mantém os tradicionais lagares de granito, nos quais ainda se faz pisa a pé das uvas com destino aos melhores vinhos da casa, e “esconde” vinhos do Porto antiquíssimos, relíquias mantidas pela família em nobre descanso.
O significado da Família
Basta passar algumas horas com António Boal para perceber que a família é o pilar mais fundamental da sua empresa. A proximidade, o comprometimento e o forte sentido de propósito da Costa Boal são valores nutridos num núcleo familiar onde se insere António, a companheira Raquel e a filha Carolina, ambas envolvidas no projecto, acompanhados pelos três cães Serra da Estrela, Flor, Tua e Côa.
Carolina Boal, apenas com 17 anos, já integra um curso de enologia e viticultura e não se vê a fazer outra coisa. A energia que emana, e a obstinação e disciplina que mostra, asseguram que será o futuro da Costa Boal. Desde muito pequena que afirma querer ser produtora de vinho. Quando tinha 5 anos, já era difícil tirá-la de uma vinha recém-plantada, e por isso essa parcela de Baga recebeu o nome de Parcela CB, as suas iniciais. O pai, claramente orgulhoso, olha para Carolina como se esta fosse todo o seu mundo, e é esta dinâmica que dá ao projecto uma identidade muito própria e o alicerça.
António Boal tem 43 anos. Nasceu em 1979, em Cabeda, Alijó, numa rua que hoje se chama Rua Bernardino Boal, membro da sua família e um dos fundadores da Casa do Douro. Esteve sempre ligado ao vinho e à terra, por influência do pai, e começou a sua formação na Escola Agrícola do Rodo, no Peso da Régua, antes de ingressar em Engenharia Alimentar, em Mirandela. Acabou por se apaixonar por (e em) Mirandela, onde se casou, e por isso resolveu comprar ali um terreno com vinha em 2011, ano de fundação do projecto Costa Boal Family Estates. “O meu pai dizia-me muitas vezes que, para mandar, é preciso saber fazer, e hoje dou-lhe toda a razão”, confessa. “Graças a ele sei fazer tudo na vinha, menos uma tarefa, que é enxertar”. António Boal criou os vinhos Costa Boal Homenagem em honra do pai. Recentemente, ganhou um novo hobby, que o faz feliz: andar de bicicleta pelos montes.
A expansão
A mais recente novidade da empresa, a nível de negócio, foi a expansão para uma região totalmente diferente da de origem: em 2021, a Costa Boal deu um pulo para Estremoz, no coração do Alentejo vitivinícola, como parte da sua estratégia de crescimento. Em Estremoz — a sub-região que não o é, infelizmente e incompreensivelmente — a empresa encontrou uma propriedade ideal para fazer vinhos de qualidade superior e com carácter, desafio em relação ao qual Paulo Nunes esteve à altura, como seria de esperar. A Herdade dos Cardeais agrega 10 hectares de vinha com 25 anos a uma adega, e já deu origem às marcas Monte dos Cardeais e Quinta dos Cardeais, que vieram ampliar o segmento premium do portefólio da Costa Boal.
Rendido às três regiões, António Boal criou, com Paulo Nunes, o tinto 3 Flores, que junta Alicante Bouschet de Trás-os-Montes, Tinto Cão do Douro e Cabernet Sauvignon do Alentejo. Poderíamos pensar que é mistura a mais — um pouco como aqueles restaurantes que oferecem, por exemplo, cozinha indiana e pizzas, ou sushi e pratos mexicanos, mas aqui o resultado foi um vinho ambicioso e complexo, muito interessante. Igualmente surpreendente é o Costa Boal Douro Moscatel Galego Branco que, na colheita de 2022, mostra um lado mais premium da casta, com imensa elegância e precisão, mantendo o perfil aromático característico.
Da mesma região, os Costa Boal Homenagem, branco e tinto, destacam-se pela estrutura e complexidade, e sobretudo pela capacidade de guarda e evolução positiva em garrafa. Já os Quinta dos Cardeais Grande Reserva branco e tinto mostram um lado fresco e envolvente de Estremoz, ambos com muita elegância e carácter. Uma prova vertical de Palácio dos Távoras Gold Edition tinto mostrou, à mesa, que Trás-os-Montes é uma região a pedir para ser explorada e valorizada: o 2015, já com 8 anos, apresenta charuto, musgo, caruma, muita especiaria, incenso exótico e resina de pinheiro. Elegantíssimo, mas cheio de vida, tem corpo suave mas pleno de carácter. Os taninos são sedosos e fruta de luxo, a acabar em especiaria longa e mentolados subtis (19 pontos). O 2016 sugere muita folha de tabaco, fruta negra, pimenta branca, agulha de pinheiro, balsâmicos e levíssimo toque de Earl Grey. Tem muito sabor e excelente prolongamento, textura e presença (18,5). Por último, o 2017 revela fruta intensa, a conferir imensa energia aromática, vegetal bem presente, especiarias vivas, todo ele expressivo e a pedir para ser guardado (18).
(Artigo publicado na edição de Maio de 2023)
Dom Vicente: Regresso às origens
Depois de muitos anos a viver em Angola, onde tem escritório, o advogado Vicente Marques, originário do Dão, decidiu, há quase sete anos, investir na produção de vinhos na sua terra. Hoje tem cerca de 100 hectares, duas adegas e produz também vinhos no Douro e no Algarve. Até agora, investiu cerca de 10 milhões […]
Depois de muitos anos a viver em Angola, onde tem escritório, o advogado Vicente Marques, originário do Dão, decidiu, há quase sete anos, investir na produção de vinhos na sua terra. Hoje tem cerca de 100 hectares, duas adegas e produz também vinhos no Douro e no Algarve. Até agora, investiu cerca de 10 milhões de euros.
Vicente Marques tem 56 anos. Nasceu no extremo oeste do concelho de Carregal do Sal, bem no seio da região do Dão, onde teve contacto com a terra desde tenra idade, numa região que praticava, na altura, principalmente uma agricultura de subsistência.
Vivia então com o avô, Manuel Vicente, já que o seu pai estava em França. “Sendo praticamente analfabeto, era uma pessoa com uma nobreza de caracter muito grande”, diz, acrescentando que ele e a avó são as grandes referências da sua vida. “Tudo o que possa fazer para os homenagear é muito pouco em relação ao que consegui colher dos seus ensinamentos”, explica, salientando que a vida que teve com eles até à adolescência contribuiu para ganhar um grande gosto pela natureza. E defende que, “embora o trabalho agrícola seja penoso e difícil, quando o fazemos com as pessoas certas pode tornar-se num momento de prazer”, acrescentando que era sempre com essa sensação que ficava quando estava com o seu avô. O nome Dom Vicente, que criou para a marca principal da sua empresa vitivinícola, a Artemis, é pois uma homenagem a Manuel Vicente.
Experienciando o mundo
Esteve ainda, um período curto em França, mas voltou e frequentou o liceu em Carregal do Sal. Foi depois para Coimbra, com o objetivo de estudar Economia no início da década de 80. Mas não foi isso que aconteceu, porque precisava de sair de Portugal. Sentia que “o país estava estagnado” e queria ir para longe, viver noutro continente.
Optou pelo Canadá, onde esteve durante oito anos. Por lá trabalhou na rádio, em televisão (chegou a ser produtor na MTV) e colaborou em alguns jornais. Após algum tempo por terras canadianas, Vicente Marques pensou que tinha de fazer mais qualquer coisa dali para a frente. Ou dava mais um passo na sua carreira, indo até Los Angeles, nos Estados Unidos, para estudar Media e Cinema, ou regressava às origens. Optou por voltar e regressou à universidade, mas para cursar Direito na Universidade de Coimbra, onde se licenciou e fez mestrado, sempre a trabalhar ao mesmo tempo. Pouco depois de perceber, através de conversas com colegas mais velhos, que o país se mantinha num ritmo lento, decidiu ir de novo para fora. Quando surgiu uma oportunidade para dar aulas na Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto, em Angola, candidatou-se ao concurso público e foi um dos dois dos candidatos selecionados. E assim mudou de novo de continente. “Sempre tive um fascínio por África, apesar de não ter familiares lá e, por isso, queria passar pela experiência de lá viver e trabalhar”, conta.
A vida em Angola não foi fácil, no início, e era só possível numa zona um pouco mais alargada do que a cidade de Luanda, “porque a insegurança era muito grande a partir daí”. A morte de Jonas Savimbi, em fevereiro de 2002, deu origem ao início do processo de paz, e Angola começou depois um novo caminho. Vicente Marques conta que, na altura, “havia grande procura de serviços jurídicos no âmbito da consultoria”, e começou a ser contactado, com frequência, por pessoas que os queriam prestados por profissionais com experiência internacional e conhecimento de línguas. Por isso decidiu abrir a sua empresa de advocacia, que tem hoje escritórios, para além de Angola, em Portugal e Moçambique. Quanto já estava próximo de fazer 50 anos, e depois de muitos anos em África, já com quatro filhos, começou a pensar em fazer algo que fosse disruptivo em relação ao que tinha feito até aí. Queria mudar de novo.
O Dão, de novo
O seu gosto pela natureza, e pela sua região, levou-o a investir na compra de terra no Dão, “para arrancar eucaliptos e plantar vinha, olival, produzir mel e ter alguns animais”. E foi assim, que a Artemis começou, há meia dúzia de anos. Hoje, Vicente Marques possui mais de 100 hectares de terra, que resultaram da junção de várias propriedades, num processo que implicou “muita paciência”. A quinta onde fica a adega da empresa tem, actualmente, 25 hectares. A umas centenas de metros ficam mais 40 e um pouco mais longe, outros 29 ha.
O objetivo da união de parcelas foi juntar terrenos com dimensão suficiente para a vinha, que foi plantando, ser rentabilizada num espaço mais curto de tempo. “Gasta-se quase tanto a montar uma estrutura de rega para dois hectares como para 20”, explica Vicente Marques, salientando, também, que ambas as áreas podem ser trabalhadas por um tractor e que o mesmo enólogo tanto gere dois, 20 ou 200 hectares.
Para o proprietário da Artemis, “há economias de escala que é preciso respeitar para um investimento deste tipo fazer sentido”. A experiência que Vicente Marques tinha adquirido com o trabalho realizado para os seus clientes, ajudou-o a perceber que precisava de fazer um empreendimento com escala, para ter a certeza de que o negócio que iria ter retorno. “Quando se faz uma coisa muito pequena nos vinhos, está-se a investir num hobby semelhante à compra de um iate, por exemplo, onde se tem apenas a certeza que se vai gastar dinheiro”, explica.
Entretanto o empresário tinha comprado, alguns anos antes de investir no vinho, uma quinta na zona próxima do litoral algarvio, entre o Livramento e a Luz de Tavira. E decidiu aproveitar o conhecimento adquirido no Dão para avançar na plantação de 12 hectares de vinha e produção de vinho no Algarve, com a marca Monte da Ria. E, em 2022, entrou também na região duriense, com a aquisição de seis hectares de vinha perto de Nagozelo do Douro, S. João da Pesqueira. E porquê? “Porque quando falamos com potenciais compradores dos nossos vinhos nos dizem, muitas vezes, que o Dão é difícil de vender e que o Douro é que é”, explica Vicente Marques argumentando que essa é a principal razão do investimento. Por agora apenas serão produzidos um tinto de entrada e um Reserva, numa propriedade que tem 14 pipas de benefício. “No futuro, se o negócio de vinhos desta região tiver sucesso, poderei comprar mais propriedades no Douro”, avança o empresário.
Um cunho muito pessoal
O produtor confessa que todos os seus investimentos no sector vitivinícola foram feitos de uma forma muito pessoal. Consultou profissionais, claro, mas muito do que construiu foi feito com base na sua experiência. Foi o que aconteceu quando selecionou as castas para plantar. Escolheu algumas das mais habituais na região, como a Touriga Nacional, Tinta Roriz, Alfrocheiro, Encruzado e Malvasia Fina, que representam 70% do encepamento, mas também a Syrah, porque gosta dos vinhos que origina e “porque se dá bem em qualquer lugar, embora produza vinhos com características diferentes conforme a geografia e os terroirs onde está plantada” e ainda, pelos mesmos motivos, Chardonnay, Sémillon e Pinot Grigio. Há também um hectare de Alicante Bouschet, “para dar cor aos vinhos de lote, quando falta”. Como é evidente, as escolhas foram feitas com o acordo enólogo consultor, António Narciso, um dos profissionais mais conhecidos no Dão.
Entretanto, globalmente, o projecto da Artemis já foi além dos objetivos iniciais: este ano espera-se que ultrapasse os 400 mil litros de vinho. Há que vendê-lo, portanto.
“Inicialmente não estava muito preocupado, porque acreditava, devido ao conhecimento que tenho do mercado angolano, que este país iria absorver mais de 50% da nossa produção”, conta o empresário. Mas a crise de 2015 e a falta de divisas consequente originaram uma crise económica que trocou os planos a Vicente Marques, que teve de se voltar para outros mercados de exportação. Mais recentemente, e à medida que Angola está a retomar a sua capacidade económica, a sua Artemis passou a exportar para este país, “um destino importante para os vinhos portugueses dos segmentos médio e alto”. Outros destinos externos dos seus produtos são a Holanda, Suécia e o Canadá.
Vicente Marques refere que o objectivo do seu projecto é produzir o melhor que puder em cada região onde está presente. Meia dúzia de anos passados, tem todas as razões para ter orgulho no que já alcançou e esperança no que o futuro lhe vai trazer.
(Artigo Publicado na Edição de Março de 2023)
A Serenada: O espírito criativo e irreverente de Jacinta Sobral
Jacinta Sobral da Silva herdou, em 2006, dois hectares de vinha velha perto de Grândola. O pai tinha-a plantado em 1961 e 1970, num terreno de 23 hectares propriedade da família há 300 anos. Era um field blend de castas tintas e brancas, cujas uvas vinificava e vendia a granel na região. A actual proprietária […]
Jacinta Sobral da Silva herdou, em 2006, dois hectares de vinha velha perto de Grândola. O pai tinha-a plantado em 1961 e 1970, num terreno de 23 hectares propriedade da família há 300 anos. Era um field blend de castas tintas e brancas, cujas uvas vinificava e vendia a granel na região.
A actual proprietária de A Serenada é farmacêutica de formação, curso que tirou na Universidade de Lisboa. Na altura em que tomou posse da herdade tinha poucos conhecimentos sobre vinho e a sua produção, o que a levou a tirar o mestrado em enologia e viticultura no Instituto Superior de Agronomia, em Lisboa. Queria “meter mãos à obra” e dar continuidade à actividade do pai, mas precisava de conhecimento para o fazer.
Para além da terra, e da vinha, o pai, que tinha falecido em novembro, pouco depois da vindima, deixara-lhe quatro cubas cheias de vinho de 1000 litros, oito de 500 litros, várias de 150 e mais outras mais pequenas. Parecia que adivinhava o gosto da filha para fazer pequenos volumes de vinho, que procura que sejam diferentes, e certamente apelativos para quem os consome. E tenham o cunho do terroir, mas também da alma criativa que teima em continuar a experimentar, à procura que as suas ideias se transformem no vinho que quer fazer, até o conseguir. “É isso que me permite fazer as coisas à minha maneira”, explica. Uma delas é vinificar o tinto em cubas de 1500 litros ou em cubas de 225 ou 500 litros, a que abre os topos. Talvez por isto, mas certamente, por nostalgia, ficou com todos os recipientes herdados, e já acrescentou mais alguns. E diz que está a pensar vender a cuba de maior dimensão, aquela que aconselharam a comprar quando se meteu no projecto.
Conhecimento e inspiração
Começou a engarrafar o vinho a partir de 2010, também com base no aprendeu em algumas viagens em que gosta de misturar turismo com aquisição de conhecimento. Fez isso a regiões de Espanha, França e Suíça, “sempre a coisas pequenas”, mas também à Austrália e África do Sul.
Diz que duas das regiões que mais a influenciaram foram as de Valdeorras e Bierzo, pelas características dos seus vinhos das castas Mencia (Jaen) e Godello (Gouveio). Já tinha a última na vinha, a partir da qual produz “um vinho muito elegante, que seria o meu preferido se eu fosse chefe de cozinha, porque é suave, delicado e tem personalidade”. Também faz um monocasta de Verdelho, “de características mais marcantes”. É produzido com base nas uvas de uma vinha plantada por Jacinta Sobral em 2008, na zona de cima da propriedade. “Nessa altura havia poucos vinhos de Verdelho à venda em Portugal e eu tinha provado os desta casta na Austrália numa viagem que fiz ao país em 2005, e gostei”, conta. Diz, também, que não foi fácil arranjar o material vegetativo e foram os contactos que tinha estabelecido com a Estação Vitivinícola Nacional, em Dois Portos, quando estava a fazer o mestrado, que lhe permitiram saber que esta entidade estava a plantar uma vinha da casta. “Foram eles que me prepararam e forneceram as varas”, conta. O primeiro vinho que engarrafou desta variedade foi da colheita de 2013. Ainda está a vender o do ano seguinte e começou há pouco a colocar no mercado o de 2015 porque decidiu, há alguns anos, vender estes vinhos sempre com tempo em garrafa.
Os vinhos da mina
A ideia surgiu-lhe depois de ter provado um vinho do Esporão que estava, há muito tempo, no restaurante onde tinha ido e que “ninguém queria por ter o rótulo estragado. “Estava maravilhoso”, comenta, dizendo que isso a levou a fazer uma experiência semelhante na A Serenada e guardar o vinho alguns anos antes para comercializar apenas quando considera que estão prontos. Os das colheitas de 2016 a 2019 estão a estagiar, engarrafados, na Galeria Valdemar da Mina do Lousal, “para os termos em condições mais standard e estabilizadas, em condições semelhantes às dos vinhos que são mergulhados na água do mar: ausência de luz e temperatura constante e muito fresca. Faço tenção de os deixar lá muito tempo”, afirma a proprietária de A Serenada. A iniciativa para este projecto, a que aderiram também a Companhia Agrícola da Barrosinha, a Herdade do Canal Caveira e o Monte da Carochinha, partiu da Câmara Municipal de Grândola.
Jacinta Sobral diz que tem a vantagem de não ter ninguém acima a quem prestar contas, o que lhe permite fazer os vinhos como gosta, arriscando e experimentando, sem medo de errar. Na sua vinha, cujo maneio decorre com base método de produção integrada, a poda decorre habitualmente em dezembro e a vindima começa em agosto. Este ano a 15, e pela casta Verdelho. Ambas as operações são feitas à mão “porque, de outra forma, não saía nada de jeito com tanta coisa pequenina”, explica.
A proprietária de A Serenada diz que a decisão mais difícil que toma todos os anos é a da marcação do início da vindima. Sobretudo na vinha antiga, apesar de fazer sempre controlo de maturação com colheita de uvas, por vezes cachos inteiros, para análise e de prova de bagos. Nela “é difícil fazer a amostragem”. Para além disso, “as pessoas têm a tendência de apenas colher uvas da zona mais exterior, que amadurecem mais cedo do que as estão na zona mais interior, que precisam de mais um dia ou dois para estarem no ponto certo”, conta, explicando que é, por isso, que não deixa a decisão do dia da colheita da vinha velha para qualquer outra pessoa da sua equipa. Explica, no entanto, que esta é a sua vinha mais certa, porque é vindimada habitualmente entre cinco e sete de setembro e dá em média cerca de 2,5 toneladas de uva.
Uma nova marca
Talvez por isso respondeu logo ao desafio da sua filha, de criar uma marca com um nome pequeno, que fosse fácil de diferenciar e fixar. E deu-lhe a designação do antigo código matricial da quinta, Y14, que se apropriava ao conceito e reflecte, um pouco, a criatividade e irreverência de Jacinta Sobral. Basta contar que o primeiro branco lançado no mercado, da colheita de 2019, foi produzido com Moscatel Graúdo fermentado em talha. No ano seguinte experimentou fazê-lo em spinbarrels. Como não gostou muito do resultado, a colheita de 2021 foi fermentada em barrica e estagiada em talha. Das experiências, conta que “o primeiro vinho é, talvez, o mais consensual, mas os taninos ficam mais vivos quando a extracção é maior, o que é interessante para quem gosta de vinhos diferentes”.
A Serenada tem um espaço de enoturismo com oito quartos, alguns deles com uma vista que parece quase infinita e termina, a norte, na Serra da Arrábida. Disponibiliza também uma loja e um espaço para refeições onde organiza provas de vinhos, jantares vínicos com quatro tipos de harmonizações. Talvez por isso consiga vender, ali, entre 25 a 30% das 15 mil garrafas de vinho que a propriedade produz, uma boa parte comprada pelos seus hóspedes, que gostam e compram, ou encomendam para entrega nas suas casas, já que a maior são turistas estrangeiros.
O enoturismo de A Serenada foi recuperado a partir de uma ruína que Jacinta Sobral, que é de Grândola, e o marido, queriam fazer uma casa no seu monte. Apesar de morar em Lisboa, e ainda exercer a sua actividade como consultora da indústria farmacêutica, diz que é sobretudo uma agricultora, e que gosta é de estar na vinha e na adega.
Mas a família do marido está ligada à hotelaria, e “ele, que tem o bicho deste negócio, sugeriu fazermos o enoturismo, com quartos e salas de refeições”, conta a proprietária de A Serenada, acrescentando que as suites foram construídas mais tarde. Diz, também, que apesar do seu cepticismo em relação a este negócio, começou a ter reservas a partir do dia em que se ligaram ao site booking.com, e o hotel nunca mais parou de evoluir positivamente. De tal forma, que a facturação do enoturismo é significativamente superior à da venda de vinhos.
É a produzi-los na vinha e na adega que Jacinta Sobral gosta de estar. No dia da nossa conversa, a nossa entrevistada preparava-se para partir para mais uma viagem de férias com o marido, depois de um ano intenso e cheio de trabalho. “Só agora é que conseguimos fazê-lo”, disse, à laia de despedida, certamente para mais uma viagem de descoberta onde o vinho seria componente indispensável, porque é isso que gosta de fazer.
Casa Santos Lima-Um fenómeno da exportação
Estamos a 45km a Norte de Lisboa, na Quinta da Boavista, lugar da Merceana, em Alenquer, no coração e na origem deste que é um negócio multi-regional e multi-marca, fenómeno além-fronteiras, mas que tem muito mais para contar. Texto: Mariana Lopes Fotos: Ricardo Palma Veiga A Casa Santos Lima, empresa familiar, nasceu em Alenquer, na […]
Estamos a 45km a Norte de Lisboa, na Quinta da Boavista, lugar da Merceana, em Alenquer, no coração e na origem deste que é um negócio multi-regional e multi-marca, fenómeno além-fronteiras, mas que tem muito mais para contar.
Texto: Mariana Lopes
Fotos: Ricardo Palma Veiga
A Casa Santos Lima, empresa familiar, nasceu em Alenquer, na primeira metade do século XX, pelas mãos de Joaquim Santos Lima, cujo negócio já era o vinho desde o final do século XIX. Nessa altura produzia e exportava, sobretudo para o Brasil, onde acabou por casar com a filha do seu importador neste país, no Estado da Bahia. Depois, voltou para Portugal e comprou mais vinhas em algumas regiões portuguesas, no Dão, por exemplo, onde tinha nascido, expandindo o seu negócio. A base da empresa, formalizada por volta de 1920 e na altura com outro nome, nunca deixou de ser em Alenquer. Mas foi em 1990 que o bisneto de Joaquim, José Luís Santos Lima Oliveira da Silva — que vinha de um percurso de 20 anos de banca — a revolucionou, instituindo a Casa Santos Lima como tal, restruturando-a, replantando as vinhas e arrancando com o projecto de engarrafamento ainda nessa década, comercializando em 1996 os primeiros vinhos com marcas próprias: Quinta da Espiga, Quinta das Setencostas, Palha-Canas e alguns varietais. Durante 5 anos, ainda conjugou a actividade financeira com a Casa Santos Lima. Como o próprio diz, “sempre que podemos, compramos terreno e plantamos vinha”, o que vai de encontro ao mais recente plano de alargamento, com aquisições, parcerias e produção em regiões como o Douro, Vinhos Verdes, Alentejo e Algarve.
Tendo herdado o espírito empreendedor e exportador do seu bisavô, José Luís — que nos recebeu na Quinta da Boavista, ao lado do seu “braço direito” Luís Almada, administrador — transformou a Casa Santos Lima num “gigante com coração”, um grupo que hoje tem mais de 200 referências de vinho, uma produção de quase 35 milhões de garrafas por ano (mais de 25 milhões de litros no total das cinco regiões), 90% de exportação e 300 postos de trabalho. É também o maior produtor de DOC Alenquer e de vinho Regional Lisboa, detendo 55% de “quota” na região. Enquanto passeamos pelas vinhas da propriedade e arredores, fazendo uma viagem pelo universo vitícola da casa e conversando sobre a actividade nas outras regiões, percebemos que “gigante” é uma palavra que ali é apenas consequência dos números, pois é com muito “coração” que José Luís Oliveira da Silva e a sua equipa olham para a matéria-prima que cultivam e para o produto que engarrafam. “Este Alicante Bouschet vai para o Opaco”, ou “Aqui está o Castelão que entra no Palha Canas”, indica José Luís, que sabe exactamente onde está cada casta plantada e qual o seu fim. Nas várias parcelas, é possível ver o cuidado e alguns métodos característicos de produtores mais pequenos, como o enrelvamento entre linhas, por exemplo. “O enrelvamento protege da erosão e promove alguma concorrência com a vinha, o que origina maior concentração e cria uma biodiversidade que é muito positiva para a Natureza”, desenvolve José Luís.
Dos Vinhos Verdes ao Algarve
Nas vinhas de Alenquer, região de Lisboa, a distância ao mar é de 25 quilómetros e a influência deste é grande, pois o clima torna-se temperado, com Invernos amenos e noites de Verão bem frescas. Os 400 hectares de videiras que a Casa Santos Lima tem aqui, em sua propriedade ou em parceria com mais de 90 viticultores, estendem-se por encostas entre os 110 e os 220 metros de altitude, com uma exposição solar privilegiada, dada a suavidade das inclinações. As castas são mais de 50, mas as principais passam pelas tintas Pinot Noir, Alicante Bouschet, Cabernet Sauvignon, Preto Martinho, Sousão, Camarate, Syrah, Malbec e Tinto Cão; e as brancas Alvarinho, Moscatel, Antão Vaz, Rabigato, Loureiro, Roupeiro, Sauvignon Blanc, Gewürztraminer. Entre vinhos leves, brancos, rosés, tintos e colheitas tardias (Late Harvest), as marcas são dezenas, praticamente todas criadas por José Luís Oliveira da Silva, materializadas graficamente pela equipa interna de design, ocasionalmente com input externo: LAB, Azulejo, Portuga, Vale Perdido, Alteza, Valmaduro, Colossal, Confidencial, Sem Reservas, Red Blend, Duas Uvas, OMG, Portas de Lisboa, Casa Santos Lima, Cabra Cega, Touriz, Lisbonita, Joya ou Quinta das Amoras são algumas delas, a juntar às já referidas anteriormente neste texto.
Adicionalmente, a Casa Santos Lima explora também a famosa “Vinha do Aeroporto”, dois hectares junto ao aeroporto da capital — com Arinto, Touriga Nacional e Tinta Roriz — que dão origem ao vinho Corvos de Lisboa.
Na região dos Vinhos Verdes, em Lousada, o grupo explora a Casa de Vila Verde, sob a égide de uma empresa criada para esse efeito e com o mesmo nome. Esta quinta, com 44 hectares de vinha, tem plantadas sobretudo as variedades Espadeiro, Vinhão, Touriga Nacional, Arinto, Loureiro, Trajadura, Avesso e Alvarinho. Com elas, produzem-se os vinhos Pluma, Tiroliro, Espada, Cardido ou Casa de Vila Verde, entre outras marcas comuns a mais regiões.
Desde 2011 que a Casa Santos Lima é sócia da Quinta de Porrais, no Douro, propriedade em Murça que pertenceu a Dona Antónia Adelaide Ferreira e que hoje ainda está, em parte, na sua família. Esta quinta tem 35 hectares de vinha, com idade média de 65 anos, plantada em solos de xisto e quase todas a 600m de altitude, com as castas brancas (60%) Rabigato, Códega do Larinho, Viosinho e Verdelho; e as tintas Touriga Nacional, Touriga Francesa, Sousão e Tinta Barroca. No entanto, em toda a região, a Casa Santos Lima trabalha cerca de 100 hectares de vinha. Os vinhos durienses do grupo têm os nomes “Quinta de Porrais”, “Porrais” ou “Vinhas de Murça”, sendo o enólogo consultor Francisco Olazabal (Vale Meão), e Jaime Quelhas, o residente.
Já no Alentejo, a Casa Santos Lima escolheu a zona de Beja, onde explora 150 hectares de vinhedos em solos argilo-xistosos. O clima é bem agreste aqui, como sabemos, tanto no Inverno como no Verão, e as castas presentes nestas parcelas são as tintas Touriga Nacional, Tinta Roriz, Petit Verdot, Syrah, Alicante Bouschet, Cabernet Sauvignon; e as brancas Arinto, Viosinho, Verdelho, Antão Vaz, Fernão Pires e Sauvignon Blanc. É daqui que saem os vinhos Valcatrina, Fortíssimo, Caçada Real, Palaios, Monte das Promessas, Rebelde, Primoroso, Coccinela, Quid Pro Quo, entre outros.
Por fim, o grupo detém, em Tavira, região do Algarve, 45,7 hectares de vinha própria e a exploração de outros 6,5, em solos secos, de arenito vermelho e amarelo. As castas Touriga Nacional, Tinta Roriz, Negra Mole, Syrah, Alicante Bouschet, Cabernet Sauvignon, Arinto, Viosinho, Verdelho e Alvarinho dão origem aos vinhos Al-Ria, Portas da Luz, Barrocal ou Talabira do Algarve. “Todos os anos plantamos vinha nova ou restruturamos parcelas. Só nos últimos dois anos, plantámos, no total das regiões, mais de 70 hectares”, afirma José Luís, que refere ser já responsável por cerca de 30% de todo o vinho produzido no Algarve…
História encontra tecnologia
É muito curiosa a facilidade com que se observa, na Quinta da Boavista, a passagem dos tempos e das gerações. Na parte mais alta, situa-se a casa original, construída nos anos 30 por José Santos Lima, avô de José Luís. Tímida, a casa esconde atrás de plantas trepadeiras a face mais exposta aos visitantes, e respira pelo lado virado para uma paisagem quase infinita, de vinhas multicor e agregados de casas espalhados pela manta de retalhos. Ao seu lado, um curioso jardim de grandes pedras arredondadas dispostas num círculo, a sugerir que foi ali invocada, de alguma forma, a mãe-natureza. Mas isto nem José Luís Oliveira da Silva consegue explicar…
Logo a seguir à casa, está a primeira adega da quinta, com mais de 90 anos, uma de um total de três adegas próprias nesta região, além da adega nova, um pouco mais abaixo da primeira, e das instalações da antiga Adega Cooperativa da Merceana, compradas pela Casa Santos Lima.
A adega nova foi criada de raiz na Quinta da Boavista, construída a tempo da vindima de 2014. Toda ela está bastante automatizada, feita numa disposição vertical e com parte da mesma enterrada, o que além de potenciar os movimentos por gravidade, mantém mais facilmente as temperaturas ideais. Os quatro enormes depósitos de 250 mil litros são também pilares de sustentação do edifício, que alberga outros de 100 e 30 mil litros, bem como cerca de mil barricas distribuídas por vários locais. Luís Almada explica que a vindima é sempre feita por variedade, para que a vinificação seja também feita, em todos os casos, separadamente.
Por sua vez, as instalações da antiga Adega Cooperativa foram totalmente reequipadas desde a sua aquisição — com dezenas de cubas, quatro prensas, filtros e muito mais — constituindo, de acordo com José Luís Oliveira da Silva, “uma parte muito importante da operação da Casa Santos Lima”.
Ainda na Quinta da Boavista, um dos armazéns acolhe uma linha de engarrafamento e embalamento impressionante, que ocupa todo o espaço disponível, em várias direcções. Quando lá entrámos, o entusiasmo foi imediato, qual criança a chegar a um parque de diversões. Logo ao início, as grandes e altas máquinas de rotulagem chamam a atenção, pois assemelham-se aos robôs das farmácias mas, em vez de medicamentos, vão ao interior buscar o rótulo que é pedido. Mas há várias estações de rotulagem, não só de rótulo e contra-rótulo, mas também de medalhas obtidas em concursos e na imprensa. Como é natural numa empresa desta dimensão, há também uma produção significativa de bag-in-box (cerca de ⅓) e de um formato que, mais recentemente, se tornou popular, o “pouch”, que se assemelha a uma bolsa com pega. Com 9 mil garrafas cheias por hora, a Casa Santos Lima “não engarrafa para stock, é tudo para saída imediata e com destino definido”, informa José Luís, e acrescenta que “com a pandemia de Covid-19, aumentámos muito as vendas para níveis que ainda se mantêm”. Isto deve-se ao facto de a maior parte dos clientes que têm nos principais mercados — EUA, Finlândia, Suécia e Noruega — não terem sido impactados negativamente pela pandemia. Nos três mercados escandinavos de monopólio, a Casa Santos Lima é o maior produtor português e, na Finlândia, o vinho mais vendido, de todo o Mundo, é o Duas Uvas Premium, que provamos no final desta reportagem. Em virtude deste crescimento, na continuação destes armazéns, está neste momento a ser construído mais um, com 11 mil metros quadrados.
O que o futuro reserva
Mas a expansão não pára nas cinco actuais regiões, e a Casa Santos Lima está em processo de alargamento para os Açores, com vinhas já compradas na ilha do Pico. Além disto, há um projecto para construir uma adega na região dos Vinhos Verdes e outra no Douro, e um plano de Enoturismo para Tavira, no Algarve.
Antes de irmos embora, deixamos uma pergunta mais pessoal a José Luís Oliveira da Silva. “Quais os vinhos da casa, que mais gosta de beber?”, interrogámos. Perante a natural hesitação de alguém que tem orgulho em tudo o que produz, o CEO acabou por retorquir: “Nos brancos, os varietais Casa Santos Lima Sauvignon Blanc e Gewürztraminer, e o Essencial Reserva; nos tintos, o Touriz e o Quid Pro Quo. Nos rosés, varia muito…”.
(Artigo publicado na edição de Janeiro de 2022)