Cais da Ferradosa: E o Douro aqui tão perto…

Não será fácil lá chegar, tantas são as curvas e a montanha russa de subidas e descidas que a orografia do Douro nos impõe. Mas também isso, afinal, faz parte do encanto do lugar. A ansiedade, uma certa fadiga e um estômago com fome são condicionantes que nos ajudam a apreciar melhor, depois de chegados […]
Não será fácil lá chegar, tantas são as curvas e a montanha russa de subidas e descidas que a orografia do Douro nos impõe. Mas também isso, afinal, faz parte do encanto do lugar. A ansiedade, uma certa fadiga e um estômago com fome são condicionantes que nos ajudam a apreciar melhor, depois de chegados e relaxados, a tranquilidade e incrível beleza do lugar. Fica este restaurante na antiga estação de caminho de ferro de Ferradosa, mesmo à beira do Rio Douro majestoso em instalações recuperadas pelo Município de São João da Pesqueira.
A esplanada sobranceira ao curso de água, onde deslisa vagarosamente um barco turístico e o comboio que passa, de quando em vez, na margem oposta, compõem o postal. À frente do projecto está a figura de Fernando Gomes, com grande experiência na restauração, ou não estivesse ele também ligado, por relações familiares, a outro grande ícone da gastronomia do Douro, como o é a Toca da Raposa, em Ervedosa. Na cozinha, a esposa, Sandra Carvalho, afina os temperos e apruma os sabores.
Aqui, contudo, construiu-se algo de diferente. O Cais da Ferradosa é a montra de uma cozinha com raízes claramente regionais, mas com um toque de elegância, e até de sofisticação, que contrasta com a rusticidade do velho edifício. Como não poderia deixar de ser, a presença do rio vai para além das vistas e manifesta-se na ementa, com uma oferta tentadora de peixe em escabeche ou na sápida sopa, que nos aquece a alma. No tempo deles, os espargos silvestres encontram a companhia ideal dos ovos húmidos e fofos. As alheiras, servidas em bolinhas crocantes e estaladiças, aguçam-nos o apetite e preparam-nos para o conforto de uma refeição, que apela a memórias esquecidas, como é caso dos milhos transmontanos, suculentos e substanciais, que provámos a seguir. O lombo de bacalhau, previamente confitado e colocado sobre um guisado de feijocas, eleva-nos a um patamar superior.
Outras opções possíveis, dependendo da época do ano ou da disponibilidade dos ingredientes, podem levar-nos para o pernil de porco fumado, o rabo de boi, o cabrito estufado ou a posta de vitela. Tudo isto com uma apresentação cuidada, mas em que o sabor não se deixou ofuscar pela tentação de só parecer bonito. As sobremesas seguem o mesmo padrão, clássicas e intemporais. Os vinhos do Douro e do Porto fazem valer os seus créditos, com uma oferta abrangente, que vai além do óbvio e, no final não salga a conta, como infelizmente tanto se vê por aí.
Cais da Ferradosa, EN 222-3 Ferradosa; 5130 – São João da Pesqueira
Não encerra. Só serve almoços das 12:00 às 16:00 horas
Tel: 254 402 899; info@caisdaferradosa.pt
Sardinhas: A delícia marinha mais popular

Enquanto não chega a primavera, o português vive inquieto e suspira junto ao mar pela sua muito amada sardinha. O necessário e obrigatório defeso termina em Abril, e a grande corrida começa. A abundância varia de ano para ano, e a festa dura até ao Outono. Preparemos, então, as grelhas e as brasas, que elas […]
Enquanto não chega a primavera, o português vive inquieto e suspira junto ao mar pela sua muito amada sardinha. O necessário e obrigatório defeso termina em Abril, e a grande corrida começa. A abundância varia de ano para ano, e a festa dura até ao Outono. Preparemos, então, as grelhas e as brasas, que elas aí vêm.
Todo o peixe tem a sua época ideal de captura e consumo e na costa portuguesa continental a reprodução ocorre numa janela temporal bastante alargada. É entre Outubro e Abril que acontece, o que coincide com o defeso decretado sobre a espécie “Sardina pilchardus”, que é a nossa.
Cerca de um ano depois, a sardinha atinge a fase adulta, pronta a dar-nos muitas alegrias. É essa que nos é oferecida por esta altura do ano, e é com essa que somos muito felizes. Apresenta-se com cerca de quinze centímetros de comprimento e forte conteúdo de ácidos gordos do tipo ómega-3, estruturante na alimentação humana.
A pescaria dá-se sobretudo no Atlântico norte e nenhuma sardinha é mais saborosa que a nossa. A atestá-lo estão a fecundidade e os nutrientes do nosso maravilhoso oceano. São, além disso, muitas as espécies marinhas e aves especiais que se alimentam da amiga sardinha. De certa forma, o frágil equilíbrio do planeta seria ainda mais complexo se não existisse o irrequieto e vigoroso peixe. A abundância, contudo, faz-nos acreditar que há sempre sardinhas. Pesca-se através da arte do cerco, afectando-se uma área grande e profundidade suficiente para que os pequenos peixes fiquem retidos e a pescaria abranja peixes semelhantes. Cavala, sarda, biqueirão, carapau e petinga são confinados nas redes e a segunda arte consiste em devolver ao mar o que não pertence na altura capturar. Pequenos crustáceos, por exemplo, essenciais na alimentação da própria sardinha, vêm frequentemente para cima, juntamente com o peixe.
Dá gosto assistir à chegada à lota para ver e sentir a tremenda azáfama dos enérgicos peixes quando as caixas começam a levar destino
Vinhão e… vinho Madeira da casta Malvasia
Valorizamo-la mais quando a canícula aperta e os santos populares despertam, mas pode não ser essa a melhor altura para a comer. Uma fatia de pão com uma sardinha assada em cima é festa bastante para o português, e come-se com batata cozida e pimentos assados nas brasas. Quanto ao vinho, precisamos geralmente de treinar. Estamos perante um peixe gordo, pelo que o vinho deve ter acidez pronunciada para cumprir correctamente a sua missão de neutralizar pelo corte da acidez fixa.
Um verde tinto da casta Vinhão pode ser o indicado, mas há sempre opções a considerar. Na prova pública que me coube organizar, aquando da eleição das sete maravilhas da cozinha portuguesa, foram servidas sardinhas com dois vinhos. Vinhão e… vinho Madeira da casta Malvasia. E todos preferiram a maridagem com o Madeira. Não pela doçura, mas pela acidez do vinho, que conseguiu destruir o núcleo gordo do peixe, tornando-o mais digerível. Foi um momento feliz, há que dizê-lo. Os dogmas só fazem sentido quando são interrogados e postos em causa. A prova aconteceu em 2011 e deixou algumas marcas profundas.
A sardinha desperta em nós a sensação de abundância. No nosso entendimento, há sempre sardinhas. Mas nós queremo-las gordas e ovadas. E sobretudo baratas, que a vida não está para excessos. O que acontece é que acabamos por facilitar e contemporizar com as pequenas adversidades com que deparamos. A irrequieta sardinha está sempre a ginasticar-se e gosta da vida de cardume. Dá gosto assistir à chegada à lota para ver e sentir a tremenda azáfama dos enérgicos peixes quando as caixas começam a levar destino. Ficamos logo mais enérgicos só de ver a energia disponível que têm. E no fundo a reacção é real. A sardinha faz bem ao corpo e à alma.
Uma fatia de pão com uma sardinha assada em cima é festa bastante para o português, e come-se com batata cozida e pimentos assados nas brasas
As sardinhas congelam e conservam bem
Se encontrar na praça sardinhas que lhe agradam muito, não hesite, congele! Desde que ao descongelar respeite a integridade do paixe, vai correr bem. Respeitar a integridade significa aqui manter o peixe inteiro e intacto, como se de um peixe de bitola maior se tratasse. Há que embalar muito bem, para evitar propagação do cheiro. O facto de estarmos a temperaturas de 15 graus negativos não impede que o cheiro povoe o congelador. O ideal é utilizar sacos de congelação individuais e herméticos, feitos por um bom fabricante. Depois deixe na parte mais baixa do frigorífico de um dia para o outro, e no dia seguinte vai ter belas sardinhas para cozinhar ou transformar como mais gosta. Trata-se de um peixe rico em ácidos gordos e só por isso é já capaz de preservar melhor as características e propriedades originais. Se há vontade e arte, pode optar por filetar e depois congelar. Em preparações do tipo tempura, vai fritar muito bem e ficar cheia de sabor. As boas peixarias fazem esse trabalho por si e em casa vai poder dar asas à sua criatividade.
Chegamos a um momento chave da exploração da sardinha enquanto alimento de elevado valor nutritivo: a conserva. Para muitos, trata-se de uma opção menor, mas não há qualquer razão para assim acontecer. Uma boa lata de sardinhas contém peixe de elevadíssimo gabarito, que podemos e devemos trabalhar para os mais elevados fins. Sabemos que é staple food, mas isso não significa que seja encarada como comida de emergência. É notável o que a indústria conserveira moderna evoluiu, e o que tem feito para dignificar ao mais alto nível o produto dos nossos mares. Temos hoje petinga – a sardinha mais pequena – que facilmente integramos em saladas frias e legumes e que podem bem constituir refeição completa. Ovo cozido, feijão-frade e pimentos assados, por exemplo, dão uma salada fria maravilhosa. Falando de maridagens de sucesso, o resultado pode ser brilhante com um Alvarinho jovem da região dos vinhos verdes, especialmente se a salada incluir frutos tropicais. Seja como for, há glória em cada pequenina lata de sardinhas, glória essa que contém muita história.
Nos santos populares e não só
A sardinha assada nas brasas estala nos santos populares. Mas até pelo que atrás se disse nessa altura não está no seu zénite. Há que a deixar engordar para estar no seu melhor de textura e rendimento de sabor. O momento é excelente para dar a conhecer as maravilhosas festas de Santa Bebiana, que ocorrem em pleno Inverno em Belmonte e Caria. Trata-se de uma festa pagã que promove sempre o casamento entre São Martinho e Santa Bebiana. Importante é que se beba a rodos. Curiosamente, há uma irmandade que, ano após ano, garante a continuidade das festas. Em Caria festeja-se no dia dois de Dezembro, já dia de São Martinho aconteceu e a água-pé já se produziu, a seguir às pisas nos lagares. Se eu não tivesse assistido, ainda hoje não acreditaria.
Cumpridos vários rituais, que incluíram, por exemplo, a confissão de que tínhamos falhado porque estivemos sóbrios na maioria do ano, a procissão termina num largo, com as competentes e rubras brasas à espera das sardinhas geladas, e o povo vai soltando glosas como “Santa Bebiana, senhora de muita Graça, não tem capela mas tem o Largo da Praça”. E é neste largo, com uma multidão a postos, que se leva as sardinhas à grelha. Estamos em contraciclo total com os santos populares, mas a devoção popular é impressionante. Está prestes, de resto, a ser classificado como património imaterial pela Unesco. É mais que bem vindo um vinho tinto da casta Rufete. Mineralidade a toda a prova, taninos presentes sem dominar, e muito sabor. Viajar é mesmo ganhar. A sardinha representa bem a portugalidade.
Em plena Expo’98, coube-me acolher e acompanhar um dos grandes empresários do Japão, accionista principal de uma grande empresa americana. As coisas não correram muito bem na véspera, quando fui recebê-lo ao aeroporto de Lisboa. Estendi-lhe a mão para o cumprimentar, o que vim a saber mais tarde nunca devia ter feito. Não se pode olhar nos olhos nem tocar num shogun. Já na exposição universal, visitámos o pavilhão do Japão, de onde saiu irritado por assistir ao vídeo em português, para mais com a música “Vamos fazer um farol”. A desgraça anunciava-se. Seguimos para jantar no pavilhão dos EUA, buffet tipicamente americano, convenientemente harmonizado com excelentes Cabernet Sauvignons e Merlots de Napa Valley. Gostou muito dos vinhos, odiou a comida. “Aqui não há nada para eu comer, quero ir para o hotel”. Lindo serviço, e eu com vontade de perder a cabeça com os maus modos do japonês poderoso. Combinámos almoçar no dia seguinte.
Ele estava mais calmo e pediu-me que o almoço fosse de peixe. Assim foi. Fomos ao Mercado do Peixe, no Caramão da Ajuda. Ao contrário do sucedido na véspera, estava muito bem disposto, até contou duas anedotas no caminho para o restaurante. Fui-lhe explicando que iria escolher o peixe e que o mesmo iria ser cozinhado como ele determinasse. Deu uma gargalhada grande e aproveitou para dizer que não me preocupasse, que ele iria gostar. Confesso que temi o pior, face à sua boa disposição. Chegámos e tínhamos a nossa mesa reservada num espaço relativamente reservado. Propus-lhe um Arinto fresco de Bucelas para a empreitada gastronómica, que de novo com maus modos rejeitou liminarmente. Escolheu um Cabernet Sauvignon da Península de Setúbal. Tinto, portanto. Fomos até ao expositor de peixe, para escolher o conteúdo do apaziguador almoço que forçosamente teríamos de conseguir realizar. Fui-lhe descrevendo os diferentes peixes do expositor, e como poderíamos cozinhar cada um.
De repente, apontou para as sardinhas e começou a bater palmas. Não cabia em si de felicidade. E começou a conversar directamente com o cozinheiro, dando-lhe indicações de como queria o peixe. Grelhado fechado, como nós grelhamos as sardinhas, servido sobre uma fatia grossa de pão, salada de pimentos grelhados ao lado. Fiquei de boca aberta, nunca podia ter imaginado que a catástrofe da véspera podia ter sido evitada de forma tão simples. Foi notável a sua desenvoltura na exploração das sardinhas grelhadas sobre a fatia de pão, directamente com as mãos.
Uma boa lata de sardinhas contém peixe de elevadíssimo gabarito, que podemos e devemos trabalhar para os mais elevados fins
Gostamos de arraiais
Qualquer dia de festa com amigos, em casa ou restaurante, vira arraial, e o assunto invariavelmente vai ter às sardinhas. Dei-me conta, há poucos meses, de uma verdade insofismável. O português sabe acender o lume certo com carvão e acendalhas em três tempos. Tenho convivido ao longo da vida com argentinos e absorvi este facto notável: aprende-se na escola primária da Argentina a grelhar carne. Com algumas varas de lenha, até num lavatório de casa de banho conseguem criar condições para grelhar uma peça de carne. Tive acesso a preciosa e ricamente ilustrada literatura argentina que faz parte o programa de ensino básico. Consta, por exemplo, o repto de jamais passar demasiado a carne, com desenhos das fibras a suar e sofrer pelo excesso de calor. Passar o ponto ideal de cozedura é para os argentinos carbonizar a carne.
A conversa mais recente sobre o assunto aconteceu justamente em casa de amigos da Argentina. Mas eles têm a casta Malbec, que o tempo e a tradição depuraram até chegar à harmonização ideal. Claro que fico enciumado e claro que já experimentei com as nossas sardinhas nas brasas. Não funciona. Curiosamente, com um bom Tinta Roriz jovem sem estágio em madeira consegue-se excelentes resultados com grelhados no carvão. Se nunca experimentou, não hesite em fazer o teste no seu jardim ou varanda. Sardinhas em sal grosso, pimentos, batatas, melancia, e está montado o arraial da nossa satisfação. Não há português que não adore um bom arraial, mas geralmente o comportamento em relação ao vinho é entre o incerto e o incorrecto. Triunfa normalmente a sangria. Os amigos espanhóis têm o “Tinto de Verano”, que é vinho traçado com gasosa e cumpre a missão importante de afastar a canícula da mesa. Conseguimos, com um bom Roriz servido frio, o mesmo efeito. Fica aqui a confissão.
O piquenique perfeito e a sardinha
Uma das experiências vínicas que gosto muito de fazer acontece com a bôla de sardinha de Lamego. Perto de São João de Tarouca, onde hoje encontramos algumas casas produtoras de excelentes espumantes, foi onde outrora os monges de Cister instalaram e cuidaram a casta Malvasia Fina. Que é também provavelmente a primeira casta importada para Portugal. Juntando as peças todas como num puzzle, por que não fazer uma prova de vinho do Porto branco com bôla de sardinha? Melhor ainda, por que não fazer essa experiência sentados no chão de uma vinha dessa casta? As interrogações sucedem-se, assim como as inquietações. Temos de ser ousados e não ter receio de enveredar por caminhos menos usados. Na dúvida, sigamos a sardinha!
(Artigo publicado na edição de Julho de 2025)
Cabrito, borrego e outras primícias

A Natureza continua a marcar o ritmo de forma inexorável. O que é muito bom para todos nós, que continuamos a ser tão susceptíveis e permeáveis a tudo o que é novo só por si. Mas desde o abrolhamento nas vinhas à cobertura de flores pelos campos fora, tudo é sinal de renascimento. É o […]
A Natureza continua a marcar o ritmo de forma inexorável. O que é muito bom para todos nós, que continuamos a ser tão susceptíveis e permeáveis a tudo o que é novo só por si. Mas desde o abrolhamento nas vinhas à cobertura de flores pelos campos fora, tudo é sinal de renascimento. É o momento da afirmação anual da vida e da vontade de viver, e o inevitável toque a reunir das famílias. E de abrir boas garrafas de vinho para a festa da partilha.
Começo pelo mais importante, a nota de pesar relativa ao desaparecimento prematuro de Ana Soeiro, figura marcante e importante no desenrolar da afirmação da produção nacional em toda a sua abrangência. Acompanhei de perto o trabalho fundador que fez com a sua brilhante equipa de colaboradores no Ministério da Agricultura, de levantamento de produtos certificados e em vias de certificação por todo o país. Retenho, com honra e garbo, os magníficos ficheiros a que Ana Soeiro me deu acesso, dando conta dos avanços vagarosos e despretensiosos do colectivo que coordenava. A abrangência do seu labor é colossal, e vai desde a criação de gado à mais particular e subsidiária receita de um prato regional executado a preceito e de forma sistemática. Quando saiu de funções no ministério, fundou a Qualifica, que desde logo se prontificou a tornar visível muito desse trabalho, ao mesmo tempo que estabeleceu ponte inédita com a certificação no espaço europeu. Se hoje vemos as siglas IGP – Indicação Geográfica Protegida – e DOP – Denominação de Origem Protegida – disseminadas entre nós, parte significativa desse trabalho é-lhe devido. Há que ter em conta a capacidade de fazer face à morosidade e complexidade envolvidas normalmente nesses processos. O tempo há de encarregar-se de lhe fazer justiça. Para já, fica a nota necessária e fundamental, em jeito de tributo.
Tenho bem presentes aspectos históricos e patrimoniais que imortalizam o borrego como proteína preferencial. O seu ensopado tem importância fundadora e que perdura até aos dias de hoje.
O cabrito só é feliz a saltarilhar
Dá-nos muitas alegrias à mesa o cabrito que, juntamente com o borrego, tem expressão fundamental e protocolar nos animais sacrificiais que, por esta altura, têm honras de mesa. Para Júlio Lameiras, acérrimo e sábio defensor das raízes beirãs da alimentação, “o cabrito para ser feliz tem de saltarilhar na pedra da serra”. A alimentação à base de ervas espontâneas e frutos de arbusto é suficiente para dar origem a belas e vigorosas crias, mesmo em fase de aleitação materna. Resulta, por isso, na matéria-prima tão do gosto do consumidor português, com a particularidade adicional da consensualidade. Não há quem não goste de um bom cabrito assado. De norte a sul do país, faz-lhe bem as honras o vasto receituário ditado pela cozinha de pastor. É grande o contributo das verduras de vagem que começam a grassar ao mesmo tempo. Ervilhas, favas, leguminosas diversas compõem muito o ramalhete das opções disponíveis. A carne ganha muito com uma marinada de água e limão um dia antes do momento formal do processamento culinário. Tem geralmente pouca gordura e assa muito bem, desde que a temperatura não seja demasiado alta. Uma segunda marinada em vinha de alhos é benéfica e vai assegurar excelência no período de forno ou grelha. Um tinto novo de Trás-os-Montes faz-lhe bem as loas.
Cabrito, borrego, leitão e vitela desempenham na história da nossa alimentação um papel festivo insubstituível. Para marcar momentos importantes, desde sempre utilizamos a prática de abater uma cria e levá-la à mesa inteira. O grau de requinte com que isso era feito depende obviamente da vontade, posses e disposições. Ainda hoje é assim, como nos tempos de outrora. Podemos contudo afirmar que, na perspectiva estrita da criação, abater uma peça primicial implica abdicar de um valor futuro maior, que nunca é despiciendo. Sempre se fez com os olhos postos nos valores futuros e universais, tai como a união de uma família, e criação efectiva e intemporal de riqueza, ou o regresso a casa de um membro da família que estava longe. Todas estas situações configuram a necessidade absoluta de festejar. Independentemente da proteína em jogo, a idade é o dado mais relevante no tocante à harmonização vínica. Tendencialmente, são apostas mais felizes os vinhos com pouca ou nenhuma madeira, a menos de algum pormenor de processamento culinário que faça toda a diferença. Sabemos contudo que não é assim. Desempenha papel importante neste cenário um vinho jovem estreme da casta Castelão sem madeira.
Não há quem não goste de um bom cabrito assado. De norte a sul do país, faz-lhe bem as honras o vasto receituário ditado pela cozinha de pastor.
O borrego e seus muitos encantos
A vida ensinou-me bastante sobre criação de borregos, seu abate e ligações ideais da sua carne com vinho. Se no caso do cabrito a leitura tinha forçosamente de ser nacional, no tocante ao borrego, à excepção do prodigioso cordeiro de Miranda do Douro, a capital é estável e fica no Alentejo. São diversos os factores que apontam para esta evidência. As transumâncias longas e aturadas do gado ovino. A indústria distribuída do queijo. O aproveitamento da lã. E a resistência à intempérie. Isto além de outros factores que apontem claramente o ovino como a proteína mais capaz e vencedora. Tenho bem presentes aspectos históricos e patrimoniais que imortalizam o borrego como proteína preferencial. O seu ensopado tem importância fundadora e que perdura até aos dias de hoje. O desaparecido Manuel Fialho, com quem tive o imenso privilégio de conviver ao longo de vários anos, desenvolveu trabalho teórico de sistematização que jamais esquecerei. Aliás, trata-se mais de inquietações do que de sistematizações propriamente ditas. Quando estamos nos granitos frios do norte alentejano, é frequente encontrarmos património micológico muito relevante na composição do ensopado de borrego. A utilização de batata é intermitente nessas latitudes, sendo bastante frequente a castanha, que ainda hoje se encontra, a par da já mencionada utilização de cogumelos nativos. Descemos na geografia para Évora e damos com um ensopado de borrego que contém normalmente batata e ervilhas e disponibiliza caldo abundante, pelo que é frequentemente consumido com uma colher de sopa. As partes de carne e respectivos ossículos são explorados à mão. Quando chegamos a Serpa, capital da maior transumância ovina nacional, constatamos que não há batata nem ervilhas na composição do ensopado. Estamos perante um caldo rico orlado de bom pão alentejano, selecção rigorosa das peças cortadas para o ensopado e utilização de poejo e hortelã da ribeira como temperos fundamentais. Do ponto de vista da harmonização com vinho, há bondade na aproximação a tintos de Alicante Bouschet encorpados com estágio longo em madeira. O ensopado que situei em Évora constitui, contudo, excepção. Nesse caso, a batata e as ervilhas levam facilmente a que a harmonização ideal seja com um vinho branco jovem de Arinto e Fernão Pires, com algum estágio em madeira.
Há muitas verdades no assunto da ligação de vinho com comida, como todos sabemos e facilmente aceitamos. Trago aqui agora uma curiosidade culinária que para mim se tornou sacramental. Trata-se da perna de borrego assada com dois dentes de cravinho apenas, que aprendi a fazer com o gigante Gabriel Fialho. Vale a pena reconstituir a cena. Estou sentado na sala de entrada do restaurante Fialho, em Évora, onde Gabriel Fialho oficiava à frente da cozinha. A sua personalidade natural era de grande empatia com toda a gente. Quem o conheceu sabe como era assim. De repente, eis que entra na sala onde eu estava, com uma colher de sopa e uma mão por debaixo, em concha. Vem direito a mim e diz-me para abrir a boca. Era um molho, que logo me descreveu como sendo resultante de assar uma perna de borrego apenas com dois dentes de cravinho. Sentou-se à minha frente, sem conseguir esconder a excitação quase infantil que o animava naquele momento. O cravinho era espetado em dois pontos específicos que ele me indicou. Memorizei tudo o que me disse. Estão quase a cumprir-se doze anos desde que deixou a esfera do chão, há-de estar a deleitar os seus pares com as suas muitas perplexidades. A verdade é que nunca mais voltei a assar borrego que não fosse com aquele toque minimalista. Sete horas a 70 graus, a peça totalmente envolta em papel de alumínio. A melhor harmonização a que cheguei foi com Jaen de Oliveira do Conde, da região do Dão, sem qualquer contacto com madeira.
O universo culinário do cabrito, sendo bastante mais linear do que o do borrego, foi contudo o que mais me surpreendeu. Aconteceu numa das muitas deslocações ao Douro, no pino do Verão, a propósito de um evento ibérico. Houve uma prova num hotel perto, a que se seguiu um jantar na Quinta do Panascal. Fomos de barco até lá, e a noite estava igual ao dia que nos tinha calhado. O xisto ardente não deixava a temperatura descer. O meu carro tinha marcado 51ºC nessa tarde. Dois colegas espanhóis foram de urgência para o hospital.
Subimos até à balaustrada superior, que foi onde foi servido o jantar. Soprava uma ligeira aragem. Foi servido um vinho branco e tudo começou a assentar. Eis senão quando é servido o jantar, que era cabrito assado em forno a lenha. Desenhou-se ali mesmo uma espécie de antologia pantagruélica que nada nem ninguém podia ter imaginado. O cabrito e o Douro têm uma longa história conjunta, recheada de curiosidades e perplexidades. Aquele foi o melhor cabrito da minha vida, brilhantemente harmonizado com um estreme de Tinta Amarela do Baixo Corgo. O momento foi de esmagadora sublimidade. Ao mesmo tempo perdura na memória. Tudo o resto se desvaneceu volvidos estão mais de vinte anos. Foi a primeira vez que me dei conta da importância de voltar várias vezes a um mesmo prato para melhor o entender e melhorar. Inclui, naturalmente, o vinho. Foi também essa a primeira vez que verdadeiramente me apercebi da grandeza do cabrito à mesa. Tinha a vitela assada como emblema duriense, passei a dar a posição cimeira ao cabrito.
A importância da criatividade
Numa outra instância calhou-me a função de convidador no encontro anual de amigos na Quinta de Carvalhais, no coração do Dão. Organizado por Manuel Vieira, ainda nos seus tempos de enólogo da Sogrape, desafiava à vez. Depois, o indigitado tratava de reunir o grupo que nesse ano iria protagonizar os “Desafios de Carvalhais”. Convidei o chef Nuno Santos, do restaurante Puttanesca, em Leiria, para tratar do almoço. Com o seu temperamento border line, dado à extravagância culinária mas sempre genial, era difícil fazer uma ideia do que se iria passar. Decidiu fazer o seu cabrito, porventura a mais minimalista forma de cozinhar o dito que até hoje me foi dado provar. Levou também miudezas de cabrito, que transformou com mestria em petiscos deliciosos. O segredo principal daquele almoço esteve na não intervenção, permitindo que sabores originais fossem até ao fim da linha para nosso grande deleite. Memorável foi também a harmonização com Alfrocheiro do Dão com estágio em barrica. Esse almoço ainda hoje é recordado com carinho. Eventos como esse são raros hoje em dia e fazem muita falta pelo poder congregador que representam.
Das muitas graças que a carne de caprino tem, há um prato que venero. É a chanfana, que abunda na Beira Baixa e se faz por todo o país. Sempre que visito um restaurante e há chanfana, é a ela que dedico a maioria da minha atenção. A carne que lhe está na base é de cabra velha, e é cozida em caçoilas de barro. As melhores são as que são feitas com todo o tempo do mundo e “esquecidas” no forno a lenha, ficando de um dia para o outro nas brasas mortiças. Há que selecionar bem as peças que se introduzem no recipiente de cozedura e a banha que se utiliza é crucial. Um tinto de Portalegre com bastante madeira é quase sempre a minha escolha para a assessoria vínica, mas as hipóteses são ilimitadas. Gosto muito de frequentar as criações do chef Ricardo Costa, do Yeatman, no Porto. Fiel às suas raízes, inclui a chanfana em diversas preparações nos seus menus de degustação. Depura-a ao ponto de se tratar de uma criação de alta cozinha, o que significa olhar para aspectos como a digestibilidade e expressão de terroir. A cozinha tradicional portuguesa é sobretudo um matizado de cozinhas regionais e por isso a chanfana está presente em todos os pequenos recantos de Portugal. Espera-se dos chefs de primeira linha que inovem nas preparações de sempre e na cozinha dos seus avós.
(Artigo publicado na edição de Maio de 2025)
Restaurante Gastronómico: Requinte com vista deslumbrante!

A cozinha é de imaginação, evidenciando qualidade, diversidade e a frescura dos produtos locais. Tudo pensado ao mais ínfimo pormenor, com elevado requinte e sofisticação e um serviço exemplar, para proporcionar um momento de degustação inesquecível. Aberto desde 2010, ano em que foi inaugurado o The Yeatman Hotel, o Restaurante Gastronómico é um destino de […]
A cozinha é de imaginação, evidenciando qualidade, diversidade e a frescura dos produtos locais. Tudo pensado ao mais ínfimo pormenor, com elevado requinte e sofisticação e um serviço exemplar, para proporcionar um momento de degustação inesquecível.
Aberto desde 2010, ano em que foi inaugurado o The Yeatman Hotel, o Restaurante Gastronómico é um destino de eleição para apreciadores de vinho e amantes da gastronomia de excelência. Liderado pelo chef Ricardo Costa desde o início, tem hoje duas estrelas Michelin e um conceito inspirado na gastronomia nacional, onde os ingredientes locais ocupam o lugar de destaque e os pratos tradicionais são recriados à luz dos novos tempos. Ao menu de degustação sazonal, composto por cerca de 12 momentos a 260€ por pessoa, pode ser adicionado um de três suplementos vínicos – The Prime Selection 260€, The Yeatman Selection 130€, The Non-alcoholic Selection 100€, selecionados por Elisabete Fernandes, diretora de vinhos do Yeatman, por forma a garantir um pairing memorável. O serviço é discreto, mas exemplar, profissional, de enorme simpatia. A atenção ao detalhe está presente em cada momento, seja na decoração, na louça, no requinte e sofisticação. Enfim, classe à mesa numa experiência de fine dining inesquecível.
À chegada somos convidados a apreciar um conjunto de snacks enquanto desfrutamos da vista maravilhosa à nossa frente. De entre as várias propostas, o Frango no churrasco, um homenagem ao célebre franguinho da Guia, foi talvez a mais surpreendente. O pairing com espumante Quinta das Bágeiras Rosé Baga Bairrada 2018 não poderia ser mais acertado. Antes de rumarmos ao interior do restaurante, tempo de visitar a cozinha, espaço onde uma equipa coesa e muito talentosa nos foi preparando os momentos que se seguiram. A refeição foi sempre em crescendo, passando pelo choco, o salmonete, o tamboril e o espetacular bacalhau com grelos, grão-de-bico e mão de vitela, pratos repletos de sabor e umami acompanhados por uma seleção de vinhos certeira, com destaque maior para o Quinta de San Joanne 2003. Antes do grande final, de salientar o pão caseiro The Yeatman, de massa mãe, com azeite e manteiga caseira. Não é fácil fazer do simples tão bom. E tão bem!
Para o final, o momento Leitão The Yeatman, cujo sabor à moda da bairrada “se inspirou nos melhores assadores, Ricardo, do restaurante Mugasa, e o Sr. Vidal, da casa Vidal”, salientou, nesse dia, Ricardo Costa. A sobremesa Farturas, que remete de imediato para as festas populares, era crocante, de textura equilibrada e viciante, e fechou com chave de ouro a degustação, acompanhada por um Porto 50 anos. Que maravilha!
Restaurante Gastronómico
The Yeatman
Rua do Choupelo, 4400-088, Vila Nova de Gaia
Tel.: +351 220 133 100
Reservas: https://www.the-yeatman-hotel.com/pt/gastronomia/restaurante/
Email: reception@theyeatman.com
Aberto de terça-feira a Sábado ao jantar
Guelra: Um mergulho no mar!

Na verdade, quase podíamos dizer que o Guelra são dois restaurantes em um. No rés do chão, com um balcão em U e a esplanada confortável adjacente, a que puseram o nome de “ocean to table”, a aposta é mais informal com algumas sugestões de cozinha de conforto e a montra de peixe e marisco […]
Na verdade, quase podíamos dizer que o Guelra são dois restaurantes em um. No rés do chão, com um balcão em U e a esplanada confortável adjacente, a que puseram o nome de “ocean to table”, a aposta é mais informal com algumas sugestões de cozinha de conforto e a montra de peixe e marisco a piscar-nos o olho, para além de ostras, rissóis de camarão, croquetes de polvo e puntinilhas de choco e outros snacks e petiscos. No “first floor” – porquê a insistência destes nomes em inglês? – a aposta é mais ambiciosa e está a meio caminho do fine dinning e os eventos sopram de leste, desde o Japão.
No Guelra oficiam dois chefes, Manuel Barreto que supervisiona os dois espaços e Gonçalo Gonçalves responsável pela cozinha do 1º piso a quem ficámos a dever a experiência do almoço que nos foi dado degustar. O serviço de vinhos está a cargo do sommelier Ricardo Bento que revelou muito acerto nas propostas de harmonização, tirando o caso particular da sobremesa em que o match não funcionou. O conceito aqui, no dizer dos responsáveis, é uma viagem gastronómica que reflete as transações entre Portugal e o país do sol nascente. Começamos com uma ostra da Ria Formosa com um tempero especial que nos despertou os sentidos. Avançamos depois para um Sashimi de peixe, no caso lírio dos Açores, com miso e vinagre de arroz, muito delicado e contido. Vem depois o caldo Dashi retemperador e pleno de sabor. As propostas seguintes passaram pelo Tártaro de atum, precioso, e a boa surpresa do Ramen de lula, um prato muito bem conseguido cheio de umami. Terminámos o percurso pelo mar do Oriente com um peixe bem português, um Robalo de ponto apurado, com endívia roxa, puré de raiz de aipo mostrando uma habilidosa fusão de sabores e revelando uma boa técnica culinária. A refeição termina com a sobremesa à base de pera Nashi, batata doce e camomila que só pecou pelo facto do vinho Moscatel que foi servido ter resultado menos bem na harmonização. Este “First Floor” funciona tanto ao almoço com menu de 3 etapas a €30 e ao jantar com menu de 7 momentos a €60.
O conceito do Guelra pode parecer um pouco confuso ao princípio, mas para o cliente que entre na onda revela-se uma agradável surpresa.
Guelra
Rua de Belém, 35
Aberto todos os dias, das 12 às 22:00 horas
Email: reservas@guelraott.com
Tel: 939 002 081
Estive Lá: No Rossio Gastrobar

Já não me lembro do número de vezes que calcorreei a Avenida da Liberdade acima e abaixo, 1,5 km de prédios antigos que foram sendo paulatinamente substituídos por edifícios modernos, de grande dimensão e, muitas vezes, de gosto duvidoso, onde ficam hoje algumas lojas das marcas mais mediáticas e caras de Portugal, essas geralmente de […]
Já não me lembro do número de vezes que calcorreei a Avenida da Liberdade acima e abaixo, 1,5 km de prédios antigos que foram sendo paulatinamente substituídos por edifícios modernos, de grande dimensão e, muitas vezes, de gosto duvidoso, onde ficam hoje algumas lojas das marcas mais mediáticas e caras de Portugal, essas geralmente de montras ornamentadas com melhor gosto que alguns prédios que as albergam. Nesse final, de uma sexta-feira recente, o destino foi o hotel Altis Avenida, que fica entre os Restauradores e o Rossio, para um cocktail e um repasto no restaurante/bar do seu topo.
O Rossio Gastrobar, que tem uma varanda com vista para a Baixa de Lisboa e o Castelo de S. Jorge, mais ao longe, é agradável. Nesse final de dia fresco ficámos no exterior, confortados pelas chamas dos aquecedores a gás a usufruir de um espaço que esteve sempre cheio de gente, sobretudo turistas que iam ali para estar um pouco numa das poucas esplanadas com vista sobre Lisboa e talvez também para saborear um dos cocktails de Flavi Andrade, chefe de Bar do hotel que alberga este espaço, que foi eleita a melhor barmaid do ano na edição de 2024 do Lisbon Bar Show. Foi também o que fizemos e valeu a pena.
Depois de uma pequena conversa com a autora, para perceber melhor o que a inspira a criar os seus cocktails, optei pelo seu Cacilheiro, já que estávamos tão perto do Tejo, e fiz bem. O repasto que se seguiu foi criado pelo chefe João Correia, com a entrada a ser composta por Mini tarteletes de cogumelos e pickle de limão, Crocantes de gamba da costa e maionese de coentros e Pastéis de massa tenra, vitelão e cebolinho, o primeiro e o último a fazerem muito boa companhia ao Caves S. João Pulo do Lobo Arinto de 2020. Para além de um Arroz Saboroso, regado com o suco da cabeça de camarão tigre, e feito ao estilo da paelha valenciana, em parceria de um tinto Porta de Cavaleiros Reserva 2019, muito equilibrado e elegante, também saboreámos, para terminar, uma Tarte de Noz Pecan e gelado de aguardente. Tudo isto servido, de forma eficiente, por pessoas simpáticas e agradáveis. Soube bem.
Rossio Gastrobar
Rua 1º Dezembro, 118, Lisboa
Tel.: + 351 210 440 018
Email: rossio@altishotels.com
Proximidades: Bacalhau, jeitos e preceitos

Diz o povo que há mil e uma maneiras de cozinhar bacalhau. Na verdade há apenas duas: a boa e a má. Boa é toda a receita que respeita o bacalhau e não o martiriza com excessos culinários. Má é a receita que faz exactamente o contrário, enchendo-o de temperos e outras desgraças. Longe de […]
Diz o povo que há mil e uma maneiras de cozinhar bacalhau. Na verdade há apenas duas: a boa e a má. Boa é toda a receita que respeita o bacalhau e não o martiriza com excessos culinários. Má é a receita que faz exactamente o contrário, enchendo-o de temperos e outras desgraças. Longe de ser consensual na forma entre os portugueses, o bacalhau é o nosso totem culinário e merece sempre que nos detenhamos sobre ele.
No maravilhoso livro “Receitas escolhidas”, a eterna Maria de Lurdes Modesto apresenta a seguinte receita do Bacalhau à Gomes de Sá:
“Coloca-se o bacalhau num tacho e escalda-se com água a ferver. Tapa-se e abafa-se o recipiente com um cobertor e deixa-se ficar assim durante 20 minutos. Depois escorregue-se o bacalhau, retiram-se-lhe as peles e desfaz-se em lascas. Põem-se estas num recipiente fundo, cobrem-se com leite bem quente e deixam-se ficar de infusão 1h30 a 3 horas. Entretanto, cortam-se as cebolas e o dente de alho às rodelas e levam-se a alourar ligeiramente com o azeite. Juntam-se as batatas, que se cozeram com a pele, se pelaram e se cortaram às rodelas. Junta-se ainda o bacalhau escorrido. Mexe-se tudo ligeiramente, mas sem deixar refogar. Tempera-se com sal e pimenta. Deita-se imediatamente num tabuleiro de barro e leva-se a forno bem quente durante 10 minutos. Serve-se no prato em que foi ao forno, polvilhado com salsa picada, e enfeita-se com rodelas de ovo cozido e azeitona preta.”
Resumindo, são três cozeduras para chegar ao excepcional resultado final do fabuloso bacalhau à Gomes de Sá, que, para mim, é a mais perfeita das formas de cozinhar o fiel amigo. É, segundo o que se sabe, atribuída a José Luís Gomes de Sá, estabelecido no Porto há cerca cem anos no negócio do bacalhau e é de facto de grande talante culinário. É também a receita mais aviltada de todas. Não há quem não lhe altere um aspecto ou outro. Mas isso é a vida e é facto inalienável. Além disso, só acrescenta à sua popularidade. Mesmo assim, está longe de ser a mais praticada em restaurante. Mas já lá vamos.
O prodígio está no peixe
A forte percentagem de colagénio contida no bacalhau torna-o desejado e apetecível. E deve evitar-se o excesso de cozedura. Acontecendo, seca o peixe, a posta ou a parte e lá se vão a utilidade e a textura mágicas. A riqueza é tal que do simples escaldar conseguimos já um caldo cheio de umami, que depois podemos congelar para utilizações futuras. As vulgares cuvetes que utilizamos para o gelo são óptimas para preservar o valor dos caldos, de bacalhau e não só. O caldo do cozido à portuguesa e o fundo de tomate são ambos belíssimas ilustrações do poder culinário que podemos e devemos conservar. Numa utilização quotidiana, rapidamente produz um molho excelente para um bife grelhado, por exemplo. Do bacalhau propriamente dito é que há que dizer que sem boa matéria-prima não há fórmula que resulte.
Temos várias declinações e atalhos sobretudo na forma congelada ao nosso dispor e, em rigor, devemos experimentá-las todas antes de escolher a nossa, que é, em princípio, a que mais se adequa à forma de cozinhar de cada um. Não tenhamos dúvidas de que estamos muito bem servidos, tanto em diversidade quanto em qualidade.
Se estamos empenhados na abordagem clássica, que é da demolha aturada por dois ou três dias com mudança periódica da água, estamos no caminho certo. É a forma de conseguir a regeneração plena do peixe, a partir do qual partimos com total segurança em direcção à receita que pretendemos executar. Não há nada de intrinsecamente errado na utilização de bacalhau demolhado e congelado, pronto a utilizar, note-se bem. É bem melhor do que deixar uma posta a boiar em água na bancada da cozinha por um par de dias. Além do cheiro nauseabundo, o peixe fica apodrecido e não serve mais para cozinhar, apesar de em muitos lares isso acontecer.
A Catalunha e o País Basco, servem desde, sempre as peças mais ricas em goma e colagénio do bacalhau. Kokotxas – papadas -, línguas e bochechas extraídas do peixe fresco fazem as delícias de todos, normalmente em ensopados ou outras soluções caldosas de massa ou arroz. Outrora, por cá essas partes estavam incrustadas nas caras de bacalhau que, com o restante peixe, se secavam e salgavam. Actualmente, graças ao extraordinário labor de produtores e transformadores de bacalhau dos nossos dias, temos acesso não só às ditas caras salgadas e secas, mas também a línguas e bochechas disponibilizadas em salmouras fortes. Feita a competente demolha, estão regeneradas e prontas a utilizar. E ainda temos os sames, que são as bexigas natatórias do bacalhau, de que herdámos importante receituário. Fazem parte do sistema de orientação do peixe pelas águas frias do norte e, por isso, são proteína rica e muito saborosa. A cozinha de pescador fez-lhes sempre as honras e hoje temos um prato ao nosso dispor, a feijoada de sames, que explora bem a riqueza destas pequenas bolsas, colocando-a ao lado de leguminosas diversas.
Igualmente valiosas são as línguas, de que os antigos percebiam bem as mais-valias culinárias. As choras de línguas vêm do tempo dos bravos dos bacalhoeiros na Terra Nova e após o necessários corte das cabeças preparava-se o maravilhoso caldo que era – e ainda é – de comer e chorar por mais. Nesta categoria caldosa, quando há tomate no fundo abra um bom Bical novo da Bairrada, com alguma madeira. Quando não há precisa desse fruto/legume, utilize um Arinto de Lisboa com madeira.
A forte percentagem de colagénio contida no bacalhau torna-o desejado e apetecível.
Os bacalhaus que amamos
Depois de tornar a variante Gomes de Sá como favorita, podemos e devemos acrescentar a lista de grandes pratos de bacalhau que representam condignamente o nosso grande totem. Como maridagem do Gomes de Sá, pode escolher entre um tinto alentejano sem madeira e um Loureiro dos vinhos verdes com madeira. Ambos brilharão junto do grande prato que é o bacalhau à Gomes de Sá. Eis os outros:
À Brás – A fascinante figura do galego Brás, da tasca montada, em tempos idos, na baixa lisboeta, continua a povoar fortemente o meu imaginário culinário. Bacalhau esfiapado fininho em seco e reservado, o sal sai naturalmente. Batatas palito de corte apertado, esmorecidas no azeite sem chegar à crocância da fritura plena, também reservadas. Chegava o cliente e o amigo Brás batia dois ovos, que, depois dos outros dois ingredientes a estalados na frigideira e com esta fora do lume, deitava por cima enquanto mexia. Há um bacalhau à Brás por cada casa, e a todos se pode assim chamar pela popularidade e facilidade da execução. O ovo macio e cremoso, aplicado com o preparado já fora do forno, vai determinar a eternidade do prato que ainda hoje gostamos de processar nas nossas casas. Um bom Alvarinho da região dos vinhos verdes vai fazer-lhe bem as loas.
À Narcisa – A receita é originária de um restaurante em Braga, chamado Narcisa, e era confecionado por uma cozinheira chamada Eusébia, entretanto falecida em 1972. Dada a sua origem, pode também ser chamado de bacalhau à Braga. Mas apesar da dor da perda irreparável da maravilhosa Narcisa, fixemo-nos na essência da receita. Dez postas altas de bacalhau que, após demolha, são abertas ao meio e em cada uma colocada uma fatia de presunto. É muito importante o tomate que faz o fundo do assado subsequente e que vai fazer a cama de cebola salteada em azeite. O presunto é parte interessada e, ao mesmo tempo, o único tempero do prato. O acabamento em forno quente vai decretar a natureza do prato, que apaladado com maionese vai gratinar na perfeição. Far-lhe-á boa justiça um tinto de castelão com menos de cinco anos de estágio em madeira, da região do Tejo.
À Zé do Pipo – O que faz a diferença neste prato é a utilização intensa e copiosa de maionese. As postas de bacalhau são cozidas em leite, parte do qual vai avivar o puré de batata que vai a gratinar em batatas duchesse, aplicadas com o saco de pasteleiro. Idealmente, o apaladar do Zé do Pipo consegue-se através da colocação de uma posta por frigideira de barro, orlada pelo puré de batata e depois coberta de maionese. Seguidamente vai ao forno gratinar e é servido assim, em dose individual. É brilhante e sofisticado o acompanhamento vínico com um bom Vinhão do Minho.
À Moda de Braga – É uma das mais vezeiras formas de processar bacalhau e, curiosamente, é a que mais frequentemente encontramos em Lisboa e no Porto. A posta é frita após demolha e é sempre acompanhada de cebolada forte e batatas fritas às rodelas. É porventura a preparação que mais abundantemente povoa o imaginário dos portugueses, variando no aspecto do pimento e do alho, o que sempre altera o sabor e a força do prato. Não posso deixar de referir a perfeição da confecção do chef José Dias, em Braga, no seu restaurante Bem me Quer, no Campo das Hortas. O vinho verde branco é o que é mais dado para acompanhar este prato ancestral da nossa tradição, sobretudo da casta Alvarinho, por permitir uma leitura ampla e tolerante do prato em todas as suas cambiantes.
Bolinhos/pastéis de Bacalhau – São emblema nacional e homenagem aprimorada ao bacalhau. Levam tanto de bacalhau como de batata e meia porção de cebola. Muito do segredo culinário está na correcção da fritura, da qual não deve haver excessos de gordura. Um bom pastel de bacalhau nem sequer deixa rasto de gordura nos dedos quando é comido à mão. E deve ser tão saboroso tanto quente como frio, pois tal como o ovo cozido, deve ser encarado como nibble, ou seja, para comer aos pedacinhos, para combater a fome súbita de qualquer português.
Cozido com todos – Por muitas voltas que demos, é a forma a um tempo mais clássica e mais sublime de comer bacalhau. Na quadra natalícia, é muito importante a cama de couve portuguesa curtida pela geada, a que se junta cenoura e nabo, além da óbvia rica e sápida posta de bacalhau, nunca demasiado cozida e servida com abundância de azeite e alho. É por excelência o manjar da consoada no país inteiro, excepção feita talvez ao Algarve e ao Alentejo, onde a carne de porco é imperativo familiar por excelência. Nos lares portugueses, tem assento real ao longo de todo o ano e é dos prazeres da mesa maiores que há, mais que não seja por evitar o peso nefasto da obrigação. A partir de um bom bacalhau cozido, tudo se pode fazer.
(Artigo publicado na edição de Fevereiro de 2025)
Estive lá: Cícero, Um restaurante em forma de arte

No cosmopolita e multicultural bairro lisboeta de Campo de Ourique, o restaurante é um espaço deveras singular. Primeiro, porque se apresenta como um restaurante que é também uma galeria de arte, com muitos quadros e esculturas expostos de artistas do país irmão. Depois, porque se assume como um representante da cultura brasileira, unindo cores, formas […]
No cosmopolita e multicultural bairro lisboeta de Campo de Ourique, o restaurante é um espaço deveras singular. Primeiro, porque se apresenta como um restaurante que é também uma galeria de arte, com muitos quadros e esculturas expostos de artistas do país irmão. Depois, porque se assume como um representante da cultura brasileira, unindo cores, formas e sabores onde abundam as referências tropicais. Mais ainda, porque o espaço é dividido em três pequenas salas, Modernista, Contemporâneo e Origem, uma no rés do chão e outras duas na cave, cada uma delas com a decoração e ambiente distintivos, marcados pela cores fortes das pinturas expostas, assegurando, em qualquer delas, uma atmosfera acolhedora e intimista.
Por último, na proposta gastronómica que é, afinal, o mais relevante quando falamos sobre um restaurante. Pois é aqui que Paulo Dalla Nora Macedo, um dos co-fundadores do espaço, arriscou nesta nova versão do Cícero e foi buscar a Chef brasileira Alessandra Montagne, há 25 anos sediada em Paris, onde tem dois restaurantes e uma reputação já bem firmada. Num jantar de apresentação à imprensa, onde estivemos, foi visível como a Chef Alessandra, em conjugação com a Chef executiva residente, Ana Carolina, procuraram unir a técnica francesa, a inspiração de Cícero Dias na composição cromática das apresentações e uma fusão de ingredientes brasileiros e apontamentos portugueses.
Visando nitidamente o fine dinning e com preços condizentes a essa ambição, Alessandra desenhou um menu rico e em alguns momentos surpreendente. Logo no amuse-bouche encantou com a crocância do dadinho de tapioca. Nas duas entradas servidas gostei do contraste entre a suavidade do creme de cenoura e a salinidade da bottarga e sabores terrosos do velouté de cogumelos. Nos pratos principais, o carabineiro, irrepreensível com o risoto de cevada, cremoso como se impunha, pediu meças com o bacalhau fresco, couve e arroz negro. O prato de carne foi poitrine de porco, aipo e beterraba, e talvez porque a refeição já ia farta e longa terá sido o que menos me entusiasmou. Mas o desenho cromático da sobremesa, que a Chef Alessandra assumiu ter sido inspirada numa pintura de Cícero Dias, rematou com brilho o jantar.
Destaque ainda para uma carta de vinhos bem pensada, da responsabilidade do sommelier Rodolfo Tristão, com sugestões interessantes para além do óbvio, mas com preços que não são meigos. Requintado restaurante, galeria multifacetada, tertúlia animada, o Cícero, na sua nova encarnação, tem muito para seduzir. Assim a bolsa o permita.
Cícero
Morada: Rua Saraiva de Carvalho, 171, Lisboa
Tel.: + 351 966 913 699
Site: https://cicerobistrot.pt/pt/home-pt/
Horário: De Domingo a Quinta das 19h15 às 23h45. Sextas e Sábados das 19h15 às 00h00
Preço médio: 90€