Volta à Ásia no Martim Moniz: quando um bao deixou de ser mau

A pressão imobiliária na praça mais asiática de Portugal ainda não conseguiu expulsar as comunidades de indianos, chineses e bengalis que ali se estabeleceram há muito. Graças a Deus, a Alá e aos homens. TEXTO Ricardo Dias Felner FOTOS Ricardo Palma Veiga Durante muito tempo, os chefs mantiveram o segredo. O Martim Moniz era um […]
A pressão imobiliária na praça mais asiática de Portugal ainda não conseguiu expulsar as comunidades de indianos, chineses e bengalis que ali se estabeleceram há muito. Graças a Deus, a Alá e aos homens.
TEXTO Ricardo Dias Felner
FOTOS Ricardo Palma Veiga
Durante muito tempo, os chefs mantiveram o segredo. O Martim Moniz era um oásis de produtos de loja gourmet vendidos a preços de mercearia. No supermercado chinês Hua Ta Li, num domingo de manhã, podíamo-nos cruzar com duas ou três celebridades da alta-cozinha, de Henrique Sá Pessoa a André Magalhães. Na altura, há mais de dez anos, os chefs eram dos únicos ocidentais que se misturavam com chineses em volta da vitrina de cabeças de pato assado ou de bao de porco doce. Mas as coisas mudaram.
Hoje em dia, os bao – pãezinhos de trigo e fermento em pó, muito brancos e leves, recheados com carne ou legumes, num molho agridoce – são uma das comidas da moda. Só em Lisboa há uma vintena de restaurantes trendy a servi-los, quase sempre em versões sofisticadas e de fusão. Quando as pessoas trincam a massa fofa, sentadas numa mesa cosmopolita do Chiado, julgam que aquele pão foi feito no momento, ali, mas o mais certo é que tenha vindo da arca dos congelados de um supermercado chinês do Martim Moniz — e só o recheio seja de produção própria.O mesmo acontece com muitos outros produtos. Há dias, num desses restaurantes asiáticos geridos por pessoas criadas nas Avenidas Novas, aconselharam-me para sobremesa uns mochi. Os mochis são uns bolinhos do tamanho de bolas de ping-pong, com uma capa de massa de farinha de arroz e diversos recheios doces: pasta de amendoim, chá verde, feijão azuki. Perguntei se eram feitos ali e garantiram que sim. Sucede que não: os mochi, embora muito bons, eram iguais aos que se compram em caixas no Martim Moniz (e até vinham com o papelinho na base com que são embalados). Dois custaram 4€, preço suficiente para uma dúzia deles no Hua Ta Li.
Nada disto já escandaliza. O fantasma da comida chinesa parece ter-se dissipado, depois da célebre operação da ASAE, em 2006, que levou ao encerramento de 14 restaurantes e lojas. Tanto assim que a comida chinesa voltou a ser cool e, de então para cá, nasceram muitos outros supermercados no Martim Moniz.Um deles foi o Chen, porventura o maior em área. Podemos encontrar lá desde chás matcha até várias marcas de molho picante tipo sriracha, passando por garrafas de litro e meio de soja Kikkoman, até ceboleto aos molhos fresquíssimo, feijão edamame ou a lindíssima curgete roxa.
É aqui que se abastecem muitos dos restaurantes chineses da zona, comprando todos os dias produtos frescos. A beringela roxa, por exemplo, está sempre na ementa de um dos mais extraordinários restaurantes chineses de Lisboa. A primeira vez que lá comi, fui guiado pelo chef André Magalhães, que apelidava o sítio de “cantina chinesa”. Apesar de ficar num rés-do-chão, com porta para a rua, o restaurante não tem um nome oficial, nem os donos falam português suficiente para nos elucidar. Anos depois, quando escrevi sobre o sítio para a revista “Time Out”, recorri a um papel afixado na parede, onde se fazia referência a um proprietário chamado Mi Dai (Calçada da Mouraria, 7). O nome acabou por ficar assim instituído em referências na Internet, mas não há certezas de que seja correcto.
O que é certo é que se come muito bem lá. Actualmente, já lhe dão uma carta em português, mas a forma mais interessante de escolher é abeirar-se da vitrina onde estão expostos produtos frescos, em cru, e apontar para uma travessa. Essa travessa segue directamente para o wok e cinco minutos depois está a comer da melhor comida da região costeira entre Xangai e Cantão. Um banquete, aqui, pode incluir as lulas com pickles de couve, entrecosto frito com alho, barriga de porco cozinhada em soja, edamame e as obrigatórias beringelas roxas cozinhadas com carne picada, feijão, alho e gengibre — tudo regado a cerveja Tsingtsao (também há Super Bock, mas enfim). Para os mais afoitos, também se arranjam coisas exóticas, como medusa e cartilagens de vaca.Caso vá sozinho, o ideal pode ser optar por uma sopa de noodles com vaca e couve pak shoi, que é, por si, uma refeição. A massa, não sendo fresca, é firme e elástica e o caldo é uma explosão aromática, com notas fortes a estrela de anis.
Não estamos, contudo, a falar do típico “clandestino” da área. Aqui os produtos são acima da média e os preços reflectem isso. Não se come por menos de 10€, a não ser que opte pela sopa de noodles (6€).
Pelo mesmo preço, a 50 metros dali tem uma versão diferente destas sopas, uma espécie de ramen japonesa mais rude. Na rua Fernandes da Fonseca, 12, subindo ao primeiro andar vai encontrar do lado direito um cabeleireiro cheio de jovens chineses com capilagem multicolor e do lado esquerdo uma porta aberta. Entre e vá até ao fim, onde verá um balcão de snack bar e uma sala cheia de chineses, com a cabeça enfiada numa tigela, sorvendo coisas. O Pangzi Mianguan faz a massa dos noodles na hora, mas o caldo é um líquido translúcido e saboroso feito da cozedura demorada de ossos. Se só puder escolher uma sopa, vá pela de entrecosto.Mas nem só de comida chinesa se faz a praça. As outras comunidades muito presentes na zona são a hindu (da Índia) e a muçulmana, sobretudo paquistanesa e bengali, do Bangladesh. No Centro da Comercial da Mouraria há três lojas cheias de especiarias, frutas, molhos, farinhas, produtos vindos desta região. Mal descemos as escadas para o piso -1 entramos noutro mundo, com aromas de fábrica de Guangdong misturados com um bazar de Nova Deli.
Do lado sul, num beco curto está o Nita Cash and Carry. Conheci-o há dez anos, quando ali andei às compras com Jesus Lee, o chef do restaurante Jesus é Goês. Era lá que ele se abastecia e percebe-se porquê. Há todo o tipo de especiarias, algumas difíceis de encontrar, como a noz-moscada preta. De resto, só de lentilhas tem uma meia dúzia de variedades, mais malaguetas indianas, farinhas e óleos de todo o tipo, tudo num espaço mínimo com preços condizentes.
Para frescos, todavia, não há como contornar o Popat Store. Há sempre novidades importadas da Índia. Há umas semanas tinham chegado umas favinhas micro, óptimas. E quem quiser fazer achar de manga tem aqui a fruta indicada, também ela micro, como micro são as bananas e as beringelas.Mais uma vez, estes fornecedores não servem apenas as residências periclitantes das comunidades indiana, bengali e paquistanesa espalhadas no eixo Intendente-Mouraria. Há também restaurantes onde os locais comem e que se abastecem aqui. A maioria está espalhada pela Rua do Benformoso, uma via comprida e movimentada, paralela à Rua da Palma, cheia de lojas, que parte do Martim Moniz. Iniciando a rota aqui, seguindo para Norte, até ao Intendente, havemos de encontrar do lado direito o Pho-pu, um dos primeiros restaurantes de Lisboa a servir a célebre sopa phô vietnamita.
Pouco depois, do lado oposto, está o Bangla, o mais procurado restaurante bengali da zona. Aqui, como em todos os restaurantes do Benformoso, come-se com as mãos e a ajuda de pão indiano, uns crepes feitos no momento, excelentes para empurrar os caris da casa. Entre os meus preferidos está o caril de cabrito, mas as alternativas são muitas, com birianis, tikkas e outros clássicos indianos.
O Bangla tem também uma das ofertas mais diversificadas de doces indianos artesanais, também conhecidos por Barfi. São normalmente doces feitos com uma base de leite em pó e farinhas de trigo ou amêndoa ou até de pistáchio. Há outros cafés mais à frente onde poderá comprá-los.
Alguns destes lugares do Martim Moniz mudam de nome como o Ronaldo muda de carro. Mas importa olhar para as vitrinas de comida, seguir os aromas da Ásia no centro de Lisboa. Lembrar que os bao vêm dali.
Ide lá. Já. Mais tarde pode ser tarde.
Edição Nº13, Maio 2018
Bem servir na Manteigaria Silva

Edição nº11, Março 2018 É uma das mais clássicas lojas finas de Lisboa e agora está a arrancar com um novo projecto, praticamente inédito a nível nacional. E consegue combinar como poucas a qualidade e selecção dos seus produtos com um atendimento competente e personalizado. TEXTO António Falcão FOTOS Ricardo Palma Veiga A nível de […]
Edição nº11, Março 2018
É uma das mais clássicas lojas finas de Lisboa e agora está a arrancar com um novo projecto, praticamente inédito a nível nacional. E consegue combinar como poucas a qualidade e selecção dos seus produtos com um atendimento competente e personalizado.
TEXTO António Falcão
FOTOS Ricardo Palma Veiga
A nível de localização, seria difícil conseguir melhor: a Manteigaria Silva fica quase encostada à famosa Praça da Figueira, e a escassos 50 metros da Praça do Rossio, dois dos locais mais visitados de Lisboa. O nome da casa vem do negócio da manteiga, há muitas décadas atrás. Esta era uma das casas, aliás, que estava autorizada a vender manteiga avulso. Em tempos, Lisboa teve 24 casas a ostentar o nome de Manteigaria. Hoje, esta é a única…
Regressamos ao presente e olhamos para a entrada, que pode enganar. De facto, à porta está uma boa selecção de frutas e legumes expostas nas suas tradicionais caixas. Um incauto passante poderia pensar que se trata de uma mercearia qualquer, como as há às dezenas em Lisboa. Mas basta entrar para ficar com outra percepção. A arrumação, a diversidade de produtos e a sua aparente qualidade remetem imediatamente qualquer gastrónomo ou enófilo para o conceito de “loja gourmet”.
Os nossos olhos fixam-se quase imediatamente numa resplandecente máquina, logo à entrada: parece uma fiambreira, mas nunca tinha visto nenhuma parecida. Esta mais parece um torno mecânico, tal a quantidade de rodas, roscas e manípulos. Um funcionário coloca uma peça de presunto no suporte e agarra-se à máquina: em segundos saem para um prato fatias da espessura de uma folha de papel. Esta é uma Berkel de 1923, primorosamente restaurada em Itália.
O mundo dos queijos
A grande especialidade de José Branco é o queijo. O conhecimento veio-lhe de há várias décadas, quando começou a trabalhar numa empresa de queijos e onde aprendeu a afinação com um “bom mestre”. “Ganhei gosto nessa actividade, que ninguém fazia aqui na baixa lisboeta”, garante José Branco.
Em especial o Serra da Estrela, que já vem curando desde há décadas numa câmara especial e para clientes seleccionados. Com a experiência que foi adquirindo, José Branco e o seu filho decidiram alargar esta actividade a níveis nunca vistos em Portugal e compraram várias câmaras de cura, que instalaram num armazém não longe dali. A capacidade chega às 5.000 unidades! A compra de queijos já começou, em várias zonas de Portugal, mas tudo escolhido a dedo. Os Branco não querem limitar-se aos amanteigados mais famosos, como Serra ou Serpa. Querem também outros queijos certificados e, quem sabe, favorecer o aparecimento de outros tipos de queijos.
Os queijos podem levar até 12 meses de cura, mas os ‘Ilha’ podem ir a ano e meio. As experiências ditarão qual o tempo necessário. Como não há qualquer estudo ou ciência feita nesta área, a família Branco decidiu começar um projecto com o Instituto Superior de Agronomia: o ISA irá analisar queijos a cada 4 meses e reportar os resultados. “Temos que estar sempre a aprender, mesmo que nos custe dinheiro”, remata José Branco. Os estudos irão versar sobre a maturação e a validade do queijo. “Por exemplo, um queijo amanteigado tem a validade de um ano; ao fim desse tempo, que validade terá? Sabemos que deverá baixar, mas quanto?”, questiona José Branco filho.
Seja como for, a experiência de vários anos dos dois gestores já dá algumas indicações: tal como os vinhos, durante a cura, o queijo chega a um pico em que está no ponto óptimo de consumo. Determinar esse pico é a tarefa do afinador, que usa sobretudo o tacto e o ouvido: “Eu falo com o queijo, e ele fala comigo, e cada queijo é um queijo”, diz o nosso anfitrião com um sorriso. Os queijos, já agora, são todos de fabrico manual e certificados. José Branco filho diz que o pai “é o único afinador de queijos de Portugal”.
O armazém de cura vai ainda servir para fazerem provas, workshops e cursos. Uma prova será por exemplo uma espécie de ‘vertical’, consoante a cura: 40 dias, 4 meses, 8 meses e um ano; no mesmo tipo de queijo, claro. E depois é ver as diferenças…
“Temos que ter esses queijos todos, e isso requer uma grande logística e algumas toneladas de queijos.” Nota final do especialista: “O Queijo da Serra é à fatia.” Por isso deixem de cortar uma tampa ao queijo e comer à colher…
Presunto, enchidos, bacalhau…
O presunto é outra das especialidades da casa. José Branco quer que seja esta casa a desossar os presuntos completos que compra, de fornecedores de confiança. “O meu filho e os outros funcionários já têm as melhores ferramentas para desossar.” Por aqui há de tudo um pouco, com sete qualidades de presunto no portefólio. O resultado é embalado a vácuo, para preservar a qualidade. “Daqui saem 250 a 300 presuntos por mês, tudo desossado por nós”, diz-nos José Branco filho. A maioria da Casa do Porco Preto, onde têm que fazer pré-reservas com até 3 anos de antecipação!
Os enchidos não faltam, bem como o bacalhau. Para quem quiser, existem quase todos os acompanhamentos necessários em grão, incluindo o parceiro habitual, o grão de bico. Mas pode ainda encontrar compotas, conservas, condimentos e muitas outras iguarias. As preocupações com a saúde, outra área muito actual, não estão alheadas da família Branco, que iniciou uma espécie de cruzada contra o sal em excesso nos produtos. E tentam que os fornecedores recebam esta mensagem…
O primado da qualidade
A conversa foi, entretanto, enriquecida com um vinho da casa, vinificado pela Nieeport, com presunto e queijo. Admirável a combinação. Quanto aos vinhos, a selecção está cá. Não é vasta, mas tem dedo experiente e não faltam sequer os grandes ícones nacionais, incluindo muitos Vinhos do Porto e o incontornável Vintage Nacional da Quinta do Noval. Afinal, a casa é visita frequente por parte de turistas.
A família faz degustações frequentes à porta da loja, combinando toda a espécie de produtos, dos queijos aos enchidos, passando pelo bacalhau, Vinho do Porto e vinhos tranquilos.
A loja é pequena, mas não é por vontade do dono. Já não há mesmo mais espaço, mas mudar para outra localização será tarefa quase impossível, aos preços do imobiliário da baixa lisboeta. E sair daqui para qualquer outro bairro seria perder uma localização privilegiada. Pode ser que haja uma alternativa, mas, até essa possibilidade existir, a Manteigaria Silva terá de lidar com o que tem. Que já é muito. Não foi, aliás, por acaso, que lhe demos o prémio de Loja Gourmet do ano.
CONTACTOS
Manteigaria Silva
Rua Dom Antão de Almada 1
1100-197 Lisboa
Tel. 213 424 905
geral@manteigariasilva.pt
Horário de funcionamento: Segunda a sábado: 9h00 – 19h30. Fecha domingos e feriados
www.manteigariasilva.pt
Três lanças portuguesas em Espanha

Edição nº11, Março 2018 Entrevista Alexandre Silva, Henrique Sá Pessoa e João Rodrigues tiveram por sua conta o maior palco da gastronomia mundial, o Madrid Fusión, que decorreu em Janeiro. O feito foi inédito, mas não houve um único jornalista português no local para relatar o que aconteceu. A Grandes Escolhas reuniu o trio de […]
Edição nº11, Março 2018
Entrevista
Alexandre Silva, Henrique Sá Pessoa e João Rodrigues tiveram por sua conta o maior palco da gastronomia mundial, o Madrid Fusión, que decorreu em Janeiro. O feito foi inédito, mas não houve um único jornalista português no local para relatar o que aconteceu. A Grandes Escolhas reuniu o trio de ataque numa tasca de Lisboa, para fazer memória futura e dar conta do estado (de graça) da cozinha portuguesa.
TEXTO Ricardo Dias Felner
FOTOS Ricardo Palma Veiga
Juntar três chefs com estrelas Michelin é mais difícil do que sentar à mesma mesa Donald Trump, King-Jong un e o Papa Francisco. Mas, ao fim de umas semanas de intensas trocas de emails, aconteceu. O lugar do encontro foi a Casa Cid, uma antiga tasca do Cais do Sodré, em Lisboa, onde se come peixe frito e torresmos, e que há décadas dá abrigo a noctívagos esfaimados às cinco da manhã.
Sinal dos tempos, já instalados, uma perfuradora fez-se ouvir — “Vão construir aqui um hotel”, disse o tasqueiro — e tivemos de nos mudar para o café Tati, mesmo ali ao lado. Ligado o gravador, a conversa correu livre, deixando claro que os três chefs actuam como um bloco — e querem continuar a conquistar mundo, em nome da cozinha de Portugal.
GRANDES ESCOLHAS – Tentei saber como vos correu o Madrid Fusión, mas não consegui encontrar informação.
ALEXANDRE SILVA – A verdade é que não houve imprensa portuguesa lá.
HENRIQUE SÁ PESSOA – Alguma imprensa especializada relatou o facto de nós irmos à conferência, antes. Só isso.
Porque é que acham que isso aconteceu? Terá a ver com a crise dos media, sobretudo da imprensa escrita?
AS – Acho que se arranjam sempre desculpas para tudo.
JOÃO RODRIGUES – A única coisa que é estranha é haver tanta gente a querer debater a cozinha portuguesa e a querer pôr o dedo na ferida mas, depois, quando vamos para um palco grande parece que, de repente, há um desinteresse generalizado. Ou então há outras razões que desconhecemos ou os jornalistas não são convidados.
AS – Acho que o Turismo de Lisboa e o Turismo de Portugal podiam ter dado apoios.
JR – Mas será que foram pedidos?
AS – Provavelmente não foram. Os portugueses acham que são os maiores e que é tudo muito bonito. A verdade é que podíamos ser mesmo os maiores. O problema é que só três ou quatro é que querem fazer e os outros ficam encostados.
JR – Fala-se num movimento nacional, mas para haver esse movimento nacional tem toda a gente de remar para o mesmo lado nos diferentes quadrantes.
Podemos então começar por tentar relatar o que aconteceu no Madrid Fusión. Vocês ocuparam uma manhã do palco principal, certo?
HSP – Sim. Nós quisemos ir para o palco os três ao mesmo tempo. Era importante passarmos a mensagem de que estávamos os três juntos. Não era a apresentação do João, do Alexandre e do Henrique.
JR – A ideia era que a soma das partes fizesse um conjunto. Cada um tinha a sua maneira de ver a cozinha, mas estava ali subjacente a cidade de Lisboa.
Foi um acaso terem os três feito demonstrações de receitas de peixe?
HRP – Era esse o briefing. O tema era a cozinha atlântica de Lisboa.
AS – Mas mesmo que não tivesse sido, provavelmente tínhamos feito o mesmo.
João, como correu a tua apresentação?
JR – A pessoa que era para falar antes de nós não pôde vir e, portanto, tivemos muito mais tempo do que era suposto. Isso não foi bom.
AS – Às tantas, parecia uma telenovela da TVI. Foi encher chouriços, encher chouriços.
JR – Eu cumpri o meu tempo, o Alexandre e o Henrique é que ficaram…
Sobrou para vocês…
[risos]
JR – Sim, principalmente para o Henrique.
HSP – Os gajos vieram ter comigo a pedir para estender por mais 15 minutos. Eu disse-lhes: “Só tenho um prato…” Acho que podíamos ter feito muito melhor se não tivesse acontecido este constrangimento.
Vocês, hoje, para além de chefs, têm de ser performers, oradores. Gostam disso?
AS – Tens que vender a tua cena.
JR – O músico também vai tocar no palco. Não toca só em casa, nem faz só discos.
HRS – A questão do palco intimida. Mas quando estás a falar de uma coisa em que estás à vontade é mais fácil. Qualquer um de nós já fez isto várias vezes.
JR – As apresentações são óptimas para tu explicares o que está por trás do teu trabalho diário. Podemos discutir se hoje a cozinha chegou a este ponto, em que os chefs já pensam e não fazem só bifes… Mas isso seria uma conversa longa.
[Risos]
E como foram as reacções?
HRP – Dadas as condições, as reacções foram positivas.
Às vezes, parece que Espanha ofusca Portugal, como se Portugal fosse uma sub-região gastronómica de Espanha. A polémica de a jaleca entregue aos chefs portugueses que ganharam a estrela Michelin, no ano passado, vir com a inscrição “La Guia”, em espanhol, foi, para algumas pessoas, o último episódio revelador disso. Como vêem esta relação entre os dois países?
HSP – Eles nunca olharam para nós. Mas ultimamente já nos vêem com alguma admiração.
JR – Isso só vai acontecer de facto quando nós não nos preocuparmos com isso. Nós é que levamos isso a sério. Eles têm cinco vezes o nosso tamanho, são mais ricos. É óbvio que estamos ao lado deles e passamos despercebidos.
AS – Mas não podes sentir que és o enteado. Nós temos pai e mãe.
HSP – Temos um complexo de inferioridade, mas não devíamos.
E isso não passa também por se bater o pé em coisas simbólicas, como esta da jaleca?
JR – Não sei. Aquilo é feito em Madrid.
HSP – Imagina que um dia fazemos cá a cerimónia de apresentação do Guia Michelin da Península Ibérica. Se calhar, nessa altura, em vez de dizer “La Guia” diz “Guia”.
JR – Mas porque é que ainda não aconteceu em Lisboa? Quem é que não se quer chegar à frente?
HSP – Aquilo é um negócio. E todos os anos o governo espanhol paga para que a cerimónia do Guia Michelin seja em Espanha. Qualquer candidatura que entra, paga. Nós não temos estrutura nem dinheiro para pagar.
AS – É exactamente assim.
JR – A ideia é olharmos para nós. Deixarmos de ter modelos. Há dez anos os restaurantes com estrelas Michelin eram todos iguais. Hoje já começas a ter restaurantes muito diferentes, como são os nossos três restaurantes. Quando começas a ter uma cultura própria, os outros começam a olhar para ti.
O que é que identifica os vossos restaurantes?
HSP – A ideia de que o nosso produto é o melhor do mundo é falsa. Temos um produto que é muito bom. Mas em Espanha também há, na Tailândia e em França também há. O que realmente é interessante na cozinha em Portugal, e em Lisboa em particular, é as cozinhas serem diferentes umas das outras. Em Espanha, ficaram com um vazio. O El Bulì ditava as tendências, havia ali uma enciclopédia, uma base de dados, que era lançada todos os anos e servia de orientação. Isso não existiu nem existe em Portugal. E isso é que é diferenciador.
AS – Isso é bom.
HSP – Vais ao restaurante do João, do Alexandre ou ao meu e tens experiências completamente diferentes. Podes gostar muito de um ou outro, mas é inegável a qualidade em todos os espaços e isso não acontecia há uns anos.
JR – Numa tertúlia recente, alguém disse que era impossível haver um restaurante de referência mundial português que não fizesse cozinha portuguesa tradicional. E eu perguntei a essa pessoa se ela reconhecia o Ferran Adrià como uma referência da cozinha espanhola. E se ele fazia cozinha espanhola tradicional.
HSP – Tens outro caso em Espanha, o David Muñoz, três estrelas Michelin [faz uma cozinha de fusão, com muitas influências asiáticas].
JR – Cá, se calhar, era morto.
Acham que a imprensa portuguesa é agressiva relativamente aos chefs?
AS – Pessoalmente, estou farto de ser criticado. Mas a verdade é que o restaurante é meu. Eu faço aquilo que eu quero, pago às minhas equipas, pago aos meus fornecedores. Na verdade, estou-me a borrifar para aquilo que as outras pessoas pensam. Mas custa-me muito quando lá vai uma pessoa jantar e depois escreve umas linhas e nem sequer sabe muito bem o que está a dizer e nós temos de engolir e as outras pessoas que também não sabem o que se passa também engolem. Ficamos todos a perder.
Mas isso não é a democracia a acontecer?
HSP – A questão é que já não existe imprensa.
JR – A qualidade técnica no jornalismo perdeu-se em detrimento de uma preocupação de imagem. Hoje em dia, toda a gente está mais preocupada com a estética e com a rapidez com que se comunica, com que se faz e se desfaz, do que propriamente com saber o conteúdo e a dimensão técnica da coisa. Isso define muito o meio gastronómico hoje em dia. Muitas das pessoas apareceram do nada e rapidamente chegaram ao topo porque têm uma boa base de imagem e uma boa base de comunicação. E muito pouco conhecimento técnico.
Vocês olham para as críticas do Zomato, por exemplo?
HSP – Eu não. Mas os nossos sócios, colaboradores, clientes, vêem.
JR – A última avaliação que tive no Zomato era uma pessoa que descrevia que o tio tinha tido morrido engasgado no restaurante. E isso não aconteceu. Escrevemos para a Zomato a alertar e acabou por ser retirado.
HSP – Isso é uma piada de muito mau gosto.
AS – E afecta o restaurante.
Mudando de assunto. Quando viajam lá para fora como é que vêem o que se está a fazer cá dentro?
AS – Quando viajo agrada-me ver que nós estamos muito bem.
HSP – É verdade. Agora. Há uns anos não era assim.
AS – Falta a parte do Governo, da imprensa, apoiarem-nos. Parece que nós nunca conseguimos arrancar.
O que é preciso para isso, em concreto?
AS – É preciso que o resto do mundo reconheça que nós somos bons. Que saibam que em Portugal há arte, há técnica, que conheçam as cozinhas regionais que nós temos no nosso país e que os outros países muito dificilmente conseguem ter.
HSP – A par da Itália nós somos o país que tem mais regionalidade.
AS – E temos uma margem enorme de progressão.
Como é que essa promoção pode ser feita? Passa por continuar a trazer jornalistas estrangeiros a Portugal?
JR – Acho que nós trabalhamos mais isso de trazer gente cá, individualmente. Mas tem havido iniciativas [do Governo], sim. Mas acho também que da parte dos empresários e dos privados falta essa noção do que nós queremos fazer. O dono do negócio pensa de forma conservadora, pensa no volume, para reaver rapidamente o investimento. E nunca se pensa em fórmulas para se conseguir um bocadinho de tudo: reaver o investimento e criar algo que de alguma forma possa servir de âncora para tudo o resto. O José Avillez tem feito isso muitíssimo bem.
HSP – Até há uns anos viajava e sentia um desnível enorme. Numa viagem recente a Nova Iorque, fui a cinco ou seis restaurantes e senti exactamente o contrário. O que nós estamos a fazer está ao mesmo nível. A única coisa que senti foi que nós evoluímos em quase todas as áreas, mas no serviço continua a haver limitações.
O que é que é um bom serviço para vocês?
AS – Um bom serviço é aquele que, no final, tu queres pensar no assunto e não consegues porque não o sentiste. Isso para mim é um bom serviço. O Loco é um caso diferente. Estamos sempre a abordar o cliente. Já fomos criticados por isso, porque interrompemos demasiadas vezes o cliente. Mas para mim é ter pessoas competentes, que saibam aquilo que estão a dizer. Encontras colaboradores que te estão a pregar uma grande peta em vez de serem sérios naquilo que fazem.
Há falta de recursos nesta área?
HSP – O problema é que toda a gente vê o serviço de sala como um trabalho temporário.
AS – E é mal pago.
JR – Acho que é muito mal pago.
HSP – Mas, João, é mais mal pago do que noutros sectores? Um empregado de mesa do Alma, com 22, 23 anos, ganha 1100 euros líquidos por mês, entre ordenado e gratificação.
Tens muitos turistas no Alma. O que é que os surpreende mais, no final da refeição?
HSP – Acho que somos uma caixinha de surpresas para eles. Eles pensam que estão no terceiro mundo e de repente ficam impressionados. “Mas vocês têm menus de degustação! Esta decoração!”
AS – Dizem-nos: “Este restaurante podia estar em Nova Iorque, em Londres.”
HSP – Quando entrei no programa do Anthony Bourdain em Lisboa, há uns anos, fiquei bastante desiludido quando vi o resultado final. Passou a imagem de que nós éramos um país que ainda não tinha saído do 25 de Abril. E agora vês o programa do Phil Rosenthal [episódio sobre a gastronomia de Lisboa, da série da Netflix] e até é um bocado exagerado. Tudo é incrível em Lisboa, Lisboa é espectacular! Mas prefiro essa mensagem à mensagem do coitadinho e do fado e das lágrimas e Salazar.
Do Mercado – Espargos

Edição nº11, Março 2018 TEXTO Ricardo Dias Felner Há uns anos, um amigo meu decidiu plantar espargos num terreno que acabara de comprar. Fê-lo por impulso e paixão, sem se precaver do escoamento para o mercado. Sucede que as grandes superfícies preferiam os do Perú e de Espanha, mais baratos e com fornecimento o ano […]
Edição nº11, Março 2018
TEXTO Ricardo Dias Felner
Há uns anos, um amigo meu decidiu plantar espargos num terreno que acabara de comprar. Fê-lo por impulso e paixão, sem se precaver do escoamento para o mercado. Sucede que as grandes superfícies preferiam os do Perú e de Espanha, mais baratos e com fornecimento o ano todo, e os chefs preferiam os certificados, mais seguros. Pelo que, na altura da primeira colheita, o meu amigo ficou sem saber o que fazer a umas centenas de quilos.
Uma das poucas pessoas que lucrou com o desaire fui eu. Durante várias semanas, por esta altura do ano, tive fornecimento regular dos rebentos e pude experimentar todo o tipo de receitas. Das sopas aos ovos, das saladas aos purés, fiz de tudo.
É preciso dizer, todavia, que nenhuma fórmula bateu a preparação clássica dos italianos: um minuto em água a ferver, de pé; depois cortá-los em troços e saltear em azeite; com o lume desligado acrescentar manteiga, limão, pimenta preta, flor de sal e lascas de parmesão. Se cozinhados no tempo certo, ficavam crocantes, o interior tenro e sumarento, notas verdes e doces — uma das grandes maravilhas vegetarianas de sempre.
Quando os comprar no comércio, a primeira coisa que deve ter em atenção são as pontas. Nunca compre espargos com as pontas pisadas. É sempre por aí que eles apodrecem. De resto, escolha os que têm a pele mais uniforme.
Os meus preferidos, com mais sabor, mais doces, são os espargos verdes. Mas há quem aprecie os brancos, uma variedade privada de clorofila pela ausência de contacto com o sol, popular em Itália, na Holanda e na Alemanha. Os verdes de cultivo devem ser cortados pela base, muito rija, mas não a descarte: pode sempre fazer um caldo de legumes para entrar num arroz ou numa sopa. Se pelar a metade inferior, mais fibrosa e dura, com um descascador de vegetais, não terá qualquer problema. No caso dos espargos selvagens, que se encontram à venda na beira das estradas, sobretudo no Alentejo, o truque é dobrá-los com uma mão em cada ponta. O sítio por onde partirem separa a parte tenra da parte fibrosa.
Para terminar, uma nota escatológica: se notar um cheiro estranho na urina depois de comer espargos, não estranhe. Resulta da metabolização de um composto e só é detectado em algumas pessoas. No limite, significa que anda a comer bem.