Alentejo meu

O mundo está mais pequeno e as modernas tecnologias aproximam gentes e paragens até ao ponto em que se desconfia que a aventura é um conceito fora de moda. Nada disso! Façamo-nos à estrada e enfrentemos o desafio de procurar o país profundo. Por terra, na água e também pelo ar, já agora. Sem medos. […]
O mundo está mais pequeno e as modernas tecnologias aproximam gentes e paragens até ao ponto em que se desconfia que a aventura é um conceito fora de moda. Nada disso! Façamo-nos à estrada e enfrentemos o desafio de procurar o país profundo. Por terra, na água e também pelo ar, já agora. Sem medos. Sem barreiras.
Luís Francisco
O saca-rolhas cumpre a sua função e os copos estendem-se para a garrafa acabada de abrir. O vinho corre e a conversa anima-se, ao ritmo da paisagem que desfila por baixo de nós, a linha sinuosa do rio brilhando aos primeiros raios do sol, prados, vinhas e montado numa sucessão de cores e texturas. De vez em quando, uma casa. E animais, muitos animais. Domésticos e selvagens, vagueando pela terra alheios à presença silenciosa do balão de ar quente e da meia-dúzia de seres humanos que nele se aninham.
Sim, quem nunca saboreou um copo de vinho branco bem fresquinho às sete da manhã a bordo de um balão de ar quente não sabe o que perde. Lá em cima não há medos nem sustos, só um constante maravilhamento. O balão progride suavemente ao sabor da leve brisa do amanhecer, que, por caprichos da meteorologia, sopra exactamente na direcção contrária ao que estava planeado: em vez de nos levar a sobrevoar a reserva de caça da Herdade do Sobroso na serra do Mendro, num safari aéreo que prometia emoções fortes, transporta-nos na sua almofada de sossego para Sul.
Não há tempo nem disposição para desilusões. Os sentidos estão demasiado ocupados na tarefa de tentar absorver tudo o que nos rodeia. O piloto do balão capricha numa travessia rasante sobre o espelho de água do Guadiana, elevando depois o aparelho para evitar as árvores da margem oposta. O ruído dos queimadores é, por agora, o único som que quebra o mar de silêncio em que navegamos. Bom, isso e a ocasional exclamação de espanto de algum dos presentes. E, claro, há alguns minutos, o murmúrio arrastado da rolha que saltou da garrafa de vinho…
Vida selvagem
A serra fica para trás – e, com ela, a promessa de vermos de cima o que na véspera tínhamos adivinhado num passeio de jipe: a vida selvagem pujante desta zona. Centenas de hectares da serra do Mendro albergam animais de grande porte, como gamos, muflões, javalis ou veados. E nós vimo-los todos: um enorme veado trotando pelas curvas da estrada à nossa frente, um grupo de javalis avistado ao longe junto a uma charca, um gamo espreitando pelo meio dos arbustos lá mais em cima, perto do cabeço panorâmico onde armámos um piquenique, meia-dúzia de muflões atravessando o caminho assim que deixaram de ouvir o ruído do motor.
Mas soube a pouco e hoje havia a promessa de podermos olhar de cima, pairando nos ares sem que a bicharada se apercebesse, sequer, da nossa presença… A expectativa era grande e o mini-pequeno-almoço é engolido à pressa para não perdermos tempo. Ainda deitado em terra, o tamanho do balão impressiona. A pouco e pouco, os queimadores aquecem o ar no interior e a cúpula vai subindo. Não tarda nada estamos a bordo e a aventura vai começar!
A brisa é que não está de feição e, num balão, contra isso não há engenho humano que nos valha. Aproveitemos, portanto, para gozar as emoções do voo por si só e tentar reter todos os detalhes desta viagem pelos céus de copo na mão. Pode não ser um safari, mas é uma experiência única.
E, no entanto, aquilo que ali se mexe, espantosamente a apenas algumas dezenas de metros de uma casa, parece ser… isso mesmo, é um veado! E depois outro, e mais uns quantos. Imperturbável pelos sinais de ocupação humana, a grande fauna vagueia também na margem oposta do Guadiana. Há javalis que trotam por carreiros que levam a uma pequena barragem – onde, por sinal, uma raposa caça por entre a vegetação rasteira – e parece quase surreal a visão de um veado que “estacionou” junto ao reboque de tractor parado debaixo de um grande sobreiro.
Regressar à terra
Lá se vai a teoria de que o abandono dos terrenos agrícolas é a mais forte explicação para o regresso dos grandes mamíferos selvagens… Aqui há agricultura e vida selvagem, lado a lado. Talvez a melhor explicação seja mesmo a política de gestão sustentável da reserva de caça do outro lado do rio. Mas quem vai perder tempo com estas elucubrações quando o mundo desfila aos nossos pés?
De vez em quando, o ruído dos queimadores desperta os animais do seu sossego, mas eles não conseguem perceber de onde veio o som e não lhes passa pela cabeça olhar para cima. Se o fizessem, dariam de caras com seis pares de olhos humanos que os fitam em embevecido espanto, por momentos o copo de vinho esquecido na mão. E assim se passam os minutos, ou serão horas, que nestas ocasiões o tempo é uma entidade sinuosa.
Só que a silhueta distante de casario e cabeços torna-se cada vez mais nítida e isso é uma clara indicação de que o dia já avança – o sol está mais alto e com o aumento da temperatura começam a gerar-se correntes térmicas que podem complicar a vida ao piloto do balão. O que é bom depressa se acaba, diz o povo. Está na altura de descer.
No solo, uma viatura acompanha o nosso trajecto, para nos recolher (e ao balão) assim que tocarmos o solo. O ritmo das comunicações intensifica-se. É preciso procurar um local plano, sem árvores nem linhas eléctricas, com acesso à estrada. Mesmo no Alentejo, isto nem sempre é fácil. E é preciso que o vento nos leve na direcção correcta. Aterrar um balão, portanto, não é pensar e fazer.
Ao fim de algum tempo, a bonomia do piloto acalmando as ansiedades de quem viaja a bordo, lá surge um belo prado e é lá que pousamos. Já vivemos uma eternidade neste dia e ainda nem são dez da manhã! Abre-se mais uma garrafa de vinho, enquanto se revivem as visões exaltantes da bicharada à solta na imensa paisagem alentejana. Não estamos em África, mas a comparação é inevitável. Com uma vantagem: o vinho por aqui é muito melhor!
Edição nº 34, Fevereiro 2020
Legumes, capão e Michelin

Uma súplica para que se pare de oferecer legumes crus e cozinhados no mesmo prato, um repto para que se conheça melhor o capão de Freamunde IGP, e um aplauso aos bravos que persistem na senda da excelência. Aos cozinheiros, nas suas cozinhas, nos seus produtos. Fernando Melo São dois os problemas fundamentais da cozedura […]
Uma súplica para que se pare de oferecer legumes crus e cozinhados no mesmo prato, um repto para que se conheça melhor o capão de Freamunde IGP, e um aplauso aos bravos que persistem na senda da excelência. Aos cozinheiros, nas suas cozinhas, nos seus produtos.
Fernando Melo
São dois os problemas fundamentais da cozedura dos legumes que nos servem nos restaurantes. O mais gritante é o excesso de água em que normalmente cozem, o outro é o tempo de cozedura que se pratica. Gosto de pegar no tomate como referência, por ser rico em licopeno e também pelo seu conteúdo elevado de açúcar. Acontece que no tomate cru nem um nem outro se manifestam, mas na cozedura correcta manifestam-se ambos e tornam o fruto/hortícola determinante enquanto fonte de nutrientes para a nossa subsistência e ao mesmo tempo facilitador de digestões mais eficazes. A palavra-chave é disponibilidade, o mesmo é dizer o que cada verdura oferece ao organismo, mediante a intervenção culinária. A quantidade de água em que se coze determina o ponto óptimo da disponibilidade de nutrientes para o corpo humano, devendo evitar-se o excesso, por provocar a sua dissolução. Ao mesmo tempo o prolongamento exagerado da cozedura leva à destruição da estrutura das fibras e dos nutrientes dos legumes em causa. Os cozinheiros lúcidos e avisados já cozinham legumes e verduras de acordo com este vector da disponibilidade e extracção óptimas. Apesar dessa evidência, continua a cozer-se demais, aliás não só vegetais mas tudo o resto. Está mais que provado que a cozedura certa – mesmo que se trate de bringir apenas – determina directamente o bem-estar e o nosso funcionamento interno. Constato que mesmo no meio da cozinha profissional estamos ainda nos antípodas das considerações de digestibilidade. O nosso “bocadinho de salada”, à laia de ornamento baralha-nos completamente o esquema e pouco ou nada contribui para melhorar o perfil do que comemos, justamente pela pouca disponibilidade de nutrientes face à bateria existente no prato. Somos um sistema, não somos o repositório de ingredientes que a maioria dos nutricionistas não-médicos nos querem fazer crer. Não me quero – nem sei – alongar mais sobre este assunto, mas quero aqui lavrar a súplica aos cozinheiros: enquanto não tiverem a certeza absoluta do que estão a fazer não ponham lado a lado legumes crus e cozidos.
Todos os anos no dia 12 de Dezembro, véspera do dia de Santa Luzia, tem lugar o concurso e jantar de gala do capão à Freamunde. Desde há três anos engalanado – passe a redundância – com a certificação de Indicação Geográfica Protegida (IGP), o passareco gigante está a caminho dos píncaros da qualidade, prestes a tornar-se no mais sublime animal de criação em todo o país. Originário das chamadas Chãs de Ferreira, planalto granítico triangular definido por Ferreira, Paços de Ferreira e Freamunde, está agora aberto a empresários que queiram investir na produção. Há muito espaço ainda para o efeito, a área consagrada na certificação tem ainda pelo menos um par de décadas de franco crescimento pela frente. A prazo vai ser mais importante a proveniência que a receita, de resto já está a acontecer. Cozinheiros de todo o país, incluindo estrelados Michelin estão a oferecer as suas versões da grande ave aos clientes. Uma epopeia que vem dos tempos da ocupação romana – o galo capado não canta, por isso era mais cómodo para os centuriões de então -, atravessa quase dois mil anos de história e atinge hoje a maior glória de sempre. Ombreia com as grandes denominações de origem, por exemplo Bresse, em França, e é único no mundo. O concurso português é porventura o melhor de todos os que se fazem, pois a prova é inteiramente feita às cegas e sem possibilidade de cruzar opiniões; cada membro do júri tem no prato perna, peito e recheio de um capão e no mesmo serviço ninguém tem o mesmo. É sempre surpreendente o restaurante vencedor, muitas vezes o próprio não está sequer à espera. Na gala, todos os presentes, vencedor e os outros estão em festa e aplaudem com entusiasmo os que ganham. O nível culinário é desde os últimos anos muito elevado, sinal de que todos estão a melhorar e provar os capões da concorrência. Dado muito importante para nos entendermos e crescermos. Viva o capão de Freamunde.
Ambiente de festa rija houve também em Sevilha no dia 20 de Novembro, na noite do anúncio das estrelas Michelin Portugal e Espanha. Foi de encher a alma a subida dos chefs Diogo Lemos (Mesa de Lemos, VIseu) e Rui Silvestre (Vistas, Monte Rei Golf, Vila Real de Santo António) ao novo estrelato, e muito importante todos os actuais detentores de estrelas estarem lá para felicitar e festejar todos, uns aos outros. Foi uma festa ibérica, é certo, mas senti-a também muito portuguesa. E é verdade que os nossos chefs têm o denominador comum da entreajuda, as portas das suas cozinhas estão sempre abertas para os que quiserem estagiar, aprender e desenvolver a sua forma de trabalhar. Claro que formos uma vez mais fulminados em número pelas novas estrelas espanholas, mas há um sentimento grande de vitória por parte de todos os nossos. É preciso continuar, assim como estamos, assentes nos redutos das raízes e da proximidade. O Guia Michelin já fala de Portugal como quem fala do paraíso, temos produto, talento e história para crescer exponencialmente de ano para ano. Estamos em festa.
Edição nº 34, Fevereiro 2020
O que nós passámos para aqui chegar

A História faz-se de avanços e recuos. A do vinho também e é por isso que não é bom perder a visão de conjunto, ficarmos nos pormenores e deitar fora o essencial. E custou muito chegar até aqui. João Paulo Martins Estamos numa época em que muito se fala dos méritos que tinham os vinhos […]
A História faz-se de avanços e recuos. A do vinho também e é por isso que não é bom perder a visão de conjunto, ficarmos nos pormenores e deitar fora o essencial. E custou muito chegar até aqui.
João Paulo Martins
Estamos numa época em que muito se fala dos méritos que tinham os vinhos de antigamente, dos métodos perfeitos que então se usavam, das virtudes que derivavam da simplicidade dos processos, do perfeito equilíbrio entre o homem e a Natureza. Se seguirmos esta perspectiva, o que se pede então ao produtor de hoje é que seja capaz de fazer como dantes: sem tecnologia, sem ciência, sem equipamentos e, já agora, sem enólogos que não passam de uns empatas que só querem usar químicos.
A história do vinho sempre acompanhou os avanços que a ciência – seja a física, a química ou a microbiologia – trouxeram para o aperfeiçoamento da técnica de produção. Digo técnica de produção porque o vinho não se faz por si, não aparece feito na Natureza, tal como o pão não nasce numa planta. São precisas uvas para fazer vinho e é preciso saber o que fazer com elas. Com o pão passa-se o mesmo: é preciso cereal mas há que saber o que fazer com ele e, imagina-se, há muitas maneiras de chegar ao produto final. Tal e qual como no vinho.
Quando se ouve alguém falar no vinho de outrora, do antigamente e dos velhinhos que, esses sim, é que sabiam o que faziam, fica-se com a sensação que por vezes não se sabe do que se fala. Com a evolução vertiginosa que o mundo teve (em todos os domínios) nos últimos 60 anos, para falar do “antigamente” não é preciso ir muito longe, poderá bastar (e provavelmente sobra…) ir até aos anos 50 do século passado. Pois então repare-se: na época apenas se fazia vinho a lagar e o mosto fermentava posteriormente em tonéis de madeira de grandes dimensões. Simples, não é? Não se usavam leveduras, não se fazia o controle de quase nada, não havia malolácticas, nem estágios nem filtrações. Fazia-se o vinho com o que chegava à adega, quando as uvas sobrevivam às quantidades enormes de químicos que os lavradores usavam. Já ninguém se lembra do DDT e do 605 Forte e dos anúncios que davam na televisão do Senhor Prudêncio? Ninguém ouviu falar dos tempos em que eram às carradas o ácido tartárico que se usava nos vinhos para lhes conferir acidez e assegurar a longevidade? Já todos esquecemos que, se estivermos a falar dos Bordéus dos anos 50 só há um ano considerado muito bom, o 1953? Porquê? Pela simples razão que os outros, apesar de virem de casas famosas, avariaram, estragaram-se, evoluíram mal. Achamos isso normal, mas é bom tentar saber porquê. Nos anos 70 não há quase Bordéus que sejam dignos de nota e Borgonhas também não? Porque será? É bom saber que a responsável pela melhoria generalizada dos vinhos foi a ciência, nas suas múltiplas disciplinas e que os produtores beneficiaram de coisas tão estupidamente simples como seja…haver mais higiene nas adegas, deixar de usar cestos de verga para transportar uvas, eliminar na quase totalidade os tonéis velhos que, à falta de manutenção, mais não são que viveiros de bactérias.
Afinal, o que ganhámos com a técnica?
Fazer vinho hoje é aplicar uma quantidade enorme de conhecimentos e melhoramentos que foram sendo adquiridos ao longo das últimas décadas. Algumas dessas melhorias apenas decorrem do bom-senso – como seja a escolha das uvas à entrada da adega ou a lavagem das instalações para impedir a propagação das bactérias acéticas. Outras são a consequência de muito estudo, ensaio, erro e progresso. E esses avanços foram, nas últimas décadas, responsáveis pela melhoria generalizada dos vinhos no nosso país e no resto do mundo. É difícil dizer onde tudo começou mas a verdade é que o melhor conhecimento da uva e da vinha, da condução e da poda, da gestão da canópia, do equilíbrio entre produção por cepa e qualidade final do vinho, tudo isso contribuiu para que hoje as uvas cheguem à adega mais sãs e mais capazes de dar bom vinho. Fez-se tudo bem? Nem por isso. Os erros que se fizeram com porta-enxertos errados, com selecção clonal desajustada e condução incorrecta da vinha serviram também para se melhorar hoje os disparates cometidos nos anos 80 em Portugal (nomeadamente no Douro) e em França, no caso da selecção clonal.
Do início dos anos 60 até hoje aprendemos quase tudo o que nos permite evitar que se volte a ter uma década negra como tiveram os franceses nos anos 50 em Saint-Émilion. Vejamos: deixámos gradualmente as madeiras velhas para a fermentação dos mostos, descobrimos o método certo para controlar a temperatura da fermentação, preservando assim os aromas e assegurando o respeito pelo local de onde vieram as uvas; aprendemos quase tudo sobre a fermentação maloláctica, a sua monitorização e acompanhamento; conhecemos muito melhor o universo das leveduras e descobrimos que elas não só não são todas boas meninas, como podem não ser capazes de levara a bom proto a tarefa que delas esperamos; conhecê-las e controlá-las foi um enorme avanço. Hoje sabemos muito mais sobre a microbiologia da uva, dos processos químicos associados à transformação do mosto em vinho, sabemos gerir melhor o pH e a acidez das uvas com a consequente redução do uso do ácido tartárico embora ele continue a ser útil nos climas quentes, tal como o mosto concentrado é necessário nos climas frios. Substituímos muitos tonéis velhos por barricas novas e, quer sobre a fermentação em barrica quer sobre o estágio em madeira, temos hoje conhecimentos muito maiores que nos permitem não voltar a fazer o erro dos anos 80 em que os vinhos eram verdadeiros destilados de carvalho. E sobre a utilização de sulfitos estamos muito mais informados, também para saber que não os usar é um passaporte quase certo para a curtíssima longevidade do vinho.
Do passado mantivemos o que valia a pena: as vinhas velhas, (no caso de serem boas), a pisa (ou mesmo a fermentação) em lagar, as ânforas, os depósitos de cimento (agora com novos formatos) e, se se tiver confiança nelas, as barricas velhas mesmo para fermentar vinhos brancos, como hoje ainda fazem algumas das grandes regiões de brancos do Mundo.
A grande diferença em relação ao passado é que, hoje, o conceito de vinho imbebível praticamente desapareceu e mesmo os vinhos ridiculamente baratos são bebíveis. São vinhos Barbie, como alguém disse? Não sei se são Barbie, mas são os vinhos que a esmagadora maioria da população bebe, a tal população para quem vinhos a €5 são coisas para o Natal, e e…! Ao contrário dos tempos de Fernando Nicolau de Almeida, hoje a Casa Ferreirinha poderia fazer Barca Velha quase todos os anos. Tivesse o criador do mítico vinho acesso a todos os avanços técnicos que hoje temos e conhecemos e seria, com certeza, o primeiro a abraçá-los. Temos escolha porque temos mais sabedoria. Sabemos o que queremos fazer e como. E, por isso, sabemos que se quisermos errar não é por sermos mais espertos que os outros ou por sermos nós que respeitamos a Natureza. Creio que será por outras razões.
Passámos muito para aqui chegar e seria um desperdício deitar tudo a perder.
Edição nº 34, Fevereiro 2020
O frio é uma coisa relativa

O mundo está mais pequeno e as modernas tecnologias aproximam gentes e paragens até ao ponto em que se desconfia que a aventura é um conceito fora de moda. Nada disso! Façamo-nos à estrada e enfrentemos o desafio de procurar o país profundo. Contra tudo e contra todos. Mesmo contra os elementos, por mais adversos […]
O mundo está mais pequeno e as modernas tecnologias aproximam gentes e paragens até ao ponto em que se desconfia que a aventura é um conceito fora de moda. Nada disso! Façamo-nos à estrada e enfrentemos o desafio de procurar o país profundo. Contra tudo e contra todos. Mesmo contra os elementos, por mais adversos que eles teimem em mostrar-se.
Luís Francisco
Há quem continue a achar que o vinho é uma coisa que dá trabalho, sim, mas apenas em algumas ocasiões bem definidas no calendário. Na vindima, claro, quando as uvas se precipitam para a adega e toda a gente anda numa correria, mostos para aqui, mostos para ali, depósitos a encher e a esvaziar, fermentações e decisões enológicas, mão-de-obra intensiva e o nervoso miudinho de ver todos os sonhos e planos de um ano a ganharem forma. Claro, também há aquela coisa da poda, no Inverno, mas isso é o menos. Basta visitar uma adega em outra altura do ano que não na vindima e percebe-se logo o sossego de quem dá o litro (metáfora irresistível) em Setembro e Outubro e depois descansa durante 300 dias…
E, no entanto, não é nada assim. Na vinha ou na adega, há sempre trabalho para fazer. E foi para falar nisso que um dia saímos em reportagem. Escolhemos o destino – no caso, a Quinta do Gradil, região de Lisboa – e lá fomos, decididos a recolher e partilhar informação sobre tudo o que se passa numa exploração vitivinícola nos meses que medeiam entre uma vindima e a outra. É claro que, num acesso de masoquismo ou consciência profissional (prefiro a segunda, mas, como hão-de ver a seguir, há indícios de que o primeiro não esteve totalmente ausente do cenário…), não embarcámos em facilidades. Se era para mostrar trabalho, então que fosse na altura mais improvável, o Inverno.
Escusava era de ser o dia mais frio do ano. A suspeita começou a ganhar forma com os primeiros arrepios da madrugada, a nortada gélida a fatiar sadicamente as résteas de conforto térmico oferecido pela roupa. E foi então que vimos um post no Facebook. De saída para o Alentejo, onde a empresa estava a preparar terrenos para plantar novas vinhas, o viticólogo do Gradil, Bento Rogado, registara a temperatura que se fazia sentir às 6h30 da manhã no sopé da Serra de Montejunto. O termómetro do carro anunciava uns inquietantes -7º centígrados…
Ler esta indicação nas férias, sentados junto à lareira num chalet de montanha até pode ser giro, mas garanto que não tem graça nenhuma quando nos preparamos para andar pelas vinhas, de máquina fotográfica em punho ou de bloco e esferográfica na mão para tomar notas… E, naturalmente, as duas inocentes alminhas que viajam para o Gradil nessa madrugada esqueceram-se de levar luvas. Provavelmente não dariam jeito nenhum quando chegasse a hora de trabalhar, mas, caramba, para algum momento haviam de servir…
Uma cave… quentinha
Chegamos, depois de deixarmos a estrada numa viragem perpendicular que nos aponta à linha amarela dos edifícios para lá do vale coberto de vinhas. O vento vai soprando. Mas, ansiamos, o termómetro há-de ter agora melhores notícias para nós – diz-se que a última hora da noite é a mais negra e a mais fria, mas o Sol já nasceu. Envergonhado, tímido, lá vai espreitando num tom esbranquiçado por entre as nuvens do amanhecer. Os cientistas juram que esta gigantesca fornalha celestial que queima hidrogénio e o transforma em hélio funciona ininterruptamente a uma temperatura que atinge os 5500 graus centígrados, mas esta manhã, desculpem lá, não há ciência que nos salve… Está tanto frio que até a ameaça do aquecimento global soa a música para os nossos enregelados ouvidos.
São 8h30 da manhã e ainda estão dois graus negativos. Daí a duas horas, o termómetro chegará finalmente ao zero. E, pela hora do almoço, a água que tapa o fundo do tanque situado no terreiro central da quinta, junto ao restaurante, continua sólida. Atiramos uma pedrinha, outra. E sempre o som cavo do gelo, austero e definitivo. Valha a verdade, por essa altura o pior já passou: andámos pelas vinhas para saber mais sobre a poda e a orientação das videiras, conversando com gente que maneja a tesoura com mestria (perdoem-me a insistência, mas eles tinham luvas!), visitámos a adega para conversar sobre operações de filtragem e estabilização, perceber trasfegas e limpezas, conhecer os muitos pequenos passos que nos permitem abrir uma garrafa e beber com prazer.
Quando nos convidam para descer à cave das barricas, que fica uns bons metros abaixo do solo, a primeira sensação é de arrepio. Se em dias quentes às vezes é complicado visitar estes sítios de manga curta, como será hoje… O elevador transporta-nos para o subsolo e, de repente, está quentinho! Longa vida às maravilhas do isolamento térmico: aqui a temperatura mantém-se estável à volta dos 15/16ºC, um verdadeiro paraíso tropical quando comparado com a manhã siberiana que nos aguarda lá em cima, no regresso à superfície. O elevador sobe e o bafo da respiração diz-nos que nestes últimos minutos o cenário térmico não mudou.
Felizmente, a reportagem aproxima-se do seu fim e a última parte será feita à mesa, onde vamos conversar com os responsáveis do Gradil. Lá fora, o tanque continua gelado e as vinhas, despidas, parecem encolher-se para resistirem à nortada. Até os passarinhos estão mudos que nem pedras. Uma breve mirada às notas no bloco confirma que a manhã não foi fácil: gatafunhos quase imperceptíveis, palavras cortadas a meio, frases que se perdem em linhas mal amanhadas… não vai ser fácil decifrar isto.
Mas agora temos vinho no copo. As mãos e a alma começam a aquecer. Lá fora, a silhueta da serra ganha luz e cor. De repente, tudo parece bonito e acolhedor. A mente humana tem a espantosa capacidade de obliterar impiedosamente as más memorias. Sim, porque isto do frio é uma coisa muito relativa.
Edição n.º33, Janeiro 2020
Associação Bagos d’Ouro: A fintar destinos de uma região

Há dez anos houve alguém que olhou para o Douro e viu o que muito pouca gente vê. Esse alguém resolveu fazer a diferença e criar a Associação Bagos d’Ouro, transformando a vida de muitas crianças e jovens. TEXTO Mariana Lopes FOTOS Bagos d’Ouro Quando nos lembramos do Douro, o que vemos? As bonitas e […]
Há dez anos houve alguém que olhou para o Douro e viu o que muito pouca gente vê. Esse alguém resolveu fazer a diferença e criar a Associação Bagos d’Ouro, transformando a vida de muitas crianças e jovens.
TEXTO Mariana Lopes
FOTOS Bagos d’Ouro
Quando nos lembramos do Douro, o que vemos? As bonitas e verdejantes encostas de vinha em patamares que acabam num rio que, com o sol da manhã reflectido, proporciona uma das mais incríveis visões do nosso país. De quando a quando, as tabuletas e pedaços de muro que, à maneira hollywoodesca, ostentam os nomes das prósperas quintas produtoras de vinho, do Porto e “de mesa”, negócio que movimenta milhões e que leva o nome de Portugal para os mais distantes locais do Mundo. É verdade que tudo isto faz parte do Douro, mas a realidade social que esta região encerra em si, longe dos olhos menos atentos e mais estrangeiros ao vale, é muito mais obscura. Predominantemente rural e com graves problemas socioeconómicos, o Douro tem um índice de envelhecimento da população elevadíssimo que, em 2015 e segundo o INE, atingia o valor 203.2 (quociente entre o número de pessoas com 65 anos, ou mais, e o número de pessoas entre os 0 e os 14 anos). Este factor está directamente relacionado com uma grande taxa de analfabetismo na região, que representa aqui 8.64% (dado de 2014, comparável aos 5% da Região Norte do país e 5.2% de Portugal Continental). Naturalmente, isto leva a que haja um nível relevante de desvalorização escolar por parte dos pais e encarregados de educação, relativamente aos seus filhos e educandos. Estes problemas, juntamente com outros factores latentes, como o alcoolismo, a violência doméstica e o desemprego (em 2016 e segundo o IEFP, das 200.792 pessoas desempregadas no Norte, 6.5% cabiam ao Douro), chamaram a atenção de Luísa Amorim, administradora da duriense Quinta Nova de Nossa Senhora do Carmo. Em conversas com o Padre Amadeu Castro, de São João da Pesqueira, surgiu a vontade de agir, de fazer algo sustentável pelas crianças e jovens do Douro, muitos deles com um enorme e desaproveitado potencial. Nasceu assim, em 2010, a Associação Bagos d’Ouro, uma IPSS (Instituição Particular de Solidariedade Social) que começou com uma equipa profissional de apenas duas pessoas, que trabalhava com dez famílias: cinco em Sabrosa e cinco em São João da Pesqueira. Actualmente já são nove os profissionais, ajudados por muitos voluntários, a mudar a vida de 145 crianças e jovens, de mais de 80 famílias em seis concelhos.
O processo
Mas o que faz, na verdade, a Bagos d’Ouro, e como actua? Inês Taveira, jurista de formação e Coordenadora Geral da Associação, elucida que esta “tem foco na educação, mais do que em todas as outras áreas que a Bagos d’Ouro toca por consequência, acompanhando o percurso educativo e pessoal de cada criança, desde o primeiro ano da escola primária até à integração na vida activa”. Antes de se incluir na causa, Inês trabalhava no mundo da política, e não trocava o que agora faz por nada. No dia a dia, tem Mafalda Ferrão, psicóloga e Coordenadora Social da Bagos, como um dos seus braços direitos, que nos explica como tudo se processa. “Quando há lugar para novas crianças ou jovens, procedemos à sinalização, trabalhando com a rede social do concelho em questão, ou seja, com as entidades que respondem aos problemas sociais”, expõe Mafalda. A ligação faz-se, predominantemente, com a escola e é ela que abre a porta à associação e onde esta mais actua. Quando uma contacta a outra, são os professores (já munidos de ferramentas como, por exemplo, questionários específicos) que partem para a identificação das crianças que, sendo de famílias em situação de fragilidade financeira ou social, possam ver na Bagos d’Ouro uma oportunidade para construir um bom projecto de vida. “Ir mais longe do que iriam sem a retaguarda da Bagos”, diz a psicóloga. Depois, é já dentro da associação que se faz uma triagem para apurar quais os indivíduos identificados que mais cumprem os critérios, sendo os principais a carência económica, poucas oportunidades educativas e família com muito baixa escolaridade. Se forem mais velhos, são considerados os jovens que tenham uma muito boa prestação escolar, mas que a família não tem capacidade para lhes dar oportunidades educativas. De seguida, a equipa da Bagos d’Ouro vai a casa da criança ou jovem fazer a sua avaliação que, posteriormente, leva à elaboração de um parecer. É a direcção (encabeçada por Luísa Amorim), que toma a decisão final. Inês Taveira desenvolve, acrescentando que “É um trabalho muito presencial, quer na escola quer em casa, ao qual chamamos de ‘trabalho de proximidade’, pois só assim se podem encarar projectos de vida”. As sessões de atendimento individuais fazem-se, de modo geral, na escola, e os profissionais que estão responsáveis por casa concelho (um por cada) vivem no Douro e estão mais presentes, fisicamente. As visitas domiciliárias, por sua vez, acontecem de dois em dois meses, para que não se perca o envolvimento da família.
O Compromisso
“Honramos o nosso vínculo com as crianças e jovens, e eles connosco, através de um documento, o Compromisso”, conta Mafalda Ferrão. Nele, as crianças definem e deixam escrito os seus objectivos e metas, quer seja subir as notas, integrar uma oportunidade educativa diferente, entrar no Inglês ou nos Escuteiros, ou integrar um voluntariado, por exemplo. Este documento é assinado pelas duas partes, a criança/jovem e o técnico, e vai sendo monitorizado ao longo do tempo. “No fim do ano, o Compromisso é avaliado e fazemos uma cerimónia de entrega de diplomas e prémio de mérito. Não é obrigatório ter ‘nota 5’ a tudo para receber um diploma de Ouro, por exemplo. Pode ser um aluno de 3 que cumpriu todos os seus objectivos, ou um aluno que melhorou a Inglês de 2 para 3. Os de prata implicam que o aluno tenha cumprido 70% dos seus objectivos. E os que não cumpriram, levam um ‘puxão de orelhas’”, disse Mafalda, rindo.
Uma das dinâmicas mais interessantes da associação é a sinergia que está a começar a verificar-se, entre mais velhos e mais novos, no que toca a explicações e ajuda no estudo. A Mafalda explica: “Estamos a desenvolver isso porque muitas vezes, principalmente nos mais pequenos, há falta de estímulo em casa e eles não fazem, por exemplo, os trabalhos de casa. A relação um-para-um é também muito importante a nível humano e afectivo, e quem já passou pelo mesmo consegue incutir interesse no mais novo. Quase como se fossem irmãos mais velhos”, afirma.
Os parceiros
Mas algo essencial e, na verdade, condição para que a Bagos d’Ouro possa subsistir, são os parceiros desta instituição. Além dos locais, já referidos, a associação tem outros, muitos deles ligados ao vinho, produtores do Douro que ajudaram a instituição a nascer. Hoje, já são 21 (lista completa em bagosdouro.com), e este número continua a crescer. “São empresas que estão familiarizadas com o território e que de lá retiram a sua riqueza, sentindo-se responsáveis por devolver”, revela Inês Taveira. O apoio é feito financeiramente, mas também em espécie. Com eles, a Bagos d’Ouro organiza iniciativas como as Wine Party, onde estes produtores dão a provar os seus vinhos, ou provas solidárias, às quais as empresas fornecem o vinho e o staff.
Também há toda uma panóplia de parceiros de outras áreas, como a escola de Inglês Wall Street, que fornece uma bolsa para cada jovem frequentar os cursos desta língua. Inês confessa: “Sem os parceiros, tanto da área do vinho como de muitas outras, apoiando em espécie, financeiramente ou em ambos, o nosso trabalho seria inviável, até porque as necessidades não param de crescer”, expõem a coordenadora.
A campanha Amigo é, por exemplo, uma das formas pelas quais as pessoas individuais, ou colectivas, podem ajudar uma determinada família com apoio educativo e social. “O valor oferecido pela pessoa é canalizado para aquela família e vamos dando feedback sobre os desenvolvimentos de quem se está a ajudar, no final de cada período escolar. Sejam conquistas ou dificuldades”, elucida Mafalda Ferrão. A Bagos d’Ouro tem tido grande sucesso na sua intervenção mas, por vezes, há dificuldades no processo. A psicóloga desabafa: “Temos crianças com famílias bem estruturadas e que apoiam muito, apenas tendo dificuldades económicas, mas também temos crianças oriundas de famílias com menos estruturação. Há alturas em que um lado puxa para cima e o outro puxa para baixo, em que de repente tudo o que fizemos volta para trás. No entanto, a nossa linguagem é sempre de força e não de fragilidade”.
Os resultados
Ana Catarina tem 25 anos, é de Sabrosa e foi das primeiras alunas da Bagos, tendo começado em 2012, na transição do ensino secundário para o superior. Foi sinalizada como uma jovem do 12º ano com uma enorme capacidade, para quem a Bagos poderia ser uma retaguarda. Sempre quis prosseguir alguma investigação científica, e entrou na UTAD (em Vila Real) em Genética e Biotecnologia. Fez mestrado em Oncologia, no Porto, no IPO. Entretanto interessou-se ainda mais pela área clínica, por ter lidado com ela durante o mestrado, e está hoje a tirar a sua segunda licenciatura, Medicina. Quer exercer e, em simultâneo, fazer investigação. Também ela, outrora, assinou o Compromisso, onde colocou objectivos como fazer voluntariado na Cruz Vermelha e integrar o curso de Primeiros Socorros, ou aprender inglês. Ana sempre foi muito cumpridora dos compromissos e muito ambiciosa. Mafalda Ferrão confessa, feliz: “Alguns objectivos que a Catarina colocava no Compromisso eram até para nós bastante desafiantes, tal era a sua ambição”. Talvez por isso tenha chegado onde chegou. “Chegaria sempre longe, mas com a nossa ajuda chegou ainda mais longe e não deixou objectivos de vida pelo caminho”, afirma a coordenadora social.
“O meu concelho é dos menos isolados comparando com os outros em que a Bagos está presente. Mesmo assim, é difícil frequentar a faculdade pois os transportes públicos são praticamente inexistentes”, diz Ana Catarina. “Os meus pais têm ambos o quarto ano, uma escolaridade muito baixa. Sempre trabalharam no campo e, apesar de me terem incentivado e de eu ser uma boa aluna, quando fui para a faculdade o meu pai ficou desempregado. Eu tinha uma bolsa de mérito, mas mesmo assim não era suficiente para as propinas, as necessidades diárias e o alojamento em Vila Real. A Bagos foi fundamental, desde os estágios que me ajudou a angariar, passando pelo curso na Wall Street até contactos com professores que apostaram em mim, entre outras coisas”.
Ana Catarina conta que hoje, no Douro, a generalidade dos pais já está mais escolarizada, mas ainda há muitas dificuldades gritantes como, por exemplo, famílias que não têm electricidade ou mesmo água. “Foi muito a minha realidade mas, infelizmente, ainda acontece”. E desenvolveu, dizendo que “O grande desafio é fazer os jovens bem-sucedidos na sua formação académica quererem ficar ou regressar ao Douro, para ajudar a desenvolvê-lo, criar empresas, postos de trabalho, potenciar uma região com muito para dar. Eu vejo-me a voltar e a ter uma relação de proximidade, a nível da Saúde, com os durienses”.
Hoje, a Bagos d’Ouro já não precisa de intervir na vida de Ana Catarina com o fazia, porque já está “lançada”, mas a Associação nunca se afasta completamente, nem os ex-alunos o fazem. O contacto continua e Ana Catarina está agora, inclusive, a começar o seu papel na equipa da Bagos d’Ouro.
Já são cinco os jovens que integraram com sucesso a vida activa. Inês tirou Psicologia em Coimbra e regressou a São João da Pesqueira, estando a trabalhar na Santa Casa da Misericórdia. Raquel licenciou-se em Direito e está a trabalhar num cartório notarial. Leonardo licenciou-se em Literatura Clássica e está a acabar agora o mestrado, tendo começado a estagiar, já profissionalmente, na Fundação Amália Rodrigues, em Lisboa. “Ele quer muito regressar ao Douro”, disse Mafalda “então estamos a tentar encontrar uma oportunidade profissional para ele, lá”. E Inês Taveira desabafou que “Deveria haver mais incentivos para que os jovens voltassem para o Douro, a sua região de origem, para que esta se finalmente se desenvolvesse. Mas há muito poucos”. Andreia é psicóloga e está, também ela, numa IPSS, em Bragança. “Quando começámos com as primeiras 10 famílias, ninguém sabia ao certo o que iria acontecer nem como iria ser o nosso trabalho. Eramos quase bombeiros, andávamos de casa em casa”, conta Mafalda. “Por isso, é muito engraçado vê-los já assim”.
Os números do impacto da Bagos d’Ouro falam por si: 89% de taxa de sucesso escolar; 84% dos Compromissos foram cumpridos; 64% de crianças e jovens com desempenho escolar entre Bom, Muito Bom e Excepcional; e 72% dos alunos subiram ou mantiveram a média global anual. “Se tivéssemos mais tempo, faríamos ainda mais. Esta equipa faz o que for preciso, seja coordenar a associação, abrir pães ou ir buscar bacalhau. E fazemos tudo isto muito felizes”, afirma Inês Taveira. Quando questionada sobre que apelo quereria deixar, concluiu que “O que nós mais pedimos é que as pessoas falem da Bagos d’Ouro. Lembrarem-se de nós, por exemplo na altura da consignação do IRS, que é uma fonte de receita e não há qualquer prejuízo para as pessoas. Se possível, tornarem-se Amigo da Bagos d’Ouro ou voluntários e, muito importante, darem-nos voz, quer seja num evento vínico ou de outra forma, permitindo-nos apresentar e passar a nossa mensagem”. Precisam de fundos, é certo, mas há várias maneiras de ajudar que não implicam bens materiais. “Gostávamos que um dia o trabalho da Bagos d’Ouro deixasse de fazer sentido. Isso seria sinal de que a situação social do Douro teria melhorado muito”, confessa. No entanto, a dificuldade no Douro é permanente, pois continua a ser uma região muito pobre. “É mais isolada, e o isolamento físico traz também o psicológico. Vão sempre existir famílias e jovens para ajudar. Discute-se muito a questão da mão-de-obra e da falta dela e, realmente, se nada for feito vamos ter um grande êxodo de jovens, o que agravará ainda mais a situação”.
Uma coisa é certa, iniciativas como a Bagos d’Ouro têm o poder de ser pontos de viragem para a transformação de toda uma região. E é de louvar a coragem de quem dá o “pontapé de saída”.
Edição nº 34, Fevereiro de 2020
Bairrada lança vídeo com mensagem de esperança para sector e país

A região vitivinícola da Bairrada lançou hoje um vídeo promocional com o nome “No sector do vinho: fortes e unidos, vamos resistir”. Este vídeo pretende ser uma mensagem de apoio e esperança para todo o sector do vinho, apelando à união das regiões vitivinícolas de Norte a Sul do país. “A Bairrada acredita que, se […]
A região vitivinícola da Bairrada lançou hoje um vídeo promocional com o nome “No sector do vinho: fortes e unidos, vamos resistir”. Este vídeo pretende ser uma mensagem de apoio e esperança para todo o sector do vinho, apelando à união das regiões vitivinícolas de Norte a Sul do país. “A Bairrada acredita que, se nos mantivermos fortes e unidos, ultrapassaremos as dificuldades que o surto do novo coronavírusnos está a impor a todos”, diz o comunicado de imprensa.
Este vídeo-mensagem pode ser visto no Youtube, no Facebook e no Instagram da Bairrada, e aqui:
Ramos Pinto anuncia Quinta do Bom Retiro Vintage 2018

A Ramos Pinto, clássica empresa do Douro e Porto que tem Ana Rosas como Master Blender, acaba de anunciar o lançamento do vinho do Porto Vintage 2018 da Quinta do Bom Retiro. Em comunicado de imprensa, a Ramos Pinto descreve o ano vitícola de 2018, nesta mesma quinta: “(…) o Inverno de 2018 foi frio, […]
A Ramos Pinto, clássica empresa do Douro e Porto que tem Ana Rosas como Master Blender, acaba de anunciar o lançamento do vinho do Porto Vintage 2018 da Quinta do Bom Retiro.
Em comunicado de imprensa, a Ramos Pinto descreve o ano vitícola de 2018, nesta mesma quinta: “(…) o Inverno de 2018 foi frio, seco e registou baixos níveis de precipitação. Com o início da Primavera, surgiram finalmente chuvas intensas e abundantes, acompanhadas de temperaturas frescas, que não só atrasaram a vindima, como dificultaram os trabalhos na vinha. (…) Agosto e Setembro, os dois meses cruciais para maturação das uvas, foram extremamente secos e quentes, permitindo atingir o estado desejado para a colheita”.
Assim, Ana Rosas declara que “2018 foi um dos anos mais desafiantes a nível vitícola, mas resultou em vinhos de uma pureza e fruta excepcional!”.
Caves Messias: Grandes vinhos, grande família

A Caves Messias é um dos grandes produtores de vinho do nosso país. Com vinhas na Bairrada, onde tem a sede, no Dão e no Douro, a empresa consegue chegar a quase todos os tipos de vinhos e possui um portefólio impressionante. Na sua base continua a estar uma família que cada vez mais alia […]
A Caves Messias é um dos grandes produtores de vinho do nosso país. Com vinhas na Bairrada, onde tem a sede, no Dão e no Douro, a empresa consegue chegar a quase todos os tipos de vinhos e possui um portefólio impressionante. Na sua base continua a estar uma família que cada vez mais alia a discrição à vontade de bem fazer.
TEXTO António Falcão
NOTAS DE PROVA Vários provadores da GE
FOTOS Anabela Trindade

A Grandes Escolhas percorreu os caminhos da Caves Messias, conduzidos por Gonçalo Lousada, responsável da produção, e Margarida Valente, prima de Gonçalo e responsável de marketing, enoturismo e recursos humanos. Ambos são administradores, tal como mais outros três elementos, cada um deles representando uma das cinco famílias que herdaram o património que começou a ter nome em 1926. Gonçalo e Margarida representam a quarta geração à frente dos destinos da casa, que começou com Messias Baptista, o fundador da empresa (na altura ainda em nome individual). Não se sabe a história completa de Messias, mas Margarida disse-nos que o bisavô começou de baixo. Terá começado a sua fortuna a exportar vinho para vários mercados da Europa. Outra versão fala ainda da venda de aguardente aos produtores de Vinho do Porto, trazida de grandes explorações do Ribatejo. Estas e outras actividades económicas deram-lhe capacidade para começar a adquirir terras e vinhas na sua Bairrada natal. Em 1938 a 1943 constrói a actual sede da casa, na Mealhada, uma estrutura já de grande dimensão, fundamentalmente constituída por caves e armazéns. Poucos anos depois, Messias Baptista oferece um cineteatro ao município da Mealhada. Mais tarde recebe o grau de Comendador.
Ao longo dos anos foi acumulando uma fortuna considerável. Parte da fortuna foi para a compra de terras e casas. Começou na Bairrada, onde se destacou a Quinta de Valdoeiro, na Mealhada, nos anos 40 do século passado. A segunda aquisição foi no Douro, a Quinta do Cachão, em 1956. Dois anos depois, Messias Baptista iria adquirir uma quinta adjacente, a Quinta do Rei, que pertencia a Gonzalez Byass, famoso produtor de Jerez. As duas quintas fundiram-se e possuem cerca de 200 hectares, dos quais 90 estão actualmente ocupados por vinha. E foi exactamente por aqui que começámos a nossa visita.
Rumo a Ferradosa, São João da Pesqueira
A Quinta do Cachão fica no Cima Corgo, mas está praticamente encostada ao Douro Superior. “A próxima freguesia já aí pertence”, diz-nos Gonçalo. E a paisagem não mente, com as fragas e rochas a mostrarem aquele lado mais selvagem tão típico da sub-região mais a Leste. A casa de apoio aos visitantes, sejam ele família ou técnicos, fica mesmo ao lado da adega e tem todos os confortos necessários neste pedaço de mundo afastado de quase tudo. Estamos no fundo de um vale e ao lado está o final de um dos braços da barragem da Valeira, uma das cinco que represam o Douro na sua corrida para o mar (em território português). O efeito estético é muito interessante.
A adega, de aspecto industrial fica logo ao lado e, apesar de estar em colina, na altura da construção, há umas décadas, optou-se por colocar a recepção da uva na base e depois bombar as massas para os respectivos depósitos. Nos dias de hoje seria exactamente ao contrário, para evitar bombas e usar o benefício da gravidade, maximizando a qualidade. Gonçalo pretende reformular em breve a recepção da adega para a parte de cima, nem que seja apenas para as uvas que vêm em caixas, destinadas para os vinhos especiais. Este ano o desafio é ainda comprar alguns lagares e depósitos de pequena capacidade, para tintos e Vintage ainda mais ambiciosos, à semelhança do que fazem na Mealhada.
No exterior está um generoso conjunto de grandes depósitos (de 50 a 150 mil litros) onde estão os vinhos vinificados. Os vinhos por aqui ficam, muitas vezes um ano ou dois, antes de transitar para madeira ou garrafa.
A adega recebe, das vinhas da casa, apenas 180 toneladas de uva tinta e 10 toneladas de branca. Pouca quantidade para a área de vinha, mas existe uma explicação: “preferimos qualidade em detrimento da quantidade”, afiança Gonçalo. No total a adega recebe muito mais uva do que esta, através de contractos com muitos viticultores da região. No total, entram aqui em média, e por ano, 1,6 milhões de quilos. Como a adega foi projectada para o dobro, conseguem-se “fazer as coisas com calma”, garante o director de produção. Cerca de 70% vai para Vinho do Porto, o resto para vinho Douro. Tudo é engarrafado em Gaia.
Por baixo da adega, uma nova construção, com apenas alguns anos: a casa das barricas, que alberga os melhores vinhos tintos da casa. Todos os anos se compram barricas novas, mas predomina a madeira de carvalho francês. João Soares, o enólogo que vem da Mealhada, é o experimentador nato e por isso reina a diversidade de marcas. Por outro lado, a equipa de enologia descobriu que misturar barricas novas e velhas dá melhores resultados.
Um enorme património de tawnies
A enóloga Ana Urbano gere os stocks de um vasto património de Vinho do Porto. Só na Quinta do Cachão estão cerca de 500 mil litros, com datas a começar em 1982. O armazém principal fica a cerca de 2 quilómetros da adega e é constituído por um enorme edifício mesmo junto ao rio. A abertura da porta, no piso inferior, revela-nos um gigantesco pé direito, exibindo um telhado lá em cima, a mais de 10 metros de altura do chão. As retorcidas traves de madeira, de enorme tamanho e espessura, revelam que esta antiga adega está aqui há muitas, muitas décadas. As grossas paredes de pedra e as raquíticas janelas só realçam ainda mais a cinefilia do espaço, que nos leva a mente para séries de grandiosos cenários, como a Guerra dos Tronos ou o Senhor dos Anéis. Encostados à parede, diversos tonéis e balseiros de vários tamanhos e capacidades, até às dezenas de milhar de litros, por exemplo). Cada tonel tem vinhos de um ano só e aqui não há lotes. Este espaço consegue manter-se fresco todo o ano, mesmo quando estão 40 graus lá fora, garante Margarida.
A idade do edifício? Não se sabe ao certo e, pasme-se, não havia registo dele na câmara municipal. Um indício é a data inscrita num dos tonéis: 1853.
Este seria um local óptimo para fazer eventos vínicos e Margarida Valente sabe-o. O grande óbice, está bom de ver, é o afastamento dos grandes centros. A Régua está muito longe e mesmo o Pinhão dista quase uma hora de carro. A viagem por rio, contudo, é bem mais descansada, mas exige a passagem por barragens e respectivas eclusas: as mais próximas são Bagaúste, entre a Régua e o Pinhão, e Valeira, mais acima no rio. Menos mal que aqui não faltam cais de atracagem, incluindo o da Ferradosa. Este será um projecto para o futuro próximo, certamente, até porque uma casa anexa está já projectada para ser convertida em enoturismo. A exploração poderá vir a ser realizada com um parceiro especializado.
Ana Urbano traz-nos, entretanto, para o presente. “Envelhecemos aqui os vinhos, a maioria para fazer tawnies. Quando os vinhos chegam à qualidade que pretendemos, são enviados para Gaia e substituídos por vinho novo”. Ana prefere estagiar os vinhos em Gaia, que é uma zona mais fresca e húmida e os vinhos levam mais tempo a envelhecer.
Chega, entretanto, Albertino, o homem que toma conta dos vinhos. Quem pense que é só encher os tonéis e esquecer, engana-se. Um Vinho do Porto em estágio dá muito trabalho e as operações não admitem erros. Albertino passa por aqui todos os dias e, de vez em quando tem de arejar um vinho, instruído pela enóloga; ou seja, tira-se o vinho pela torneira de baixo, para um recipiente, e volta para o tonel por cima, através de mangueira. “Quando estão muito tempo fechados, os vinhos do Porto podem ficar com poucos aromas; o arejamento reanima-os”, esclarece Ana. Outra tarefa frequente é, por exemplo, arranjar um tonel que começou a verter e lá se tem que chamar um tanoeiro, coisa nada fácil nos dias que correm.
Fazer os lotes, já em Gaia, é das tarefas favoritas de Ana. Até porque os vinhos podem ser caprichosos. Diz ela que “nunca recuso um lote só porque à primeira parece não funcionar. No dia seguinte pode estar muito diferente e…. muito melhor. Os vinhos têm que casar…”. A técnica de laboratório da casa, Ana Maria, ajuda nesta tarefa.
Vinha no Cachão
Depois de adquirida, a quinta foi alvo de uma grande reestruturação. As castas típicas do Douro, claro, mas já separadas por talhões. Esta quinta terá sido mesmo a pioneira no Douro neste sistema de gestão da vinha. De esses tempos até hoje, a vinha foi sofrendo reestruturações, a cargo das gerações seguintes. Ana consegue assim fermentar casta a casta e depois fazer blends. É quase tudo tinto, excepto um bocadinho de Malvasia e Rabigato. Esta região é muito quente para brancos, afirma Ana. A maior vinha ocupa uma boa parte do monte de Santa Bárbara, encimado por uma capela, a mais de 300 metros de altura. A enorme vinha estende-se até ao rio, quase 200 metros mais abaixo. A plantação mais recente foi um pouco de Sousão, há dois anos, para se conseguir “um pouco mais de acidez”, diz Ana. No total estamos a falar de cerca de 90 hectares, uma vinha de tamanho considerável no Douro e um património invejável. O maior desafio aqui é, cada vez mais, a falta de mão-de-obra, especialmente na vindima. Este problema, diga-se de passagem, é neste momento transversal a todo o Douro.
Rumo à Mealhada
Saímos do Douro em direcção ao sul, para a Mealhada. Pelo meio, mais ou menos, fica a Quinta do Penedo, a operação Dão da Messias. Junto à Aldeia de Carvalho, Mangualde, esta quinta foi adquirida pela Messias em 1999 e pouco tempo depois estava em reestruturação, com as castas mais típicas do Dão. No portefólio da casa, o Dão ocupa pouco espaço, até porque a área de vinha é aqui a mais reduzida de todas as regiões: tem apenas 20 hectares de vinha, que dá origem a três tintos e um branco.

Chegamos finalmente à Bairrada, onde o destino é de imediato a enorme Quinta do Valdoeiro, uma das maiores áreas contíguas de vinha da região, com 70 hectares de videiras. Esta quinta tem a particularidade de ser atravessada pela linha de comboio da Beira Alta, que separa a vinha em duas partes. Um enorme edifício vê-se ao longe, mas não é a adega. Eram construções de uma antiga exploração de gado.
Para o visitante, esta vinha é de facto de uma beleza surpreendente, também pela sua extensão e morfologia, instalada num vale de colinas suaves, entrecortado aqui e ali por pinhal. Que contraste face ao tom rústico e selvagem do Douro! Em vez de xisto, o solo aqui é predominante argilo-calcário. O clima é também muito diferente, marcado substancialmente pela proximidade ao Atlântico, a uns meros 35 quilómetros: “é mais temperado que no Douro”, atira-nos Messias Vigário, administrador e responsável comercial da casa. Ou seja, menores amplitudes térmicas e muito mais humidade, dois factores que fazem muita diferença no vinho (sobretudo na acidez), mas, no caso da humidade, costuma colocar aqui grande pressão de doenças fúngicas, muito mais do que no Douro. Mas longe vão os tempos em que se faziam de 12 a 14 tratamentos; nesta altura fazem menos de metade, uma maravilha em termos económicos e ambientais.
Conseguir maturações completas é o outro grande desafio. A casta tinta rainha da Bairrada, a Baga, é das menos exigentes, porque se conseguem excelentes vinhos com graus alcoólicos abaixo dos 13,5 graus. Outras castas tintas precisam de maior grau, mas, verdade seja dita, os últimos anos têm ajudado, com épocas de vindima secas. Outro ponto a favor é a recente máquina de vindimar, que consegue fazer 5 a 6 hectares por dia. “Foi um alívio, porque em alguns anos isto era um sufoco com falta de mão-de-obra”, garante José Vigário, o administrador da casa com o pelouro financeiro. Manuel António acrescenta: “antes tínhamos 60 pessoas a vindimar e levávamos mais de 20 dias a apanhar… hoje fazemos tudo em metade do tempo”. A máquina tem outra enorme vantagem: colher as uvas mais próximas do ponto óptimo de maturação, uma etapa crucial para a qualidade dos vinhos. Sem ter medo da chuva, o eterno problema nesta região (e em outras). Manuel António e Gonçalo Lousada adoravam levar a máquina para o Douro, mas tal não é possível, claro, pela inclinação do terreno.

É neste contexto que trabalham João Soares e o técnico de viticultura Manuel António, que estão juntos na Messias há mais de 18 anos, um caso raro de longevidade nesta fileira. E conseguem produzir todos os anos um belo portfolio de vinhos, desde espumantes até tintos, com uma notável consistência de qualidade. Mesmo no Valdoeiro colheita, cuja produção chega às 60 ou 70 mil garrafas. Este que é, diz João Soares, o “grande desafio enológico: fazer 3 ou 4 mil garrafas de um vinho especial não é muito difícil aqui no Valdoeiro”.
As uvas vão para a sede da casa, na Mealhada, onde as instalações possuem tudo o que é necessário para produzir bons vinhos e espumantes. Produzir e, acrescentamos, armazenar, especialmente no caso dos espumantes, que precisam de muito tempo em garrafa antes de irem para o mercado. Não espanta assim que a Messias tenha em stock mais de um milhão de garrafas de espumante, um negócio “importantíssimo e em crescimento” para a família, nas palavras de Messias Vigário. Sem contar com o Vinho do Porto, o sector ‘espumantes’ representa 30% da facturação e tem tido muito sucesso também na exportação. Messias Vigário diz que, pela Europa fora, os enófilos começam a conhecer e gostar do espumante português.
Alguns deles aparecem na Mealhada, onde hoje têm melhores condições para serem recebidos. A casa fez obras recentes na recepção e possui uma elegante loja com espaço, num piso superior, para fazer algumas provas.
Vasto portefólio
Uma parte do que é vinificado na Messias não vai para produtos da casa. Em particular no Vinho do Porto, onde o negócio vai para a venda de vinho a grandes casas. Uma parte do vinho feito com uvas do Douro, contudo, fica nos armazéns, em Gaia. Vai para marcas da casa, brancas e tintas, e em todos os estilos. Os tawnies, contudo, têm especial destaque. É por isso que a Messias possui uma das mais vastas colecções de ‘colheitas’, com data de vindima. Uma parte está até disponível para aquisição no site da empresa, com datas que recuam até 1962. Por lá estão também quatro tintos emblemáticos. Destacamos três deles: um é o Triunvirato, lote de vinhos do Douro, do Dão e da Bairrada. Outro vinho invulgar chama-se Dados, um Douro feito na colheita de 2009 em parceria com o enólogo espanhol Javier Rodriguez. Não teve continuidade. Finalmente, o Clássico, o Baga da Bairrada que apenas é feito em anos de enorme qualidade.
De resto, o portefólio é enorme e só uma pequena parte foi aqui avaliada. O grande objectivo estabelecido para o futuro pelos seus timoneiros, José e Messias, é ir subindo paulatinamente a qualidade dos vinhos e, ao mesmo tempo, o seu valor no mercado. A equipa de gestão, incluindo os técnicos, sabe que este desafio não é fácil: implica pequenas afinações em todo o processo, melhorias constantes, e, claro, alguma sorte, em especial no clima. A exportação tem ajudado, com 65% dos vinhos a ir para o estrangeiro. A Alemanha é, de longe, o maior mercado, e com pouca ajuda do chamado ‘mercado da saudade’. Ou seja, os alemães gostam mesmo dos vinhos da casa.
A caminho do século
O percurso da Caves Messias sempre foi discreto, mas o observador mais atento percebeu que os vinhos que daqui têm saído, sejam eles Douro, Dão ou Bairrada, generoso ou espumante, mostram um trabalho cada vez mais sério e sustentado em experiência e conhecimento. A empresa continua a singrar e apresta-se para fazer um século de actividade em 2026. Pode parecer que ainda falta muito, mas não é assim. Não é cedo, por exemplo, para preparar um Vinho do Porto, um tinto muito ambicioso ou um espumante com estágio ‘sur lies’. A família sabe-o e, em conjunto com os técnicos, já estão a preparar “qualquer coisa”. João Soares não adianta mais, mas será certamente algo em grande. E faz bem, porque a casa Messias merece-o.
Edição nº 34, Fevereiro de 2020